Aprender Matemática na escola versus ser...

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1 Aprender Matemática na escola versus ser matematicamente competente – que relação? Elsa Fernandes João Filipe Matos Universidade da Madeira Universidade de Lisboa [email protected] [email protected] Na última reorganização curricular do ensino básico em Portugal surge, pela primeira vez, um currículo que coloca grande ênfase em torno do desenvolvimento de competências. O Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais (2001) defende que o processo de ensino aprendizagem deve assentar no desenvolvimento de competências gerais a desenvolver ao longo do todo o ensino básico bem como de competências específicas que se relacionam com cada uma das áreas disciplinares e disciplinas, em cada um dos três ciclos e no conjunto dos três. O documento supra citado assume uma noção ampla de competência. “(...) que integra conhecimentos, capacidades e atitudes e que pode ser entendida como saber em acção ou em uso. Deste modo, não se trata de adicionar a um conjunto de conhecimentos um certo número de capacidades e atitudes, mas sim de promover o desenvolvimento integrado de capacidades e atitudes que viabilizam a utilização dos conhecimentos em situações diversas, mais familiares ou menos familiares ao aluno”. (Ministério da Educação, 2001, p. 9) Assim, assume-se que um currículo com este tipo de objectivos pretende formar pessoas que sejam matematicamente competentes o que, de acordo com o documento, envolve, de forma integrada, “um conjunto de atitudes, de capacidades e de conhecimentos relativos à Matemática” (p. 57). No citado documento pode ler-se ainda que “o desenvolvimento do currículo de Matemática deve ser visto como um contributo, a par e em articulação com outros, para a promoção de competências gerais do ensino básico” (p. 58).

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Aprender Matemática na escola versus ser matematicamente competente – que

relação?

Elsa Fernandes João Filipe Matos

Universidade da Madeira Universidade de Lisboa

[email protected] [email protected]

Na última reorganização curricular do ensino básico em Portugal surge, pela

primeira vez, um currículo que coloca grande ênfase em torno do desenvolvimento de

competências. O Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais (2001)

defende que o processo de ensino aprendizagem deve assentar no desenvolvimento de

competências gerais a desenvolver ao longo do todo o ensino básico bem como de

competências específicas que se relacionam com cada uma das áreas disciplinares e

disciplinas, em cada um dos três ciclos e no conjunto dos três.

O documento supra citado assume uma noção ampla de competência.

“(...) que integra conhecimentos, capacidades e atitudes e que pode ser entendida como saber em acção ou em uso. Deste modo, não se trata de adicionar a um conjunto de conhecimentos um certo número de capacidades e atitudes, mas sim de promover o desenvolvimento integrado de capacidades e atitudes que viabilizam a utilização dos conhecimentos em situações diversas, mais familiares ou menos familiares ao aluno”.

(Ministério da Educação, 2001, p. 9)

Assim, assume-se que um currículo com este tipo de objectivos pretende formar

pessoas que sejam matematicamente competentes o que, de acordo com o documento,

envolve, de forma integrada, “um conjunto de atitudes, de capacidades e de conhecimentos

relativos à Matemática” (p. 57). No citado documento pode ler-se ainda que “o

desenvolvimento do currículo de Matemática deve ser visto como um contributo, a par e

em articulação com outros, para a promoção de competências gerais do ensino básico” (p.

58).

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Pareceu-nos pertinente discutir algumas ideias relacionadas com esta problemática à

luz das teorias pelas quais nos interessamos e usamos nas investigações que realizamos.

Assim, emerge a necessidade de um posicionamento perante o que significa fazer

Matemática, aprender Matemática e ser matematicamente competente.

Na Escola, aprendemos certas formas de conhecimento matemático, e ficamos

incapacitados de ver a importância de outras que não são aprendidas escolarmente.

Diferentes formas de Matemática resultam de diferentes modos de pensar que

existem em diferentes grupos culturais.

Ou seja, diferentes grupos culturais – engenheiros, crianças, informáticos, etc. – têm

distintas formas de raciocinar, medir, codificar ou classificar. Consequentemente, cada

grupo tem a sua própria etnomatemática, incluindo os matemáticos profissionais

(Frankenstein e Powel, 1994). Este aspecto tinha já sido convenientemente aprofundado por

Borba (1990):

“Etnomatemática é o conhecimento matemático expresso na linguagem de um determinado grupo cultural. (...) Mesmo a Matemática produzida pelos matemáticos profissionais pode ser vista como uma forma de etnomatemática”

(Borba, 1990, p. 40 em Frankenstein e Powel, 1994, p. 79)

Assim, assumimos a ideia de Matemática como o ‘conhecimento matemático

expresso na linguagem de um determinado grupo cultural’.

Com o objectivo de suportar a discussão que será feita em termos do que significa

aprender Matemática e ser matematicamente competente apresentamos os dois episódios

que se seguem. Estes são excertos de aulas de Matemática Aplicada e Práticas de

Serralharia, de um curso de Formação Profissional denominado Técnico de Serralharia

Civil, ministrado por uma Escola de Formação Profissional do Funchal, que serviram de

dados para um estudo cujo objectivo era “[I]dentificar e caracterizar a actividade

matemática dos alunos em práticas não socialmente definidas como Matemática e perceber

como é que essa actividade matemática pode ser ligada ao currículo da Matemática escolar

e ao seu desenvolvimento” (Fernandes, 2004).

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A Área do Pentágono Regular

C

B

D

A

(...) Depois de terem encontrado o cateto oposto do triângulo [ABC] utilizando a igualdade

cos α = cateto adjacente/hipotenusa (resolução feita no quadro, pelo professor, que colocando

questões aos alunos, os guiava para o tipo de respostas pretendidas). Professor: Então já sabemos a altura. O que falta saber agora? Paulo (depois de 6 segundos): Falta saber o ... Professor: A base, não é? Falta saber a base. Qual será o procedimento? Vamos descobrir este ‘bocado’ (apontando para o [AB]) e depois é só multiplicar por ... Richard: por 2 Professor: Por 2, não é? Os alunos procuram encontrar a medida do [AB]. O professor, depois de algum tempo, percorre a sala a observar o trabalho dos alunos. De repente, comenta: Professor: O que estão a fazer? Através da hipotenusa? Richard: Sim. Professor: E você Paulo? Paulo: Igual. Professor: João? João: Igual. Richard: Estamos a usar o Teorema de Pitágoras. Professor dirige-se para o quadro para fazer a correcção . João: Mas fazendo pelo sen também dá, não dá? Professor: Sim... era isso que eu esperava que vocês fizessem. (...)

Calcule a área de um pentágono

regular, inscrito numa

circunferência de raio 4 cm.

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O Teorema de Pitágoras Escondido Os aprendizes construíam uma peça com a forma rectangular que iria servir de tampo para uma cadeira. O Paulo mede 6 cm num dos lados e faz um pequeno traço na peça. Depois mede 8 cm no lado perpendicular ao primeiro medido e faz de novo uma marcação. Finalmente, mede a distância entre a primeira marcação e a segunda. Depois comenta com o Alberto: Paulo: Não está. Temos que desmanchar. Investigadora: Porquê? Paulo: Tem 102 mm. Investigadora: E então? Alberto: Tinha que ter 100. Investigadora: Porquê? Paulo: Nós usamos sempre estas medidas 6, 8 e 10. Investigadora: Mas... Alberto: Normalmente, usamos o esquadro. É mais fácil. Vê-se logo. Mas não havia aqui nenhum. Investigadora: Mas porquê 6, 8 e 10? Paulo: Se tiver essas medidas, está em esquadria. Investigadora: Como é que sabem? Silêncio. Nesse momento o Mestre, que escutava atentamente a nossa conversa, aproxima-se e diz: Mestre: Quando vos ensinei isso, expliquei que era o Teorema de Pitágoras, não expliquei? Ao lado, encontrava-se Richard a construir uma outra peça. Richard: Trinta e seis mais sessenta e quatro dá cem. Mestre: Pois.

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O que significa aprender Matemática?

Analisando os episódios ‘A área do Pentágono Regular’ e ‘O Teorema de Pitágoras

Escondido’ podemos questionarmo-nos se estes alunos aprenderam Matemática. Para

responder a esta questão temos que analisar outra mais abrangente que é o que significa

aprender Matemática?

‘Saber Matemática’ implica, de acordo com alguns autores, conhecer factos

matemáticos, saber usá-los em “novas situações” e saber pensar matematicamente (Matos,

2004). Mas no caso concreto destes aprendizes de serralheiro, o que podemos referir sobre

a capacidade de utilizar conhecimentos matemáticos em novas situações, nomeadamente

em situações não matemáticas. A questão é que, de acordo com Matos (2004) é necessário

que exista algum conhecimento acerca dessas ditas “novas situações” para que se torne

possível o uso da Matemática. Estes alunos sabiam já bastante de serralharia (a nova

situação) mas apenas um (o aluno com mais conhecimentos em Matemática – tinha o 11º

ano da escola pública) conseguiu identificar a utilização do Teorema de Pitágoras no

procedimento de verificar se os lados de uma peça de forma rectangular estavam em

esquadria aquando da construção da mesma na prática de serralharia. Ou seja, apesar de

todos conhecerem já bastante sobre a serralharia e de todos conhecerem o Teorema de

Pitágoras, apenas o que conhece mais factos matemáticos consegue identificar um deles

num procedimento que aparentemente tem pouco de matemático e muito de serralharia.

Na aula de Matemática, a maioria dos alunos identificou uma situação na qual

poderiam utilizar o Teorema de Pitágoras, sem que isso lhes fosse pedido e sendo

aparentemente mais lógico que utilizassem a expressão do seno, visto que para calcular o

cateto oposto tinham utilizado a expressão do co-seno. Tal não aconteceu e os alunos

fizeram uma conexão com o Teorema de Pitágoras, talvez pelo facto na figura que o

professor desenhou no quadro, figurar a sinalização de um ângulo recto.

A maioria dos alunos não fez conexões entre o que aprendeu na aula de Matemática e

a Matemática usada na Serralharia. A que se deve tal facto? A Matemática, muitas vezes,

surge incorporada nas ferramentas e nas práticas e não é visível para os aprendizes de

serralheiro. Quando ela surge de uma forma mais explícita, os aprendizes de serralheiro

também não fazem conexões. O mesmo acontece na escola, com as diferentes disciplinas.

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Os alunos sabem, por exemplo, resolver equações na aula de Matemática e não as sabem

resolver na aula de Física.

As tarefas matemáticas evidenciadas pelos dois episódios são realmente bastante

semelhantes em termos de forma. E em termos de função? O que poderemos dizer sobre

cada uma delas? Quais são as características estruturais do cenário real? Assemelha-se mais

à prática de Serralharia ou à da Matemática escolar (em termos de onde reside a

autoridade)? Quais as características estratégicas do cenário real? Privilegia a linguagem da

Serralharia ou a linguagem matemática)? (Dowling, 2001). A situação de utilizar o

Teorema de Pitágoras para perceber se os lados de um determinado objecto estão em

esquadria surge como um problema do aprendiz, que ele tem que resolver para construir o

objecto em causa. Da construção de um objecto em serralharia fazem parte, entre outras

coisas, a resolução de uma questão que nós, educadores matemáticos e matemáticos,

identificamos como sendo Matemática. E os aprendizes de serralheiro, como é que a vêem?

Para os aprendizes, ela faz parte da arte de serralheiro, tal como desenhar, medir, soldar,

cortar. A Matemática surge entrançada com as outras actividades de serralharia. Aprender

Serralharia é aprender a englobar todas estas ‘técnicas’ num todo, que possibilita a

construção de um determinado projecto. Saber cada uma das técnicas separadamente não

implica necessariamente saber construir uma cadeira ou uma janela.

Analogamente em relação à Matemática temos que questionar se um aluno que

domina as diferentes técnicas de cálculo e algoritmos mas que não consegue resolver um

problema onde essas técnicas surgem incorporadas, sabe Matemática? Ou será que saber

Matemática envolve mais do que isso? Não será importante desenvolver nos alunos o

pensamento matemático?

Uma das razões fundamentais apontadas por diversos autores para se ensinar

matemática na escola é o facto de se querer contribuir para desenvolver nos alunos o

pensamento matemático. Mas o que significa pensar matematicamente? Os serralheiros

pensam matematicamente? Se assumirmos que pensar matematicamente tem que ver com

ter um ponto de vista matemático sobre as coisas, então é essencial desenvolver esse ponto

de vista nos alunos e isso implica necessariamente o conhecimento de factos matemáticos

mas também a análise de situações que consideramos tipicamente fora da matemática

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(sejam elas consideradas aplicações da matemática, modelação matemática, matemática

realista, investigações, etc) (Matos, 2004).

Daqui decorre que aprender matemática não pode ser entendido como adquirir (e

demonstrar) certas destrezas no jogo de linguagem em que se pode transformar o trabalho

na matemática escolar. Aprender matemática é um elemento residual do envolvimento dos

alunos em práticas que envolvam a necessidade da percepção e do desenvolvimento de um

ponto de vista matemático sobre as coisas (Matos, 2004).

O que significa ser matematicamente competente?

De acordo com Wenger (1998) a competência é criada e definida na acção. Assim

sendo, os participantes numa comunidade de prática devem ter oportunidades para

desenvolver as suas competências, ou seja, (i) ocasiões para aplicar habilidades, criar e

partilhar soluções para problemas surgidos ou propostos e tomar decisões quer em pequeno

grupo quer em grande grupo; (ii) ocasiões para apresentar os seus trabalhos a outros e para

sujeitar-se a avaliação crítica; reconhecer diferentes estilos de fazer as coisas e confrontá-

los com os seus próprios tirando daí implicações; “criar espaço e disponibilidade que

encoragem a expressão da diferença integrando estilos e formas de trabalho diferentes”

(Matos, 2003, p. 10); criar espaços para a negociação do significado e desenvolvimento de

empreendimentos comuns, (iii) envolver artefactos (físicos ou conceptuais) que ajudem a

desenvolver a competência. Tudo o que Wenger (1998) afirma sobre competência

aproxima-se do que se pode ler no Currículo Nacional do Ensino Básico a este respeito.“A

competência diz respeito ao processo de activar recursos (conhecimentos, capacidades,

estratégias) em diversos tipos de situações, nomeadamente em situações problemáticas. Por

isso não se pode falar de competência sem lhe atribuir algum grau de autonomia em relação

ao uso do saber”(Ministério da Educação, 2001, p. 9”). Mas Wenger (1998) afirma que

ajudar a sustentar o engajamento é apoiar a formação de comunidades de prática. E a

aprendizagem que tem lugar numa comunidade de prática é vista como um aspecto integral

da prática, o que é substancialmente diferente de pensar a aprendizagem com o foco

analítico no indivíduo como alguém que aprende e da prática engolida por processos e

teorias de aprendizagem, que é normalmente o que acontece quando se usa uma abordagem

tradicional no ensino da Matemática.

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Voltando ao episódio ‘O Teorema de Pitágoras Escondido’ podemos afirmar que os

aprendizes de serralheiro parecem ser competentes no sentido de Wenger (1998). Assim,

um serralheiro competente é aquele que é capaz de articular todos os saberes de modo a

construir uma determinada peça. Nestes saberes está incluído o saber matemático. Há um

conhecimento matemático tácito nas acções físicas dos serralheiros. A Matemática não

surge de forma convencional (escolar) mas nas acções dos serralheiros estão autênticas

experiências de uso da Matemática no contexto da serralharia. A Matemática usada e

aprendida na Serralharia surge entrançada nas ferramentas e na própria prática e as

ferramentas têm um papel importante na formação das ideias matemáticas dos serralheiros.

Não existe uma aprendizagem da Matemática isolada do resto dos segmentos de actividade

que compõem a serralharia. Ela emerge dos procedimentos desta actividade da prática e

incorporada neles.

Pensemos agora num aluno matematicamente competente. Provavelmente cada um

de nós criou uma imagem diferente, de acordo com as suas concepções acerca do significa

aprender Matemática. Para nós, um aluno matematicamente competente é aquele que é

capaz de articular os conhecimentos matemáticos que tem para resolver uma determinada

tarefa (seja ela proposta no âmbito escolar ou não escolar).

Outro autor que também escreveu sobre a competência foi Basil Bernstein. De

acordo com este sociólogo “(...) os procedimentos que constituem uma dada competência

podem ser vistos como sociais (Bernstein, 1996, pp. 55) e as competências são

intrinsecamente criativas e tacitamente adquiridas nas interacções informais. São

realizações práticas (Bernstein, 1996, 2000).

A noção de competência descrita por Bernstein não parece estar muito distante

daquilo que é defendido pelo Currículo Nacional do Ensino Básico.

Os modelos de competência têm como objectivo desenvolver competência. Os

modelos de desempenho pretendem desenvolver melhor desempenho (Fernandes, 2002a).

A reorganização curricular introduzida em Portugal em 2001, dá ênfase ao

desenvolvimento de competências nos alunos, o que implica a adopção de um modelo

pedagógico de competência (Bernstein, 1996, 2000). Mas este currículo ao sofrer uma

recontextualização de segundo nível, ou seja, ao ser recontextualizado pelo professores para

a prática pedagógica sofre transformações de acordo com as suas concepções acerca do

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ensino/aprendizagem da Matemática (Fernandes, 2004). Ainda hoje, muito do processo

ensino/aprendizagem, nas escolas portuguesas tem por base uma abordagem tradicional que

assenta, como vimos, num modelo pedagógico de desempenho, que pode ser mais simples

ou mais complexo. Parece, então, estarmos perante um paradoxo – desenvolver

competência com um modelo de desempenho. Temos que repensar o que se pretende para a

Escola. Formar cidadãos competentes ou formar pessoas capazes de desempenhar tarefas?

E se se pretende desenvolver competência e avaliar o desenvolvimento de competências

nos alunos, não se pode continuar a basear em processos avaliativos que apenas valorizam

o desempenho de tarefas.

Podemos questionar como se pode desenvolver competência utilizando processos de

ensino bastante agarrados a abordagens tradicionais?

As ideias defendidas pelo Currículo Nacional estão na linha do desenvolvimento de

competências, mas da teoria à prática há um grande passo a dar. Essas ideias, ao serem

recontextualizadas para a sala de aula (ver Fernandes, 2002b) sofrem transformações

substanciais.

Os princípios pedagógicos da Reorganização Curricular vêm reforçar a introdução

de mudanças na cultura e prática dos professores. Há uma mudança de um modelo

educacional baseado na ‘autoridade’ e ‘verdade’ para um modelo onde os alunos participam

como aprendizes activos e ‘construtores do saber’. No entanto, a socialização da maioria

dos professores, no activo, aconteceu sob princípios que distinguem o conhecimento e

experiências válidas das consideradas profanas. Neste novo contexto – o da Reorganização

Curricular – o discurso pedagógico dominante apela à valorização do que os alunos trazem

para a sala de aula. Este aspecto coloca os professores numa nova e difícil situação de

ensino e avaliação do trabalho dos alunos, onde reina o sentimento da incerteza. Perante a

incerteza, os professores optam, muitas vezes, pelo terreno onde se sentem mais

confortáveis e mais à vontade – um tipo de abordagem ao ensino da Matemática como

faziam antes da Reorganização Curricular ter sido proposta.

Se se pretende para as escolas portuguesas um tipo de prática Matemática escolar

diferente, é importante, para além de proporcionar condições de trabalho que se coadunem

com este tipo de objectivos, apoiar os professores no terreno, pois as grandes mudanças são

morosas e exigem muito trabalho apoiado.

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O que podemos nós aprender com a Serralharia como modelo de aprendizagem?

Na actividade de Serralharia não existem respostas certas ou erradas, visto que o

processo é também parte da solução. O objectivo é criar objectos sem defeitos, mas supõe-

se que aconteçam erros no percurso. A construção da experiência faz-se nestes avanços e

recuos, nos quais a aprendizagem ocorre. Nas aulas de Matemática os alunos, muitas vezes,

têm por objectivo encontrar a resposta correcta o mais rapidamente possível. O produto,

neste caso, é mais importante que o processo. (Fernandes e Matos, 2003).

A cooperação é importante para o encorajamento, para a resolução conjunta de

problemas, para a partilha de ideias, para ensinar os alunos com mais dificuldades

(Fernandes, 1998). Os aprendizes são encorajados a apreciar o produto bem como o

processo de criação e têm poder sobre o conhecimento que está a ser ensinado/aprendido.

São esses mesmos aprendizes que, muitas vezes, definem os problemas sobre os quais vão

trabalhar.

Na Serralharia, os princípios de avaliação residem no aprendiz de serralheiro. É ele

que avalia se utilizando um determinado processo consegue ou não construir um

determinado projecto a que se propôs. Na aula de Matemática, os princípios de avaliação

residem com o professor.

A flexibilidade e adaptabilidade são palavras muito usadas quando se pretende

‘definir’ o perfil do cidadão competente, capaz de ter sucesso no mercado de trabalho em

mudança e cada vez mais exigente. A abordagem tradicional da Matemática coloca a ênfase

no controlo e ordem na sala de aula e encoraja os alunos a seguir determinados métodos e

regras. A Educação Matemática virada para a conformidade e obediência é incompatível

com o desenvolvimento do pensamento crítico e capacidade de análise. Assim, reforçamos

que os alunos devem ter oportunidades para deixar actuar as suas competências,

nomeadamente do modo referido anteriormente em (i), (ii) e (iii).

As dissemelhanças estruturais e estratégicas entre a prática da Matemática escolar e

a prática de Serralharia colocam um desafio ao debate sobre a Escola ser ou poder ser o

contexto para a transmissão de habilidades que podem ser generalizadas de um modo

simplista para outras práticas, como a prática de Serralharia.

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