PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO … · GABRIEL RODRIGUES ROCHA . ... 4.1 A...

166
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA GABRIEL RODRIGUES ROCHA O DOMÍNIO DE SI MESMO (εγκράτεια) COMO CONDIÇÃO ÉTICO-EXISTENCIAL NA FILOSOFIA DE PLATÃO Orientador: Prof. Dr. Roberto H. Pich Porto Alegre RS, setembro de 2015.

Transcript of PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO … · GABRIEL RODRIGUES ROCHA . ... 4.1 A...

  • PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA

    DO RIO GRANDE DO SUL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    GABRIEL RODRIGUES ROCHA

    O DOMNIO DE SI MESMO () COMO CONDIO

    TICO-EXISTENCIAL NA FILOSOFIA DE PLATO

    Orientador: Prof. Dr. Roberto H. Pich

    Porto Alegre RS, setembro de 2015.

  • GABRIEL RODRIGUES ROCHA

    O DOMNIO DE SI MESMO () COMO CONDIO TICO-

    EXISTENCIAL NA FILOSOFIA DE PLATO

    Tese apresentada como requisito parcial e final

    para a obteno do grau de Doutor em Filosofia,

    pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    da Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul.

    Orientador: Prof. Dr. Roberto H. Pich

    Porto Alegre RS, setembro de 2015.

  • GABRIEL RODRIGUES ROCHA

    O DOMNIO DE SI MESMO () COMO CONDIO TICO-

    EXISTENCIAL NA FILOSOFIA DE PLATO

    Tese apresentada como requisito parcial e final

    para a obteno do grau de Doutor em Filosofia,

    pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    da Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul.

    Aprovada em: ________ de _________________de ___________.

    BANCA EXAMINADORA:

    ___________________________________________________________________

    Prof. Dr. Roberto R. Pich (PUCRS)

    ____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza (PUCRS)

    ____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Monsenhor Urbano Zilles (PUCRS)

    ____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Jayme Paviani (UCS)

    ____________________________________________________________________

    Prof. Dr. Luiz Rohden (UNISINOS)

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo com toda nfase ao orientador deste trabalho o Prof. Dr. Roberto Hofmeister

    Pich, sobretudo, por sua dosagem de ampla pacincia, ponderaes precisas e motivao.

    Agradeo igualmente aos Professores do Departamento de Filosofia da PUCRS, em

    especial apreo ao Prof. Dr. Srgio Augusto Sardi, a quem devo o estmulo permanente aos

    estudos platnicos e a tarefa no menos importante de educar jovens, mediante o ensino da

    filosofia; igualmente meus expressos agradecimentos ao Prof. Dr. Ricardo Timm que pela sua

    imensa sensibilidade intelectual e afabilidade nas relaes, sempre se tornou exemplo a reflexo

    filosfica e a necessria negao do dogmatismo; ao Prof. Dr. Monsenhor Urbano Zilles pelos

    incisivos apontamentos na banca de qualificao deste trabalho; ao Prof. Dr. Claudio Almeida

    em seu rigoroso ceticismo filosfico a demonstrar o quanto deve-se usar de cautela quando se

    pensa e se escreve-se qualquer coisa a que venhamos a chamar de filosofia; ao Prof. Dr. Ernildo

    Stein pelo o exemplo de permanente e saudvel insatisfao filosfica, o que gerou em

    minhas inquietaes os seguintes questionamentos: O quanto tem importncia o filsofo ao

    qual me dedico? E o quanto significativo o texto ao qual escrevo?

    Agradeo tambm aos secretrios, sempre diligentes e atenciosos, da secretaria do

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia da PUCRS, Paulo Roberto Soares Mota e Andra da

    Silva Simioni; e a PUCRS por proporcionar aporte financeiro em grande parte de meus estudos

    de Doutorado.

    E claro como no poderia deixar de s-lo dedico esta pesquisa a minha famlia, com

    carinhosa nfase a minha esposa Julhane Westphal e as minhas filhas Nathlia Westphal Rocha

    e Ceclia Westphal Rocha, porquanto em seus olhares e sorrisos renova-se a crena positiva

    sobre a humanidade e a crena verdadeira de que filosofar preciso para melhor conduzir-se

    na existncia.

  • A mais gloriosa batalha aquela que se

    consegue sobre si mesmo, e a mais vergonhosa

    derrota a que consiste em ser vencido por si

    mesmo.

    Plato, Leis, 626 e

    , ,

    ,

    '

    .

    .

    Plato, , 626 e 2-6.

  • RESUMO

    A partir da compreenso de duas particulares sentenas da Carta VII (331 d): Viver

    cada dia de modo a que fosse senhor de si mesmo ( ), o mais possvel; e

    (324 c): Quando eu era jovem, senti o mesmo que muitos: pensei, logo me tornasse senhor

    () de mim mesmo, ir direto poltica; a tese pretendera propor o quanto o conceito de

    (domnio de si) de excepcional importncia no conjunto da filosofia platnica, em

    distintas etapas, na produo escrita-dialgica do filsofo ateniense. Sugestiona-se que Plato

    evidencia uma real intencionalidade filosfica, no somente com a formao do domnio de si

    aos que intencionam ir a poltica, mas, tambm estendendo esta formao ao interior de cada

    individualidade partcipe na comunidade poltica; da mesma forma, props-se que o domnio

    de si acaba por se apresentar como o corolrio do conhecimento e do cuidado de si, tomando-

    os a estes, como conceitos essencialmente integrantes do platonismo. Conclui-se que o domnio

    de si mesmo uma potncia da faculdade superior da , e por isso uma virtude e uma

    purificao de si passveis de serem formados/configurados em cada individualidade psquica,

    constituindo-se assim como exerccio espiritual por excelncia. O objetivo desta prtica de si

    nunca se apresenta como pura formao terica, mas tambm sempre uma atividade, um

    movimento contnuo que prepara a melhor conduta tico-poltico-existencial humanamente

    possvel.

  • ABSTRACT

    From the understanding of two particular sentences VII of the Charter (331 d): "Live

    each day so that was master of himself ( ) as much as possible; "And (c

    324):" When I was young, I felt the same as many: I thought, soon I became lord () of

    myself, go straight to the policy; "The thesis intended to propose how the concept of

    (self-control) is of exceptional importance throughout the Platonic philosophy, at different

    stages in the production-written dialogue of the Athenian philosopher. It suggests that Plato

    shows a real philosophical intentionality, not only with the formation of self-control to those

    who intend "to go" policy, but also extending this training to the interior individuality of each

    participant in the political community; likewise, it was proposed that the other domain

    ultimately present as a corollary of knowledge and self care, taking them to these as essentially

    members of Platonism concepts. It concludes that self-control is a power higher college ,

    and so it is a virtue and a purification of themselves capable of being trained / configured on

    each psychic individuality, constituting as well as spiritual exercise par excellence. The purpose

    of this practice himself never appears as pure theoretical training, but is also always an activity,

    a continuous movement that prepared the ethical, political and existential conduct humanly

    possible.

  • Sumrio INTRODUO ...................................................................................................................................... 9

    1 PRIMEIROS FUNDAMENTOS TERICOS AO DOMNIO DE SI MESMO () ..................... 17

    1.1 O DOMNIO SOBRE SI MESMO COMO CUIDADO E CONHECIMENTO DA ALMA: A

    PREPARAO POLTICA: O CASO ALCIBADES .......................................................................... 21

    1.2 CONSIDERAES COMPLEMENTARES ....................................................................................... 35

    2 O NECESSRIO CONCEITO DE ALMA () ................................................................................. 38

    2.1 DOMINAR A SI MESMO GOVERNAR A PRPRIA ALMA ......................................................... 39

    2.2 EMPECILHOS AO DOMNIO DE SI MESMO ................................................................................. 58

    3 A PAIDEIA FILOSFICA DE PLATO: A CONSTRUO DA VIRTUDE, O USO DA PUNIO E A

    RELAO ENTRE FILOSOFIA E RELIGIO .......................................................................................... 81

    3.1 A CONSTRUO DA VIRTUDE () E O USO DA PUNIO .................................................. 82

    3.2 A RELAO ENTRE FILOSOFIA E RELIGIO ................................................................................. 95

    4 O DOMNIO DE SI MESMO E A FILOSOFIA DIALGICA DE PLATO ........................................... 113

    4.1 A APROPRIAO CORRETA NO USO DO LOGOS () ......................................................... 118

    4.2 O DOMNIO DE SI MESMO COMO CONSTRUO DISCURSIVA DE SI ..................................... 134

    5 A ALEGORIA DA CAVERNA ........................................................................................................... 144

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................................. 152

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: ..................................................................................................... 159

  • INTRODUO

    I

    Plato na Carta VII (331 d)1 ajuza a seguinte proposio: Viver cada dia de modo a

    que fosse senhor de si mesmo ( ), o mais possvel2. Este aconselhamento

    de caracterstica eminentemente prtica, porquanto implica a vivncia em cada dia, intenciona

    conduzir melhor ao, logo, pressupe a necessidade de saber dirigir-se atravs da formao

    de uma conduta tica e racional.

    Ainda no contexto da referida Carta VII (324 c), Plato, em sentena de sentido

    aproximado assere: Quando eu era jovem, senti o mesmo que muitos: pensei, logo me tornasse

    senhor () de mim mesmo, ir direto poltica.

    Estas duas proposies indicam a importncia do conceito de domnio ou de governo

    ou ainda, de poder sobre si mesmo, todos estes como possveis significados equivalentes do

    termo grego de 3.

    Conforme se compreende a partir da utilizao deste termo nas referidas sentenas da

    Carta VII, h duas hipotticas dimenses interpretativas as quais possvel asserir o seguinte:

    a) a sentena 324 c sugere o trabalho que deve o filsofo impor a si prprio se sua inteno

    ir a poltica; b) a sentena 331 d sugere uma proposio explicitamente abrangente

    direcionada no somente aos filsofos, mas a todos os integrantes de uma comunidade poltica,

    ou seja, ao homem comum, de maneira independente de sua condio social e mesmo

    intelectual.

    1 Sobre a edio aqui utilizada da Carta VII, o leitor encontra referncia completa nas referncias deste trabalho.

    Contudo, cabe ressaltar, que a edio utilizada composta de erudita, embora breve, Introduo de Terence Irwin.

    O autor destaca, que h, de sua parte, suspeita sobre a autenticidade da Carta VII. Para Irwin, o provvel autor

    seria o sobrinho e sucessor de Plato na Academia, Espeusipo. Contudo, assim como pode ser o caso pode tambm

    no o s-lo, complementa Irwin. Opta-se pela segunda alternativa. De acordo com ROSS, D. (1976, p. 10): A

    Carta VII escrita entre os anos de 353 e 352 a. C. O que a coloca entre os ltimos escritos de Plato, alguns anos

    antes de sua morte. Ajuza o professor Jos Trindade Santos: claro que as razes para recusar a autenticidade

    da Carta VII nos parecem persuasivas [...] Mas h ainda mais excelentes motivos para no relegar esse texto ao

    limbo dos apcrifos, pois, como se costuma dizer (em referncia a W. Guthrie. A History of Greek Philosophy V,

    Cambridge, 1978, 399-416), se no de Plato, de algum que conhece bem a filosofia platnica, ao longo da

    digresso (340 b-345c). Os manuscritos medievais que contm os dilogos platnicos incluem ainda 13 cartas

    que lhe so atribudas. A Stima a mais extensa. Ocupa-se sobretudo de alguns episdios turbulentos da histria

    da cidade grega de Siracusa, na Siclia, entre os anos de 360 e 350 a.C (quando Plato tinha 60 a 70 anos,

    envolvendo as relaes entre Plato, Dionsio II (tirano de Siracusa) e Don (um aristocrata siracusano ambicioso,

    associado Academia platnica). IRWIN, T. H. (Introduo da edio usada da Carta VII, p. 7. Ver bibliografia). 2 No contexto da referida Carta, Plato est aconselhando seus amigos siracusanos. 3 Ainda ter-se-ia como equivalentes: os termos de moderao, de vigor, de senhorio. Contudo, dar-se preferncia

    ao termo domnio e, por vezes, utiliza-se governo ou poder (como potncia).

    9

  • Do que se segue que h duas utilizaes do termo : uma direcionada a

    existncia humana em geral, outra, direcionada aos filsofos ou tambm, aos desejosos de se

    direcionarem a vida poltica4.

    Neste intuito a tese prope esclarecer trs objetivos cruciais ao tema sendo (a) o objetivo

    principal e (b) e (c) e (d) os objetivos secundrios. Estes objetivos so: (a) de que forma o

    domnio de si mesmo forma-se na interioridade da pessoa, ou seja, na ; (b) evidenciar em

    que sentido ocorre a relao entre o domnio de si mesmo e a formao daqueles que

    intencionam ir a poltica; (c) evidenciar que a formao do domnio de si mesmo direciona-

    se para cada indivduo partcipe na comunidade poltica; (d) evidenciar que o domnio de si

    mesmo o corolrio do conhecimento e do cuidado de si.

    O domnio de si mesmo nas duas hipotticas dimenses interpretativas, sugeridas sobre

    a utilizao do termo na filosofia de Plato, a partir da Carta VII, pressupem como

    condicionantes para a sua efetiva realizao s seguintes problematizaes: (a) o domnio de si

    mesmo endereado ao homem comum ou somente aos filsofos? (b) O que significa este si

    mesmo? (c) Por que tal imperativo torna-se necessrio para ir a poltica e obter o esperado

    xito () nesta atividade? (d) correto a hiptese de considerar o conhecimento e o

    cuidado de si como propeduticos ao domnio de si? (e) A tese da imortalidade da interfere

    no conceito de domnio de si mesmo, de que forma e em que sentido? (f) correta a hiptese

    de considerar o domnio de si mesmo como exerccio (espiritual) tico-existencial? (g) qual a

    funo da educao () no domnio de si mesmo? (h) qual a relao entre a formao do

    domnio de si mesmo e a linguagem ()? (i) qual a relao entre o domnio de si mesmo e

    a faculdade superior da ()? (j) qual a relao entre o domnio de si mesmo e a questo da

    virtude () (k) existem empecilhos ao domnio de si mesmo?

    O conjunto destas questes j adiantam o quanto a utilizao do conceito de

    na filosofia de Plato representativo no conjunto de sua extensa produo escrita. Neste

    sentido o trabalho a ser desenvolvido aponta para alm do contexto particular da Carta VII.

    O ttulo proposto sugere a integrao entre o conceito de domnio de si mesmo com a

    tica5 e com o conceito de existncia. Porquanto, o domnio de si mesmo caracteriza-se como

    4 Mesmo estes, os no-filsofos, indispensvel filosofar. Como se aprende do seguinte argumento da Carta VII

    (326 b): Fui obrigado a dizer, louvando a verdadeira filosofia, que a ela cabe discernir o politicamente justo em

    tudo dos indivduos, e que a espcie dos homens no renunciar aos males antes que espcie dos homens no

    renunciar aos males antes que a espcie dos filosofam correta e verdadeiramente chegue ao poder poltico, ou a

    espcie dos que tm soberania nas cidades, por alguma graa divina, filosofe realmente. 5 O que poder-se-ia chamar de tica em Plato pressupe o conjunto de prticas existenciais, ou exerccios

    existenciais que propem formar nas individualidades a virtude, sempre objetivando a vida melhor possvel, isto

    , a vida boa e justa, ou seja, feliz. Contudo, a virtude no est separada do uso que se faz da racionalidade. E

    ainda, fundamenta-se na proposta platnica de educao da . Ademais vlido inferir que a tica de Plato

    10

  • propsito terico-prtico para construir/formar/configurar, no interior de cada individualidade,

    naturalmente tendenciosa a filosofia ou no, condutas que se coadunem com a boa vida ou a

    vida de virtude. E propiciar aos indivduos esta formao tico-existencial, pressupe, em sua

    prpria prtica lhes modificar a existncia6.

    Ajuza-se que o conceito de domnio ou de governo de si mesmo um tema

    eminentemente platnico e, portanto, crucial ao que Plato propunha como .

    Neste sentido utilizar-se- como apoio metodolgico a tese proposta duas obras

    essenciais de Pierre Hadot: Filosofia como modo de vida e Exerccios espirituais e filosofia

    antiga.

    Os conceitos apresentados por Hadot permitem interpretar a Plato, como um filsofo,

    que une em suas asseres o plano terico e acadmico, direcionado aos iniciados a filosofia,

    porm, fortemente entrelaados ao plano prtico da existncia, ou seja, de aplicao prtica ao

    homem comum.

    A leitura de Hadot contribui, ao utiliza-la como uma chave hermenutica, tanto a uma

    nova possibilidade de interpretao das referidas proposies da Carta VII, como ao

    esclarecimento de certos caminhos percorridos na escritura platnica, antes e aps da referida

    Carta VII, dentro do escopo delimitativo do propsito aqui apresentado.

    Neste sentido cr-se atingir-se certa originalidade na forma como se apresenta, se

    compreende e se problematiza os temas e conceitos da produo escrita de Plato, em sua direta

    relao as inquiries sugeridas, e aos objetivos propostos na fundamentao desta tese.

    Utilizar-se- dos conceitos de exerccios espirituais e filosofia como modo de vida como

    mote interpretativo ao esclarecimento hermenutico das inmeras sentenas platnicas

    utilizadas neste trabalho. Porquanto, infere-se que tais conceitos se vinculam aos objetivos

    propostos.

    Acredita-se mediante firmes propsitos que o objeto das intenes filosficas de Plato,

    tornar factvel em uma srie de construes pessoais, isto , viabilizar a

    construo/formao/configurao na interioridade psquica dos indivduos, o governo sobre si

    se forma tambm, mediante postulados cosmolgicos. Portanto, a tica de Plato o resultado de inmeras

    questes que compem o platonismo. 6 Utilizamo-nos de BRISSON, L. (2010, p. 76) para ajuizar o sentido aqui tomado de existncia: A explicao

    biolgica (a zoologia) platnica teleolgica: um vivente uma organizao funcional, uma capacidade de

    exercer uma ou mais funes. Quando o corpo, mortal, j no tem condies de exercer suas funes (de nutrio,

    de reproduo e de defesa), o vivente morre, o que significa que a alma, imortal, se separa do corpo. [...] Princpio

    da vida, a alma tambm o sujeito da educao; a aptido da alma para ordenar suas prprias funes e para

    cuidar do corpo que permite distinguir os viventes.

    11

  • prprio, pois, em contrrio, os esforos para construir/formar/configurar o melhor Estado, sero

    estreis e infrutferos.

    Espera-se tornar demonstrvel com esta tese que o conceito de domnio de si mesmo,

    promove novas possibilidades a compreenso e anlise crtica da filosofia platnica.

    Quanto a pesquisa envolvida diretamente com os textos de Plato, alm da referida

    Carta VII, tem-se o estudo dos dilogos: Alcibades Primeiro, Alcibades Segundo, Apologia

    de Scrates, Eutidemo, Protgoras, Grgias, Fdon, Fedro, Repblica, Poltico, Teeteto,

    Sofista, Timeu, Leis.

    Evidente que no seria possvel e, nem este o objetivo se possvel fosse, de trabalhar

    em cada pormenor dos dilogos acima citados. H assim certos recortes, nuances e nfases de

    acordo com os propsitos sugeridos.

    A estrutura que apresenta a diviso de captulos assim composta: Introduo. Captulo

    1: Primeiros Fundamentos tericos ao domnio de si mesmo (); 1.1 O domnio sobre

    si mesmo como cuidado e conhecimento da : a preparao poltica: o caso Alcibades;

    1.2 Consideraes Complementares. Captulo 2: O necessrio conceito de alma (); 2.1

    Dominar a si mesmo governar a prpria ; 2.2: Empecilhos ao domnio de si mesmo.

    Captulo 3: A filosfica de Plato: a construo da virtude (), o uso da punio e

    a relao entre filosofia e religio; 3.1: A construo da virtude () e o uso da punio; 3.2:

    A relao entre filosofia e religio. Captulo 4: O domnio de si mesmo e a filosofia dialgica

    de Plato; 4.1 a apropriao correta no uso do logos (); 4.2 O domnio de si mesmo como

    construo discursiva de si. Captulo 5. A Alegoria da Caverna. Consideraes Finais.

    II

    As fontes primrias de pesquisa so textuais e, por conseguinte, utiliza-se das doutrinas

    escritas de Plato. Fora-se desenvolvendo uma hermenutica7 dos textos platnicos

    7 Na utilizao do conceito de hermenutica preciso asserir o elemento crucial que fundamenta tal modo de

    utilizar-se de textos filosficos. A isto, torna-se necessrio expor um conceito chave para a hermenutica, e este

    conceito o compreender. Conforme GADAMER (2002, p. 730): Quem quer compreender o texto, em princpio,

    disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Isto indica, que, para Gadamer, o pesquisador deva, como se

    espera que faa, compreender o texto, sem, no entanto, compreender tanto, que deixe o autor em contradio

    consigo mesmo. Neste sentido, continua: [...] Por isso, uma conscincia formada hermeneuticamente tem que se

    mostrar receptiva, desde o princpio para a alteridade do texto. Ou seja, na interpretao/compreenso do

    texto/autor, no ultrapassar o limite, dado pelo prprio autor/texto: O que importa dar-se conta das prprias

    antecipaes, para que o prprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim, a possibilidade de

    confrontar sua verdade com as prprias opinies prvias. Contribui STEIN, E. (2002, p. 100), sobre o que

    12

  • priorizando um possvel ordenamento. Mas esta possvel datao cronolgica considerada

    mais como um facilitador didtico-expositivo, e menos como um decisivo diferencial

    interpretativo. Porquanto a utilizao das obras de Plato d-se no critrio temtico e no

    necessariamente cronolgico.

    Por vezes utiliza-se em maisculo da palavra Estado. Este termo indica a Cidade-Estado

    em referncia a composio geogrfica, histrica e poltica das pleis. E no, portanto, na

    denominao Estado em sentido moderno do termo na construo dos Estados-nao. Do que

    se segue que o termo Estado, sendo as Cidades-Estado gregas, e, portanto, as pleis, tem-se a

    equivalncia com os termos de comunidade poltica e cidadania. Assim est-se em correta

    consonncia a Plato e aos gregos8.

    Cr-se que h em Plato um certo desenvolvimento escrito-terico, mas no no sentido

    de que j nos primeiros escritos j no estejam presentes princpios fundamentais como o

    prprio conceito de , mas, fundamentalmente no sentido de que estes princpios continuam

    a ser burilados, e a se desenvolverem com maior aprofundamento ao longo da produo

    platnica.

    Os dilogos dialogam com outros dilogos, por vezes h correes, por vezes

    apresentam-se inovaes. Um claro exemplo est na querela acerca da teoria das Ideias entre

    os dilogos Teeteto, Sofista e Parmnides. E ainda poderia acrescentar-se o dilogo Timeu.

    Assim prudente evitar o postulado de que tudo esteve sempre pronto desde os

    primeiros escritos de juventude. Pois acreditar nesta assertiva seria o mesmo que negar que a

    vida intelectual de um homem, mesmo em sua genialidade como em Plato, no viria por

    caracteriza a hermenutica filosfica em Gadamer: Verdade e Mtodo fala-nos de um acontecer da verdade no

    qual j sempre estamos embarcados pela tradio. Gadamer v a possibilidade de explicitar fenomenologicamente

    esse acontecer em trs esferas da tradio: o acontecer na obra de arte, o acontecer na histria e o acontecer da

    linguagem. A hermenutica que cuida dessa verdade no se submete a regras metdicas das cincias humanas, por

    isso ela chamada de hermenutica filosfica. Tambm consoante aos argumentos de Gadamer, esta tese tambm

    contm, um esforo hermenutico de compreender a doutrina escrita de Plato. Embora, isto no signifique a

    excluso da validade dos argumentos utilizados por Plato, a propsito, argumento defendido em HSLE (2008,

    p. 86), quando da anlise da tarefa hermenutica filosfica e do conceito de compreender. Infere o autor: Mais

    uma vez: a tarefa principal dos filsofos descobrir se o argumento exposto por um colega contemporneo ou

    falecido vlido, e no simplesmente compreend-lo. No entanto, para poder dizer algo relevante sobre sua

    validade, o filsofo tem primeiramente hav-lo compreendido, e s vezes isso muito mais difcil do que se pensa.

    Alm disso, compreender e valorar esto interligados em diversos nveis, mesmo se so atividades diversas

    direcionadas a objetos diversos a saber, significado e verdade. Um exemplo seria que com bastante frequncia a

    anlise lgica de um argumento chega concluso de que ele apenas vlido se so dados determinados

    pressupostos, e que a hermenutica pode nos ensinar que o autor em questo, ou at mesmo a poca em questo,

    de fato aceitava esses pressupostos, enquanto tempos posteriores no mais os partilham. (Na medida em que

    deveramos primeiramente encontrar uma interpretao benevolente de um texto que lhe atribusse tanta verdade

    quanto possvel, a hermenutica est ligada tambm tica.) 8 Consoante aos argumentos de BARKER, E. (1978, p. 33): Para os gregos, plis significava sempre uma

    comunidade, e no uma rea territorial. [...] qual a ideia em nome da qual essas pessoas se reuniam, e se

    estruturavam numa sociedade? H duas respostas possveis: a continuidade e as relaes de parentescos.

    13

  • acrescentar mediante a soma dos anos vividos, novos desdobramentos tericos, consequncia

    direta de seu prprio amadurecimento pessoal, e que, portanto, exercendo sobre este alguma

    modificao interna, no acabaria por viabilizar algum inevitvel aprimoramento, autocrtica e

    inovao9.

    A maioria das passagens citadas dos Dilogos, embora sejam feitas em lngua

    portuguesa, possuem em acrscimo, geralmente em notas, de sua verso textual grega. Para

    tanto utiliza-se da edio Cambridge/Harvard: Plato in Twelve Volumes, que em sua verso

    bilngue grego/ingls, possuem ao longo de seus volumes a contribuio de diferentes

    tradutores, neste caso, evidentemente para a lngua inglesa.

    Utiliza-se tambm como material de pesquisa de inmeras tradues dos Dilogos para

    a lngua portuguesa, e que o leitor pode consultar de forma completa nas referncias finais deste

    trabalho. Na medida do possvel e necessrio, ocorre a consulta de artigos, porm a nfase d-

    se em livros.

    Ainda em sentido mais estritamente metodolgico, nas sentenas mais importantes

    coloca-se ao corpo da tese, entre parnteses, a palavra ou o argumento completo em lngua

    grega. Opta-se por no transliterar para o alfabeto latino as expresses gregas. E sempre que se

    usar de uma palavra em lngua portuguesa, mas querendo significar seu sentido grego, por

    exemplo alma para , ambas estaro juntas em sua primeira utilizao.

    Pede-se compreenso ao leitor (s), que embora tendo havido esforo quanto aos aspectos

    mais filolgicos desta tese, com grande probabilidade, devido falta de habilidades mais

    apuradas e especficas, erros sero encontrados. Contudo, espera-se que no em excessiva

    demasia.

    III

    Escolhe-se por no se adentrar a chamada questo socrtica10. Pois que esta devido as

    suas enormes dificuldades e aspectos inconclusos, mais impossibilitaria uma compreenso

    eficaz, do que de fato contribuiria a esta tese. Apenas se apresenta os argumentos seguintes,

    pois que estes vinculam-se diretamente a doutrina escrita de Plato. Logo, vincula-se a tese.

    9 Sobre este ponto, ver HSLE (2008, p. 78-79). 10 Basicamente, a questo socrtica postula questes acerca do que socrtico, no sentido histrico, e o quanto

    este Scrates da histria corresponderia ao Scrates, personagem dos Dilogos de Plato.

    14

  • Contudo no apenas a esta tese em particular, mas com qualquer tese que tome Plato como

    objeto.

    Do que se segue: h o seguinte argumento socrtico proferido na Apologia de Scrates

    (28 b): Por menos que valha uma pessoa, deve pensar no em morrer ou viver, mas se procedeu

    com justia ou injustamente em todos os seus atos. Seu significado muito prximo de

    sentido, para no dizer que possui sentido estritamente equivalente, do seguinte argumento

    encontrado no dilogo Leis (707 b): [...] o que mais importa para os homens no a existncia

    ou o simples fato de conservarem a vida, como pensa a maioria, porm tornarem-se to bons

    quanto possvel, e assim permanecerem enquanto viverem.

    O que nos ensina estes argumentos de significado equivalente, porm postos entre

    dilogos to distanciados em seu tempo de datao?

    Primeiramente, justifica o posicionamento aqui escolhido quanto a prioridade dada aos

    temas e problemas encontrados nos Dilogos de Plato, em detrimento a respectiva ordem

    cronolgica11. E tambm, e este o ponto de maior relevncia, pois, este questionamento traz

    consigo duas posies tericas discordantes sobre como se deve tratar de Scrates em relao

    aos escritos de Plato.

    11 A questo da cronologia dos Dilogos antiga e remonta a uma longa tradio. Alguns textos ainda so motivos

    de discusso, como por exemplo, a autenticidade da Carta VII, embora esta tenha nos ltimos tempos se

    consolidado como realmente de Plato. Entretanto, o mesmo no ocorre com as outras Cartas. O primeiro e o

    segundo Alcibades, ainda so motivos de controvrsias, bem como a autenticidade do Epnomis. Tambm

    questes sobre a ordenao dos dilogos, como onde, de fato, estariam localizados o Timeu e o Fedro. Aqui, opta-

    se por no adentrar em tal questo, mas fazer o anncio de algumas fontes com as quais concordamos. Por exemplo,

    em ROGUE (2005, p. 16-17), encontra-se: os socrticos com (em ordem cronolgica): Apologia, Crton, Hpias

    Menor, Laques, Crmides, Lsis, H. Maior, Eutfron, Protgoras, Alcibades I e II, todos estes trazendo a questo

    das virtudes, domnio de si e o saber do saber; os intermedirios, divididos entre aqueles que trazem o mito e a

    influncia rfica-pitagrica, que correspondem ao Grgias, Mnon, Eutidemo, Crtilo, Menexeno, on e aqueles

    que trazem o dualismo ontolgico, temas disjuntivos (reminiscncia, fuga do mundo, participao, metempsicose)

    que correspondem ao Fdon, Banquete, Repblica e Fedro; e por fim, os dilogos tardios, estes com maior variao

    temtica, o Teeteto, Parmnides, Sofista, Poltico, Filebo, Timeu, Crtias e Leis. Maiores especificidades em alguns

    dilogos, sero colocadas ao longo do trabalho. Contudo, coloca-se o posicionamento de McCOY, (2010, p. 29),

    quando a autora infere que a: Apologia no deve ser tomada como uma reconstruo ou relato histrico do

    julgamento de Scrates, mas entendida fundamentalmente como a defesa retrica de Plato sobre Scrates.

    Todavia, infere-se que excluir toda a possibilidade de realidade histrica seja implausvel. Mas, por outro lado,

    correto considerar inmeras possibilidades de inferncias platnicas ao longo desta obra. O que consoante com

    a posio de VILHENA (1984, p. 390-391). Todavia, ainda sobre a questo da ordem geral da cronologia platnica,

    contribui REALE (p. 90-91), afirmando que pela ordem os ltimos escritos de Plato so: Teeteto, Parmnides,

    Sofista, Poltico, Filebo, Timeu, Crtias, Leis. Depois se estabeleceu em que a Repblica pertence fase central da

    produo platnica, precedida pelo Fdon e pelo Banquete e seguida pelo Fedro. Pde-se igualmente afirmar que

    um grupo de dilogos representa o perodo de amadurecimento e de passagem de fase juvenil fase mais original;

    o Grgias pertence com toda verossimilhana ao perodo imediatamente anterior primeira viagem Itlia e o

    Mnon ao imediatamente posterior. A esse perodo de amadurecimento pertence, provavelmente, tambm o

    Crtilo. O Protgoras , talvez, o coroamento da primeira atividade. Os outros dilogos, sobretudo os breves, so

    certamente escritos juvenis, como, de resto, confirmado pela temtica tipicamente socrtica que neles discutida.

    Alguns deles podem certamente ter sido retocados e parcialmente refeitos na maturidade [...]

    15

  • Pensar nesta diferenciao, contribui, sobremaneira, acerca de como deve-se interpretar

    e escrever sobre Plato. E em consequncia se esclarece os dois argumentos anteriormente

    apresentados proferidos na Apologia Scrates e Leis.

    Conforme Grube (1987, p. 16-17) - que por sua vez concorda com Burnet e Taylor - o

    Scrates dos dilogos platnicos , no essencial, o Scrates histrico, e que as teorias que

    Plato pe em seus lbios foram sustentadas por ele, todavia, a exceo estaria por conta da

    teoria das Ideias.

    A argumentao de Grube prope que Plato fora eminentemente socrtico e, quando

    Scrates fala nos Dilogos realmente o Scrates (histrico) que est falando. Ora, evidente

    que ento Plato concorda com Scrates e mais que isso, dissemina o socratismo atravs de sua

    produo dialgica. A propsito, cabe pergunta: Seria este o objetivo principal dos dilogos:

    fazer a apologia e disseminar o socratismo? Contudo, da mesma forma que tal caminho eleva a

    Scrates, por outro, diminui o platonismo. E ainda: Seria apenas a teoria das Ideias o produto

    da filosofia de Plato?

    Dado o prosseguimento nesta problematizao, encontra-se em dissonncia a Grube, a

    no- equivalncia entre Scrates de Plato e o Scrates histrico em Vilhena (1984, p. 390-

    391):

    O Scrates platnico o Scrates que era real para Plato, quer dizer o

    Scrates que realmente Plato via no seu mestre e tal como ele queria que

    Scrates realmente tivesse sido. O Scrates dos dilogos platnicos o

    Scrates visto atravs do temperamento, do pensamento e da poca de Plato.

    Neste sentido, um Scrates, de certo modo, construdo e fictcio [...]

    Admitir que toda imagem da uma grande figura histrica entra uma parte de

    construo, no significa reconhecer que este procedimento arbitrrio.

    Toda histria se constri.

    Conforme compreende-se, para Vilhena (p. 400-401,) os dilogos so livremente construdos, e no correspondem a um relato estritamente histrico, incluindo, consoante o

    argumento do autor, a obra Apologia de Scrates. Todavia, salienta, isto no diminuiria a

    importncia histrica dos Dilogos12. Mas, veja-se bem, a importncia histrica de algo ou

    algum, difere ou pode grandemente diferir do que de fato ocorreu historicamente. Para

    Vilhena, e este ponto importante, de certo modo Scrates uma construo. Bem, se de

    certo modo, no de modo pleno, e assim h viabilidade para a argumentao de Grube.

    12 VILHENA (1984, p. 350), faz a seguinte afirmao: Parece, todavia, que o problema da distino entre o

    Scrates platnico e o Scrates histrico surgiu na Academia. Na poca em que Aristteles a frequentava, na forma

    da primeira tentativa para separar a contribuio socrtica da contribuio platnica. Em Aristteles encontra-se

    na Metafsica (1078 b 27) a assertiva: Duas coisas devem com justia ser deixadas a Scrates: os argumentos

    indutivos e a definio universal.

    16

  • Mas quais dentre os dois argumentos apresentados, entre estes renomados comentadores

    e estudiosos o mais verdadeiro? No existe afirmativa. Acredita-se que os dois

    posicionamentos no sejam de todo autoexcludentes, mas so posies difceis de serem

    conjugadas. Pois para um, Grube, Plato relata de fato o Scrates da histria, para o outro,

    Vilhena, o Scrates de Plato uma construo em grande medida literria, fictcia, embora

    no necessariamente exclua caracteres histricos.

    A pergunta que cabe tese: Qual interpretao aqui privilegiada? Ambas. Porquanto

    se acredita que Grube tem razo quando diz que no essencial o Scrates histrico o Scrates

    de Plato, mas discorda-se quando se prope que apenas a teoria das Ideias pertence a Plato.

    Por outro lado, Vilhena apresenta muita coerncia quando afirma que toda grande figura da

    histria , de certo modo, uma construo, e que em parte o Scrates de Plato fictcio, ou

    seja, construdo para servir aos propsitos de quem se pe a escrever.

    Claramente o leitor h de considerar que a resoluo definitiva a este tema dos estudos

    socrticos-platnicos, longe se encontra de sua resoluo definitiva, e provavelmente ir

    permanecer, devido simplesmente ao fato de que Scrates nada escreveu.

    Ir alm deste ponto sobre a questo socrtica, por ora no nos permitido, mas

    acredita-se que tais inferncias muito contribua, como previamente afirmado, tanto a escritura

    da tese como a compreenso de Plato e seu mentor, Scrates.

    Pois o histrico do problema domnio de si mesmo inicia-se nos chamados dilogos

    socrticos ou dilogos de juventude, na temtica de cuidar da . Porm, o crucial:

    Plato que o expe.

    1 PRIMEIROS FUNDAMENTOS TERICOS AO DOMNIO DE SI MESMO ()

    De forma conclusiva a questo socrtica salientada na parte final na Introduo desta

    tese, mas que servir s pginas que se seguem, fundamentalmente na interpretao dos

    dilogos socrticos, usa-se a valiosa contribuio de William Prior, em artigo intitulado: O

    Problema socrtico, (2001, p. 47): o mtodo refutativo, pondera o autor, dos primeiros

    dilogos a contribuio de Scrates, mas as doutrinas filosficas positivas que podem a ser

    encontradas, como tambm nos dilogos posteriores, constituem a contribuio de Plato.

    Tal avaliao sobre os Dilogos so de fundamental importncia, porque este o

    caminho percorrido neste estudo, tanto em detrimento aos dilogos socrticos, bem como,

    aos demais dilogos em que Scrates o principal interlocutor.

    17

  • Em sntese ao que fora apresentado at este ponto, ajuza-se que o conceito de cuidado

    (/ ) da e de conhecimento de si mesmo ( ), embora

    vinculem-se aos primeiros dilogos de Plato chamados socrticos ou de juventude, e

    estejam associados tradicionalmente a filosofia socrtica, a forma de tratamento dado a estes

    conceitos, o sero a partir do ponto de vista da filosofia escrita de Plato.

    Em consequncia da interpretao sugerida neste trabalho, considera-se o tema do

    cuidado (/ ) da e do conhecimento de si como os primeiros

    desdobramentos, uma espcie de lanamento inicial (platnico) questo do domnio

    () sobre si mesmo13. Neste propsito hipottico justifica-se o captulo primeiro desta

    tese.

    Somado a esta proposta de interpretao sobre os fundamentos filosficos encontrados

    nos Dilogos, ao problema do domnio sobre si mesmo, tem-se como basilar fundamento desta

    tese, a seguinte assertiva de Pierre Hadot (2009, p. 138): Toda a filosofia exerccio, tanto o

    discurso para ensino como o discurso interior que orienta nossa ao. Evidentemente, os

    exerccios se realizam preferencialmente para o discurso interior.

    J neste ponto, a partir desta inferncia de Hadot, cr-se justificar a escolha deste autor

    como metodologia central para compreender-se o conceito de conforme os objetivos

    propostos.

    A filosofia de Plato, como demonstrar-se-, encontra-se includa nesta tradio de

    exerccio (), conforme prope Hadot.

    Infere-se que o discurso voltado ao ensino (externo) facilmente justificado na criao

    da Academia (387 a.C), e tambm na extensa produo escrita dialogal de Plato. Contudo, o

    dilogo ainda mais, pois se constitui em uma forma discursiva que viabiliza o acesso ao

    discurso que deve ser formado/produzido na interioridade dos indivduos14.

    A filosofia dialgica de Plato, sugere-se, formadora de subjetividade. Ou seja, ela

    impulsiona ao movimento de formao/transformao do sujeito mediante a si prprio. Assim

    o dilogo possui uma dupla tarefa: a de ensinar a filosofia (terica), mas tambm de ensinar a

    filosofar, e este filosofar caracteriza-se como exerccio espiritual, porquanto objetiva aquela

    13 Plato utiliza em seus dilogos tanto os termos de / como o termo de / . Utiliza-se mesmo dos dois termos em um mesmo dilogo, como o caso nos dilogos Alcibades

    Primeiro e Repblica. JAEGER (2001, p.528, nota 65), comenta que: a expresso cuidado da alma tem para

    ns um sentido especificamente cristo, porque se converteu em parte integrante desta religio. Isto se explica pelo

    fato de a concepo crist coincidir com a socrtica na ideia de paideia como o verdadeiro servio de deus e do

    cuidado da alma como a verdadeira paideia. No seu modo de formular esta concepo o cristianismo encontra-se

    influenciado pelo pensamento socrtico tal como o apresenta Plato. 14 A questo dos dilogos aparece ao longo desta tese, contudo, concentra-se prioritariamente no captulo 4.

    18

  • formao tico-existencial, caracterizando-se como instrumento de cuidado e conhecimento de

    si mesmo.

    Hadot assere que os Dilogos de Plato se caracterizam como exerccio espiritual15.

    Sendo esta forma de exerccio (2009, p. 137-38): uma prtica voluntria, pessoal, destinada a

    operar uma transformao do indivduo, uma transformao de si. Todavia, se como ajuza

    Hadot uma prtica voluntria, ento nem todos se dispem a realizar este exerccio que

    objetiva esta transformao, acrescenta-se formao, de si mesmo. Polo ou Clicles, por

    exemplo, no operam este exerccio espiritual. Teeteto, Glauco e Alcibades o praticam, embora

    este ltimo no tenha logrado ao objetivo proposto.

    O dilogo como de si mesmo, isto , como cuidado para com a , pode ser

    compreendido a partir de Hadot como exerccio espiritual que objetiva operar uma

    transformao de si. Embora no convenha que o dilogo seja considerado o nico exerccio

    espiritual e, tambm, no seja tomado como a nica forma de cuidar de si na filosofia de Plato.

    Ambos os conceitos: cuidado da alma e exerccio espiritual ultrapassam em seus objetivos a

    exclusividade da forma dialogal.

    Quanto a particularidade da forma do dilogo, ainda ajuza Hadot (2009, p. 140): as

    perguntas e as respostas esto destinadas a provocar no indivduo uma dvida, o que inclui uma

    emoo, uma mordedura, como afirma Plato. Este tipo de dilogo uma ascese16. Se trata,

    complementa, (Ibidem, p. 140): de elevar-se, de ultrapassar os raciocnios inferiores e,

    sobretudo, sobressair-se as evidncias sensveis, ao conhecimento sensvel, para elevar-se at o

    pensamento puro e ao amor da verdade.

    Esta ltima passagem referendada acima, destaca a forte funo epistemolgica da

    forma dialogal. O que complementa a citao anterior de ser a filosofia antiga direcionada ao

    ensino e ao discurso interior. Ora, a filosofia de Plato dialgica, no h coerncia em

    dissociar-se dilogo e filosofia, assim constituindo-se como exerccio () o dilogo

    ensina a formar crenas justificadas e verdadeiras e, para tanto, preciso prescindir das

    evidncias sensoriais. Tem-se em consequncia, a filosofia dialgica como ensino em suas duas

    dimenses, externo (aprendizado) e interno (transformao de si).

    15 HADOT (Id. Ibidem, p. 145) afirma que como demonstrado na obra de Paul Rabbow (Seelenfhrung. Methodik

    der Exerzitien in der Antike), a origem dos exerccios espirituais no possua origem religiosa, mas filosfica. 16 Conforme HADOT (2004, p. 273): Quase todas as escolas propem exerccios de ascese (a palavra grega

    asksis significa precisamente exerccio) e de domnio de si: h a ascese platnica, que consiste em renunciar

    aos prazeres dos sentidos e em praticar um regime alimentar, em certas circunstncias chegando, sob a influncia

    do neopitagorismo, at a abstinncia da carne de animais, ascese destinada a enfraquecer o corpo pelos jejuns e

    pelas viglias, para melhor viver a vida do esprito; [...]. Mais adiante ser demonstrado o aspecto de renncia do

    corpo dada a preferncia a alma.

    19

  • Contudo h ainda outro conceito, mais amplo, que contribui para compreender os

    objetivos de Plato que esto, como ajuizado, no restritos apenas a formao estritamente

    cognitivo-intelectual, mas indicam a uma melhor conduo da existncia, embora a primeira

    caracterstica sempre influencie decisivamente em seu segundo uso.

    O conceito de filosofia como modo de vida proposto por Hadot que, caracterizado nos

    exerccios espirituais intencionam resolver no apenas problemas tericos ou de raciocnio, mas

    preparar a vida prtica17.

    Assim o pensamento filosfico antigo, incluindo claro a filosofia platnica, no

    caraterizado apenas como um excessivo intelectualismo (ou racionalismo, comumente aplicado

    a Plato), preocupado somente com problemas abstratos (embora no exclua de maneira

    alguma, estes problemas), mas, tambm uma filosofia que denota preocupao com a vida

    ordinria dos indivduos, consoante a interpretao proposta, que intenciona proporcionar,

    verdadeiramente, uma interao verdadeira entre conhecimento e experincia.

    Neste vis interpretativo a relao de cuidado de Scrates para com Alcibades, no

    apenas para que este pense melhor, mas para que viva melhor. Tem-se envolvido toda a vida

    psquica do indivduo, suas crenas, o uso de sua inteligncia, mas tambm as suas emoes,

    seus desejos e apetites, sua moralidade e seu carter.

    Conforme ajuza Ruiz (2015, p. 1): A finalidade filosfica de criar uma forma de vida

    uma tarefa essencialmente tica. Alis, a tica era entendida como uma prtica constitutiva da

    forma de vida dos sujeitos. S h tica no modo como o sujeito constitui sua vida18. Contudo,

    quando se aplica tal juzo para a especificidade da filosofia platnica, pressupe-se

    indissocivel a relao entre o comportamento tico e o pensamento inteligente.

    Porquanto, Plato acredita que o pensar corretamente (filosfico/dialtico) prepara os

    indivduos a vida tica. Ou seja, no havendo modificao das crenas que formam o

    pensamento (e que tambm resultam na mentalidade coletiva de um determinado local), no h

    possibilidade de uma existncia tica. Evidentemente, vida tica, tal qual o modelo proposto na

    filosofia platnica.

    17 HADOT (2009, p. 147) cita como exemplo ao referir-se Plato, explicando o conceito de filosofia como modo

    de vida, o caso do dilogo Timeu, asserindo: [...] no fundo o Timeu , em efeito, um exerccio espiritual em que

    o filsofo intenta voltar a situar-se na perspectiva do Todo. Caracterizando o mesmo conceito, o autor oferece

    tambm o caso de Goethe (Id. Ibidem): um perfeito exemplo, j que todos os seus estudos naturalistas esto

    sempre ligados a certa experincia existencial. Portanto, este tipo de exerccio, como os demais, como no caso

    do prprio dilogo, so uma eleio a um modo de vida que se deseja levar, em se congregue saber e experincia. 18 Continua o autor (Id., ibidem, p. 1): Como consequncia, esse ethos influa nas formas coletivas que os sujeitos

    criaram na plis, poltica. Havia uma estreita relao entre a forma de vida (ethos) e a forma poltica de governo.

    20

  • E ainda assim a filosofia como modo de vida em Plato, acarreta uma consequncia

    especfica a quem intenciona dirigir-se a poltica. A poltica assume uma caracterstica de dever

    tico-epistmico a ser cumprido pelos filsofos ou por aqueles que filosofam.

    Este o retorno a Caverna, em que a Alegoria da Caverna19 indica claramente mediante

    a responsabilidade pblica e social do filsofo perante a comunidade poltica. Assim

    considerado, o conceito de filosofia como modo de vida, aplicado a Plato, carrega consigo este

    inevitvel telos poltico.

    Em sntese, tenha cuidado para consigo, aprenda a conhecer-se, tenha domnio de si

    mesmo, pratique a dialtica20, exercite-se na virtude e na inteligncia, pratique, portanto, estes

    exerccios espirituais que caracterizam um modo de vida filosfica (platnico), e somente ento

    assuma a arte de bem governar aos outros e a Cidade.

    1.1 O DOMNIO SOBRE SI MESMO COMO CUIDADO E CONHECIMENTO DA ALMA: A PREPARAO POLTICA: O CASO ALCIBADES

    Inicialmente no dilogo Alcibades Primeiro21 ( ), Scrates (103 a 104 a)

    justifica a Alcibades o porqu de apenas o observar durante anos, sem, no entanto, falar-lhe.

    Tal impedimento era dado pela divindade de Scrates (seu )22.

    Alcibades tratava a todos com desdm e julgava no precisar de ningum para nada,

    nem ao seu corpo e nem para sua alma. Scrates ambiciona demonstrar a razo do orgulho (

    ) de Alcibades.

    Este passo inicial importante, pois que Scrates assevera haver em Alcibades um

    excessivo orgulho, um amor de si mesmo, que lhe prejudicial e afasta-o mesmo de seus

    19 Tema desenvolvido no captulo 5. 20 Isto condiz com o filsofo dialtico que deve tornar-se filsofo-rei ou rei-filsofo, se coaduna, portanto, a uma

    formao especfica daqueles que devem governar. Ajuza GAZOLLA (2004, p. 684): O dialtico um homem

    convertido, tem phrnesis porque sabe sobre o prprio conhecer, sabe que deve voltar ao sensvel, vida prtica,

    com um saber dos fundamentos. Em Plato o filsofo sempre filsofo dialtico. Portanto, quando nos referimos

    ao filsofo, sempre deve-se acrescentar, mesma que no esteja textualmente colocado este qualitativo

    eminentemente platnico. 21 Para SZLEZK, T. (2009, p. 15), o dilogo Alcibades Primeiro, assim como o Teages e Clitofon, tem suas

    respectivas inautenticidades comprovadas. Porm, para Trabattoni (2010, p. 132) o dilogo Alcibades Primeiro

    autntico. 22 Xenofonte (Mem., I, I, 2) assere: Scrates afirmava que recebia avisos de um demnio. Consoante ao que

    argumenta Schfer (2014, p. 79 ss.): O conceito de demnio (daimn) n~]ao tem inicialmente uma associao

    negativa em grego. [...] em Plato, os deuses s podem provocar o bem; algo correspondente vale para os demnios

    como seres divinos. No entanto, h um indcio de um demnio aparentemente enganador (Fedro 240 a-b) [...] em

    Carta VII 336 b: um demnio ou uma divindade da vingana (alitrios) causou mal por injustia, impiedade e

    estupidez; supostamente uma reminiscncia da crena popular, em geral os demnios so para Plato seres com

    atuao positiva.

    21

  • amigos23. Em seguida prope (104 d)24: Vou falar como quem se dirige a quem se dispe a

    escutar e no se retirar antes do fim.

    Conforme a interpretao sugerida, sugere-se que a disposio necessria de escutar

    (), apresenta-se como exerccio espiritual necessrio ao aprendizado acerca do

    conhecimento de si mesmo.

    Aprender a ouvir o outro tanto uma aprendizagem como tambm uma disposio tica.

    Porquanto, est-se a valorizar o dizer daquele que se pronuncia ao outro. Sendo, esta simples

    disposio de escuta, colocar-se em uma conduta que viabiliza combater o orgulho em excesso,

    e este o mau imediato apontado por Scrates, a existir na de Alcibades.

    A partir deste momento Alcibades inicia-se no processo de de si. Contudo,

    ainda preciso convir que a escuta no contexto deste dilogo (105 e 106 a) no somente do

    dizer de Scrates, mas tambm de seu .

    a este socrtico que Alcibades deve ter a disposio de ouvir, afinal, o

    saber de Scrates representa o saber da divindade, pois que Scrates em si mesmo afirma nada

    saber.

    Conforme o dilogo (105 a-e), Alcibades deseja conquistas militares e prestgio

    poltico, em suma, ambiciona o poder e as honrarias provindas deste. Porm Scrates afirma

    que sem a sua ajuda, Alcibades no lograr xito naquilo que ambicionas, devido grande

    influncia que os objetos de seus desejos exercem sobre ele mesmo. Em consequncia, as aes

    de Alcibades sero de acordo com as suas ambies, e sero estas a causa daquelas25.

    Infere-se que Plato est a demonstrar (no textualmente) a necessidade de domnio de

    si mesmo sobre certos objetos de desejo, que parecem conduzir as aes de Alcibades, mas

    para chegar a este governo de si, antes imperativo saber primeiro cuidar-se, consoante a

    interpretao que se prope.

    Scrates se v como aquele que tem condies de verdadeiramente preparar Alcibades

    em sua trajetria poltica26. Afirma: ningum mais se encontra em condies de entregar-te

    em mos o poder que tanto ambicionas, seno eu somente, com a ajuda da divindade (

    ).

    23 O tema do excessivo amor de si mesmo reaparece no dilogo Leis. Esta das tantas relaes existentes entre

    dilogos de tempos distintos de produo, como evidencia-se ao longo deste trabalho. O excessivo amor de si

    ser tratado em captulo especfico em que tratamos dos impeditivos ao domnio de si. 24 No texto, 104 d 5-7: , , , , , ,

    . 25 De forma implcita ao texto, possvel inferir que h na interioridade da alma, a existncia de disposies

    opostas a operarem em conflito. 26 O interesse da trajetria poltica de Alcibades condiz com as preocupaes de Plato.

    22

  • A partir deste ponto, Scrates prope a Alcibades a aplicao de seu mtodo, ou seja,

    responder a perguntas () ao invs de portar-se fazendo longos discursos27.

    Somado a escuta, infere-se que o ato de perguntar tambm se caracteriza como exerccio

    espiritual. Ambas contribuem a formao/transformao/configurao28 dos indivduos, que

    aprendem a valorizar o dizer do outro e a pensar sobre o seu prprio dizer e seu prprio

    perguntar.

    Ou seja, a pensar o prprio pensamento e o prprio uso que se faz da linguagem

    ()29. A pensar sobre o que de fato sabe e o que apenas pensa saber, mas no sabe.

    Aprenderia assim a refutar ao outro quando conviesse (mediante intenes epistmicas e

    morais), mas o mais importante: aprenderia a refutar a si mesmo em suas crenas falsas30.

    Em prosseguimento ao caso Alcibades, no dilogo homnimo, Alcibades cr que,

    em breve pode dar incio as suas contribuies ao Conselho dos Quinhentos. Sobretudo,

    acredita verdadeiramente saber sobre (107 d): questes de guerra e de paz, ou de qualquer

    outro negcio de Estado31.

    Alcibades tm consigo a crena (falsa), de que pode, desde j, bem desempenhar as

    atividades polticas contribuindo positivamente com as questes de Estado. O que acaba via

    dialtica () sendo refutado por Scrates que o conduz a aporia, quando Alcibades

    demonstra ser incapaz de nominar (108 e) quem seria o melhor em questo de paz e guerra.

    Em relao ao significativo conceito de dialtica ( como aparece no texto,

    Alcibades Primeiro, 108 c 6), e que permite ser aplicado contextualmente a este dilogo,

    contribui Goldschmidt (1970, p. 124) quando infere:

    A dialtica uma pesquisa em comum. Impossvel discuti-la se um dos

    interlocutores pretende deter a verdade e recusa, de vez, ser refutado. No se

    trata, pois, como nos concursos ersticos, de impor ao adversrio, por todos os

    meios, uma tese pessoal [...] preciso aos interlocutores liberem, em si, os

    princpios racionais das servides racionais, porque a razo adere verdade,

    enquanto a paixo se atm sua verdade.

    27 A este tema retornaremos. 28 Utiliza-se destes termos formar/transformar, porque ambos, designam uma configurao interior a ser

    realizada na alma. Ora, este o objetivo crucial da filosofia como modo de vida e da realizao dos exerccios

    espirituais, da mesma forma em que demonstra o objetivo da educao platnica. JAEGER, W. (2003. p. 13) assere

    que a palavra alem Bildung (formao, configurao) a que designa do modo mais intuitivo a essncia da

    educao no sentido grego e platnico. Embora no faamos a utilizao deste termo da lngua alem, vlida a

    referncia, porquanto, utilizamos o binmio formao/configurao e, ainda acrescentando o termo transformao. 29 Tema desenvolvido no captulo 4 deste trabalho. 30 A necessidade de refutar-se, tema que aparece tambm no Sofista. A este ponto retornaremos adiante. 31 No texto, 107 d 3-4: , , .

    23

  • Do argumento referido acima, Goldschmidt supe que a pesquisa dialtica torna

    imprescindvel a forma do dilogo. A questo que se Plato resolvera escrever e, fez do

    resultado de sua escolha a escrita dialgica , pois, que o dilogo serve como a melhor

    representao da prpria filosofia dialtica.

    E mais, o dilogo exige uma disposio pessoal interna para se realizar. No pode haver

    dilogo sem esta disposio acolhedora do discurso do outro, mesmo que em momentos torne-

    se necessrio a refutao e a aporia. A filosofia dialtica exige o dilogo e recusa a oratria

    discursiva e monolgica dos retricos32.

    Por conseguinte, a dialtica no um longo discurso (como nos concursos ersticos) que

    objetivam encantar, persuadir, impor uma verdade, mas pressupe um desvelar propedutico

    da verdade, dialogalmente, de maneira que os argumentos dos que com ela estejam envolvidos

    obtenham como resultado deste esforo dialogal, e raciocinante, a uma ou a muitas crenas

    verdadeiras.

    Evitando-se erros de raciocnios e crenas falsas advindas destes que, em verdade

    servem aos desejos dos impulsos, no estando a servio e sob a influncia do pensamento puro.

    Exatamente como era o caso de Alcibades: dominado por suas ambies e desejos e, no

    entanto, crendo-se apto poltica, porquanto crente de seu saber.

    Se tomado como verdadeiro a prerrogativa de Hadot de filosofia como modo de vida,

    quando aplicado a Plato, ento a filosofia dialtica uma eleio de vida. E, neste sentido, a

    prpria dialtica um exerccio espiritual que objetiva a formao/transformao de si.

    Assim sendo a dialtica no apenas uma tcnica de aprendizagem para aprimorar a

    habilidade de raciocnio e abstrao, mas tambm um instrumento para melhor se conduzir a

    praticidade ordinria da existncia.

    Porm, consoante a esta hiptese, a dialtica ainda assim estaria vinculada com a

    formao especfica dos filsofos, ou, ao menos aos iniciados em filosofia. O que parece ser o

    caso demonstrado na Repblica33. Em sentido estrito, a filosofia como modo de vida (filosfico-

    dialtico) no estaria ao alcance do homem comum grego, embora possa haver mediante a

    correta educao, o acesso deste a patamares mais elevados de crenas e conduta34.

    32 Tema desenvolvido no captulo 4 desta tese. 33 BRUN (1994, p. 145,46) prope o seguinte: [...] A dialtica ascendente () vai, portanto do mltiplo

    ao uno, de modo a descobrir o princpio de cada coisa, e depois o princpio dos princpios; ela que Scrates utiliza

    nos dilogos morais. [...] A dialtica descendente () que procura desenvolver, atravs do poder da razo,

    as diferentes consequncias desse princpio no hipottico sobre o qual repousa e reconstruir deste modo a sries

    das ideias sem recorrer experincia [...] A dialtica descendente aquela que podemos encontrar aplicada na

    Repblica e no Timeu. No podemos nos adentrar ao tema complexo da dialtica platnica, pois que isto

    implicaria em outro trabalho, nos ateremos somente ao necessrio, quanto a relao desta, com a tese proposta. 34 No desenvolveremos este tema aqui, contudo, esta problematizao retorna nos captulos 3 e 4 deste texto.

    24

  • Utilizando-se do mtodo dialtico, Scrates (109 b-e) conduz Alcibades para que este

    chegue a questo do justo e do injusto ( )35, sendo esta, justamente

    a questo que se deve saber para declarar ou no a guerra e, contra quem deve-se ou no,

    declara-la, ou seja, permanecer ou no em paz.

    Prosseguindo a questo do justo e do injusto Scrates salienta que, se h a crena de

    saber algo, por exemplo, sobre a natureza do justo e do injusto, no haveria necessidade de

    procurar sab-lo. Afinal, no se procura algo que se cr saber possuir.

    Mas curiosamente, Scrates (110b-d) chega ao ponto em que demonstra a Alcibades,

    (quando este era menino), vinha a saber o que era a natureza do justo e do injusto (

    , , .), porquanto reconhecia quando com

    ele passava-se alguma injustia.

    Porm, para conhecer a natureza do justo e do injusto deveria ser em algum perodo que

    ele prprio, Alcibades, no julgava conhece-lo. Ao contrrio, ele deveria presumir ignora-la.

    Poder-se-ia considerar que implcitamente ao texto evidencia-se uma prvia da teoria da

    reminiscncia (), 36 pois, se acerca do justo e do injusto, Alcibades no descobrira

    por si mesmo e nem aprendera de ningum, qual a origem deste saber existente em sua infncia?

    Scrates anuncia existir um saber prvio quanto natureza do conhecimento humano,

    contextualmente relacionado ao princpio moral do justo. Porquanto se Alcibades quando

    criana sabia quando alguma ao era justa ou injusta, possua em si mesmo a capacidade de

    emitir juzos morais, pois deduz-se que Alcibades j houvera aprendido em algum momento37.

    A questo do conhecimento surge contextualmente no dilogo Alcibades P., a partir da

    questo de saber o que o justo ou o injusto, e de forma concomitante coloca-se o problema de

    como aprender e ensinar algo. Aqueles que ensinam devem ter a posse de algum saber, e este

    saber sobre alguma coisa no permite divergncia, porquanto se h divergncia sobre algo no

    conhecimento, mas simples opinio38.

    Em consequncia aparece a questo de haverem diferentes saberes. O vulgo, afirma

    Alcibades (111 a), o ensinou a falar grego e pode muito bem, como ajuza Scrates, ensinar

    sobre o que o homem e o cavalo. Entretanto (111 d-e 112 a) se o objetivo for saber se homens

    35 Tema tambm desenvolvido no dilogo Grgias. 36 Problema que ser apresentado e desenvolvido nos dilogos Mnon, Fdon e Fedro. 37 Hiptese que se relaciona a tese da imortalidade da alma e que aprender recordar. Assere MONDOLFO (1964,

    p. 215): [...] Ante a dificuldade que a alma experimenta para recordar o que aprendeu na sua existncia anterior

    ao seu ingresso no corpo, entra em funo o mtodo socrtico da maiutica ajuda a alma a extrair de si os

    conhecimentos que contm em si mesma. Assim, do mtodo socrtico da maiutica Plato extrai no s uma teoria

    do ser, tanto para a alma cognoscente, quanto para a realidade eterna conhecida, Ideias. 38 Problema que aparecer em profundidade no dilogo Grgias.

    25

  • ou cavalos so mais velozes, ou quais entre eles so sadios ou doentes, ou entre os homens de

    negcio, quais so justos ou injustos, no poderia ser o vulgo a emitir tais juzos. E havendo

    divergncia (112 b-c) entre o justo e o injusto, esta ser a causa de guerras e de mortes.

    Os atenienses estando (sempre) interessados em que lhes vantajoso, no percebem,

    como Alcibades tambm no, que no h nada mais vantajoso que o justo (113 d). Scrates

    (114 a- 117 a) identifica o justo ao til, ao vantajoso, ao belo e ao bom. Logo, o saber sobre o

    justo fundamental para as questes de Estado, quelas em que Alcibades acreditava-se em

    condies de aconselhar a . Assim, j no dilogo Alcibades Primeiro (considerando-o

    como os primeiros escritos de Plato) coloca-se o ensinamento de quanto prejudicial a

    possuir crenas falsas e, principalmente, a crena (falsa) de pensar saber algo que no se sabe.

    No Alcibades P., exorta Scrates (117 d): Percebes que os erros na vida prtica

    decorrem dessa modalidade de ignorncia, que consiste na presuno de sabermos o que no

    sabemos39?

    Evidencia-se o quanto fundamental as crenas que possumos em relao as aes que

    praticamos. Portanto, a conduta tica no prescinde do saber necessrio para conduzir a aes

    que condizem com princpios morais40, assim ter aes fundamentadas na virtude pressupem

    saber o que a virtude () 41.

    A eleio da filosofia como modo de vida, possui, em sua direta consequncia, evitar

    no apenas erros de raciocnio, mas tambm erros atitudinais. Sendo clara a relao existente

    entre crenas, no que o sujeito toma como verdadeiro para si, e a moralidade (como se age de

    acordo com tais crenas), ou ainda entre os juzos morais (emitir um juzo moral dependente

    do que se elege como crena verdadeira) e as aes morais.

    Alcibades alm de possuir o excessivo amor de si mesmo, tambm possui a temvel

    presuno de saber, ou seja, a pior das ignorncias. curioso que Alcibades, embora seja

    possuidor de srios vcios morais em sua alma, Scrates o aconselha.

    Neste sentido pode-se asserir que, de certo modo, Alcibades representa o tipo de alma

    que prepondera no gnero humano. Ou seja, o homem comum mais se assemelha com

    39 No texto, 117 d 6-7: ,

    ; Da mesma maneira como no dilogo Eutphron, quando neste dilogo homnimo,

    Eutphron acredita saber sobre as coisas divinas e a piedade para com os deuses. 40 Problema este que retorna no dilogo Sofista. nos interessante salientar que em Alcibades Segundo (143 e

    142 a-b), Scrates destaca uma espcie peculiar de ignorncia. Demonstrando hipoteticamente, que se fosse o caso,

    de Alcibades ambicionar assassinar a Pricles, e este, nunca chegando a reconhecer a Pricles, sem nunca o

    encontrar, ignorando de forma absoluta onde este pudesse estar, nunca viria Alcibades cometer a tal crime.

    Scrates alerta que nestes casos, para evitar o mau, vlido sempre permanecer na ignorncia. 41 Tema recorrente a maioria dos dilogos socrticos. Contudo no se restringe a estes, porquanto o tema tambm

    ocupa parte importante da Repblica e das Leis. Questo desenvolvida no captulo 3 desta tese.

    26

  • Alcibades do que com Scrates. Embora Alcibades possua reais condies (sociais) de

    assumir o poder poltico, pode-se inferir que seu carter representa a disposio comum a

    maioria dos homens de crer saber o que no sabe e cultuar a si prprio de maneira presunosa.

    Do que se segue que h neste sentido uma corroborada assertiva (a proposta de

    pesquisa), que indica haver uma propenso de educar Alcibades, pois parece que sua

    predisposta a filosofar (e assim preparar-se para a poltica), ao mesmo tempo em que indica a

    possibilidade de uma educao passvel de ser aplicada a maioria dos homens, cujo carter de

    Alcibades claramente representa.

    Alcibades acreditava estar em plenas condies de servir ao Conselho de Atenas e, da

    mesma forma acreditava-se em condies de enfrentar lacedemnios, persas e outros atenienses

    que se lhe opusessem. Por sua vez, Scrates demonstra a Alcibades que tal crena era uma

    verdadeira tolice, e passa ento a lhe apresentar as virtudes de seus pretensos adversrios. Em

    relao aos lacedemnios, infere (122 c-d):

    Se lanares as vistas para a temperana dos lacedemnios, sua modstia,

    amenidade, brandura, disciplina, coragem, pertincia, paixo pelo trabalho,

    amor da glria e o gosto das distines que lhe prprio, haverias de

    considerar-te menino em confronto com eles.42

    Ao que parece Alcibades tm apenas uma sada: deixar-se conduzir por Scrates (124

    b): Ditoso Alcibades, deixa-te convencer por mim e pela inscrio de Delfos: conhece-te a ti

    mesmo, porque os teus adversrios [...] s pelo cuidado e pela arte (

    .), nos ser possvel sobrepuja-los.

    O termo (arte) indica agir com habilidade, possuir habilidade no que se faz. Em

    Plato, somente no virtude, porquanto a virtude congrega a arte () e a cincia43.

    O termo cuidado () que aparece no dilogo Alcibades P., em seu primeiro uso, indica

    uma necessidade de exercitar-se nesta prtica de si que a prpria ao de cuidar-se.

    42 No texto grego, 122 c 4-8: '

    , ' (e continua a problematizao em 122 d-e; 123

    a). 43 BRISSON, L. (2010, p. 71) ajuza o seguinte: Nos primeiros dilogos platnicos, abundante reflexo sobre as

    tcnicas tem duas funes principais. Permite, em primeiro lugar, distinguir, entre as prticas, aquelas que

    dependem de falsos saberes ou de procedimentos (como a retrica, a cozinha, os cosmticos ou a sofstica;

    Grgias, 445 c- 466 a) e aquelas que resultam de um verdadeiro conhecimento de seu objeto. A tcnica , nesse

    segundo caso, indistintamente saber e atividade (rgon). Essa a razo pela qual, em seguida, ela ocupa uma

    posio paradigmtica na filosofai de Plato, j que um dos principais objetivos desta estabelecer que o

    conhecimento a nica condio possvel do domnio de qualquer atividade. Em anlise particular do Livro VII

    da Repblica, assere GAZOLLA (2004, p. 684) sobre as techna: [...] Plato apresenta a aret do phronsai como

    divina (518 e). Devido a ela, o saber das ideias vem a atualizar-se na potncia logstica, do contrrio um tipo

    de conhecimento sem fundamento, que avana, como se sabe, por hipteses, e que no requer uma converso da

    alma, no necessita do pensar tico sobre seu prprio fazer.

    27

  • Este cuidado, fundamentalmente interno, condizente com a vida psquica dos

    indivduos. Portanto, abrange a faculdade cognitivo- intelectual como tambm se relaciona com

    a conduta moral. O cuidado assim um exerccio espiritual que aplicado na interioridade dos

    sujeitos oportuniza a formao/transformao de si mesmo44.

    Ademais, o cuidado () como exerccio espiritual o que tornar Alcibades

    verdadeiramente preparado as funes polticas. Pois que h condies formadoras para que

    Alcibades aja corretamente, de forma moderada e com justia, ao invs de fazer da ao

    consequncia direta de seus apetites e ambies pessoais.

    O cuidado de si mesmo embora seja realizvel na interioridade dos sujeitos, pressupe

    uma prtica poltica, porquanto somente dos outros pode-se cuidar, ou seja, governar, se e

    somente se, anteriormente aprendeu-se a cuidar de si mesmo.

    Quando perguntado a quem chamaria de bom (), Alcibades responde que os

    seriam: os cidados capazes de governar, ou seja, os que tem comrcio entre si e se servem

    dos outros homens, no jeito em que vivemos nas cidades (125 c) . E adiante (125 d) define o

    que seria o governo nas cidades, explicando a Scrates, o que entende por ser capaz de servir-

    se dos outros: Refiro-me aos que participam dos negcios pblicos, e que tem comrcio entre

    si45.

    Scrates (125 e) demonstra ser necessrio descobrir a como chamar aqueles que devem

    ter o conhecimento de governar ( ;), e isto

    compete com o fato de estando presente ou ausente deixa melhor cidade e a sua

    administrao46. Alcibades (126 c) conclui que a amizade (), pois que assim se acham

    ausentes o dio e as desavenas.

    Depois de salientar a importncia da arte da medida, a aritmtica47, Scrates

    demonstra que Alcibades encontra-se em contradio, que este assume (127 d): Pelos deuses

    44 Plato utiliza em seus dilogos tanto os termos de / como o termo de / . Utiliza-se mesmo dos dois termos em um mesmo dilogo, como o caso nos dilogos Alcibades

    Primeiro e Repblica. JAEGER (2001, p.528, nota 65), comenta que: a expresso cuidado da alma tem para

    ns um sentido especificamente cristo, porque se converteu em parte integrante desta religio. Isto se explica pelo

    fato de a concepo crist coincidir com a socrtica na ideia de paideia como o verdadeiro servio de deus e do

    cuidado da alma coo a verdadeira paideia. No seu modo de formular esta concepo o cristianismo encontra-se

    influenciado pelo pensamento socrtico tal como o apresenta Plato. 45 No texto, 125 d 7-8: ,

    . 46 Scrates apresenta, como de costume, vrios raciocnios de analogia. Por exemplo, quando diz a Alcibades:

    Que o que pela sua presena deixa os olhos em bom estado? Do mesmo modo, eu te diria que a vista, quando

    presente, e a cegueira, quando ausente, e com relao aos ouvidos, diria que funcionam melhor se se conservam

    em boas condies com a ausncia da surdez e a presena da audio (126 b). 47 Argumenta VERNANT, P. (2000, p. 42): [...] O filsofo que faz inscrever no limiar da Academia que: ningum

    entre aqui seno for gemetra, d testemunho dos vnculos que uma mesma origem, uma orientao comum

    estabeleceram e mantiveram por muito tempo, entre os gregos, entre pensamento geomtrico e pensamento poltico

    28

  • Scrates, j no sei o que falo. bem possvel que eu esteja h muito tempo nesse estado de

    ignorncia, sem aperceber-me disso.

    Esta anuncia de Alcibades que, reconhecendo-se em estado de ignorncia,

    particularmente importante para o resultado que Scrates objetiva. Pois, reconhecer-se em erro,

    indica que Alcibades inicia a cuidar de si.

    Infere-se a importncia crucial do mtodo refutativo de Scrates em sua relao ao

    cuidado de si. Neste sentido h no dilogo socrtico Crmides (166 c - d) precioso argumento,

    quando em debate com Crticas, Scrates nega que o sentido de refutao seja somente de

    ganhar uma disputa48:

    Penso [diz Crtias] que ests fazendo agora o que h pouco disseste que no

    fazias: empenhas-te em refutar-me, sem te importares no mnimo com o

    assunto em discusso [...] Como! Lhe perguntei [Scrates] ento acredita que

    se eu realmente te refuto, move-me outro motivo alm do que me levaria a

    perguntar a mim mesmo se estou certo nas minhas afirmaes, de medo de

    imaginar inconscientemente que conheo alguma coisa, quando em verdade

    no conheo? Agora mesmo te assevero que s fao o que fao, a saber,

    prosseguir na anlise da proposio, no meu benefcio, e talvez, tambm, em

    benefcio de alguns amigos. Ou no de parecer que se trata de um bem

    comum a quase todos os homens o conhecimento preciso da verdadeira

    relao das coisas? 49

    Por conseguinte, aos que no aceitam em serem refutados, no como derrota resultado

    de simples disputa argumentativa, mas sim como reconhecimento de seu prprio no-saber no

    podem lograr ao resultado de aprenderem a cuidar de si mesmos50.

    Na sequncia textual do dilogo Alcibades revelador (e fortalece a posio de

    considerar o Alcibades Primeiro como dilogo autntico) o seguinte juzo (127 d-e): preciso

    [...] Plato associa estreitamente o conhecimento da isotes (igualdade) geomtrica, fundamento do kosmos fsico,

    s virtudes poltica sobre as quais repousa a nova ordem da cidade: a dikaiosyne e a sophrosyne. A questo do

    conceito de medida (metron) retornaremos mais adiante. 48 A nfase deste assunto consta no captulo 4 desta tese. 49 No texto grego 166 c 6-7: , ' , , , 166 d 1-6: , , . , ,

    : ,

    ; 50 Tambm no dilogo Crmides em sequncia ao argumento referendado em destaque, Scrates ajuza (Cf. 167

    a) que o indivduo temperante o nico que se conhece. Ser temperante, a temperana, o conhecimento de si

    mesmo consiste em saber simplesmente o que se sabe e o que no se sabe. Compreende-se que de acordo com

    este argumento em que h equivalncia entre a temperana e o conhecimento de si, somente torna-se compreensvel

    aplicando-o a teoria (posterior) dos dilogos mdios em que h uma anlise aprofundada da alma. Neste sentido

    a temperana uma virtude indispensvel para conhecer a si, pois do contrrio no se agir de maneira racional

    crendo saber o que no se sabe, mas, diante do predomnio de outra funo: a concupiscncia e, no, portanto, da

    razo. Quanto equivalncia o so assim como so todas as virtudes que formam entre si uma unidade. Cuja

    afirmao reaparece no dilogo Leis (963 a - 964 c).

    29

  • ter confiana. Se aos cinquenta anos tivesse percebido essa deficincia, difcil te seria tomar

    qualquer medida para remedia-la.

    Observa-se que Scrates cita justamente, a idade (cinquenta anos) em que, conforme o

    dilogo Repblica, dever-se-ia assumir as funes polticas. Simples coincidncia no parece

    ser o caso e, tal inferncia (textual) indica o trabalho do mesmo autor, isto , Plato.

    Chega-se ao a mais um ponto crucial do dilogo em relao a tese proposta, pois, aps

    Alcibades ter-se reconhecido em estado de ignorncia, portanto, em ter vencido em si mesmo

    a presuno de saber e o excessivo amor de si mesmo, e assim mostrar-se disposto a continuar

    em responder, Scrates lhe pergunta (127 e): Que significa a expresso cuidar de si mesmo?

    ( ) e prossegue (128 a): Quando que o homem cuida de si

    mesmo? ( ).

    Scrates em busca da melhor definio do cuidado de si mesmo ajuza que, no se

    procura (128 e) a arte por meio da qual deixamos melhor qualquer coisa que nos pertence, mas

    a que nos deixa melhores a ns mesmos51.

    Todavia, para conhecer de fato tal coisa preciso saber o que somos. Por conseguinte,

    o cuidar de si mesmo no cuidar de algo externo a si, mas do eu verdadeiro, e neste exerccio

    catrtico perpassa a necessidade de conhecer-se, ou seja, saber o que se . Porquanto de posse

    deste saber de si possvel cuidar a si52.

    Acredita-se coerente a hiptese de considerar o cuidado de si como exerccio espiritual

    que atinja verdadeiramente o sujeito que se lhe dispe, e assim em consequncia modificar a

    sua existncia, porquanto forma-se em si mesmo, condies de ser o seu melhor tanto na vida

    51 No texto grego (128 e): , ,

    ' ; 52 Sobre o cuidado de si, particularmente em Scrates, infere JAEGER (2001, p. 528-529): Scrates fala como um mdico cujo paciente fosse, no o homem fsico, mas o homem interior. Abundam extraordinariamente nos

    socrticos as passagens em que fala do cuidado da alma ou da preocupao com a alma, como a misso suprema

    do Homem. Deparamos aqui com a medula da prpria conscincia que Scrates tinha da sua tarefa e da sua misso:

    uma misso educacional, que interpreta a si prpria como servio de Deus. Este carter religioso da sua misso

    baseia-se no fato de ser precisamente do cuidado da alma, que se trata, pois, a alma para ele o que h de divino

    no Homem. Scrates define mais concretamente o cuidado da alma como um cuidado atravs do conhecimento do

    valor e da verdade, phronesis e aletheia. A alma distingue-se do corpo to nitidamente como dos bem materiais.

    A separao estabelecida entre a alma e o corpo manifesta diretamente a hierarquia socrtica dos valores e expe

    uma nova teoria dos bens, claramente graduada, e que coloca no plano mais elevado os bens da alma, em segundo

    lugar os bens do corpo, e no grau inferior os bens materiais, como a riqueza e o poder. H um abismo imenso que

    separa esta escala de valores, que Scrates proclama com tanta evidncia, e a escala popular vigente entre os gregos

    e expressa na famosa cano bquica antiga: O bem supremo do mortal a sade; o segundo, a formosura do

    corpo; O terceiro, uma fortuna adquirida sem mcula; O quarto, desfrutar entre amigos o esplendor da juventude.

    No pensamento de Scrates aparece, como algo novo, o mundo interior. A arete de que ele nos fala um valor

    espiritual. Evidentemente, considera-se que Plato no apenas segue esta tradio socrtica, como a aperfeioa

    e desenvolve conforme seus objetivos, estes, fundamentalmente polticos.

    30

  • pblica quanto na vida privada, pois que o homem a agir no ambiente particular ou pblico o

    mesmo, deve ser necessariamente o mesmo.

    Tal raciocnio acaba, inevitavelmente, a seguinte questo: o que o homem, que outra

    coisa que no o seu corpo que lhe pertence, logo, o homem sua alma, e no apenas corpo e

    nem mesmo, a unio de ambos53. Mediante a tais assertivas o cuidado de si exerccio espiritual

    que objetiva cuidar da alma54, pois que intenciona sempre o propsito de

    transformao/formao de si mesmo.

    Neste propsito poder-se-ia considerar, no contexto do dilogo Alcibades Primeiro que

    ter o domnio sobre si mesmo ser uma consequncia do exerccio espiritual de cuidar de si,

    contudo para haver cuidado, deve-se ainda antes, conhecer a si mesmo.

    A sentena de conhecer a si mesmo uma sentena dlfica inscrita no templo de

    Apolo, ao qual, Scrates adere a si prprio. Ao explicar o que significaria tal preceito (133 b)55,

    Scrates assere que para conhecer a alma (ou seja, a si mesmo no que se em si mesmo), deve-

    se olhar para a sua virtude especfica: a inteligncia, (, o termo que aparece no texto

    grego, Alc., P.,). Sendo esta a faculdade que permite a vinculao entre o divino e o homem56.

    Alcibades iniciara-se na prtica do cuidado de si, logo, inicia-se no conhecimento de

    sua . Vencera a sua presuno de pensar saber sobre o que era necessrio ao governo dos

    outros. Sabe agora ele da primazia de combater em si mesmo o excessivo amor de si prprio,

    53 Consoante aos argumentos demonstrados entre 129 e 130 c. 54 No dilogo Alcibades Primeiro (130 e), Scrates infere: [...] quando conversamos a ss, eu e tu, e trocamos ideias, so duas almas que conversam [...] quando Scrates conversa com Alcibades, [...] no a teu rosto, [...]

    que ele se dirige, mas ao Alcibades real, que , antes de tudo, alma. No texto grego, 130 e 2-5: '

    , , ,

    , : . [...] Nota-se, que Scrates separa

    o que Alcibades parece ser: um homem belo, daquilo que Alcibades realmente : sua alma. A alma de Alcibades

    encanta filosoficamente a Scrates, e a esta, que Scrates pretende esclarecer e educar. para esta que Scrates

    pretende ensinar que preciso dela cuidar, conhecendo-se, para que esta, torne-se senhora de si mesma.

    ROBINSON, em clssica tese: Psicologia de Plato (2007, p. 201), assere que diversos sentidos distintos de alma

    surgiram nos dilogos socrticos. um princpio cognitivo (por exemplo, no Crmides e no Protgoras) e um

    princpio de atividade moral (por exemplo, no Grgias e no Mnon). Ela tambm deve ser vista como o verdadeiro

    eu, no Crmides, no Alcibades I e no Protgoras, e como o que chamo de contrapessoa no mito do Grgias (e

    em ouros mitos posteriores). Quanto relao entre corpo e alma, o Crmides, o Alcibades I e o Protgoras tm

    em comum o fato de afirmarem que o eu e a alma so uma e a mesma coisa, mas diferem no modo como explicam

    sua relao com o corpo. No Protgoras, o corpo simplesmente uma posse da alma; no Alcibades I, ele

    igualmente uma posse e um instrumento da alma, mas tem uma relao especial com a alma que outras posses

    no tm; no Crmides, ele visto como uma parte integral e inalienvel da alma, e ambos desfrutam de uma

    relao sofisticada entre parte e todo biolgicos. Em dois dilogos, o Grgias e o Mnon, h indicaes da partio

    da alma e de sua existncia continuada depois que a separao do corpo afirmada. 55 No texto, 133 b 7-10: ' , , , ,

    ' , ,

    ; [...]. 56 No texto do Alcibades Primeiro, tem-se a palavra , e no como seu equivalente de sabedoria,

    como aparece no texto da Repblica (586 a-b). No Alcibades I (133 c) A palavra traduzida, na edio

    aqui utilizada do Alcibades Primeiro, como pensamento. O que tambm parece ser o caso, nesta equivalncia

    de significado, no dilogo Fdon (79 d.).

    31

  • que o fazia desdenhar de seus amigos, por considerar-se mais digno e melhor que estes.

    Assumiu perante a si mesmo o seu pior defeito: a ignorncia de pensar saber o que de fato

    ignorava, tornou-se dcil a Scrates, isto , tornou-se dcil a filosofia dialtica como modo de

    vida.

    E ainda esta eleio de vida tambm se constitua em adicionar s suas crenas a piedade

    e o saber acerca do divino. Aprendeu (133 c)57 que o pensamento e a reflexo o comunicam ao

    que lhe superior58.

    E soma-se a isto, o aprendizado (inicia-se a problematizao sobre o tema da alma) que

    a possui atributos que lhe correspondem a uma parte ou funo superior: a parte

    da alma que mais se assemelha ao divino; quem a contemplar e estiver em condies de

    perceber o que nela h de divino (), Deus () e o pensamento (), com muita

    probabilidade ficar conhecendo a si mesmo59.

    Scrates, em utilizando-se do mtodo inquisitivo de perguntas e respostas, demonstra a

    semelhana entre certa funo da (como pensamento e reflexo, embora ambos

    necessitem do aspecto qualitativo da inteligncia) e sua equivalncia ao divino.

    O dilogo se conclui retornando para a questo inicialmente sugerida da virtude.

    Anteriormente aparecera o problema do justo e do injusto, do bom, do til e do belo, agora, na

    parte conclusiva, Scrates mais assertivo e relaciona diretamente o conhecimento de si a

    capacidade de ser virtuoso. Quem no se conhece afirma (133 d-e): No pode saber o que lhe

    faz bem ou mal, nem a si, nem aos outros e nem a cidade.

    Claramente est posta a urgncia de conhecer-se, para ento em consequncia, cuidar

    da alma e tornar-se virtuoso. Ora, quem virtuoso tanto na vida privada quanto pblica: quem

    possui o conhecimento de si prprio e, justamente por este fato, deve ento governar a cidade.

    57 Acredita-se tratar de mais um consistente indcio sobre a autenticidade do Alcibades Primeiro, porquanto nota-

    se de maneira implcita ao argumento, a hiptese platnica sobre a alma tripartite. No texto, 133 c 1-2:

    , ; 58 Argumento equivalente ao que se encontra na Repblica e no Timeu, somam-se evidncias quanto a

    autenticidade do dilogo Alcibades Primeiro. A este tema retornaremos no captulo sobre a paideia platnica. 59 No texto grego, 133 c 4-6: ' , ,

    , . No ltimo dilogo de Plato, Leis (961 d), encontra-se o

    seguinte: A inteligncia que, ao lado de outras faculdades, reside na alma [...] a inteligncia, associada aso belos

    sentidos e formando com eles uma unidade, o que, com todo o direito, poderamos denominar a salvao

    () dos seres vivos. No texto grego, 961 d 7-10: , ' : , ,

    ' . importante salientar o seguinte, o termo grego para inteligncia

    no Alcibades Prim., enquanto no dilogo Leis do que considera-se como plausvel traduzir por

    pensamento inteligente. Neste sentido os termos se equivalem, porquanto inteligncia j indica o bom uso da

    faculdade de pensar.

    32

  • Porquanto (133 e): Quem ignora as coisas que lhe dizem respeito, no h de conhecer, tambm,

    as dos outros [...] E se no conhece as dos outros, no conhecer tambm as da cidade.

    O conhecimento de si mesmo uma virtude (formada/configurada em si mesmo, isto ,

    na prpria alma). Sua prtica um imperativo para cuidar-se, e assim, tornar-se possvel o

    domnio de si mesmo perante ao que no corresponde a melhor funo da .

    Caracterizando-se como exerccio espiritual porquanto, tende a realmente fazer uma

    transformao no eu profundo do indivduo. Ou seja, viabilizar que o indivduo utilize- se da

    parte melhor de sua : a inteligncia, e assim conduzir o pensamento e a reflexo. E tal

    postulado, no prescinde de vencer a tirania em si mesmo, ou seja, quando existe a submisso

    a ignorncia e o amor excessivo de si mesmo, como tambm na cidade, isto , aplicada a tirania

    sobre os outros, como meio de satisfazer ambies exclusivamente pessoais e negativas porque

    no racionais e no virtuosas60.

    Se estes atributos humanos: da inteligncia, do pensamento e da reflexo, embora

    pertenam ao homem, indicam uma origem superior, nos quais, o melhor do humano se

    equivalem ao divino e encontram-se na interioridade da , logo, a justia61, a bondade e a