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Revista Pandora Brasil - Nº 31 Junho de 2011 - ISSN 2175-3318 “A Magia do Teatro” 1 Revista Pandora Brasil Índice A TRAGÉDIA COMO “DRAMA EM VERSOSNO TRATADO A POÉTICA (Περὶ Ποιητικῆς) DE ARISTÓTELES Jorge Luis Gutiérrez 1 Νῦν δὲ τοῖς ἄλλοις ἀγαθοῖς ὁ ποιητὴς ἀφανίζει ἡδύνων τὸ ἄτοπον. Os absurdos, porém, Homero os ocultou sob primores de beleza. (Aristóteles) Resumo: O presente artigo analisará alguns aspectos da tragédia na obra A Poética de Aristóteles. Serão analisados alguns termos que são fundamentais na obra de Aristóteles: medo e piedade, catarse e imitação. Também se analisará porque hoje falta no texto de A Poética o texto da comedia. Texto que Aristóteles tinha prometido analisar em sua obra. Os gregos inventaram a Tragédia como gênero literário. Sófocles, Ésquilo e Eurípides são alguns dos grandes escritores trágicos. Muitas de suas obras sobreviveram até nossos dias. Para eles a tragédia era um gênero de poesia, era ―poesia trágica‖, tema que foi abordado por Aristóteles em seu tratado ΠερΠοιητικς, peri poietikes, A Poética. Poietikes‖, é uma palavra grega relacionada com um verbo que significa fazer, elaborar, transformar. É também a palavra usada por Aristóteles para designar a terceira das áreas da divisão da ciências: as ciências ―poiéticas‖; que são as ciências da produção, do fazer determinadas coisas. Nesta área 1 Doutor e Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência pela UNICAMP. Atualmente é professor da Universidade Mackenzie e professor da Faculdade de Filosofia de São Bento. Especializou-se em filosofia antiga. Tem pesquisado, em diálogo com a física, temas como o acaso, a imprevisibilidade, a incerteza, a irreversibilidade e a liberdade humana. E em diálogo com a literatura, tem pesquisado as relações entre filosofia e poesia. É autor dos livros: “Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro”, “Aristóteles em Valladolid” e “Inundada de Luz, poemas de amor e filosofia episódica”. É o editor da revista eletrônica "Pandora Brasil".

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    A Magia do Teatro

    1

    Revista Pandora Brasil

    ndice

    A TRAGDIA COMO DRAMA EM

    VERSOS NO TRATADO A POTICA

    ( ) DE ARISTTELES

    Jorge Luis Gutirrez1

    .

    Os absurdos, porm, Homero os ocultou sob primores de beleza.

    (Aristteles)

    Resumo: O presente artigo analisar alguns aspectos da tragdia na obra A Potica de Aristteles. Sero analisados alguns termos que so fundamentais na obra de Aristteles: medo e piedade, catarse e imitao. Tambm se analisar porque hoje falta no texto de A Potica o texto da comedia. Texto que Aristteles tinha prometido analisar em sua obra.

    Os gregos inventaram a Tragdia como gnero literrio. Sfocles, squilo e

    Eurpides so alguns dos grandes escritores trgicos. Muitas de suas obras

    sobreviveram at nossos dias. Para eles a tragdia era um gnero de poesia,

    era poesia trgica, tema que foi abordado por Aristteles em seu tratado

    , peri poietikes, A Potica.

    Poietikes, uma palavra grega relacionada com um verbo que significa

    fazer, elaborar, transformar. tambm a palavra usada por Aristteles para

    designar a terceira das reas da diviso da cincias: as cincias poiticas;

    que so as cincias da produo, do fazer determinadas coisas. Nesta rea 1 Doutor e Mestre em Lgica e Filosofia da Cincia pela UNICAMP. Atualmente professor da Universidade Mackenzie e professor da Faculdade de Filosofia de So Bento. Especializou-se em filosofia antiga. Tem pesquisado, em dilogo com a fsica, temas como o acaso, a imprevisibilidade, a incerteza, a irreversibilidade e a liberdade humana. E em dilogo com a literatura, tem pesquisado as relaes entre filosofia e poesia. autor dos livros: Fragmentos de Ternura, Filosofia e Desterro, Aristteles em Valladolid e Inundada de Luz, poemas de amor e filosofia episdica. o editor da revista eletrnica "Pandora Brasil".

    http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/edicao31.htm

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    entrava alm do tratado A potica, os Tpicos, A Retrica, e o tratado sobre

    educao contido nos livros VII e VIII da Poltica. As outras duas divises da

    cincia eram 1) As cincias teorticas (fsica, metafsica, psicologia, zoologia);

    2) As cincias prticas ou da ao: a tica e a poltica.

    Ao tratar a poesia como poitica, Aristteles est indicando que no

    pretende tratar do que hoje poderamos chamar de uma crtica literria. Ele no

    est interessado na analise dos gneros poticos. Seu objetivo era ensinar a

    fazer algo. Ensinar a seus leitores a fazer poesia. Assim, podemos dizer que

    A Potica, como todas as cincias poiticas, tem como propsito a produo

    de algo, neste caso de um tipo de poesia. Que na obra de Aristteles era: a

    epopia, a tragdia e a comdia.

    Para Aristteles o poeta deve ser mais fabulador que versificador; porque

    ele poeta pela imitao e porque imita aes. E ainda que lhe acontea fazer

    uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada impede que

    alguma das coisas que realmente acontecem, sejam, por natureza, verossmeis

    e possveis e, por isso mesmo, venha o poeta a ser o autor delas [1451b 30].

    , , .

    *30+ ,

    * +,

    .

    Zelia Cardoso comentando o pargrafo anterior afirma que para Aristteles

    mesmo que o poeta fale de acontecimentos reais, no deixa por isso de ser

    poeta [ARISTTELES, 1993, prefcio, p. 14].

    Por isso, como afirma Cardoso no prefacio da traduo de A Potica, o que

    Aristteles quer mostrar em sua obra que a poesia verdadeira, sria e til.

    E para fazer isso se vale de uma analise minuciosa das espcies poticas e a

    preocupao com a natureza ontolgica do objeto analisado o conduz a uma

    exposio reflexiva e objetiva [ARISTTELES, 1993, prefcio, p. 12]

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    Hans-Georg Gadamer prope interrogar a teoria do jogo trgico, que a

    potica da tragdia, sobre a essncia do trgico.

    O que se espelha na reflexo sobre o trgico que se estende

    desde Aristteles at o presente certamente no uma essncia

    imutvel. No h dvida de que a essncia do trgico

    representada na tragdia tica de uma fornia nica -

    diferentemente para Aristteles, para quem Eurpides foi "o mais

    trgico", e diferentemente para aquele a quem, por exemplo,

    Esquilo revela a verdadeira profundidade do fenmeno trgico -

    mas sobretudo diferente para quem pensa em Shakespeare ou

    Hebbel. No entanto, uma tal mudana no significa simplesmente

    que a questo pela essncia unitria do trgico carea de objeto;

    antes, o fenmeno se apresenta condensado numa unidade

    histrica. O reflexo do trgico antigo no trgico moderno, de que

    fala Kierkegaard, tem estado permanentemente presente em

    todas as recentes reflexes sobre o trgico. Se comearmos por

    Aristteles teremos uma perspectiva da totalidade do fenmeno

    trgico. Em sua famosa definio da tragdia, Aristteles deu uma

    indicao decisiva para o problema da esttica que comeamos a

    expor; isso porque na determinao da essncia da tragdia

    incluiu tambm o efeito sobre o espectador. [Gadamer, p. 187]

    Para Gadamer a tragdia a unidade de um processo que

    experimentado como tal. E ainda que esteja sendo mostrado no palco, uma

    tragdia da vida. Por isso um ncleo de sentido fechado em si, que, de si

    mesmo, rechaa toda e qualquer interveno e infiltrao alheia. [Gadamer, p.

    188]. O fato de que o espectador includo na determinao da essncia da

    tragdia o determinante para poder afirmar uma pertena essencial do es-

    pectador ao jogo (espetculo). [Gadamer, p. 188]

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    O TEXTO DE A POTICA

    Para conhecer o texto A Potica de Aristteles hoje temos quatro fontes

    bsicas principais completas e uma incompleta. Destas fones foram feitas as

    tradues contemporneas do texto de A Potica. Elas so:

    1) Temos um pergaminho do sculo X conhecido com o nome de Parsinus

    graecus 1741.

    2) Temos a traduo para o rabe feita por Abu Bisr, na primeira metade

    do sculo X, e que servir posteriormente para o comentrio e

    parfrases do filsofo rabe Averris.

    3) Temos a traduo latina de Guillermo de Moerbeke. Traduzida do grego

    por volta 1278. Esta traduo veio a ser redescoberta em 1930.

    4) Temos um cdice do sculo XIV, o Riccardianus 46.

    5) E temos uma verso siraca, do sculo IX, da qual somente conhecemos

    hoje o captulo VI.

    QUE TIPO DE POESIA TRATADO EM A POTICA

    Para entender A Potica de Aristteles, devemos em primeiro lugar tentar

    compreender que tipo de poesia ser analisada por Aristteles. No devemos

    pensar na poesia como a entendemos hoje. Aristteles no tratar da poesia

    lrica nem meldica. Nem do tipo de poesia que escreveu Anacreonte, Safo,

    Simnides ou Pndaro. Nem da poesia didtica de Hesodo. Nem da elegias.

    Trs so os tipos de poesia que Aristteles pretendia tratar em sua obra. A

    pica, a tragdia e a comedia. Mas somente tratou das duas primeiras. Sobre

    porque no concluiu seu plano, ou se o concluiu e est perdido, tem havido

    muitas discusses, algumas das quais analisaremos neste artigo no item sobre

    a comdia.

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    Para Aristteles duas so as causas que geraram a poesia: 1) Que o homem

    congenitamente ou naturalmente () imitador () , 2) Que

    esse ato de imitar produz prazer (). Diz Aristteles:

    Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar congnito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos ele o mais imitador e, por imitao, aprende as primeiras noes) e os homens se comprazem no imitado. (Potica, 1148b 5)

    .

    , .

    Para Aristteles, a imitao prpria da natureza dos homens. Porm, se a

    imitao e o prazer que a imitao produz, so comuns a todos os homens,

    eles se diferenciam por seus gostos e caractersticas individuais acerca de

    como realizar isso. Assim, alguns desenvolveram a tragdia e outros a

    comdia, e surgiram () essas duas modalidades de poesia. Diz

    Aristteles:

    Vindas luz a tragdia e a comdia, os poetas, conforme a prpria ndole os atraa para este ou aquele gnero de poesia, uns, em vez de jambos, escreveram comdias, outros, em lugar de epopias, compuseram tragdias, por serem estas ltimas formas mais estimveis do que as primeiras. (Potica 1449a 5)

    , ,

    .

    Aristteles assinala tambm uma importante diferena, entre tragdia e

    comedia. Embora ambas sejam imitativas, elas imitam homens diferentes:

    Pois a mesma diferena () separa () a tragdia

    da comdia; procura, esta, imitar os homens piores (), e

    aquela, melhores () do que eles ordinariamente so. (Potica 1448a 15)

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    .

    Neste artigo no falaremos sobre a pica. Centraremos nossa ateno

    sobre alguns aspectos da Tragdia e concluiremos falando alguma coisa

    sobre a comdia e sobre se Aristteles foi um poeta.

    A TRAGDIA

    A tragdia era um drama em versos [Barnes, 350]. Diz Aristteles:

    pois a tragdia imitao () de uma ao de carter elevado, completa e de certa extenso, em linguagem ornamentada e com vrias espcies de ornamentos distribudas pelas diversas partes do drama, imitao que se efetua no por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificao dessas emoes. (Potica, 1449b 25)

    ,

    , ,

    .

    Para Aristteles a poesia trgica (a tragdia) imitao (). Ele explica:

    Sendo, pois, prpria da nossa natureza a imitao, tambm o a harmonia e o ritmo (porque claro que os metros so parte do ritmo). Os que ao princpio se sentiram com maior inclinao natural para estas coisas, adiantando-se pouco a pouco, deram origem poesia com obras feitas de improviso. Ora a poesia tomou diversas formas, segundo o diferente natural de cada um; porque os homens que tinham mais gravidade e elevao imitavam as aes boas e a fortuna dos bons; e os que eram de gnio humilde imitavam as aes dos maus, escrevendo ao principio vituprios, assim como os outros compunham hinos e encmios. (Potica, 1448b 20,25)

    ( )

    .

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    ,

    , ,

    Para Aristteles a epopia, a tragdia, assim como a poesia ditirmbica

    e a maior parte da aultica e as citarstica, todas so, em geral, imitaes.

    Diferem, porm, umas das outras, por trs aspectos: ou porque imitam por

    meios diversos, ou porque imitam objetos diversos ou porque imitam por

    modos diversos e no da mesma maneira (Potica 1447a 15)

    Outra caracterstica da tragdia, segundo Aristteles, que ela suscita

    nos ouvintes piedade e terror ( ). Piedade eleos (),

    que alm de piedade tambm significa compaixo, ou a pessoa ou coisa que

    move piedade ou compaixo. Terror phobos () que tambm

    significa fuga, escapada, espanto, medo, derrota. Phobos era tambm o deus

    do espanto, era o espanto personificado.

    Mas esta afirmao de Aristteles tem sido motivo de controvrsia e

    discusso. Assim, o especialista em Aristteles Jonathan Barnes comenta e faz

    objees posio de Aristteles.

    Os espectadores sentem pena e medo? Bem, de quem eles tm pena? De dipo, se tm de algum. Mas, segundo a explicao da pena do prprio Aristteles, isso impossvel. S posso ter pena de algum se o conheo ou sei que ele sofreu alguma desventura, e apenas se ele de alguma maneira prximo - mas no prximo demais - a mim. Eu no conheo dipo (no ha nenhum Edipo para conhecer), e no acredito que ele sofreu alguma desventura. Mesmo que eu equivocadamente considere que Sfocles est relatando uma histria sobre um rei de Tebas que existiu, no posso sentir pena: Edipo no em nada como eu. Novamente, de discordo com Aristteles, apenas posso ter pena de algum se eu supuser que provvel que uma desventura semelhante suceda a mim ou a algum de meus amigos, e suceda logo. Mas no espero casar com minha me ou com qualquer parente prxima; no espero arrancar meus prprios olhos ou privar-me de nenhum rgo vital. Tampouco antevejo tal futuro para qualquer um de meus amigos. [Barnes, 351]

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    Para Gadamer, refendo-se ao efeito especifico que a tragedia causa no

    espectador, a traduo tradicional de e por "compaixo" e "temor"

    deixa transparecer uma tonalidade demasiadamente subjetiva. Para ele a

    palavra alem Jammer (desolao) um bom equivalente para eleos, porque

    no se refere a uma mera interioridade mas tambm sua expresso

    [Gadamer, p. 188]. Tambm phobos

    no apenas um estado de nimo, mas como diz Aristteles um calafrio que gela o sangue e faz tremer [Retrica, II, 13, 1389 b 32]. Pelo modo como dentro dos moldes da tragdia se fala de Phobos em vinculao com Eleos, Phobos significa o espanto de tremor que se apossa de ns quando vemos algum ir s pressas de encontro a sua runa, e tememos por esse algum. [Gadamer, p. 188].

    Assi, para Gadamer a desolao e o temor so formas de xtase, do

    estar-fora-de-si, que atestam o fascnio daquilo que se desenrola diante de ns.

    Sobre essas afeces de que trata Aristteles, diz-se que atravs delas que o

    espetculo teatral proporciona a purificao de paixes desse gnero.

    [Gadamer, p. 188].

    Para Aristteles a boa ou m fortuna ( ) resulta

    naturalmente das aes que geram temor e piedade (Potica 1452a 35).

    Porque a piedade tem lugar a respeito do que infeliz sem o merecer, e o

    terror, a respeito do nosso semelhante desditoso. Diz Aristteles:

    Como a composio das tragdias mais belas no simples, mas complexa, e alm disso deve imitar casos que suscitam o terror e a piedade (porque tal o prprio fim desta imitao), evidentemente se segue que no devem ser representados nem homens muito bons que passem da boa para a m fortuna - caso que no suscita terror nem piedade, mas repugnncia -- nem homens muito maus que passem da m para a boa fortuna, pois no h coisa menos trgica, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito; no conforme aos sentimentos humanos, nem desperta terror ou piedade. (Potica 1452b 30)

    ( ),

    ,

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    , ,

    ,

    Para Aristteles isto tambm vale para o mito pois:

    O mito tambm no deve representar o malvado que se precipite da felicidade para a infelicidade. Se certo que semelhante situao satisfaz os sentimentos de humanidade, tambm certo que no provoca terror nem piedade. (Potica 1453a 5)

    Aristteles tambm afirma que O terror e a piedade podem surgir por

    efeito do espetculo cnico, mas tambm podem derivar da ntima conexo

    dos atos, ,

    (Potica 1453b 5).

    Para ele isto ltimo o procedimento prefervel e o mais digno do poeta.

    A CATARSE

    A palavra purificao corresponde a palavra grega

    (katharsios) que tinha no grego antigo, de acordo com os dicionrios, os

    seguintes significados: purificao, expiao, purgante, menstruao,

    escamonda, alivio espiritual pela satisfao duma necessidade moral. Assim, a

    palavra katharsis era usada em dois contextos: nos textos mdicos, ela se

    refere purgao (aos efeitos emticos e laxantes); em um contexto religioso,

    ela se refere purificao.

    Jonathan Barnes [Barnes, 351] se pergunta se Aristteles quer dizer que

    a tragdia nos livra de nossas emoes ou que ela as refina?, acrescenta que

    nenhum texto nos d uma resposta clara a essa questo, e podemos pergun-

    tar-nos se qualquer uma dessas respostas particularmente plausvel como

    uma explicao do efeito da tragdia sobre sua plateia.

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    Renouvier comenta a traduo de katharsis como purificao das

    paixes, com as seguintes palavras:

    "A lei da purgao das paixes..., indicada por Aristteles, uma das descobertas mais profundas que lhe devemos e merece ser objeto de anlise pelos modernos. Consiste, em suma, neste fato geral de a paixo ser, por assim dizer, imaginada, dissimulada, 'imitada', como dizia Aristteles, 'no estado desinteressado', como ns dizemos..., tem a virtude de purgar a paixo; e entendo a palavra purgar no duplo sentido que ela permite: purificao dos elementos passionais que no so maus...; evacuao da parte pecaminosa das afeces ou do seu exerccio." (RENOUVIER, Science de la morale, livro III, cap, XLI.) [Landane, 893]

    katharsis uma palavra usada por Aristteles principalmente nos livros de

    Zoologia2, cincia que ele criou, como pode ser constatado no Index

    Aristotelicus. O prpio Index Aristotelicus 3 nos informa que um bocabulum

    artis medicae.

    Para Hans-Georg Gadamer claro que com katharsis Aristteles se refere

    melancolia trgica que se assenhora do espectador vista de urna tragdia.

    A melancolia, porm, uma espcie de alvio e de soluo, onde a dor e o prazer esto misturados de uma forma singular. Como que, ento, Aristteles pode denominar esse estado de purificao? Qual a impureza que adere s afeces ou qual a impureza prpria das afeces e como que isso pode ser expulso pela comoo trgica? Parece-me que a resposta seria que quando se assolado pela desolao e pelo calafrio, isso provoca uma diviso dolorosa. Ali ocorre uma desunio com o que acontece de fato, um no-querer-ter-por-verdadeiro que se rebela contra o horrendo acontecimento. No entanto, justamente este o efeito da catstrofe trgica, isto , que essa diviso se dissolve com o que , e assim produz uma libertao geral do peito oprimido. No somente nos livramos do fetiche onde estamos presos pelo que desolador e espantoso desse destino nico, como tambm, reconciliados com isso, estamos livres de tudo que nos divide daquilo que . [Gadamer, p. 189]

    2 Estas obras so: Histria dos Animais, Das Partes dos Animais, Do Movimento dos Animais, Da Gerao dos Animais, Da Origem dos Animais. 3 ARISTOTLE. Aristotelis qui ferebantur librorum fragmenta. Scholiorum in Aristotelem supplementum. Index Aristotelicus. Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin. 1870.

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    Assi, para Gadamer a melancolia trgica espelha urna forma de afirma-

    o, um retorno a si mesmo, e quando a conscincia do heri matizada com

    uma tal melancolia trgica o que no raro na tragdia moderna , ele

    prprio passa a ter um pouco de participao nessa afirmao, ao aceitar o seu

    destino. [Gadamer, p. 189]

    A COMDIA

    A comdia , como dissemos, imitao de homens inferiores; no todavia, quanto a toda espcie de vcios, mas s quanto quela parte do torpe que ridculo. O ridculo apenas certo defeito, torpeza andina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a mscara cmica, que, sendo feia e disforme, no tem expresso de dor. (Potica, 1449a 35)

    ,

    , .

    ,

    .

    Com essas palavras definiu Aristteles a comdia. Definio que se

    tornou famosa na histria da literatura, e que de alguma maneira marcou o

    destino desse gnero literrio at nosso dias.

    Porm, A Potica de Aristteles, como a conhecemos hoje, no contem

    nenhum captulo sobre a comdia. O livro finalizado dum modo quase

    abrupto sem explicar porque a comdia no ser analisada. O problema que

    Aristteles tinha dito em 1449b 20 da comdia trataremos depois (

    ). Hoje se discute se Aristteles escreveu uma

    segunda parte (ou continuao) da Potica. Isto , se numa obra posterior

    tratou sobre a comdia, gnero literrio no qual teriam um lugar de destaque o

    riso e o prazer. Hoje a maioria dos estudiosos da opinio de que Aristteles

    sim escreveu um tratado sobre a comdia. Porm este texto foi perdido e hoje

    somente pode especular-se sobre sua existncia. Alis foi um bom tema para o

    filme O homem da Rosa e Humberto Eco. Sobre como pde perder-se, h

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    muitas teorias. Fernando Bez4, fornece uma lista muito interessante das mais

    importantes teorias a esse respeito, que traduzo e cito a continuao:

    1) Umberto Eco, em O nome da rosa (1980), prope uma

    hiptese fascinante, porm falsa: sustenta que o segundo livro da

    Potica sobre a comedia foi destrudo progressivamente

    pela Igreja em sua tentativa de deter a influncia das comdias.

    2) Jacob Bernays, baseou-se numa citao do filsofo Proclo,

    onde este discute os efeitos da comdia e da tragdia nas

    emoes humanas, para assinalar que no sculo V d.C., ainda

    podia ler-se essa obra.

    3) Ingram Bywater escreveu que o livro sobre a comdia se

    perdeu quando os livros de Aristteles estavam em rolos de

    papiro separados, pelo que no foram transferidos a cdices.

    4) Valentn Garcia Yebra, no prlogo da traduo ao espanhol da

    Potica, adverte que o segundo livro desapareceu considerando

    que na poca helenstica e romana o interesse pela comdia se

    dissipou e se fizeram vrios eptomes que fomentaram a

    possibilidade de que a obra original no fosse copiada.

    5) Richard Janko cr que A Potica era o ltimo dos livros na

    edio das obras de Aristteles, o que pode ter ocasionado que a

    falta de interesse suspendesse a reproduo e o volume

    desaparecesse sem deixar outro rasto que um eptome bizantino,

    o Tractatus Coislinianus, o qual, segundo ele, nada mais e nada

    menos que um resumo desse segundo livro.

    Fernando Bez faz uma avaliao crtica de cada uma das hipteses

    enumeradas anteriormente:

    A tese de Eco, lamentavelmente, fantstica e impossvel. As

    proibies de comdias se aplicaram ao drama em genal e a

    tragdia no esteve fora dos ataques cristos. O Snodo

    Ecumnico de 691 d.C. estabeleceu numa Ata que todos estes

    espetculos ficavam igualmente censurados. A posio de

    Bywater, completa e insignificante: que no tenha passado a ser

    copiada em cdice uma alternativa to vlida como que

    desapareceu no incndio da biblioteca de Alexandria, a destruio

    4 Este texto se encontra na internet. Ver bibliografia na parte internet.

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    da biblioteca de Rodas ou os danos que ocorreram no depsito

    subterrneo dos familiares de Neleo de Escpsis. O que diz

    Bernays absolutamente vlido: todavia no sculo V d.C. a obra

    era conhecida.

    Yebra se equivoca num ponto importante: o desinteresse pela

    comdia tambm o sofreu a tragdia em Roma, devido a que se

    tratava de outros deuses e de outro conceito de espetculo. Se

    fosse verdadeira sua idia, toda A Potica tivesse desaparecido.

    A crena de Janko mais interessante e talvez se aproxime mais

    da verdade.

    Ento, porque se Aristteles escreveu um livro sobre a Comdia, este texto

    no foi conservado? Fazemos nossa a hipteses de Janko e de Fernando

    Bez: simplesmente porque no houve interesse em conservar esse texto. Da

    mesma maneira como hoje os livros que no despertam o interesse do pblico

    deixam de ser publicados, tambm a parte sobre a comedia de A Potica, no

    foi reeditada, isto , copiada. Os textos existentes foram ficando velhos e

    desapareceram pela ao do tempo. Os editores (que no eram como os

    editores de hoje, mas, a maioria das vezes, monges que gastavam vrios anos

    de sua vida em copiar textos), preferiram editar os textos de Aristteles que

    tinham uma aceitao e interesse maior para os estudos ou a pesquisa. Assim,

    da Comdia somente ficaram citaes e resumos, dos quais o Tractatus

    Coislinianus5 seria uma magnfica amostra.

    FOI ARISTTELES UM POETA?

    Finalmente, uma ltima pergunta: Foi Aristteles um poeta?

    Resposta: Digenes Lartios em sua Vida e Doutrinas dos Filsofos Ilustres,

    nos transmitiu um poema de Aristteles. Que sem entrar em maiores detalhes

    5 Tractatus Coislinianus, um manuscrito do sculo X que contem uma teoria grega de Comdia. Foi publicado em 1839 na coleo de Charles Henri du Cambout de Coislin. O tratamento que se da matria marca claramente a influencia de Aristteles. Existem nele muitos pontos de paralelismo com o modelo oferecido na Potica. O Tractatus quase com certeza uma verso resumida de um original aristotlico perdido ou um texto produzido pela tradio aristotlica. Assim, como com a tragdia, a comdia, deve trazer uma catarse , mas atravs do uso do riso e do prazer. A comdia inclui momentos cmicos, percalos ridculos, engano, desenvolvimentos inesperados, e danas desajeitadas. Os atores incluem impostores e palhaos. Embora a linguagem da comdia deve ser realista, pode ser usado nela, para dar mais fora ao aspecto cmico, o uso de trocadilhos, grias e malformaes palavra.

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    nem discusses, apresentamos a continuao. E deixamos a cada um a labor

    de julgar se ele era um poeta. Este poema conhecido na histria da filosofia

    como o Hino Virtude. foi composto em honra de seu to Hermias.

    , ,

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    Oh virtude!, que custas tantas fadigas aos mortais,

    prmio mais belo para a vida de um homem!

    Por tua beleza, Oh virgem!,

    at a morte um destino invejvel na Grcia,

    e sofrer penas atrozes, incessantes.

    Infundes essa coragem no esprito, imortal, superior ao ouro,

    mais cara que os genitores ou o sono que enlanguesce os olhos.

    Por ti Hrcules, filho de Zeus, e os filhos de Leda,

    suportaram muitas provaes em busca de teu poder.

    E ansiando por ti Aquiles e jax foram para a morada de Hades,

    e por causa de tua imagem querida o filho de Atarneus

    privou seus olhos da luz do sol.

    Por isso seus feitos so dignos de cantos, e as Musas,

    filhas da Memria, f-lo-o imortal,

    exaltando a majestade de Zeus, guardio dos estrangeiros,

    e a graa da amizade duradoura."

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    GADAMER, Hans Georg. Verdade e Mtodo, V.1. Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. So Paulo: Vozes. 1997.

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    http://www.archive.org/search.php?query=creator%3A%22Aristotle%22http://www.archive.org/search.php?query=creator%3A%22Deutsche+Akademie+der+Wissenschaften+zu+Berlin%22http://www.archive.org/search.php?query=creator%3A%22Deutsche+Akademie+der+Wissenschaften+zu+Berlin%22http://www.livrariacultura.com.br/scripts/busca/busca.asp?palavra=GADAMER,+HANS+GEORG&modo_busca=Ahttp://www.archive.org/details/aristotelisopera01arisrichhttp://www.brooklyn.cuny.edu/bc/depthome/classics/tragedy.htm

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    Introduction to Old Comedy. Introduction to genre and background by Roger Dunkle, Chair, Department of Classics, Brooklyn College, CUNY. (http://www.brooklyn.cuny.edu/bc/depthome/classics/genrecm.htm)

    IMAGEM: Tractatus Coislinianus

    http://www.brooklyn.cuny.edu/bc/depthome/classics/genrecm.htm