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Instituto de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Metafísica PEDRO IVO SOUZA DE ALCÂNTARA RAZÃO, PODER, ERRO E JUSTIÇA: Um comentário ao Livro I da República valorizando o contexto narrativo dos Σωκρατικοί Λόγοι Brasília - DF 2018

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Instituto de Cincias Humanas

Programa de Ps-Graduao em Metafsica

PEDRO IVO SOUZA DE ALCNTARA

RAZO, PODER, ERRO E JUSTIA:

Um comentrio ao Livro I da Repblica valorizando o contexto narrativo dos

Braslia - DF

2018

PEDRO IVO SOUZA DE ALCNTARA

RAZO, PODER, ERRO E JUSTIA:

Um comentrio ao Livro I da Repblica valorizando o contexto narrativo dos

Dissertao apresentada ao programa de ps-

graduao em Metafisica do Instituto de

Cincias Humanas da Universidade de Braslia,

como requisito para obteno do ttulo de

Mestre em Metafsica, na linha de pesquisa

Origens do Pensamento Ocidental.

Orientao do professor Dr. Rodolfo Lopes.

Braslia-DF

2018

AGRADECIMENTOS

Agradeo grandemente,

Primeiramente aos meus pais, Celso e Laline, por todo amor e cuidado

com que me instruram e por toda dedicao afetiva que me ajudou a

crescer de maneira saudvel.

minha av Maria Aparecida, que foi e sempre ser uma ncora de

dignidade e de apoio para mim e toda minha famlia.

Ao Samuel de Souza, meu tio, por todos os auxlios e espaos de

reflexo sobre a densidade existencial que tanto so fundamentais para

minhas especulaes.

por mim amada Dyane Albuquerque, por seu inigualvel fazer-se-

presente em parte significativa da jornada na qual surgiu o trabalho.

A todos os professores, por valorosos ensinamentos, em especial ao

desembargador Neviton Guedes que me trouxe ao tema de direitos

fundamentais com brilhante exposio na graduao me inclinando

(pelas concordncias e pelas discordncias) sempre mais ao interesse

pela filosofia e ao orientador Rodolfo Lopes, pelo brilhantismo com o

qual me possibilitou ver a obra de Plato por novos ngulos que eu

nunca tinha imaginado ser possvel.

Por fim, cabe um agradecimento quase religioso sem direo a um

sujeito especfico, mas prpria condio humana, pois todo processo

de pesquisa encontra sua causalidade na prpria Humanidade, que

fundamenta a elaborao desse trabalho tanto porque nenhuma

produo acadmica seria possvel sem o conjunto de todas as

pesquisas at ento realizadas, quanto porque todas as pesquisas

Humanidade se destinam, sendo ela, portanto, simultaneamente a me

e a ltima herdeira de todo legado que qualquer indivduo pretende

deixar. Por ser adepto de princpios humanistas tambm a ela devo

gratido.

Dedico minha falecida av, dona Lurdes, e minha vvida tia Anita,

que cuidou da matriarca da famlia Alcntara que cresceu em Porta

Larga-PE, com todo carinho e dedicao exigida e a quem peo

desculpa pela distncia nos ltimos anos, esperando que nela estejam

representados os demais familiares que negligenciei por motivos

injustificveis, j que ns somos os responsveis pela eleio de nossas

prioridades.

.

Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere,

alterum non laedere, suum cuique tribuere.

Ulpiano

Wer den Dichter will verstehen

Mus in Dichters Lande gehen.

Goethe

RESUMO

O presente trabalho se debrua sobre o tema da definio da justia no Livro I da Repblica,

considerando que a narrativa da trajetria de Scrates nos textos platnicos relevante e dialoga

com as questes debatidas nos dilogos. O seu foco repousa, portanto, sobre o Livro I da

Repblica e a relao do texto ali apresentado com a narrativa da morte de Scrates que tambm

envolve o tema da justia. A tese fundamental que se no negligenciarmos os aspectos

dramticos dos Dilogos veremos a reflexo sobre a justia no Livro I da Repblica como,

sobretudo, uma reflexo tica. Prope-se que h no Livro I da Repblica uma crtica aos efeitos

morais resultantes de perspectivas similares s das personagens Cfalo, Polemarco e Trasmaco

em Atenas. Em razo dessa perspectiva, dialogamos brevemente com a hiptese de Jacob

Howland, segundo a qual os Livros I e II da Repblica seriam direcionados ao loggrafo Lsias,

por motivos ticos que se relacionam com a poltica que marca o fim da Guerra do Peloponeso.

Sustenta-se, enfim, que o Livro I da Repblica cria a imagem retrica de um Scrates que tem

conscincia sobre a necessidade de sustentar um discurso contra a para remodular os

limites das decises poltico-jurdicas to questionveis quanto as que na histria ocasionaram

a morte de Polemarco e Scrates.

Palavras-chave: Filosofia do Direito. tica. Repblica.

ABSTRACT

This study concentrates on the definition of justice in Book I of the Republic, considering the

Socrates' trajectory in the Platonic texts as a relevant thing which dialogues with the issues

debated in the dialogues. Its focus is, therefore, Republics Book I and the relationship of these

text with the narrative of Socrates' death, which also involves the theme of justice. Our point is

that: if we do not neglect the dramatic aspects of the dialogues, we will see the subject matter

on a justice in Book I of the Republic as an ethical matter. We propose that in Book I of the

Republic is a critique of the moral effects resulting from similar perspectives to the characters

Cephalus, Polemarco and Thrasymachus in Athens. Due to the perspective, we briefly

dialogued with a hypothesis of Jacob Howland, according to Republics Books I and II would

be directed to the logographer Lsias, for ethical reasons that is related to the policy that marks

the end of the Peloponnesian War. It is maintained, finally, that Book I of the Republic creates

a rhetorical image of a Socrates who is aware of a need to sustain a discourse against a

to reshape the limits of the political and juridical decisions as questionable as those which in

history have caused the death of Polemarco and Socrates.

Key-words: Philosophy of Law. Ethics. Republic.

SUMRIO INTRODUO..........................................................................................................................................9

1. AJUSTIANOSDEPLATO............................................................................19

1.1. AquestodaJustianoLivroIdaRepblica:escopo,justificativadadelimitaoecausadainvestigao...........................................................................................................................................20

1.2. AopodePlatopelos:esuarelaocomdebatesobreaJustiadoLivroIdaRepblica..........................................................................................................................................25

1.3. Acausaticadacrticapoesia:esuarelaocomdebatesobreaJustiadoLivroIdaRepblica 29

1.4. DiscursoeprticadapersonagemScrates:esuarelaocomodebatesobreaJustiadoLivroIdaRepblica..........................................................................................................................................39

1.5. Adefiniodepalavraseafunoda..............................................................................58

1.6. AHiptesedaProto-Repblicaeimportnciadaquestosobreajustia...................................64

2.AJUSTIANOLIVROIDAREPBLICA...............................................................................................70

2.1.Scrates,ovitimado:anarrativadadescidaaoPireueousodaforacontraofilsofo..............70

2.1.1.K,ascamadasnarrativasnosDilogoseaoponarrativadaprimeirapessoadosingularnaRepblica............................................................................................................................72

2.1.2.,aimpotnciadeScratesfrentedapoliseanecessidadedaeducao..........76

2.2.Cfalo,opsicologicamentepurificado:justiapelomedo.............................................................83

2.3.Polemarco,obelicoso:justiapelaguerra.....................................................................................91

2.4.Trasmaco,orealistapoltico:justiapelaabdicaodesi............................................................99

2.4.1.AposiodapersonagemTrasmacoeapossvelrelaocomLsias.........................................99

2.4.2.Arecepodafiguradosofista.................................................................................................114

2.4.3.ObjeoaGeorgeF.Hourani....................................................................................................122

2.5.Scrates,oapologistadaexcelnciaordenatriadasociedade:aracionalidadedajustiaenquantoabdicao............................................................................................................................129

2.5.1.Adefiniodastcnicasemfunodaatividadeenodaintenodotcnico.......................130

2.5.2.AretricasocrticaeosilenciamentodeTrasmaco:Justiaprpriadosbioebom.............133

2.5.3.Apotencialidadenoplenadainjustia....................................................................................136

2.5.4.Ojustocomomaisfeliz:arelaoentretarefaprpriaeexcelncia........................................142

CONCLUSO........................................................................................................................................146

REFERNCIABIBLIOGRFICA...............................................................................................................150

9

INTRODUO

A presente dissertao, que uma interpretao do Livro I da Repblica com anlise

contextual das personagens, surge de uma reflexo produzida por duas preocupaes basilares,

uma relativa a uma leitura que filsofos do sculo XX produziram acerca das questes sobre a

justia levantadas nos textos de Plato e a outra tange metodologia da leitura da obra platnica.

A primeira inquietao se refere, mais especificamente, a determinada tendncia do

sculo passado de se ler a Repblica desvalorizando seu contedo por esse texto supostamente

conter uma mensagem de proposta poltica perigosa. Essa desvalorizao reflete at hoje em

como se pensa acerca de Plato na academia de direito1, em especial em razo de alguns

manuais de filosofia do direito na presente data, que muitas vezes apresentam Plato de maneira

rasa. A outra inquietao se refere compreenso evolucionista da obra platnica

especificamente quando aplicada Repblica, o que projeta sobre as colocaes ali impressas

a caracterstica de sede de pensamentos de mdia maturidade sem se considerar (ou

considerando secundariamente) possveis integraes narrativas entre o texto dessa obra e

outras do corpus platonicum.

A dupla desvalorizao do contedo da Repblica de um lado por determinada

atribuio de sentido e de outro pelo estabelecimento da convico de que o texto no reflete o

pensamento mais maduro do autor a causa do primeiro movimento de nossas investigaes.

O incio desse percurso se deu com a leitura da obra The open society and its enemies

de Karl Popper, pela primeira vez publicada em 1945 e que recebeu a seguinte predicao do

filsofo analtico Bertrand Russell: a work of first-class importance which ought to be widely

read for its masterly criticism of the enemies of democracy, ancient and modern2. J pelo

1Porexemplo,oconsagrado Paulo Nader (2017, p. 109) escreve em sua Filosofia do Direito que para Plato todo indivduo, por imperativo de justia, deveria dedicar-se apenas atividade para a qual possusse qualidades e que, portanto, para Plato a formula de justia consistiria em que os homens se limitassem apenas aos afazeres que lhes coubessem. possvel inferir dessas linhas de Nader que para ele a Repblica cria uma noo de justia que politicamente se limitaria diviso de tarefas nos trs grupos da kallipolis, com uma aopologia contentao dos governados s suas posies de governados.2A informao sobre a declarao de Russell est na edio de 2011 de The open society and its enemies publicada pela Routledge Classics. O sistema de citao utilizado neste trabalho o de autor e data, constando ao longo do texto as datas das edies utilizadas como referncia para consulta e no a data da primeira publicao da obra, que constar na referncia bibliogrfica entre colchetes. Eventualmente, caso se entenda necessrio, referir-se- data da primeira publicao tambm em nota de rodap, espao utilizado para inserir detalhes secundrios que facilitam a compreenso sobre o que est sendo dito ou esclarecem os trmites da pesquisa. Com exceo do Alemo, todas as citaes diretas no trabalho estaro na lngua original. As citaes de textos escritos em grego estaro acompanhadas de traduo nossa.

10

elogio de Russell de se antever que Popper apresentou Plato como um inimigo das sociedades

abertas, o que na viso dele significa ser adepto de uma organizao social fechada e em ltima

anlise administrada, diramos, por uma estrutura totalitria de governo, para usarmos termo

consagrado por Hannah Arendt e que eventualmente utilizado para caracterizar a filosofia

poltica de Plato quando pretendem atac-lo descrevendo-o como o primeiro de uma linhagem

de pensadores que prega contra a pluralidade no fazer poltico culminando nas consequncias

polticas do sculo XX, que o que produz a leitura de Popper.

Inclusive, Arendt l, no sem um ar crtico, um Plato que poria a prtica da vita ativa

e do bios politikos como serva da contemplao terica, considerada por ela a completa

quietude passiva na qual a verdade filosfica se revela ao humano, mas se revela apenas aps

longa atividade de pensamento, a maneira mais direta e importante de se chegar a essa verdade

(ARENDT, 2014, p. 16 e 361).

Para ela, aps o julgamento de Scrates, Plato o primeiro a refletir sobre o abismo

entre filosofia e poltica e decepcionado com a morte do mestre tentou reverter a situao ftica

estabelecendo, em relao prioridade, a filosofia sobre a poltica, formando uma hierarquia

entre as duas que, ao colocar a filosofia em referncia a padres absolutos, criou, diz ela, a

mais anti-socrtica concluso que Plato tirou do julgamento de Scrates, que seria a oposio

entre opinio, que levou condenao de Scrates, e a verdade, prpria da filosofia, dando

vazo a uma tirania da verdade, onde a eterna verdade da qual os homens comuns no podem

ser persuadidos deve governar a cidade, impedindo sempre o irrompimento do novo (ARENDT,

2002, p. 92).

A autora caracteriza o totalitarismo como negao da pluralidade em uma massificao

de pensamento estimulada pela elite e setores insatisfeitos da sociedade. Mesmo que no ataque

to veementemente Plato quanto Popper, fica claro que, para ela, quando a filosofia de Plato,

enquanto buscadora da revelao da verdade, assume a prioridade sobre a poltica, ocorre

justamente o primeiro movimento contrrio pluralidade (ARENDT, 1989, p. 390).

Nessa linha de leitura, pode-se dizer que a idealizao da polis feita na Repblica o

avesso da imprevisibilidade da ao humana na esfera poltica diagnosticada pela Arendt na

realidade. Consequentemente, o vislumbre da figura do filsofo-rei por parte de Plato seria o

primeiro passo na direo da morte da liberdade e do controle absoluto da ao humana. Embora

o texto de Arendt no vincule expressamente Plato s tendncias tirnicas do sculo XX como

o faz Popper, bastante claro o paralelo entre ela e a tendncia popperiana na medida em que

ela tambm critica, ainda que por meios bastante diversos, a prevalncia do filosfico sobre o

11

poltico, ao compreender que a filosofia referida na Repblica culminaria em uma espcie de

know how da governana dos assuntos humanos a partir da hierarquizao entre verdade

filosfica e opinio poltica.

Interpretaes da obra platnica como essa que tm algo que podemos chamar de

interseco com a leitura de Popper integram, em alguma medida, uma tradio de colocaes

anti-platnica e essas interpretaes que assim nomeamos constituem grupo unitrio a partir de

seu ponto comum de leitura, no qual o Scrates de Plato ao anunciar a proposta de unio entre

filosofia e governo (R. 473d)3 estaria convocando os filsofos, donos de um saber superior,

domadores de determinada verdade, a assumirem o governo das cidades reais como engenheiros

sociais justificados no poder por serem detentores de sua tcnica ampla de governo da vida

humana.

Quando se adota esse paradigma de leitura, o intrprete geralmente entende que o

filsofo-rei a que se refere o texto seria um cientista social, usando termos modernos, dotado

de uma (cincia) absoluta e que atravs dela passa a saber o que bom para a polis,

aps avanar dialeticamente at a Ideia de Bem4, leitura supostamente em conformidade com o

Livro VII da Repblica, especialmente a alegoria da caverna.

importante notar que esse tipo de viso acerca da proposta do filsofo-rei, ou ao

menos algo que se aproxima dela, no exclusividade do Sculo XX, pois no incio da Idade

Moderna, por exemplo, Erasmo de Rotterdam publicou o satrico e clebre

(Elogio da Loucura), obra direcionada contra o status quo de seu tempo, como se, nas palavras

do prprio autor, ele ferisse a todos impiedosamente com a antiga comdia que ressuscitara

(ROTTERDAM, 2003, p. 12)5. Nessa obra, mesmo sendo de outra poca Plato foi atingido

justamente por causa da proposta de relao entre filosofia e governo.

3Para citao das obras gregas e latinas clssicas, usamos as marcas identificadoras do lxico grego-ingls de Henry George Liddell e Robert Scott, revisado por Henry Stuart Jones (chamado LSJ). A lista referencial de tais abreviaes encontra-se disponvel no stio eletrnico: . Em relao especificamente s obras platnicas, o sistema de paginao o de Henri Estienne (Stephanus). Exemplificadamente, R. a abreviao indicativa da Repblica pelo LSJ e 473d refere pgina 473, trecho d, na edio Stephanus. Em caso de julgamos importante haver maior especificidade no posicionamento da citao, aps a letra do sistema Stephanus indicaremos com um algarismo aproximadamente tambm a primeira linha do trecho referido. Todas as obras platnicas que referenciamos no original so da edio de John Burnet. A edio da Repblica de S. R. Slings publicada pela Oxford Classical Texts em 2003 foi apenas consultada. Em relao aos demais casos, saliente-se desde j que todas as edies em lngua grega consultadas das obras clssicas so as que se encontram disponveis em: http://www.perseus.tufts.edu. 4Usamos Formas com F e Ideias com I em letras maisculas acompanhadas da traduo do substantivo dativo Bem, Belo etc, tambm iniciada em letra maiscula para referirmos as entidades apresentadas nos Dilogos no que se convencionou chamar Teoria das Ideias, sobre a qual fazemos brevssima discusso no captulo I.5 A obra foi publicada pela primeira vez em Paris ao ano de 1509.

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O neerlands declara pela voz de sua personagem, a Deusa Loucura, que Scrates no

era de todo louco, eis que rejeitava o ttulo de sbio e dizia que quem quer passar por sbio deve

se abster do regime da repblica e, em seguida, em oposio a essa afirmativa, a Loucura fala

sobre o que ela considera a proposta platnica de que as cidades s seriam felizes se os

filsofos governassem ou se os governantes filosofassem, afirmando que a verdade seria

justamente o oposto (ROTTERDAM, 2003, p 49).

Embora no afirme diretamente, a dinmica e disposio desses trechos do monlogo

da personagem de Rotterdam insinuam a loucura de Plato em oposio sanidade (ao menos

mnima) de Scrates por este ltimo declarar que s h sapincia com o necessrio afastamento

da poltica.

Esse estilisticamente sutil ataque a Plato em razo da proposta de relao entre

filosofia e poltica foi talvez o primeiro da Modernidade Ocidental. Outros ataques desse tipo

ao texto da Repblica surgiriam, talvez de modo independente, manifestando as preocupaes

inerentes s reflexes de cada autor que se posiciona contra a proposta, pois cada um escreve

tendo em vista as necessidades de seus discursos inseridos no contexto histrico de cada

pensador. Apesar das distncias temporais e origens retricas diversas, todos os ataques a essas

linhas da Repblica tm em comum a afirmativa de que a relao entre filosofia e governo

implica em alguma proposta abusiva de poder.

Nesse sentido, j na Idade Contempornea, no sculo XIX, Friedrich Nietzsche, que

se destacou em ataques a Plato em vrios momentos de sua obra desde a publicao de Die

Geburt der Tragdie: aus dem Geiste der Musik6, foi ao ponto de afirmar nas linhas dos

aforismos n 261 e 473 de Menschliches, Allzumenschliches: Ein Buch fr freie Geister7 que

Plato seria um tirano do esprito por causa de sua nsia pela verdade e que ele se aproximou

do despotismo de Siracusa desejando ser seu herdeiro, o que remete aos infortnios narrados

na Carta VII, atribuda a Plato.

Alm da acusao de proposta poltica abusiva, h uma caracterstica marcante no

Plato lido por Nietzsche: o racionalismo anti-trgico, que, na concluso do alemo, s poderia

desembocar no ressentido plano de um despotismo da razo por parte do filsofo grego, o que

em sntese se une s demais posies anti-platnicas na comum convico de que os textos de

Plato se direcionam concluso de que, atravs da razo, o humano chegaria verdade, vertida

6Publicado originalmente em 1872, alterado o ttulo quando da segunda publicao.7Publicado originalmente em 1878.

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em verdade tcnico-administrativa quando posta a filosofia sobre a poltica, relao atravs da

qual o governo filosoficamente justificado atuaria de modo desptico.

possvel dizer que comum a essas concluses anti-platnicas enxergar Plato como

um apologista da possibilidade de se deter a verdade para resolver os problemas prticos da

sociedade humana. Para concluir isso dos textos atribudos a Plato, em regra, os intrpretes

transformam as falas das personagens mais ativas nos dilogos, especialmente Scrates, em

falas de uma personagem porta-voz de Plato e tomam essa atitude, tambm em regra, sem

considerar o aspecto dramtico dos dilogos e os contextos em que as personagens expressam

uma ou outra opinio e, por outro lado, tais leituras priorizam a narrativa de que Plato teria um

rancor pela morte de Scrates e da adviria o motivo pelo qual ele desejaria domesticar a poltica

pela razo filosfica, com consequente excluso de tudo que seria irracional, como a arte

potica trgica.

Mas essa linha de interpretao muito marcada por um psicologismo que transforma

o autor da Repblica em um refm ressentido da morte de Scrates e se descola completamente

do texto, deixando de considerar que a potica utilizada no s na elaborao da obra

platnica, que enquanto dilogo uma obra mimtica artstica, mas tambm o enredo da atitude

retrica de Scrates, que eventualmente se apropria da narrativa mtica e potica para suas

colocaes.

Na linha desse argumento, o brasileiro Hector Benoit afirma que pessoas como

Nietzsche, Heidegger e Haverlock (os dois ltimos lendo um Plato prximo do nietzschiano,

no entender de Benoit) tm a convico de que os Dilogos platnicos8 desacreditam a arte em

nome da moral e da metafsica, mas que essa viso merece alguma considerao crtica, pois

Plato iria do ficcional e do aparente reflexo conceitual, de modo nenhum excluindo a arte,

mas justamente emergindo dela.

Aps falar das leituras de Plato que Benoit atribui a esses trs mencionados no

pargrafo acima, ele contrape a estes a srie de questes abaixo como perguntas retricas que

acentuam a necessidade de se perceber como o texto platnico expresso potica (BENOIT,

2015, p. 43):

Porm, os Dilogos no seriam, ao contrrio, o grande esforo pelo qual a reflexo

conceitual irrompe do interior da prpria aparncia? No seu modo de exposio, os

8Referiremos doravante por Dilogos com inicial maiscula a soma das obras do corpus platonicum, com exceo das cartas a ele atribudas, cartas que merecem uma discusso profunda sobre a autoria e que no presente trabalho no discutiremos.

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Dilogos no estariam muito mais prximos da tragdia e da comdia do que daquilo

que convencionalmente passamos a designar como filosofia? No seriam eles

prprios, os Dilogos, uma das formas supremas da prpria arte grega? Ou at mesmo

a superior entre estas pelas suas diversas camadas de representao mimtica e

filosfica? At que ponto esses crticos de Plato, apesar de to preocupados com a

arte potica, tiveram olhos suficientemente sagazes para os segredos esotricos dessa

suprema forma de arte, aquela da filosofia platnica, uma filosofia que certamente,

apesar de filosofia, faz desta a arte conceitual mais elaborada esteticamente?

Quando recorre ao termo esoterismo para seu argumento, Benoit se refere no a um

entendimento profundamente oculto por trs dos textos. Pelo inverso, Benoit quer jogar luzes

sobre o oculto por trs da tradio que desde o Livro da Metafsica de Aristteles vai

soterrando Plato sob as perspectivas de determinados projetos filosficos que nas mos do

intrprete moderdo podem ser transformadas em expresses inquestionveis das intenes do

prprio Plato, ocultando os Dilogos por debaixo de leituras consagradas antes mesmo que o

intrprete nefito avance sobre o texto platnico (BENOIT, 2015, p. 68 e p. 81).

As leituras de autoridades foram na tradio, aos poucos, substituindo o texto do

prprio autor, tornando-o oculto por essa camada interpretativa espessa, que muitas vezes chega

prematuramente ao intrprete interessado na obra como se fosse um manual explicativo ou um

resumo do que significa o texto de Plato, o que condiciona a viso desse intrprete sobre a

obra desde antes de suas primeiras incurses no texto do autor grego. Assim, ainda que a obra

em sua dramaticidade esteja aberta a todos, est velada a alguns por essa camada interpretativa

que explicitamente rejeita a dramaticidade ou apenas silenciosamente a ignora, focando-se em

explicaes ulteriores de outros autores e no nos prprios Dilogos de Plato.

Deixe-se ler o prprio Benoit (2015, p. 93):

Para superar a superficialidade da longa tradio que transforma o discurso de alguns

personagens (particularmente, Scrates, Crtias, Parmnides e o Estrangeiro como

fiis portadores da palavra de Plato), assim como os mitos eventualmente narrados,

na palavra, pensamento e presena plena de Plato, para reencontrar a Ele, para

redescobrir o Plato (esotrico do logos) enterrado por sculos de leituras vulgares,

ser necessrio, primeiramente, o difcil trabalho de reconhecer a profunda

significao de sua presena como e enquanto, exatamente, ausncia.

As intuies de Benoit em relao criatividade potica nos Dilogos, significada em

grande parte pela opo de Plato em no ser personagem central9 em sua prpria obra

9Plato mencionado nos Dilogos apenas brevemente. Isso ocorre nas passagens da Apologia (Ap. 34a) e do Fdon (Phd. 59b), sendo que no ltimo o nome de Plato mencionado justamente para se pontar sua ausncia em

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representativa, so excepcionalmente compatveis com os fundamentos de nossa leitura. E vale

destacar que a proposta de Benoit de considerar os aspectos dramticos como uma ferramenta

indispensvel para a compreenso da filosofia contida nos textos atribudos a Plato no

isolada. Stanley Rosen em 2005 citou essa tendncia no prefcio de sua Platos Republic

(ROSEN, 2005, p. 10):

There can be little doubt that the wide appeal of the Republic is largely due to its

artistic brilliance. The task of the philosophical student, however, is not only to enjoy

but also to understand. It is now acknowledged by competent Plato scholars that we

cannot arrive at a satisfactory appreciation of his philosophical teaching if we ignore

the connection between the discursive arguments on the one hand and the dramatic

form and rhetorical elements of the text on the other.

Adotamos essa percepo como fundamental para nossa leitura e, como se ver, no

se pode ignorar que a afirmao da personagem Scrates sobre o filsofo-rei est inserida dentro

de uma discusso em um enredo maior que precisa ser tomado como relevante, antes de se

concluir qualquer coisa sobre o sentido do dilogo da Repblica e dessa passagem em

particular.

Ousamos adiantar a nossa concluso de que graas ao relaxamento em relao a esse

aspecto dramtico da obra platnica leituras como a de Nietzsche e as dos demais citados como

anti-platnicos se entrincheiram em posio de ataque em relao filosofia de Plato por

inteiro e no apenas em relao Repblica, fazendo isso fundamentadas tambm (e talvez

principalmente) em uma opo de anlise da Repblica que estar presente na leitura de Karl

Popper em The open society and its enemies, opo que passa ao largo de uma discusso detida

sobre os aspectos dramticos da obra platnica, optando, como alternativa, por atribuir ao

rancor relativo morte do Scrates histrico a posio de eixo hermenutico para compreenso

do significado da proposio relativa ao filsofo-rei feita pela personagem Scrates.

Se Plato, ou melhor, Scrates, a personagem, estivesse propondo o banimento total

da arte potica em prol de uma espcie de tirania da razo na Repblica, ento Scrates ainda

nas etapas iniciais de fabricao da cidade (Livros II e III) no poderia firmar a necessidade de

adaptar os mitos (R. 377a e seg.), muito menos caminhar para uma concluso do dilogo

relacionada ao Mito de Er. Ento necessria uma compreenso que cruze os parciais

momentos do texto para ser o mais fiel ao contedo quanto possvel.

cena e que no primeiro apenas tal nome aparece para mencionar uma proposta dele de pagar em valores a pena de Scrates. Plato no aparece como personagem ativa em qualquer circunstncia do corpus, o que discutiremos melhor no item II do captulo I.

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O texto deve, portanto, ser lido em sua integralidade narrativa. As crticas poesia

bem como as demais passagens usadas para significar a proposta do filsofo-rei da personagem

precisam ser entendidas nessa relao complexa do texto que produz significado atravs de sua

completude narrativa.

Nesse sentido, com a pretenso de um estudo inicial sobre a integralidade do texto da

Repblica, a presente dissertao est focada na discusso sobre a justia impressa no Livro I

e analisa relaes entre a questo socrtica sobre a justia com parte do contexto literrio e

histrico em que est inserida a narrativa dramtica que seleciona pessoas histricas para serem

representadas no dilogo como personagens. Assim, queremos desenvolver uma compreenso

do incio da Repblica que contextualize a discusso sobre a em relao atitude que as

personagens do texto representam na discusso, considerando o contexto histrico que colabora

no processo de significao dessas posies e debates contidos no Livro I.

O tema o que justia eixo da nossa anlise em razo de nosso objetivo de produzir

uma reflexo de filosofia do direito que considera o justo em sua dimenso ambgua, tal qual

apresentada no Livro I, em discusso no somente por causa do aspecto declarativo da definio

do termo, mas especialmente em funo do aspecto normativo que a definio tem sobre o

comportamento humano.

Com essa anlise se pretende demonstrar aqui que na Repblica a pergunta sobre a

implica em uma discusso no somente ontolgica (da determinao do ser da e sua

relao com a Ideia de Bem), nem somente ontoepistemolgica10 (para saber como se alcana

o conhecimento sobre o que justia por meio do avano sobre essa mesma Ideia de Bem), mas

tambm (e talvez prioritariamente) axiolgica, j que a maneira como as personagens definem

justia no Livro I claramente se relaciona com o modo pelo qual encaram a posio do humano

no mundo, determinando que comportamentos julgam adequados ou inadequados para serem

feitos pelo humano em sociedade.

O fato da conversa desembocar nos livros centrais em uma discusso

ontoepistemolgica circundando o tpico da Ideia de Bem refora essa perspectiva axiolgica,

embora Heidegger (2005, p. 351) aponte razes para ver problema nesse tipo de leitura,

10O termo ontoepistemologia usado por Jos Trindade Santos para caracterizar em Plato a unio entre a compreenso acerca das Formas e os mtodos que se podem derivar da interpretao do Dilogos como meios vocacionados permitirem o conhecimento das Formas (SANTOS, 2008).

17

concebendo ele que o termo em seu sentido originrio seria alheio noo de valor

moral.

Isso tudo significa dizer que o que est em debate no Livro I da Repblica no apenas

o que a justia ela mesma e como desvendar a resposta para essa pergunta, mas tambm

fulcral (e talvez mais importante que tudo isso) observar como as convices sobre o significado

de justia reestruturam a vida prtica do detentor da convico, estando certas concepes sob

discusso no Livro I por causa da concluso prtica a que elas conduzem, o que torna, nesse

caso, a discusso, antes de mais nada, tica.

Portanto, evitando aqui lavrar atestados de verdades psicologistas em relao ao que

pensava a figura histrica de Plato, queremos tentar a aproximao do texto do Livro I da

Repblica que temos hoje com ateno s personagens do texto, destacando a relao entre

personagem platnica e as inspiraes histricas dessas personagens, bem como o contexto

literrio das convices representadas e, para tanto, admitindo alguma unidade narrativa no

total do corpus platonicum em oposio s anlise de diviso por fases de elaborao da obra

de Plato, que se distanciam do nosso escopo. Essa opo aqui tomada por crermos que a

estratgia de leitura vinculada narrativa pode ser fonte de frutferas especulaes reflexivas,

sobretudo acerca da prtica da justia, tema central no Livro I, mas que permeia boa parte dos

Dilogos.

Assim sendo, essa dissertao se divide em dois captulos. O primeiro captulo um

avanar sobre os traos metodolgicos alinhavados nessa introduo, afastando-nos da

discusso sobre ordem de escrita dos Dilogos platnicos e aproximando-nos de uma definio

literria da funo da personagem Scrates, sobretudo para defender que a tomada de posio

de sobrevalorizar os aspectos dramticos da obra platnica deve nos levar a ler Scrates dentro

de um contexto em que ele representado como portador de constante preocupao com o

comportamento humano e com problemas ticos que permeiam todo o filosofar dos Dilogos

em que ele est presente, bem como para apontar em linhas gerais passagens que fortalecem

essa hiptese.

Embora pela opo acima referida precisemos citar esporadicamente trechos de outras

unidades dos Dilogos, como a opo desse trabalho em seu ncleo se restringir ao Livro I

da Repblica, ainda ao final do primeiro captulo trataremos rapidamente da hiptese de que se

tenha publicado isoladamente o Livro I antes da concluso do texto completo que nos chegou

da Repblica, isso porque, caso se queira se posicionar contra nossas consideraes acerca das

relaes intra-textuais do corpus, fica tambm demonstrado que possvel atribuir sentido

18

fechado ao texto do Livro I por ele gozar de uma integralidade narrativa que possibilita ver nele

um sentido completo.

A justia o ponto de partida no Livro I e de chegada no Livro X e se imaginarmos o

desenrolar da narrativa sob a imagem de uma linha ascendente entre tica e ontologia, podemos

considerar que a estrutura textual promove no incio uma discusso tica sobre a justia,

implcita na discusso sobre a definio, em seguida executa uma at a ontologia dos

livros centrais e por fim um retorno em at as concluses do texto que retornam a se

relacionar claramente tica e ao tema da definio de justia.

Na presente dissertao, porm, trabalharemos apenas o ponto de partida, ou seja, a

discusso tica sobre a justia implcita no Livro I at concluda no final desse mesmo

Livro I. Para tanto, no primeiro captulo (1.1) justificaremos nosso escopo e nossa deciso de

analisar o tema da justia desvelando as bases motivacionais do trabalho. A seguir (1.2),

faremos consideraes sobre o gnero potico em que se expressa a Repblica sobre o papel

potico da personagem Scrates, esclarecendo porque temos que extrapolar esse escopo do

Livro I para trabalharmos o significado narrativo das personagens. No ponto posterior (1.3),

trataremos curtamente da crtica poesia na Repblica com foco especfico na relao entre

essa crtica e a funo tica que atribumos personagem Scrates na obra platnica. Seguindo

a isso (1.4), promoveremos uma breve incurso no Fdon a fim de demonstrar que essa funo

tica apresentada tambm dramaticamente. Ento, concluindo o captulo (1.5), falaremos

sobre o papel tico do , visvel no Teeteto, que destaca que sua importncia vlida

mesmo no caso dele levar e fazemos essa breve anlise porque em que acaba

o Livro I da Repblica.

Aps tal exposio, o captulo dois entra como ncleo da dissertao. Divido em cinco

subtpicos, analisaremos o incio contextual da ida de Scrates casa de Cfalo (2.1) e as

posies de Cfalo (2.2), Polemarco (2.3), Trasmaco (2.4) e Scrates (2.5) no Livro I sobre a

definio de justia, colocando em dialogo contextual o texto de Plato e a realidade histrica

a que ele se refere.

Com nosso esforo interpretativo, que cremos ser impulsionado pela prpria escolha

esttica e narrativa dos Dilogos, conectaremos o Livro I da Repblica com a realidade

contingente da Atenas do fim do Sculo V AEC11 a que se remete a obra pelo uso das

11No marco do calendrio gregoriano (promulgado em 1582 EC e adotado pela marcao ocidental) AEC abreviao que significa Antes da Era Comum, em oposio a EC, que significa da Era Comum. Nos casos de citao de datas da Era Comum estamos omitindo o signo de identificao EC.

19

personagens Cfalo, Polemarco, Trasmaco e Scrates que tm seus nomes de algum modo

vinculados Guerra do Peloponeso.

Em sntese, o presente trabalho provoca um retorno ao texto e sobretudo ao contexto

carregado no Livro I da Repblica para analis-lo considerando o carter narrativo dos Dilogos

platnicos e em especial os aspectos prosopogrficos das personagens da Repblica em relao

histria que circunscreve as pessoas reais que inspiram essas personagens.

O objetivo contextualizar as discusses no Livro I da Repblica, atravs de uma

aproximao possvel do texto e da contraparte histrica considerando os prprios limites do

elaborador da dissertao , como expresses de uma discusso tico-normativa do

comportamento humano que se d a partir de uma reflexo sobre a relao entre fora, razo e

poder, pois essa relao caracteriza a legitimidade do poder poltico e os limites da ao poltica,

que por isso interessou filosofia do direito de Hans Kelsen no sculo XX e que pelo mesmo

motivo interessa filosofia do direito at hoje.

1. A JUSTIA NOS DE PLATO

20

1.1. A questo da Justia no Livro I da Repblica: escopo, justificativa da delimitao

e causa da investigao

A pergunta sobre o significado da justia o elemento motriz que encaminha a maior

parte da narrativa do Livro I da Repblica. Essa questo acaba conduzindo o texto integral do

dilogo a investigaes ticas, epistemolgicas e ontolgicas que, segundo Julius Moravcsik

(2006, p. 11), so os trs vrtices centrais da obra de Plato e mesmo de todo platonismo.

Entretanto, no Livro I propriamente dito a discusso sobre o tema culmina ao final em ,

a perplexidade advinda da parcial insolubilidade do problema discutido em razo de ningum

ter dado, naquele ponto, resposta satisfatria para definir o que seria justia. O silncio como

resultado da anunciado por Scrates, no caso, no ltimo trecho do Livro I (R. 354c):

,

, .

Quando em relao ao justo no sei o que , dificilmente saberei se por acaso ele

uma virtude ou no, bem como se aquele que o tem no feliz ou feliz.

A pergunta sobre (o que ) configura a busca pelo , palavra que em

portugus significa delimitao; a soma dos limites que definem ou, ainda; simplesmente

definio. Em expresso mais metafrica, possvel afirmar que tal pergunta sobre o que algo

a busca pelo , nome dado pedra que indica os limites de um terreno e que acaba sendo

sinnimo de definio (MALHADAS, DEZOTTI, NEVES, 2008, p. 242 e 244).

O termo aparece diversas vezes na Repblica e sua primeira apario se d logo

que Scrates enfrenta retoricamente a primeira colocao no dilogo acerca da justia, que

surge a partir de sua conversa com Cfalo. Ao dizer Scrates que determinada colocao

insuficiente para esclarecer o que seria justia, ele usa a palavra , atraindo dali em diante a

conversa para o tema da definio do que seria justia (R. 331d):

, .

Ento, isso no o que define justia: dizer a verdade e devolver algo que se possa ter

recebido.

Se assumirmos, a partir desse trecho, que o tema central do Livro I da Repblica a

definio de justia, que comea a ser explicitamente debatida aps uma conversa

aparentemente despretensiosa de Scrates com Cfalo sobre a velhice desse ltimo (R. 331c),

ento possvel dizer que o texto do Livro I termina inconclusivo no tocante a esse problema

central, porque o texto explicitamente marcando ao fim pela afirmativa de que no foi possvel

definir o que justia.

21

Entretanto, isso no significa que o trecho contm apenas um jogo vazio acerca do

significado de uma palavra, nem mesmo significa que a conversa ali narrada figura como mero

debate preparatrio para os prximos passos do texto integral. As discusses registradas no

Livro I esto inscritas em uma relao maior no s com o resto da estrutura narrativa da

Repblica integral, mas tambm com outras exposies narrativas distribudas pelo corpus

platonicum, sobretudo a representao que a obra de Plato faz sobre o destino do Scrates

histrico, caso completamente inserido no debate sobre o significado de justia.

Os (exames contestativos)12 que no Livro I da Repblica a personagem

Scrates ope a Cfalo, Polemarco e Trasmaco no tm vocao apenas de auxiliares em uma

disputa semntica sobre o significado da palavra justia. Ao se expressarem, os

promovem uma discusso implcita sobre a adequao ou inadequao de como as personagens

encaram o mundo, a partir das definies que usam, pois tais definies constrem a relao

dessas personagens com a realidade social em que se encontram. Ento, colocamos para a

presente leitura o foco na questo sobre a justia no Livro I da Repblica, interpretando a

importante faceta tica implicada na prpria discusso inconclusiva, porque questes ticas

desencadeadas pelo de Scrates apresentam significado fechado sobre a justia j no

Livro I, em que pese a inconcluso sobre o significado do termo.

Ademais, o tema da justia to importante na Repblica que segundo Digenes

Larcio (D. L. Livro III, 56 a 80) Trsilo, o primeiro organizador do corpus platonicum em

tetralogias, teria subtitulado o texto da Repblica com o nome Da justia. A maneira como se

ler aqui o Livro I da Repblica, com foco na disputa pela definio de , tem relao,

portanto, com um projeto interpretativo do texto integral da Repblica, considerando-a parte de

uma narrativa maior do corpus, de modo que a disputa sobre a significao do justo e termos

relacionados deve ser percebida no apenas como uma eirstica para soluo de um problema

semntico e conceitual, mas como causa de uma reflexo sobre como a elaborao conceitual

acerca do termo altera efetivamente a maneira do humano se relacionar com o mundo e seu

modo de agir dentro da sociedade, tendo aquela disputa inconclusiva sobre o significado da

justia papel fundamental na narrativa total da Repblica e mesmo na integralidade da obra

platnica, embora no examinemos esses efeitos detidamente nesse trabalho.

momento de se destacar que no se trata aqui de uma tentativa de descobrir as

crenas de Plato pela leitura do texto a ele atribudo, mas de apropriao do carter extra-

12Como veremos no captulo II, em R. 336c Trasmaco imperativamente afirma que Scrates deveria parar de fazer tais exames contestativos se era seu desejo de fato saber o que justia.

22

temporal do texto da obra platnica dado que certos problemas debatidos ali permanecem

importantes para reflexo do presente tempo, que ainda palco de inquietao e calorosas

disputas sobre os limites da discricionariedade do poder poltico (que, como se ver, marca a

discusso no Livro I), com a inovao de que hoje a jurisdio tambm precisa lidar

frequentemente com esse problema, pois o poder prprio da jurisdio fronteirio e de fato

imiscudo com o poder poltico, tornando-se o debate contido no Livro I da Repblica relevante

(tambm) para a filosofia do direito.

de se destacar que apesar do tema interessar ao mundo contemporneo, possvel

evitar ao menos parcialmente o anacronismo da interpretao uma vez que no se pretende aqui

expressar nenhuma analogia descabida entre as questes de poder da Atenas do sculo V AEC

e as que ocorrem no Brasil contemporneo, embora esteja implcito na projeo de pertinncia

que atribumos ao texto de Plato que ambos os cenrios tm entre si em comum, embora

irredutivelmente diferentes, o fato de que neles h dificuldades para se definir os limites do

poder poltico, tema que se relaciona com as discusses no Livro I da Repblica, o que torna a

anlise desse texto tambm pragmaticamente importante e o que impulsionou a investigao

que, apesar desse motor inicial, pretende de fato retirar um sentido coerente da narrativa e dos

dilogos do texto, evitando ao mximo (possvel) a projeo das questes que motivaram o

trabalho sobre a interpretao que a dissertao produz.

Contudo, alguma projeo inevitvel. O grande desafio no tocante aos problemas do

anacronismo na leitura presente de uma obra clssica a invencvel historicidade de todo

intrprete que fatalmente projeta suas convices e seus dilemas historicamente inscritos bem

como suas limitaes epistmicas, sobre o objeto da interpretao. Portanto, a prpria limitao

daquele que escreve deve ser conscientemente considerada, inclusive a motivao inicial da

pesquisa, que foi produzir uma anlise possvel da narrativa textual presente no Livro I da

Repblica, em uma exposio que pretende avaliar o sentido desse texto a partir de um

apontamento no s das discusses do dilogo, mas tambm do contexto da narrativa e isso

tudo por causa da pertinncia e extratemporalidade dos problemas que envolvem a discusso

sobre a justia naquele texto.

Como Gadamer sintetiza em sua principal obra, dizendo ter aprendido tal lio com

Heidegger, os dois inimigos de toda interpretao que se pretende pertinente so os vcios da

tradio que constituem hbitos imperceptveis ao pensar e a invencvel arrogncia por trs das

prprias convices subjetivas do intrprete que saltam sobre o texto, simulam ser parte do

23

texto e cujos efeitos podem ser, no mximo, minimizados, mas no excludos. A citao direta

da traduo pertinente (GADAMER, 1997, p. 401):

Toda interpretao correta tem que proteger-se contra a arbitrariedade da ocorrncia

de felizes ideias e contra a limitao dos hbitos imperceptveis do pensar, e orientar

sua vista s coisas elas mesmas (que para os fillogos so textos com sentido, que

tambm tratam, por sua vez, de coisas). Esse deixar-se determinar assim pela prpria

coisa, evidentemente, no para o intrprete uma deciso heroica, tomada de uma

vez por todas, mas verdadeiramente a tarefa primeira, constante e ltima. Pois o que

importa manter a vista atenta coisa, atravs de todos os desvios a que se v

constantemente submetido o intrprete em virtude das ideias que lhe ocorram. Quem

quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. To logo aparea um

primeiro sentido no texto, o intrprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que

o sentido somente se manifesta porque quem l o texto l a partir de determinadas

expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreenso do que est

posto no texto consiste precisamente na elaborao desse projeto prvio, que,

obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se d

conforme se avana na penetrao do sentido.

Assim, qualquer interpretao est condicionada pelas intenes iniciais e pretenso

projeto de sentido do intrprete, que vai sendo revisado em alguns pontos e confirmado em

outros na medida em que a pesquisa avana. Ento, para evitar a confuso entre o Plato

histrico e a nossa interpretao do Livro I da Repblica, objeto deste trabalho, faz-se

fundamental que nesse incio do captulo I, exponhamos o que motivou nossa investigao e

que necessariamente impregna a leitura que se apresenta. Eis ento que se considerar o

problema jurdico que impulsionou essa investigao sobre o Livro I da Repblica de Plato.

Ainda hoje se fazem presentes questes sobre os fundamentos do conceito de justia e

as relaes desse conceito com o direito posto, com o poder poltico (hoje encarnado

parcialmente na figura do Estado Moderno) e com a aplicao da lei. Nos debates

contemporneos de filosofia do direito isso recebe algum destaque no sculo XXI por causa da

ascenso do que parte da doutrina jurdica convencionou chamar de ps-positivismo jurdico

(Cf. BARROSO, 2005, p. 15 e MARMELSTEIN, 2014, p. 9), que, buscando revisar a aplicao

do direito para melhor concretizar os direitos fundamentais em reao aos abusos realizados

por vrios Estados do sculo XX, traz discusses sobre valores e princpios para dentro da

anlise tcnica do fazer jurdico, o que remete pergunta presente no Livro I da Repblica: o

que justia?.

24

Acompanhando a distino consagrada pelo constitucionalista portugus J. J.

Canotilho (2003, p. 1195), pode-se dizer que surgiu no cenrio global uma ciso na

hermenutica jurdica constitucional entre os por ele chamados de interpretativistas e de no-

interpretativistas, que se diferem conforme descrio abaixo.

Os primeiros embora no se resumam a meros interpretes literalistas das constituies

nacionais, compreendem o Direito Constitucional como reduzido textura semntica ao menos

claramente implcita no texto constitucional e tomam essa posio para garantia do princpio

democrtico na feitura da lei, tudo isso na tentativa de diminuir e efetivamente limitar a

autonomia dos juzes nas decises, ou seja, para aproximarem as decises jurdicas finais das

intenes iniciais dos parlamentares eleitos que confeccionaram a Constituio e as demais

normas.

Os no-interpretativistas, ao contrrio, ou julgam axiologicamente positiva a insero

da disputa de princpios constitucionais no fazer jurdico, ou at julgam tal insero

problemtica, entretanto, acreditam que o comportamento humano valorativo (consciente ou

inconsciente) no fazer jurdico ontologicamente necessrio e, portanto, inevitvel mesmo que

os juzes que se esforcem para evit-lo. Por essa razo os no-interpretativistas entendem que

seria at mesmo temerrio a doutrina jurdica no se debruar sobre o problema da relao entre

axiologia e norma, sob pena de mascarar o problema do avano dos valores sobre o sistema

normativo como se ele no existisse, o que s poderia agravar as dificuldades advindas desse

que seria um fato humano.

No contexto brasileiro a entrada dos valores nos debates jurdicos por importaes

estrangeiras sobretudo atravs da doutrina da ponderao do alemo Robert Alexy e da doutrina

do ativismo judicial norte americana vm gerando alguma discusso e resistncia de nomes de

peso como Luiz Lenio Streck (2014, p. 48) da Unissinos no Rio Grande do Sul e Marcelo Neves

(2013, p. 43) da Universidade de Braslia, que escrevem sobre a banalizao do apelo aos

princpios no cenrio jurdico nacional e buscam repensar o problema, cada um a seu modo.

A reinsero do valor no direito estimula a volta dos olhos s bases das discusses

sobre o tema do conceito de justia at a raiz do pensamento filosfico e do debate feito na

Atenas democrtica. As dificuldades apresentadas no Livro I da Repblica podem ser utilizadas

como um primeiro ponto de debate entre noes acerca de como se define o que o direito em

uma comunidade jurdica, mesmo de nosso tempo. Essa foi parte importante da nossa

motivao para essa dissertao.

25

Por outro lado, fora essa dimenso de extratemporalidade do texto que motiva a

delimitao do presente trabalho, j no tocante exegese propriamente dita da obra clssica, h

muitos elementos nos textos platnicos para que se estabelea uma leitura dos Dilogos a partir

da discusso tica e da relao que a tica tem com a atividade poltica em que est inserida a

personagem Scrates, seja por causa da presena inquestionvel do destino representado do

Scrates histrico e da respectiva injustia da sentena que representada na obra platnica

inmeras vezes, seja porque a personagem Scrates em seus discursos insistentemente se volta

ao tema do justo, da virtude, do bem e da relao da atividade filosfica com a poltica,

tematizao intertextual que s pode ser compreendida com uma anlise da opo de Plato por

escrever sobre filosofia sob a forma do que Aristteles chamou de .

Por todo o exposto, para compreender como esse texto do Livro I da Repblica adquire

um significado mais amplo no contexto do corpus platonicum necessrio conhecer um pouco

desse estilo de escrita de Plato em Dilogos, para que se perceba seu potencial comunicativo

pela via no s das discusses, mas tambm pelas representaes narrativas que remetem a

fatos histricos. A expresso potica da descrio da vida de Scrates e suas aes prticas nos

Dilogos se relaciona com o contedo das discusses. Notar isso exige alguma breve anlise

sobre o que so os , sobre sua caracterstica potica e sobre o papel tico que

esse tipo de escrita tem.

1.2. A opo de Plato pelos : e sua relao com debate sobre a

Justia do Livro I da Repblica

Os Dilogos atribudos a Plato so construdos em uma forma que se convencionou

chamar a partir de Aristteles (Po. 1447a-b) pelo nome de , simplesmente os

discursos socrticos, que, como ele diz na Potica, eram, ao lado dos 13 de Sfron e

Xenrcos, modos de arte imitativa que poderiam ser apresentados em prosa ou em verso e no

tinham nenhum nome especfico at ento. Digenes Larcio, que muito posterior, afirma em

sua narrativa bibliogrfica que os de Sfron podem ter inclusive fornecido inspirao a

Plato, j que, segundo Larcio (D. L. Livro III, 18), Plato teria sido o primeiro a introduzi-

los em Atenas, adaptando algumas das suas prprias personagens ao estilo de Sfron. Essa

narrativa de Larcio refora o parentesco dos escritos platnicos com a poesia mimtica,

13A palavra no caso se refere a uma espcie de mini-drama da vida cotidiana, substantivo relacionado com o verbo que significa imitar, reproduzir ou representar (MALHADAS, DEZOTTI, NEVES, 2008, p. 176 e 177).

26

embora seja importante destacar que a concluso acerca desse parentesco algo que, ao menos

do ponto de vista conceitual, independe da narrativa do bigrafo.

Para Aristteles (Po. 1447b) no a mtrica que caracteriza a poesia, mas a

(processo de fazer imitao). Essa opo de definio naturalmente se aproxima da definio

admitida na Repblica a partir da qual Scrates faz crticas potica. Digenes Larcio (D. L.

Livro III, 37), por sua vez, afirma que Aristteles definiria o estilo de Plato como um estilo

entre prosa e poesia, o que talvez queira significar que Larcio entende que Aristteles

considera nos Dilogos do corpus platonicum a forma em prosa ao mesmo tempo que revela

seu contedo mimtico, a imitao artstica tpica, para Aristteles, do que potico. ,

portanto, de se frisar que se Aristteles relata os como unidades pertencentes

a um tipo de elaborao potica que arte mimtica e evidentemente a Repblica um deles,

a Repblica, onde consta uma crtica mimtica exemplo de uma arte mimtica.

No texto da prpria Repblica, especificamente nos livros II, III e X, a arte potica

caracterizada como mimtica e criticada por isso, j que a estaria na origem de uma

corrupo da (psiqu, ou alma). Tal crtica da personagem Scrates pode fazer emergir

um desconforto imediato em relao ao fato de que a crtica potica feita em uma obra

conceitualmente potica. Entretanto, a crtica poesia precisa ser analisada com considerao

sua complexidade e no como uma dogmtica crtica a em geral.

Como diz Jos Trindade Santos (2010, p. 143): quem substitui a leitura dos dilogos

pela memorizao das teorias platnicas s pode ler Plato dogmaticamente e se a crtica

na Repblica for lida como simples crtica dogmtica poesia em qualquer caso de

elaborao de obra mimtica, isso implicaria em uma contradio to gritante que no

minimamente plausvel admitir que interpret-la assim seja uma opo razovel.

Para analisar a crtica poesia mimtica presente na Repblica oportuno notar a

funo da parte desse tipo de arte que fica implicitamente protegida do ataque pela escolha do

autor da Repblica em escrever , que fatalmente so elaboraes

conceitualmente mimticas. preciso, portanto, analisar o que distingui os

como tipo de texto de caractersticas prprias. Isso nos conduz necessidade de analisar uma

das funes retricas (talvez a principal) desse tipo de escrito, funo que esclarecida por

Aristteles na Retrica.

Quando Aristteles (Rh. 1416b-1417a) na Retrica vai falar da (narrativa)

enquanto modalidade de discurso retrico, ele usa os chamados como

27

exemplos de discursos nos quais o carter comportamental importante do mesmo modo que

deve ser importante nas narrativas retricas. O trecho em que os so usados

merece transcrio direta (Rh. 1417a):

: , .

, ,

: ,

, : .

, :

que a conduta tica recai sobre a narrativa e assim ser se soubermos o que produz

a conduta tica. Um modo de fazer isso mostrar uma escolha. A conduta tica do

tipo que essa escolha e a escolha do mesmo tipo daquilo que no fim se realiza. Por

isso os discursos matemticos no tm conduta tica, j que nem tm escolhas (pois

no tm aquela finalidade tica), mas os Scrticos tm, pois sobre isso que falam.

Quando uma deliberao espontnea feita e uma escolha tomada esse processo

chamado (deliberao). A contm uma mensagem tica, j que

determinadas escolhas de personagens apresentam a finalidade a que se destina a ao, o .

Por sua vez, a conduta tida como boa14 se a deliberao do agente tem como objetivo uma

boa realizao. Assim, segundo Aristteles, os representam aes ou

escolhas de personagens que so representaes de escolhas reais que significam uma atitude

tica.

Logo em seguida, ainda tratando do tema das caractersticas da tica na narrativa,

Aristteles menciona que confuso comum acharem que a atitude tica a atitude da pessoa

que (racionalmente prudente), quando na verdade, diz ele, o homem (bom)

aquele que procura (o melhor) e no (o favorvel). Leia-se o trecho

(Rh. 1417a):

, , :

: : , :

: ,

.

14As relaes entre finalidade e o bom no pensamento de Aristteles so discutidas em vrias partes de sua obra e no tocante tica em especial na tica a Nicmaco. Para uma introduo ao tema que relaciona o texto de tica a Nicmaco com a tica a Eudemo e Magna moralia vale conferir o texto de Ursula Wolf (2013) nomeado Nikomachische ethik, traduzido para o portugus por nio Paulo Giachini e publicado pela Edies Loyola.

28

E no se deve falar que pelo raciocnio, como fazem hoje, mas pela deliberao. Eu

desejei e por isso escolhi deliberadamente e se no me trouxer vantagem, tudo bem,

escolhi o melhor so respectivamente o prprio do prudente e o prprio do bom.

Aquilo prprio do prudente, pois prprio dele correr em direo ao lucrativo,

enquanto prprio do bom buscar o belo.

Essas noes aristotlicas acerca da caracterstica tica nos e do que

significa o bem agir, no entender dele, nos ajudam a compreender a finalidade dos Dilogos,

tendo em vista a constante expresso socrtica de que s se faz o mal por ignorncia15. Essa

noo socrtica de relao entre o mal e a ignorncia presente em mais de um dilogo tenta unir

do outro lado do polo o conceito do homem prudente ao conceito do homem bom e essa

caracterstica da personagem que aparece em vrias partes do corpus est presente tambm no

Livro I da Repblica. Nesse Livro e sobretudo no seu pice conflituoso, quando esto no

primeiro plano Trasmaco e Scrates, o texto se reveste do conflito entre agir justamente e

perseguir o lucrativo, pois para Trasmaco tais atitudes so coisas completamente separadas e

at opostas. O conflito semntico vira conflito tico justamente porque a depender do quo

convincente so os usos retricos sobre o termo justia, as alegaes do dilogo podem conduzir

o leitor a rejeitar uma vida em que se queira produzir o bem alheio, em favor de uma na qual se

aplique a busca da maximizao do ganho prprio. As personagens no esto fazendo apenas

opes semnticas, mas ticas.

Tendo isso em vista, preciso ler os Dilogos notando que as decises sobre

conceituao das palavras implicam em determinaes da prtica. As opes retricas e defesas

apologticas de determinados conceitos ocorrem dentro de representaes em cenas da vida

cotidiana numa expresso mimtica do real e precisam ser notadas como atitudes de fato ticas

dentro de uma narrativa potica. Isso significa que por trs das definies h tambm um modo

de agir diante do mundo e talvez mais do que em outros Dilogos do corpus no Livro I da

Repblica isso esteja bem claro. Por isso, de se concluir que a crtica poesia presente na

Repblica no uma crtica dogmtica a poesia, mas uma crtica a determinado uso da arte

mimtica que conduz os seres humanos m ao, o que tem tudo a ver com os debates sobre

justia que inalguram o texto da Repblica e tambm o encerram.

15Para um estudo especfico sobre o tema a partir do paradigma que no adotamos, que considera importante a diviso da obra platnica em 3 etapas evolutivas de produo, vide Socratic Ignorance de Gareth B. Mathews, publicado em A companion to Plato editado por Hugh H. Benson (2006).

29

1.3. A causa tica da crtica poesia: e sua relao com debate sobre a Justia do Livro

I da Repblica

A crtica poesia deve ser considerada em sua face metafrica, relacionada tica e

em sua face ontolgica relacionada s Formas e Ideia de Bem. Na faceta metafrica, que nos

interessa no presente trabalho, a crtica imitao a crtica imitao das aes inadequadas,

como fica bastante claro nos Livros II e III da Repblica. A arte tem um grande potencial de

provocar tambm no espectador o impulso para sua imitao e a m conduta representada

promove a m conduta do espectador impulsionado a imit-la. Em vrios trechos dos Livros II

e III esse ponto claro e em uma leitura integral dessa parte seria possvel dar vrios motivos

para justificar essa interpretao.

No caso de nosso trabalho, cabe apenas a citao de dois trechos da obra para

evidenciar o problema. Um dos trechos est no Livro II em que Scrates diz como deveriam

ser as , as argumentaes sobre o divino, ou discursos acerca do divino, ou, mais

literalmente, as teologias da . Para Scrates, tais discursos devem vincular o divino

ao que bom e nunca ao que ruim. O outro trecho est no Livro III em que Scrates critica as

narrativas em que Teseu e Pirito so representados como responsveis por raptos, eis que ali

Scrates retoma o argumento do Livro II sobre a inadequao de representar o divino fazendo

coisas ruins.

No trecho do Livro II Scrates diz que os debatedores, como fundadores de uma

cidade, devem estabelecer modelos que guiaro os que desejarem criar os (mitos,

entendidos aqui, sem sentido pejorativo, como narrativas comuns da cultura) da e

mais especificamente as (discursos sobre o divino). Em razo de os jovens no serem

capazes de distinguir uma (conjectura) do que no , diz Scrates, necessrio que os

mitos e discursos sobre o divino tenham como modelo o bem. O dilogo se d nos termos abaixo

(R. 378d-379b):

,

:

.

, , . ,

, ;

: , ,

:

30

, ,

.

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.

.

;

;

: ;

.

;

.

;

.

- Um jovem no distingue o que conjectura e o que no . Ao contrrio, nessa idade

aquilo que recebem nas opinies se torna uma inclinao afetiva difcil de apagar e

mesmo imutvel. Ento, em consequncia disso, talvez acima de tudo, a primeira

coisa a ser feita que escutem a mais bela narrao mitolgica sobre a virtude que se

pode escutar.

- Sustenta-se, - disse, - esse discurso. Mas e se, em seguida, um desses perguntar para

ns o que significa isso que dissemos e quais so os mitos a que nos referimos, o que

poderemos falar?

- E eu disse: Adimanto, no somos poetas eu e voc nesse ponto em que estou, mas

fundadores da cidade. Aos fundadores concerne saber os modelos em face dos quais

devem os poetas fazer mitos e, alm disso, que se eles fizerem a poesia no permitida,

a eles no ser permitido serem criadores de mitos.

- Certamente, - disse ele, - mas e isso aqui: quais os modelos acerca dos discursos

sobre o divino que podem existir?

- Alguma coisa com isso aqui, - disse eu, - divino por acaso de dada forma.

Indubitavelmente sempre se deve refrir a essa forma, seja composto o poema em

provrbio pico, seja em lrica, seja em tragdia.

- Deve sim.

- Em acordo com isso, aquele que divino em essncia bom e isso que se diz dele?

- Sim. E agora?

31

- Mas nada que do bom prejudicial, ou ?

- A mim parece que no.

- Acaso ento o que no prejudicial causa dano?

- De modo algum.

- O que no prejudicial faz um mal?

- Nem isso.

Assim, consolida Scrates no Livro II que na os mitos no podem atribuir

ao divino aes prejudiciais. Por sua vez, o trecho do Livro III que critica a atribuio aos semi-

deuses de atitudes criminosas sintetiza a perspectiva tica na crtica mimtica e faz isso

remetendo a essa discusso acima (R. 391e):

:

.

;

: ,

- E isso (representar seres divinos em atitudes criminosas) no divino nem

verdadeiro, j que exibimos em algum lugar que dos deuses no possvel surgir o

mal.

- Isso. E como no seria assim?

- E, para aqueles que escutam, isso (representar seres divinos em atitudes criminosas)

prejudicial. Pois qualquer um tolerar para si prprio a posse de uma essncia m,

ao ser persuadido de que aqueles (deuses) por acaso praticam e praticavam (o mal).

Perceba que no a nem a em si que est em xeque, mas como a arte

mimtica tem sido utilizada, ignorando-se a vocao tica dessas produes artsticas e isso

visto claramente no s no Livro II e III, mas tambm no Livro X da Repblica em que Scrates

diz que h uma antiga , ou seja, uma antiga briga entre

filosofia e poesia (R. 607b-c) a que ele passa a se referir.

A nvel de contextualizao, cabe dizer que os exemplos classicamente citados como

reflexos comprovados do embate antigo mencionados por Scrates na Repblica so os

fragmentos atribudos a Herclito de feso (cf. DK22b42), que diz que Homero merecia ser

expulso e apanhar e os fragmentos atribudos a Xenfanes de Clofon (vide DK21 b11, b12,

b14, b15, b16, b23), que afirmam que os deuses so humanizados nas poesias de Homero e

32

Hesodo fazendo coisas condenveis16, criticando essa atitude dos poetas. A aproximao entre

a crtica de Xenfanes e a crtica do Livro II e III da Repblica17 pode pressionar a concluses

preciptadas sobre a influncia de Xenfanes em Plato que embora possveis talvez no tenham

respaldo filolgico.

Por outro lado, cabe-nos mencionar que no tocante interpretao desse trecho h

quem diga que essa antiga querela sequer existe. J que as supostas falas de poetas contra

filsofos que Scrates cita so irreconhecveis, isso leva alguns intrpretes, como Glenn W.

Most (2010, p. 129 a 153), a sustentarem que a antiguidade da querela e os ataques de poetas

filosofia uma inveno retrica.

Para ns, entretanto, tais questes no vem ao caso porque no tangem o nosso

debate. S nos referimos ao ponto porque no se deve ignorar o trecho imediatamente seguinte

citao de Scrates dessa intriga antiga, pois ela confere ao significado da suposta querela

dentro do contexto especfico da Repblica a caracterstica de uma preocupao explicitamente

tica, e isso se deve excesso concedida por Scrates na sua crtica poesia quando ele a

ameniza ao dizer que a poesia deve ser permitida na caso incorpore a conduo

boa conduta em seus discursos (R. 607c):

,

, , ,

:

.

Mesmo assim, apesar de ns de fatos afirmarmos isso, se trouxer um discurso expresso

visando ao prazer potico e trouxer a mimtica, mas uma que ao existir faa recair

sobre a prpria cidade uma boa ordenao, ento, gratificados ns os receberemos, j

que sabemos bem que para ns mesmos essas coisas so encantadoras por si prprias.

Mas no seria piedoso desistir da nossa opinio sobre o verdadeiro.

Ao lembrarmos que desde o Livro II a uma metfora para o indivduo,

de se perceber que Scrates est defendendo por via da figura de linguagem da cidade que deve

ser permitida na a entrada de determinadas narrativas poticas, caso, claro, tais

narrativas orietem a para uma , que no pode ser alcanada pela imitao de

16 importante destacar que famosa a posio de Harold Cherniss (1951, p. 335) que afirmou que Xefanes seria de fato apenas um poeta e rapsodo e que figura eventualmente como filsofo por um erro da histria da filosofia. Embora discordemos frontalmente desse posicionamento, esse tipo de conflito no nos interessa no presente trabalho e por isso o fato apenas merece meno. 17Para uma anlise mais detida da figura de Xenfanes e inclusive do reaparecimento de elementos de textos atribudos a Xenfanes na filosofia de Plato presente na Repblica vide o livro de James H. Lesher (2003) nomeado Xenophanes of Colophon: Fragments.

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personagens que se conduzam inadequadamente para longe do bem nem isso seria possvel

atravs de narrativas que, por exemplo, faam temer inadequadamente o Hades, como as sete

citaes de Homero feitas no incio do Livro III da Repblica (R. 386c a 387b). O problema da

poesia que no descontrole criativo, ou melhor, mimtico, a sua expresso pode simular

realidades que conduzem os humanos a atitudes e relaes com o mundo inadequadas, como,

por exemplo, terminarem temendo o Hades, o que, segundo a discusso no incio do Livro III,

fato comportamental ocasionado pelo texto de Homero, o que acaba acovardando os cidados.

H uma exaltao para que a poesia seja feita racionalmente nesse sentido.

se aproximando desse sentido que Nietzsche, tratando da esttica, em Die Geburt

der Tragdie diz que em Plato a poesia deve ser conscientemente direcionada ao belo e quando

no o fica tomada ironicamente pelo filsofo grego como uma aptido de advinhos cegos que

conduzem mal a alma da cidade. Para tratar desse princpio esttico, Nietzsche faz uma analogia

ao princpio tico socrtico de que a conscincia basta para a ao boa.

Entretanto, no caso da personagem de Plato, a crtica poesia no mximo

secundariamente esttica, pois o texto deixa claro que o que incomoda a personagem Scrates

a despreocupao que a elaborao potica tinha historicamente com a educao no

direcionamento da virtude. Ento, a elaborao potica no conselho de Scrates na Repblica

deve passar a se preocupar conscientemente com a inclinao tica.

Vale citar diretamente Nietzsche nesse ponto. Embora o trecho da traduo abaixo

esteja voltado caracterizao de Eurpides como um poeta socrtico, ele pertinente, pois

Nietzsche estabelece parentesco entre Plato a Eurpides justamente por enxergar nos textos

dos dois a concepo da necessidade de reinventar a poesia para em uma nova modalidade

artstica que necessariamente ter por objetivo a criao consciente na direo da elaborao

bela, numa reinveno esttica na arte do que paralelo atitude na tica socrtica de promover

o ser bom atravs do humano conscientemente (NIETZSCHE, 1992, p. 82):

Assim, Eurpides acima de tudo, como poeta, o eco de seus conhecimentos

conscientes; isso precisamente o que lhe confere uma posio to memorvel na

histria da cultura grega. Com respeito sua criao crtico-produtiva, ele deve

amide ter sentido como se estivesse vivificando para o drama o comeo do escrito

de Anaxgoras, cujas primeiras palavras rezam: "No princpio tudo estava juntado: a

veio a inteligncia e criou ordem. E se Anaxgoras, com o seu nous, parecia, dentre

os filsofos, o primeiro homem sbrio em meio a um bando de puros beberres,

tambm Eurpides pode ter concebido, sob uma imagem parecida, a sua relao com

os demais poetas da tragdia. Enquanto o nico ordenador e fautor do todo, o nous,

34

permanecia ainda excludo da criao artstica, tudo continuava juntado, em uma

catica massa primeva; assim devia Eurpides julgar; assim devia ele, como primeiro

homem "sbrio", condenar os poetas "bbados". Aquilo que Sfocles disse de squilo,

ou seja, que ele fazia o correto, embora inconscientemente, no foi dito decerto no

sentido de Eurpides, o qual, quando muito, teria admitido que squilo, porque ele

criava inconscientemente, criava o incorreto. Tambm o divino Plato fala, quase

sempre com ironia, da faculdade criadora do poeta, na medida em que ela no

discernimento [Einsicht] consciente, e a equipara aptido do adivinho e do intrprete

de sonhos; posto que o poeta no capaz de poetar enquantono ficar inconsciente e

nenhuma inteligncia residir mais nele. Eurpides se encarregou, como tambm Plato

o fizera, de mostrar a contraparte do poeta "irracional"; o seu princpio esttico, "tudo

deve ser consciente para ser belo", , como j disse, o lema paralelo ao princpio

socrtico: "Tudo deve ser consciente para ser bom"18.

Por isso, para Nietzsche (1992, p. 88), Plato elabora uma nova arte composta da

influncia das anteriores que resulta em um tipo esttico que Nietzsche chama, com tom

claramente crtico, de prottipo de romance, caracterizado pelo que ele nomeia de

intensificao da fbula espica e pela justia potica e seu deus ex machina, todos esses

aspectos relacionados com o otimismo da conscincia que tambm representado nas mximas

socrticas virtude saber, s se faz o ruim por ignorncia e o virtuoso o mais feliz. No

ponto nos interessa a funo tico-retrica da nova elaborao de Plato.

Segundo Gabriele Cornelli (2010, p. 76) em texto publicado na Revista do Programa

de Ps-Graduao em Arte da UnB, Nietzsche adequadamente aponta a estreita relao de

Plato com a tragdia desde o Die Geburt der Tragdi, contudo opta Nietzsche por uma leitura

anti-platnica da qual o italiano se afasta. Trabalhemos um pouco com a posio de Cornelli.

Cornelli (2010, p. 77) interpreta a crtica de Plato alma trgica atravs de sua

leitura da influncia que sofreu Plato da tradio rfico-pitagrica, na qual a investida

18Trabalhar as semelhanas entre Plato e Eurpides nos usos retricos da poesia para divulgao de ideias sobre a justia, centrando nos problemas de interseco entre o poder e o justo tambm na tragdia de Eurpedes seria um tema de pesquisa oportuno, entretanto, avanar sobre esse tema impossvel ao presente trabalho. Cabe apenas fazer a citao de trechos de Eurpedes que servem para apontar que h alguma pertinncia em ligar Plato a Eurpedes no tocante especificamente estruturao retrica do contedo, pois ambos utilizam a arte e o mito acerca do divino para indicarem condutas entenditas como devidas ao humano. Por exemplo, no Ion (v. 439-440) a personagem homnima diz que se Apolo tem poder, ento persegue o bem, em Hracles (v. 1341-1346) o semi-deus diz que deuses no se casam nem muito menos cometem adultrio, pois um deus, se deus de verdadeiramente, no carece de nada. Bellerofonte (Fr. 292) atribui a Eurpedes trecho que indica essa mesma preocupao com a pureza dos deuses: se os deuses so maus ento eles no so deuses. Por fim, a conscincia sobre a utilizao da arte com uma finalidade tica pode ser entrevista na fala do coro em Electra (v. 743-744) que anuncia que histrias assustadoras beneficiam os mortais por encoraj-los a orar aos deuses. Esses trechos foram compilados no texto de Willian Allan (2006, p. 76) que consta em A companion to Greek tragedy organizado por Justina Gregory.

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de valncia moral e religiosa, o que, em seu entender, diferente da tradio homrica, em que

a alma designada como um duplo plido do ser humano (Ilada XI, 222).

Nesse texto, ele aponta que os movimentos rficos e pitagricos so marcados pela

negao da poltica em uma profundidade antropolgica tamanha a ponto de negarem tambm

a temporalidade e o prprio corpo cidado atravs de suas doutrinas da existncia humana

para alm desse corpo e desse tempo, situando-a na sede da e adotando um conceito de

alma que a personagem Scrates ineditamente tentaria harmonizar com a cidade atravs de sua

atividade de mdico da alma (Prot. 313e), o que no est presente na tragdia (CORNELLI,

2010, p. 77).

Nessa linha, a tragdia frequentemente revela o desajuste profundo no interior da

, desajuste que traz consequncias nefastas para a polis. Na tragdia, a no consegue

estruturar a escapatria do fluxo da ao do mundo por no ser apta a vencer determinadas

foras que sobre ela se determinam e ento ela esmagada pela opresso do destino inevitvel

(CORNELLI, 2010, p. 79).

dipo ou Medeia, para citarmos os exemplos que cita Cornelli, esto condenados desde

o princpio e nada em absoluto poderia ser feito para reverter essa concluso. Os males sociais

como a (conflito proveniente da discrdia, ou, menos dramaticamente, da discordncia) e

a (dissidncia que provoca cisma) manifestam-se em comunidade emergindo a partir da

individual e pulsante (descomedimento, confiana excessiva) e da

(insaciabilidade), ambas inscritas na . Para o esprito trgico no h pacificidade entre a

cidade a alma e, portanto, j que no h escapatria ao destino trgico, no h tambm espao

para o sucesso da autonomia moral socrtica (CORNELLI, 2010, p. 80), que vincula o agir bem

conscincia sobre o bem.

Na Repblica, a crtica comdia e tragdia enquanto imitaes no teis boa

educao feita no Livro III (R. 395a e seg.), sendo proibida para a educao do guardio na

e, logo aps, ainda no Livro III, a imitao absoluta considerada imprpria para

toda sua populao (R. 397e e seg.). Para Corneli (2010, p. 81) o motivo da rejeio claro:

no se quer homens duplos ou mltiplos, ento a nica imitao plausvel para a cidade ideal

a dos costumes e leis da polis ideal. Essa imitao das atitudes ditas como adequadas

considerada excelente e nas Leis dito metaforicamente que a constituio por eles elaborada

na medida do possvel uma tragdia belssima e excelente.

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A citao do trecho de Leis esclarece que, pelo menos no tocante quela obra, o

problema da tragdia o que os trgicos defendem nas entrelinhas de suas cenas algo oposto,

algo antagnico determinada conduta preferida, levando os cidados a negarem as normas

(Lg. 817b-c):

, , ,

:

,

. , ,

,

, :

, ,

,

, .

- Excelentes estrangeiros, - diria, - ns prprios somos, na medida do possvel, poetas

de uma tragdia que superlativamente bela e ao mesmo tempo excelente. A nossa

Politeia inteira combina a imitao da mais bela e da mais excelente vida. O que, de

fato, ns dizemos ser realmente a mais verdadeira das tragdias. Portanto, se poetas

vocs so, tambm somos desses poetas, s que vocs so rivais na arte e antagonistas

do mais belo drama, que somente a norma verdadeira competente para criar. Pois

pelo menos essa a nossa expectativa: no pense que ns facilmente em algum

momento permitiremos que vocs se banqueteiem e ao introduzirem na gora

simulaes com vozes belas, emitindo tambm som maior do que o nosso,

transformando nosso falar na gora e se consolidem para as crianas e as mulheres e

para toda mutido, dizendo sobre os costumes deles aquilo que ns no dissemos, e,

na maioria das vezes tambm, o mais oposto possvel.

Por sua vez, tambm o texto da Repblica faz uma exaltao da potncia persuasiva

da potica advinda de sua agradabilidade, questionando a maneira como tal potncia utilizada

na arte de seu tempo. Para que se compreenda melhor essa nossa afirmao, transcreve-se

abaixo o trecho da Repblica em que Scrates faz a crtica a um hipottico plenipotente imitador

(R. 398a-b):

, ,

,

, ,

,

,

37

,

,

.

Como parece, se um homem que capaz, em razo de sua sabedoria, de se transformar

em todos os tipos e de imitar todas as coisas viesse nossa cidade desejando exibir

seus poemas, ns poderamos vener-lo como uma pessoa sagrada, maravilhosa e

agradvel, mas diramos que no h homem como esse em nossa cidade, alm do

que, nem nos permitido intervir na Themis, enviando-a para outra cidade ao derrubar

perfume sobre a cabea e cobri-la com l. Ns mesmos precisaramos consultar um

poeta menos agradvel e mais austero e precisamos de um mitlogo por causa de

sua vantagem, um que faa imitao da fala adequada e os discursos ditos em

adequao s maneiras que, desde o incio, fixamos por norma, quando

argumentamos sobre o educar dos guerreiros. (Grifo nosso).

necessrio perceber que Scrates no est banindo toda a arte potica da vida civil

em uma cidade real, mas banindo da a poesia desde que a poesia no mostre que

pode contribuir para a . Ele se mostra cnscio do poder retrico da narrativa mtica,

dizendo que na mais perfeita que os personagens da Repblica podem criar os

mitgrafos devem narrar mitos que componham a conscincia dos guardies para que estes

sempre imitem tambm a atitude adequada e no qualquer atitude. O problema da mimtica em

R. 398a-b claramente um problema tico.

A crtica de Scrates potica de seu tempo a crtica da irresponsvel utilizao do

mito e da mimtica quando da educao pblica. Tanto na Repblicaquanto nas Leis, quanto

em outros momentos da obra que logo mais referenciaremos, as personagens platnicas

recorrem narrativa mtica e quando criticam a potica aparecem no negando a utilizao do

mito, como muitas vezes fez o homem moderno. Por outro lado, tais personagens tambm no

so apresentadas como puros fidestas nas narrativas mticas a que recorrem. Ao invs desses

dois extremos elas demonstram conscincia declarada do poder da narrativa e da limitao da

cognio humana para a compreenso e aceitao de determinados discursos () e, mais

importante, elas se mostram conscientes da limitao do humano em geral para a adeso em

uma prtica apenas pelo discurso simples, eis que a figura humana sucetvel ao , o

discurso agradvel to presente na narrativa mtica.

Essa dimenso mtico-consciente nos Dilogos no pode ser ignorada, sob pena de

imputar s personagens platnicas um fidesmo cego nas narrativas da tradio que talvez no

esteja l ou, pelo extremo oposto, de se ler uma defesa inexorvel da razo que tambm no

est l, de uma maneira ou de outra, acusando o autor da Repblica da inteno de relacionar o

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poder poltico com a filosofia arbitrariamente, respectivamente ou por f cega em compreenses

arbitrariamente construdas sobre um bem teolgico e intangvel ou por arrogante confiana na

prpria razo para a compreenso do que melhor para a polis.

preciso eliminar os preconceitos desse polo dicotmico em relao ao Scrates da

Repblica para avanarmos sobre o Livro I, no qual visualizaremos que a questo da justia

no representa um problema relacionado a uma suposta superior capacidade de raciocnio que

teria o filsofo. Como bem ilustra o texto de Cornelli e como veremos no captulo II, o texto

platnico tende a discutir os problemas da e da , que, apesar de aparentarem ser

racionais, intensificam a e ocasionam , quando observado o reflexo do

comportamento individual na estrutura social. O Livro I evidencia que esse o fundo do

problema debatido no resto da obra.

Desse modo, conhecer a personagem Scrates importante para compreender a

discusso do Livro I da Repblica, porque no s nas suas defesas discursivas, mas tambm no

enredo representado da histria da condenao do Scrates a personagem coerentemente age

de acordo com sua posio no Livro I da Repblica, ambas expresses, uma discursiva e outra

mimtica, de uma atitude representativa que refora retoricamente a defesa do agir contrrio

e . Por isso a crtica poesia no pode ser vista como irrestrita e dogmtica

crtica poesia e a narrativa da histria de Scrates na obra platnica precisa ser entendida na

sua dimenso potica, para que se note que Scrates oferece nos Dilogos no s argumentos

no discurso, mas um percurso de aes prticas deliberadas que conferem a essa personagem

uma funo retrica dupla.

Segundo Michael Erler (2013, p. 62) em sua obra introdutria aos estudos de Plato,

h uma tendncia na exegese contempornea de Plato a reconhecer a personagem Scrates em

um senso unitrio dentro da cronologia fictcia dos Dilogos. Nessa percepo, o Parmnides