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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Paul Okoth Auma Περιαυτολογία: um estudo exegético-teológico de Fl 1,12-26 MESTRADO EM TEOLOGIA São Paulo – 2017

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Paul Okoth Auma

    : um estudo exegtico-teolgico de Fl 1,12-26

    MESTRADO EM TEOLOGIA

    So Paulo 2017

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Paul Okoth Auma

    : um estudo exegtico-teolgico de Fl 1,12-26

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora da Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, como exigncia

    parcial para a obteno do ttulo de

    Mestre em Teologia, sob orientao do

    Prof. Dr. Boris A. Nef Ulloa.

    So Paulo 2017

  • Pgina de aprovao

    Banca Examinadora

    --------------------------------------------------------------

    Prof. Dr. Boris Agustn Nef Ulloa

    --------------------------------------------------------------

    Prof. Dr. Matthias Grenzer

    --------------------------------------------------------------

    Prof. Dr. Jean Richard Lopes

  • RESUMO

    Esta investigao exegtico-teolgica sob o aspecto sincrnico tem como objetivo geral analisar

    e verificar como o recurso da periautologia presente na carta aos Filipenses contribui para

    compreender o discipulado descrito por Paulo ao longo de sua trajetria missionria. O estudo

    apresenta, concretamente, os trechos com expresses periautolgicas com o objetivo de

    aprofundar a razo pela qual Paulo insiste no recurso. Esta pesquisa pretende analisaras

    expresses, elucidar as situaes retricas do recurso, ecomparar outras percopes que

    apresentam o mesmo estilo retrico. No primeiro momento, realiza-se uma pesquisa geral sobre

    a carta discutindo de forma atualizada as questes perenes. So enfrentadas as hipteses sobre as

    polmicas recorrentes quanto ao lugar no qual a carta foi redigida, questo da datao do

    escrito e, tambm, a questo da sua unidade. Busca-sea ilustrar a questo da periautologia no

    enfoque do mimesis do discpulo modelo. A pesquisa investiga e apresenta, ainda, as

    consequncias teolgicas decorrentes das expresses especificamente contidas na percope de Fl

    1,12-26 para melhor fundamentar o discipulado cristo.

    Palavras-chave: Periautologia, Paulo Apstolo, Filipenses, Evangelho, Discipulado de Cristo.

  • ABSTRACT

    This exegetical-theological investigation under the synchronic aspect has as general objective to

    analyze and verify how the resource of the periautology present in the epistle to the Philippians

    contributes to the understanding of the discipleship described by the writer throughout his

    missionary journey. The study seeks to present, specifically, the excerpts with periautological

    expressions in order to understand the reason why Paul insists on the apparently rhetorical

    expressions. This research intends to analyze the expressions, to elucidate the rhetorical

    situations of the resource, and to compare other pericopes that present the same rhetorical style.

    To begin with, a general survey of the letter is conducted, discussing the perennial questions in

    an updatedmanner. The hypotheses about the recurring polemics about the place where the letter

    was written, the question of the date of the writing, and the question of its unity will be

    confronted. The research aims to explain the question of periautology focusing on the mimesis of

    the model disciple. Furthermore, it seeks to investigate and present the theological consequences

    arising from the phrases specifically contained in the pericope of Philippians 1,12-26 to better

    ground Christian discipleship.

    Keywords: Periautology, Apostle Paul, Philippians, Gospel, Discipleship of Christ.

  • SIGLAS E ABREVIATURAS

    DITNT - Dicionrio Internacional de Teologia do Novo Testamento

    TDNT - Theological Dictionary of the New Testament

    NT - Novo Testamento

    AT - Antigo Testamento

    DPC - Dicionrio de Paulo e suas Cartas

    DCT - Dicionrio Crtico de Teologia

    NCBJ - Novo Comentrio Bblico de So Jernimo

    LXX - Septuaginta

    SBL - Society of Biblical Literature

  • SUMRIO

    INTRODUO GERAL ................................................................................................................ 9

    CAPTULO I ................................................................................................................................ 12

    CONJUNTO DA CARTA AOS FILIPENSES ............................................................................ 12

    Introduo.................................................................................................................................. 12

    1. A cidade de Filipos e a Provncia romana da Macednia ......................................................... 12

    2. A comunidade beira do riacho ................................................................................................ 14

    2.1 A comunidade que recebe a carta ........................................................................................ 16

    2.2 A questo da composio e unidade da carta aos Filipenses .............................................. 18

    2.3 Datao e possvel lugar de redao ................................................................................... 22

    2.4 As motivaes e o contedo da carta .................................................................................. 25

    2.4.2 Uma carta de agradecimento ........................................................................................ 27

    2.4.3. Uma carta que procura estimular a vivncia fraterna .................................................. 27

    2.4.4 Uma carta permeada de bons exemplos ....................................................................... 28

    2.4.5 Uma carta que defende o verdadeiro Evangelho .......................................................... 29

    3. Paulo e o seu estilo no mundo greco-romano no sculo I d.C. ................................................. 30

    3.1 Periautologia na carta aos Filipenses.................................................................................. 31

    3.1.1 Percopes com expresses periautolgicas ................................................................... 32

    3.1.2 O anncio do verdadeiro Evangelho ............................................................................ 33

    3.2 Dimenso retrica das expresses periautolgicas em Filipenses ...................................... 36

    CAPTULO II ............................................................................................................................... 38

    ESTUDO EXEGTICO DO RECURSO DA PERIAUTOLOGIA EM FL 1,12-26 .................... 38

    Introduo ..................................................................................................................................... 38

    1. Anlise literrio-estrutural ........................................................................................................ 38

    1.1 Questes de crtica textual................................................................................................... 38

    1.2 Delimitao e estrutura........................................................................................................ 45

    1.2.1 Estrutura de Fl 1,12-26 ................................................................................................. 47

    1.3 Segmentao e traduo de Fl 1,12-26................................................................................ 49

    1.3.1 Traduo ....................................................................................................................... 51

    2. Anlise lingustico-sinttica ...................................................................................................... 53

  • 2.1 Morfologia ........................................................................................................................... 54

    2.2 As oraes na percope ........................................................................................................ 58

    2.2.1 A primeira seo vv. 12-17 ........................................................................................... 61

    2.2.2 A segunda seo vv. 19-26 ........................................................................................... 63

    3. A anlise semntica................................................................................................................... 65

    3.1 O progresso do Evangelho, onde e como (vv. 12-14) ......................................................... 65

    3.2 Os dois tipos de pregadores do Evangelho (vv. 15-17)....................................................... 72

    3.3 Interrupo alegre (v. 18) ................................................................................................ 75

    3.4 Despojamento de Paulo (vv. 19-20) .................................................................................... 77

    3.5 Discurso do dilema da escolha (vv. 21-24) ......................................................................... 81

    3.6 A escolha decisiva pelo progresso dos filipenses (vv. 25-26)............................................. 85

    CAPTULO III .............................................................................................................................. 88

    ANLISE HERMENUTICO-TEOLGICA DA PERIAUTOLOGIA EM FL 1,12-26 ............. 88

    Introduo ..................................................................................................................................... 88

    1. A anlise do recurso da periautologia em Fl 1,12-26 ............................................................... 89

    2. Anlise pragmtica.................................................................................................................... 92

    2.1 O contexto de amizade entre Paulo e os filipenses ............................................................. 93

    2.2 O contexto do verdadeiro Evangelho .................................................................................. 94

    3. Explorao do recurso da periautologia nas conexes entre Fl 1,12-26 e o conjunto da carta aos Filipenses ................................................................................................................................ 95

    3.1 Periautologia na proclamao e na vivncia do verdadeiro Evangelho ............................. 95

    3.2 Periautologia na situao familiar e na perseguio. ......................................................... 97

    3.2.1 A situao dos em Filipos e de Paulo ................................... 98

    3.3 Periautologia no exemplo supremo de autoesvaziamento de Cristo (Fl 2,1-11) ................ 99

    3.4 Periautologia na parceria e na comunho ......................................................................... 100

    3.4.1 Os irmos que pregam ............................................................................... 100

    3.4.2 Os irmos que pregam .............................................................................. 101

    3.4.3 Comunho no sofrimento de Cristo ............................................................................ 102

    3.5 Periautologia de acordo com (cf. Fl 3,17). ................................................ 103

    3.5.1 Timteo (Fl 2,19-24) .................................................................................................. 104

    3.5.2 Epafrodito (Fl 2,25-30) ............................................................................................... 105

  • 3.6 Exemplo do prprio testemunho ....................................................................................... 106

    4. A dimenso retrica da periautologia para o progresso do verdadeiro Evangelho em Fl 1,12-26..................................................................................................................................................... 110

    4.1 ................................................................................................................................ 112

    4.2 .......................................................................................................................... 113

    5. Periautologia: seu objetivo, alcance e consequncias teolgicas para compreenso do discipulado. ................................................................................................................................. 114

    CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................... 116

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................................ 121

  • 9

    INTRODUO GERAL

    A carta aos Filipenses um escrito densamente teolgico. Nela encontra-se o hino que

    descreve a knosis do Filho (cf. 2,6-11). O lema de Paulo em 1,21 e o tom de alegria (1,18.25;

    2,2.17.18.28.29; 3,1; 4,1.4.10) em meio ao sofrimento demonstram uma grande maturidade da

    parte do autor. Ela rica em frmulas, abundante em ensinamentos e repleta de

    autorecomendaes do apstolo que se manifestam por meio do recurso que vem sendo chamado

    de 1.

    A periautologia2 permeia toda a carta e utilizada para atingir vrios objetivos. Isto

    bastante explcito em Fl 3,2-16. Em geral, as referncias so para exemplificao, o mais

    evidente ocorre em Fl 3,17. O recurso fornece aos filipenses um modelo humano, uma atitude

    forte e, por consequncia, uma ajuda para manter a identidade crist e a unidade da comunidade.

    Um levantamento do uso de expresses periautolgicas e das declaraes pessoais pode

    levar a pensar que Paulo muito autobiogrfico na carta aos Filipenses. inegvel que ele

    utiliza a sua pessoa como exemplo e refere-se a si prprio de vrias maneiras. Este estudo

    pretende examinar as informaes cuidadosamente fornecidas no estilo retrico de autoelevao

    para saber o porqu Paulo usa este estilo distinguido de persuaso.

    Buscar-se- diferenciar as vrias categorias de autorrepresentao, como da sua vocao

    (3,7-16) e o sofrimento causado pela fidelidade, que estligada a exigncias sociais (cf. 1,12-26).

    Paulo tambm define, contra seu prprio modelo, os contrastantes exemplos negativos de outras

    pessoas, empregando a tcnica comumente praticada de synkrisis.

    Por esses motivos, redutivo conceber a sua autoapresentao como autobiografia, j que

    isso sugere que o seu propsito no apenas de expressar alguns detalhes de sua vida. Em vez

    disso, so altamente seletivas e servem como antdotos para sublinhar um aspecto retrico por

    1 Francesco Bianchi analisa extensivamente o texto de Fl 3,14,1 e deixa claro que a palavra significa falar de si,elogiar-se, vangloriar-se, autorreferenciar-se, e Paulo utiliza esse recurso em vrios contextos de suas cartas (BIANCHINI, Francesco. L'elogio di s in Cristo; l'utilizzo della periautologia nel contesto di Filippesi 3,1- 4,1. Roma: Editrice Pontificio Istituto Biblico, 2006. p. 237). Duane F. Watson, em sua contribuio ao compdio organizado por Paul Sampley, explora o tema da autoglorificao na situao e no contexto de Paulo (WATSON, Duane F. Paulo e o gloriar-se. In. SAMPLEY, J. Paul (org.). Paulo no mundo greco-romano; um compndio. So Paulo: Paulus, 2008. p. 58-79).

    2 A transliterao latina da palavra grega .

  • 10

    meio do qual possa tanto combater seus opositores quanto fornecer um modelo claro para seus

    destinatrios e leitores.

    A anlise do tom positivo, do entusiasmo da carta aos Filipenses e o seu exemplo pessoal

    demonstram que, apesar do autor possuir sua particularidade para se expressar, seu escrito foi,

    antes de tudo um produto de uma vida amadurecida na f, para uma Igreja amiga e confivel. Os

    dados oferecidos so cuidadosamente escolhidos para suprir a necessidade da sua audincia e

    aumentar a chance do sucesso da carta no seio da comunidade destinatria.

    Essa investigao exegtico-teolgica sob abordagem sincrnica tem como objetivo geral

    analisar e verificar como as expresses periautolgicas presentes na carta aos Filipenses

    contribuem para compreender o discipulado de Cristo por ilustrado na vida do apstolo. Buscar-

    se- tambm investigar as consequncias teolgicas decorrentes das expresses nela contidas

    para melhor fundamentar o discipulado cristo. Concretamente busca-se:

    Apresentar os trechos de periautologia na epstola e entender a razo pela qual Paulo

    insiste na imitao.

    Analisar estas percopes na tentativa de perceber as situaes retricas do recurso.

    Comparar outras percopes que apresentam o mesmo estilo retrico.

    A abordagem metodolgica desta pesquisa cientfica est focada na Carta de Paulo aos

    Filipenses. A qual ser estudada e relacionada com as demais cartas tendo como conexo o tema

    escolhido. No primeiro momento, ser realizada uma pesquisa geral sobre a Carta discutindo de

    forma atualizada as questes perenes. Sero enfrentadas as hipteses sobre as polmicas

    recorrentes quanto ao lugar no qual a carta foi redigida, questo da datao do escrito e,

    tambm, a questo da sua unidade.

    Paulo emprega uma quantidade extensa da realidade sobre si prprio, no entanto, ao

    contrrio das outras cartas, a autoridade de Paulo e seu relacionamento com a comunidade de

    Filipos no estavam no centro da questo. Essa relao positiva com a comunidade influencia a

    sua autoapresentao. Por exemplo, Paulo no precisa empregar uma linguagem de modstia, a

    fim de estabelecer uma relao positiva com os filipenses. Em vez disso, ele concentra-se em

    apresentar o seu status como agente de Deus, nos seus feitos, e sua priso, a fim de realizar duas

    finalidades principais: proporcionar aos filipenses um modelo para suportar o sofrimento, e

    reconhecer o presente que recebeu recentemente deles.

  • 11

    Um bom nmero de estudiosos denomina Filipenses a mais pessoal das cartas de Paulo3.

    A carta escrita para a primeira sementeira do Apstolo, por isso trata-se de uma comunidade da

    mais alta importncia. Entender a forma como a carta foi produzida, no enfoque do estilo

    pessoal, alm de ampliar o conhecimento, tambm uma alternativa de entender a relevncia de

    sua mensagem e sua aplicabilidade atual. A investigao relevante na medida em que deseja-se

    tirar as dvidas sobre falsas modstias e purificar a confiana daqueles que se apresentam como

    fiis seguidores.

    No estudo, a metodologia intenciona-se apresentar a cotidianidade da vida na poca de

    Paulo, destacando a prtica de periautologia nos mbitos diferentes da sociedade.

    Pretende-se elucidar exegeticamente algumas expresses chaves, nas suas razes gregas,

    cruciais para esta investigao. Por outro lado, ser importante contrastar com as outras cartas

    paulinas e discutir ao menos brevemente a dimenso retrica para melhor enquadrar a sua

    finalidade e descobrir o porqu Paulo utiliza o recurso de periautologia.

    3 Jos Comblin apresenta na introduo no seu comentrio bblico da Epstola aos filipenses que "... Paulo soube criar laos to profundos em Filipos que a comunidade a nascida se tornou seu maior consolo, o maior motivo de glria e alegria." Cf. COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses. Comentrio Bblico. Petrpolis: Vozes, 1985, p. 8.

  • 12

    CAPTULO I

    CONJUNTO DA CARTA AOS FILIPENSES

    Introduo

    A carta de Paulo aos Filipenses4 exala um esprito alegre e de grande afeio. Como uma

    nota de gratido aos seus amigos por sua generosidade, a carta envolve-os em seu abrao

    caloroso. Ao mesmo tempo, Paulo identifica alguns problemas: a competitividade e as

    rivalidades presentes naquela igreja que dividiam os lderes; a hostilidade de alguns pregadores

    infiltrados que desafiavam a f no verdadeiro Evangelho5; e uma falsa espiritualidade que

    promovia um sucesso fcil e, portanto, atraente.

    Os seguidores de Jesus em todas as pocas experimentaram problemas semelhantes e a

    resposta de Paulo, no primeiro sculo da era crist aos filipenses, soa aplicvel at mesmo na

    poca atual. Paulo valida a autenticidade de sua mensagem falando honestamente sobre sua

    prpria experincia na priso e admitindo abertamente seus desejos e escolhas na sua jornada de

    f e misso. Sua carta tem como objetivo fortalecer a f em Cristo frente aos desafios, encorajar

    a soluo de conflitos na comunidade e ensinar como incorporar o Evangelho dentro de uma

    comunidade. Acima de tudo, a carta de Paulo leva a contemplar o sofrimento de Cristo e a

    exaltao na sua vitria final. Neste primeiro captulo, sero consideradas algumas questes de

    fundo: o cenrio histrico da igreja em Filipos, a natureza da carta, a ocasio da carta e uma

    breve apresentao dos temas principais.

    1. A cidade de Filipos e a Provncia romana da Macednia

    Filipos6 era uma colnia romana. A cidade foi fundada aproximadamente no ano 360 a.C.

    por Filipe II da Macednia. O lugar, anteriormente um vilarejo frtil para agricultura e cheio de

    nascentes de guas minerais7, evoluiu de uma vida tranquila, pela descoberta de ouro num monte

    4 Nesta pesquisa, no que se refere a carta (Filipenses) utilizar-se- a primeira letra em maisculo e o que se refere ao povo (filipenses) minsculo.

    5 A palavra Evangelho nessa pesquisa ser sempre escrita em letras maisculas. 6 A designao de Filipos provm do seu fundador, o rei macednio Felipe II, pai de Alexandre Magno. 7 Por causa das nascentes o lugar era chamado "Krenides". Cf. ELIENAI, Cabral. Filipenses, a humildade de

    Cristo como exemplo para igreja. Rio de Janeiro: CPAD, 2013, p. 14.

  • 13

    vizinho, para uma grande cidade, assim chamando ateno do pai de Alexandre Magno que

    nomeou a cidade com seu prprio nome8.

    A cidade adquiriu certa importncia somente na poca dos romanos,

    inicialmente atravs da conhecida batalha dupla de Filipos no ano 42 a.C., na

    qual de certo modo se decidiu o destino da repblica romana entre os cesarianos

    Otvio e Antnio e os republicanos assassinos de Csar: Bruto e Cssio. Pouco

    tempo depois da batalha, Antnio passou a colonizar a cidade com romanos.

    Posteriormente, em diversas levas foram trazidos veteranos para morar ali, a

    cidade foi elevada categoria de colnia militar, sendo lhe concedida direitos

    especiais como colnia Julia Augustus Phillipensis9.

    Na nova colnia romana, que foi nomeada assim em homenagem a famlia Juliana, se

    constatou o estabelecimento de uma aristocracia romana e o crescimento da arquitetura romana,

    dominante em suas edificaes, principalmente no que se refere aos lugares de repouso para os

    soldados romanos. Os cidados de Filipos desfrutavam da cidadania romana com direitos e

    privilgios, regidos pela lei da metrpole. O regime de governo era bem ajustado e havia

    representantes eleitos por assemblia popular. A cidade foi isenta de impostos e taxas10 e, embora

    fosse uma cidade grega, o latim se tornou sua lngua oficial.

    A parte preponderante da cidade era, portanto, constituda de elementos latinos, embora

    no faltassem traos caractersticos de todas as raas circundantes. Ao mesmo tempo em que se

    apresentava como sendo Filipos um considervel centro comercial.11

    Filipos era uma cidade importante, progressista, populosa e privilegiada por seu tamanho

    e prestigio12. Sua topografia urbana foi marcada pela utilizao da arquitetura de arcas, casas de

    banho, templos e altares, de estilo romano, dedicados ao imperador e membros da famlia

    imperial.

    Seu progresso econmico foi favorecido principalmente por sua localizao na Via

    Egnatia, a estrada que liga o Leste-Oeste do imprio, articulando-a tambm Roma. Essa via

    movimentada agitava a vida pelo seu trnsito intenso, o qual influiu, com seus efeitos, nos

    8 Cf. BELLINATO, Guilherme. Paulo: Cartas e Mensagens. So Paulo: Loyola, 1979, p. 205. 9 BARTH, Gerhard. A carta aos filipenses. Comentrios Bblicos NT 8/3. So Leopoldo: Editora Sinodal,

    1983, p. 5. 10 Cf. BELLINATO, Guilherme. Paulo: Cartas e Mensagens, p. 205. 11 Op. cit., p. 205. 12 BARTH, Gerhard. A carta aos filipenses, p. 5.

  • 14

    encontros e na coexistncia de religies.13 Sinal dessa presena dos mais diversos povos era o

    seu Panteo, abrigo de todas as divindades romanas, gregas, asiticas, trcias e egpcias...14.

    Quanto a religio do imprio, tambm difundida, era tida como a mais proeminente entre todas.

    A vida religiosa da cidade foi centralizada no culto, principalmente, ao imperador. Havia

    influncia recproca entre religies, comunidades culturais e correntes intelectuais distintas que

    tiveram considervel efeito tambm sobre a vida da tenra nascente comunidade crist.

    Naturalmente muitos aspectos da vida em Filipos lembravam uma vida de estilo militar. Tendo

    entre seus habitantes tanto soldados profissionais e militares aposentados, tambm existia uma

    antiga populao da cidade que mantinha determinadas razes prvias a influncia do imprio, e

    alm dos distintos elementos culturais e de suas diversas religies, havia uma profunda

    assimilao ao que era prprio do imprio. Surgiram ali muitos comrcios assim como era

    possvel encontrar em todos os centros ao longo das grandes estradas15.

    2. A comunidade beira do riacho

    Na poca em que Paulo fundou a comunidade16 durante a chamada segunda viagem

    missionria17, Filipos j era uma sociedade romanizada e helenizada. Poucos eram os judeus;

    com efeito, eles no tinham uma sinagoga prpria e por isso recorriam s margens do Rio

    13 As escavaes trouxeram tona o nome de praticamente duas dzias de divindades veneradas em Filopos; entre estes se encontravam tambm divindades orientais, como Isis, Serapis, Mitras, Sibele e Harpcrates. Em At 16,13 ficamos sabendo que ali tambm havia uma pequena comunidade judaica. cf. Barth, Gerhard. A carta aos filipenses, p. 5.

    14 BELLINATO, Guilherme, Paulo: Cartas e Mensagens, p. 206. 15 Cf. COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses. Comentrio Bblico. Petrpolis: Vozes, 1985, p. 8. 16 Segundo a descrio de Atos dos Apstolos, Paulo chegou a Filipos procedente de Trade, depois que o

    Espirito Santo o impedira de missionar na provncia da sia, sendo que uma noturna viso em sonho o havia chamado para a Macednia (cf. At 16,6-10). Isto deve ter sucedido no ano 49/50. Desde a descoberta da inscrio de Glio estamos em condies de datar com alguma preciso a misso de Paulo no mbito grego. Desde ento sabemos que o procnsul Glio, perante o qual Paulo teve que se defender em Corinto (cf. At 18,12s), ali residiu desde o inicio de vero do ano de 51 at inicio de vero de 52. A atuao do apostolo em corinto, que durou um ano e meio, ter ento que ser situada entre os anos de 50 e 52, cabendo neste caso misso procedente em Tessalnica e Filipos o perodo de 49/50.

    17 Bruce apresenta um quadro cronolgico que mostra que na volta de 49-52, Paulo e Silas estavam nas regies de Macednia e Acaia aonde acontecia as fundaes das Igrejas de Filipos, Tessalnica, Beria e Corinto (At 16,9 18,8), cf. F. F. Bruce. Paulo nos Atos e nas cartas. In: GERALD F. Hawthorne e RALPH P. Martin (orgs.). Dicionrio de Paulo e suas Cartas. So Paulo: Loyola, 2008, p. 937-952.

  • 15

    Gongites para as ablues, que a Lei prescrevia18. Os Atos dos Apstolos narram de forma

    extensa e com detalhes a fundao da comunidade e a experincia de Paulo em Filipos (cf. At

    16,13-40): o anncio missionrio num local de orao, converses, encarceramento e expulso

    do apstolo19. A fonte lucana menciona quatro elementos importantes em referncia aos

    primrdios da comunidade: o lugar de orao no era uma edificao; o grupo era pequeno; no

    havia judeus no grupo; todas eram mulheres.

    O livro dos Atos dos Apstolos insiste na prtica paulina de visitar sinagogas (cf. 13,4.14;

    14,1; 17,1.17; 18,4.7). Aparentemente a comunidade presente em Filipos no tinha uma

    sinagoga20, mas havia um lugar onde algumas mulheres, em dia de sbado, encontravam-se para

    fazer oraes (cf. At 16,13). Entretanto, as conhecidas sinagogas da Dispora do sculo I so

    todas em cidades, como seria de esperar, pois os judeus tinham direitos legais a um lugar de

    culto.21 O privilgio de reunir-se como pequena comunidade orante intemprie gera certa

    curiosidade j que, comumente para qualquer membro de dita comunidade, lhe seria concedido o

    uso de um cmodo residencial para determinado culto, ao que davam preferncia.

    O grupo que Paulo encontrou em Filipos, mencionado anteriormente, no tinha presena

    masculina, to somente mulheres, entre elas uma chamada Ldia, proveniente de Tiatira,

    negociante de prpura, identificada como adoradora de Deus22. Conta-se que ela abriu as

    portas da sua casa aps a sua converso. Pelo que consta, Paulo soube criar laos to profundos

    em Filipos que a comunidade, a nascida, se tornou seu maior consolo, o maior motivo de alegria

    do apstolo23. Ela aparece simbolicamente como representao da acolhida servicial e materna

    18 BELLINATO, Guilherme. Paulo: Cartas e Mensagens, p. 206; Murphy O'Connor exprime que a abundncia de provas para as preferencias religiosas da populao pag de Filipos faz com que a ausncia de quaisquer sinais arqueolgicos ou epigrficos da presena judaica seja significativa." In: MURPHY OConnor, Jerome. Paulo: biografia crtica. So Paulo: Edies Loyola, 2000, p. 221.

    19 Paulo teve que interromper sua misso em Filipos devido a perturbaes de procedncia externa e problemas com as autoridades. Isto se deduz tambm, alm dos Atos dos Apstolos (At 16,16-40), em 1Ts 2,2, sendo tambm pressuposto em Fl 1,30.

    20A falta de meno da presena de judeus e de uma sinagoga em Lucas na ocasio da visita de Paulo a Filipos indicaria em hiptese que o hagigrafo no pensava que existisse uma sinagoga em Filipos, porm a sua meno de uma casa de orao (Atos 13,16) no pode ser tida como referente a uma sinagoga dos judeus. Cf. JOSEPH Fitzmyer. The Acts of the Apostles. New York: Doubleday, 1998, p. 585.

    21 MURPHY OConnor, Jerome. Paulo: biografia crtica, p. 221. 22 Murphy OConnor explica que a expresso temente a Deus aplicava-se a uma pessoa no-judia que

    frequentava o culto sinagogal. No existe nenhuma outra meno dessa mulher na carta aos Filipenses. In: MURPHY OConnor, Jerome. Paulo: biografia crtica, p. 221.

    23 COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses, p. 8.

  • 16

    no somente dirigida ao apstolo, mas a prpria mensagem por ele portada. O relato lucano narra

    os acontecimentos e experincias de Paulo e seu companheiro Silas, assim como o episdio que

    as cartas confirmam, no qual Paulo aoitado, preso e expulso da cidade (cf. 1Ts 2,2; 2Cor

    11,23-25), sem deixar perceber o apoio remoto da acolhida vivida junto s comunidades

    marcadas pela impronta feminina beira do riacho.

    2.1 A comunidade que recebe a carta

    bem provvel que o apstolo tenha passado duas vezes por Filipos. A primeira vez (cf.

    1Cor 16,5), ao passar pela Macednia na sua viagem de feso a Corinto, teve seu encontro com

    Tito na sua estadia na Macednia (cf. 2Cor 2,13;7,5), no sendo esta, confirmadamente

    comprovada como sendo a cidade de Filipos, porm alguns estudiosos o consideram como

    possvel.

    A primeira vez foi anunciada aos corntios (1Cor 16,5). Parece que houve

    alguns problemas em Filipos (At 20,1-4; 2Cor 7,5). Porm o bom entendimento

    entre Paulo e a sua querida comunidade de Filipos ficou confirmado pela visita

    (2Cor 8,1-6).24

    A segunda vez, segundo At 20,6, Paulo passou por Filipos na sua ida para Jerusalm

    voltando da Grcia.25A comunidade filipense que recebe a carta de Paulo muito diversificada.

    O primeiro grupo aquele que retm a preferncia e simpatia do apstolo, e ao qual, se dirige

    diretamente, chamando-os de santos em Cristo, e seus epscopos e diconos (cf. Fl 1,1-2),

    so eles que participam no Evangelho efetivamente (cf. Fl 1,5). Por outro lado, o segundo grupo

    era composto por aqueles que eram caracterizados pela ambio egosta (cf. Fl 2,2), o dos quais

    se pode dizer, com preciso, que apesar de serem pregadores de Cristo, promovem divises e

    destruio pela inveja e ambio desmedida dentro da prpria comunidade.

    Os romanos, adversrios do Evangelho, intimidavam os cristos em Filipos (1,28). Frente

    a isso, Paulo exorta aos filipenses a no se intimidarem diante da perseguio, j que esta uma

    luta travada em comum entre eles e o prprio Paulo (1,29-30). Ele se refere s autoridades

    romanas, os que o aprisionaram e o repreenderam diversas vezes, da qual ele fala, neste

    24 COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses, p. 8. 25 Cf. BARTH, Gerhard. A carta aos filipenses, p. 7.

  • 17

    momento, desde o crcere. Os cidados romanos oprimiam o testemunho do Evangelho,

    propagando uma reao de medo entre os membros da igreja nascente.

    Paulo no subestima o poder de agentes imperiais para intimidar e perseguir o grupo

    ainda frgil dos recm-convertidos. Ele adverte aos filipenses a estar firmes num s Esprito,

    lutando juntos, com uma s alma, pela f do Evangelho (1,27).

    A carta tambm alude aos cristos judeus que, impondo aos cristos gentios a seguirem

    rituais judaicos, sofrem a dura advertncia de Paulo: Cuidado com os ces, esses malfeitores,

    aqueles mutiladores (cf. Fl 3,2). Por outro lado, reconhecendo a igreja como circuncisos, os

    circuncidados somos ns (cf. Fl 3,3). Este contraste entre os mutiladores (aqueles que impem a

    circunciso) e os verdadeiros circuncisos afronta a natureza judaica desses adversrios. Eles no

    teriam qualquer acesso igreja se eles no pretendessem ser cristos tambm. Esses adversrios

    so semelhantes aos cristos judeus que se infiltraram na igreja de Paulo na Galcia. Glatas e

    Filipenses refletem a mesma severa censura da parte de Paulo para com o grupo dos

    judaizantes26.

    O trecho de Fl 3,17-19 revela o lado emocional e apreensivo do apstolo. Paulo escreve

    em lgrimas exortando os seus amigos em Filipos sede meus imitadores, irmos, e observai

    os que andam segundo o modelo que tendes em ns, pois sabia que viver como um seguidor de

    Cristo, em uma colnia romana, era verdadeiramente uma contradio cultural. As religies

    pags, estilos de vida hedonista e, especialmente, o culto imperial poderiam facilmente lanar os

    cristos fora de seus caminhos e desnorte-los do caminho da cruz de Cristo. O resultado de

    ceder s presses dessas culturas, obedecendo a seus apetites fsicos, colocando sua glria em

    atividades vergonhosas, e definindo o seu pensamento nas coisas terrenas (cf. Fl 3,19), inclinaria

    os cristos a viverem como inimigos do verdadeiro caminho.

    Os cristos estavam se deixando levar pela a cultura mundana em Filipos de maneira que

    negavam o Evangelho. Assim, Paulo os chama para lembr-los de que so cidados do cu: a

    nossa cidade est nos cus, de onde tambm esperamos ansiosamente como Salvador, o Senhor

    Jesus Cristo (cf. Fl 3,20).

    26 Comblin apresenta como as epstolas aos Filipenses e aos Glatas so muito prximas, especialmente no que trata dos falsos apstolos: COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses, p. 7.

  • 18

    2.2 A questo da composio e unidade da carta aos Filipenses

    Existem diversas questes referentes carta que permanecem em aberto. Entre elas

    destaca-se a questo da unidade e, consequentemente, da datao. Quanto questo da unidade,

    se o texto cannico for considerado como uma carta nica, ele proporciona uma srie

    desordenada de informaes: ensinamentos, avisos, notcias sobre Paulo, agradecimentos, relatos

    de Epafrodito entre outras discusses. Por estas razes internas estudos crticos levantam uma

    srie de questionamentos sobre a integridade da epstola. O problema da unidade necessita uma

    ateno considervel, pois a reconstruo histrica das relaes de Paulo com os filipenses muda

    com cada hiptese sobre a unidade27.

    De acordo com Jerome Murphy OConnor, do ponto de vista metodolgico, a unidade

    literria uma suposio. No pode ser comprovada sem o testemunho direto do autor28.

    Policarpo de Esmirna29 o escritor mais antigo que testifica a carta aos Filipenses, ao redor do

    ano 120 d.C. Ao escrever sua carta aos Filipenses (3,2), ele faz aluso s cartas escritas por Paulo

    aos seus destinatrios. Com o uso do substantivo carta no plural, pode-se concluir que Paulo

    escrevera - ao menos duas - cartas aos filipenses. Como Policarpo, tambm o Catalogus

    Sinaiticus srio (em torno de 400) e Georgius Syncellus (em torno de 800) conheciam diversas

    cartas30.

    O cnon do Novo Testamento apresenta somente uma carta aos Filipenses. No entanto,

    mesmo as menos disputadas cartas, para tais impossvel no encontrar crticos. A sua unidade

    por muitas vezes questionada pelos estudiosos31. O estudo conclui, portanto, duas hipteses:

    27 Cf. MURPHY OConnor, Jerome. Paulo: biografia crtica, p. 223. 28 Op. cit., p. 223. 29 Policarpo (*cerca de 70 / + cerca de 160) foi bispo da cidade de Esmirna (atualmente na Turquia).

    Segundo a tradio, morreu mrtir, vtima da perseguio romana, aos 87 anos. contado entre os grandes Pastores Apostlicos, ou seja, pertencia ao nmero daqueles que conviveram com os primeiros apstolos e serviram de elo entre a Igreja primitiva-palestinense e a Igreja do mundo greco-romano. Segundo a tradio, Policarpo teria sido ordenado bispo pelo prprio So Joo, o Evangelista.

    30 BARTH, Gerhard. A carta aos filipenses, p. 8. 31 A maioria dos textos como foram recebidos e conservados at atualidade so considerados realmente

    como fuses de vrios fragmentos ou de cartas individuais. No entanto, essa corrupo textual difcil de detectar e ainda mais para verificar, deixando por sua vez pouco acordo quanto extenso da integridade das epstolas. A evidncia interna e externa para atribuir qualquer uma das epistolas de Paulo um mtodo delicado e muitas vezes levam a discrdia entre os estudiosos. Cf. ARTHUR G. Patzia. Cnon. In: GERALD F. Hawthorne e RALPH P. Martin (orgs.). DPC. 2 Ed. So Paulo: Loyola, 2008, p. 169-177.

  • 19

    a) Paulo teria escrito diversas cartas comunidade de Filipos, as quais teriam sido

    extraviadas. E a carta cannica seria a nica que foi preservada.

    b) Paulo teria escritos diversas cartas aos filipenses, as quais teriam sido reunidas

    naquela que conhecemos como a carta aos Filipenses. As cpias posteriores teriam

    sido reproduzidas a partir da epstola nica, e ningum teria voltado a copiar as

    antigas epstolas separadas.

    Alm dessa hiptese, existem algumas outras razes muito srias derivadas do prprio

    textus receptum. A carta tem levado os exegetas a argumentarem as possibilidades de fuso de

    cartas e bilhetes. De fato, em diversos lugares, quebras e rupturas graves indicam que no existe

    coeso literria, e mais, estas quebras no podem ser explicadas como meras mudanas de estilo

    ou de tema.

    O primeiro bloco de comentaristas exegetas levanta a hiptese de que a epstola aos

    Filipenses uma juno de duas cartas, e ainda outro argumenta pela hiptese de trs cartas, no

    faltando os que, por conseguinte, considerem a carta uma unidade. No entanto, uma leitura

    simples leva a perceber as rupturas do discurso em alguns pontos do texto que rompem com as

    simpatias da personalidade polarizada de Paulo e leva a ideia de uma coleo de cartas, como

    insinua Policarpo32.

    evidente que o apstolo esteve preso quando escreveu a carta, ou uma parte dela, (Fl

    1,12ss), este encarceramento no foi contraproducente para o avano do Evangelho. Durante este

    meio termo, ele recebera ajuda financeira da comunidade por um intermedirio que adoece e

    causa preocupaes aos Filipenses (Fl 2,26-30), enviado de volta com um comunicado de

    gratido (Fl 2,25.28). Relatando sobre o seu processo, o apstolo discursa sobre a possibilidade

    de ser liberto ou de ser executado (Fl 1,19-24).

    No texto anterior a Fl 3,1 encontra-se uma forma muito cordial e pessoal de persuaso,

    exortaes para conduta correta e a alegria em meio ao sofrimento, tudo isso aliado

    participao de seus colaboradores na situao pessoal do Apstolo. A partir desse ponto se

    32 Policarpo (cerca de 135 a.D.) fez um comentrio na sua carta aos Filipenses sobre o ministrio de Paulo entre essa comunidade querida pelo apstolo, escrevendo a palavra cartas em plural. W. Bauer faz um estudo sobro a ateno que policarpo tinha entre o singular e o plural, e insiste que Policarpo ao escrever a sua carta aos Filipenses se referia a uma coleo de correspondncia. Cf. W. BAUER. Die Briefe des Ignatius von Antiochia und der Polycarpbrief, Tubingen: Mohr, 1920, p. 287.

  • 20

    verifica um corte evidente e mais visivelmente ocorre entre Fl 3,1 e Fl 3,2. A partir de Fl 3,2,

    entretanto, encontra-se uma advertncia um tanto amarga e irritada contra os falsos mestres na

    comunidade. De fato, existe uma violenta denncia contra os adversrios, quebrando a harmonia

    dos captulos precedentes (Fl 1-2) apesar de aparecer claramente em Fl 3,1 uma despedida ...

    finalmente, irmos, regozijai-vos no Senhor.

    Por outro lado, o trecho de Fl 4,10-20 apresenta um agradecimento comunidade por

    uma preciosa ajuda financeira, forosamente introduzida depois de outra finalizao em Fl 4,9.

    Alm do mais, deve-se observar que existe uma aparente continuidade entre Fl 3,1 e Fl 4,4. A

    anlise leva a uma concluso rpida de que a carta tem fragmentos em diversos lugares, que

    podem ser classificados como bilhetes introduzidos.

    Encontram-se alguns exegetas que defendem a posio de uma possvel coleo de duas

    cartas reunidas na epstola. A primeira carta seria formada pelo texto de Fl 1,13,1, o qual se

    refere situao de Paulo na priso, devendo-se acrescentar o texto de Fl 4, 2-23, que apresenta

    os ltimos conselhos e agradecimentos de Paulo. A segunda carta seria constituda pelo texto de

    Fl 3,2-21, onde Paulo apresenta uma linguagem mais violenta, destacando a sua oposio aos

    judaizantes, comumente conhecida como a carta polmica. Mesmo nessa diviso, os defensores

    da hiptese de duas cartas no apresentam conjunturas similares33.

    Ao contrrio dos defensores da teoria de duas cartas, encontram-se exegetas que

    concordam que a epstola aos Filipenses seria uma composio de trs cartas menores34. A maior

    parte dos estudiosos argumenta a fuso de trs cartas, mas no com muito consenso a cerca da

    diviso, porm h pequenas diferenas entre exegetas35.

    33 Barbaglio apresenta no seu estudo da carta aos Filipenses, os defensores da hiptese de duas cartas, explica como estes tambm no concordam da composio da carta. Friedrich subdivide a carta na seguinte forma: Carta A= 1,1 - 3,1a + 4,10-23; Carta B= 3,1b-4, 9; Gnilka na sua vez prope uma subdiviso um pouco diferente: Carta A = 1,1-3,1a + 4,2-7.10-23; Carta B = 3,1-4,1. 8-9. Gnilka defende que o trecho de 4,2-7 tambm faria parte da carta A. cf. BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo, II, p. 356.

    34 Bornakamm e Murphy OConnor apresentam seus pareceres levando em considerao a questo da cronologia da escrita de cada bilhete: Carta A= 4,10-20; Carta B = captulos 1-2; e Carta C: 4,2-7.21-23. Todo o captulo 3. Cf. MURPHY OConnor, Jerome. Paulo: biografia crtica, p. 223-228.

    35 Barbaglio defende uma pequena variante frente proposta de Murphy-OConnor. Ele reconhece a autonomia dos trs blocos literrios, 1,1-3,1 + 4,2-7.21-23; 3,2-4,1. 8-9; 4,10-20." Ele defende que estes blocos aparecem ainda mais forte se se confrontam as respectivas situaes da comunidade filipenses e do prprio Paulo, que a esto como pano de fundo. Cf. BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo, II, p. 357-359.

  • 21

    Aqui so apresentados blocos de bilhetes que levaram ao pensamento de que a carta seria

    um conjunto de trs cartas individuais:

    a) A carta A (Fl 1,1-3,1 + Fl 4,2-3.4-7.21-23): Nestes versculos encontra-se a

    comunidade de Filipos longe de qualquer conflito interno, vivendo um momento

    particular de harmonia e comunho. Neste trecho, o apstolo est encarcerado e, por

    esta razo, parece que a priso ea perseguio em nome de Cristo condicionam a

    substncia deste bilhete. Contudo, em relao aos conflitos externos no possvel

    dizer o mesmo, devido explcita exortao de Paulo sobre a luta pela fidelidade ao

    Evangelho, contra aqueles que perseguem a comunidade (Fl 1,27-30).

    Alguns pesquisadores rotulam este trecho da carta como carta B, apresentando a hiptese

    cronolgica que seria a segunda carta a ser escrita por Paulo.

    b) A carta B (Fl 3,2-4,1 + 4,2-3.8-9): Neste bloco, o tom da carta muda, a comunidade

    parece estar ameaada por problema que colocaria em cheque a tranquilidade da

    comunidade. Trata-se, portanto, de um perigo interno. Provavelmente, missionrios

    judeu-cristos procuravam impor comunidade quilo que no era essencial ao

    Evangelho pregado por Paulo (Fl 3,2-3). Dentro deste trecho deve-se observar que

    no existe um indicativo de priso por parte de Paulo. Isto nos permitiria supor que

    Paulo o teria escrito encontrando-se em uma situao de liberdade. O apstolo parece

    estar em liberdade. Alguns estudiosos colocam esta diviso como a mais tardia dos

    bilhetes que formam Filipenses.

    c) Carta C (Fl 4,10-20): Nesta unidade se encontra uma nota de agradecimento pelos

    donativos enviados pela comunidade por intermedirio de Epafrodito. A causa da

    situao de encarceramento de Paulo, o que preocupa e mobiliza a comunidade, que

    se-lhe enviado Epafrodito portando o apoio necessrio em nome da comunidade que

    o envia. Embora alguns exegetas cheguem a pensar que este trecho esteja em

    continuidade com o primeiro bloco, no se deve abandonar a argumentao de que o

    agradecimento deveria, ento, estar no incio e no no final da carta. Note-se, porm,

  • 22

    que o agradecimento e a alegria do Apstolo consistem em que os filipenses

    participam na obra de Deus, na obra que Deus realiza em seu apostolado36.

    Desta configurao, aborda-se um plausvel resumo para a composio da carta que

    conteria, ento, trs cartas escritas em situaes distintas: primeiro a existncia de certa

    tranquilidade na comunidade e partilha da situao pessoal do apstolo, o que corresponde mais

    ou menos ao trecho de 1,1-3,1 a 4,2-3.4-7.21-23; segunda a existncia de uma ameaa em

    nome dos falsos missionrios que pregam mais a Lei judaica na igreja de Filipos e no na de

    Cristo, o que corresponderia com o trecho de 3,2-4,1.(2-3).8-9; e a terceira a necessidade de

    agradecer pelos donativos recebidos, o que corresponderia unidade literria de 4,10-20.

    A unidade da carta tem sido um assunto de considervel debate por razes internas e

    formais. As mudanas dramticas de tom em certos momentos da carta e costuras textuais na

    mesma, em outros pontos justifica a necessidade dessa investigao. Alguns estudiosos tm

    mostrado que os conceitos e vocabulrio do hino cristolgico (cf. Fl 2,6-11) esto integrados no

    argumento do todo. Alm disso, a presena de sofrimento e a exortao efervescente de alegria

    so tecidas ao longo da carta como um fio condutor. Estes indicadores internos, em favor do

    tratamento de Filipenses como uma unidade literria, no podem ser ignorados. No entanto,

    sempre difcil chegar a uma concluso, sendo que apesar dos elementos de descontinuidade,

    aceito, geralmente, que a carta se trate de uma s epstola.

    2.3 Datao e possvel lugar de redao

    Enquanto a questo da unidade teria consequncias na tese sobre o lugar da redao,

    consequentemente, a questo de quando teria sido escrita a carta, depende fortemente do local

    onde foi escrita. A carta faz meno em diversos trechos do fato que o apstolo tenha estado

    preso, e de que ele no deixa de ter esperana de um resultado favorvel acercado seu processo

    (cf. Fl 1,25; 2,23). Os dados utilizados para a localizao da carta se encontram todos no

    fragmento que menciona a situao de Paulo na priso, mas no na carta fragmentada, a qual no

    apresenta tais trechos. Jos Comblin no seu comentrio37 insinua que as cartas A, B e C no

    36 VOUGA, Franois, A Epstola aos Filipenses, 299. In: MARGUERAT, D. (ORG.). Novo Testamento. Histria, escritura e teologia, So Paulo: Loyola, 2009.

    37 COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses, p. 13.

  • 23

    podiam ser escritas em pocas muito distantes, assim restando no fundo apenas o problema de

    lugar e datao da composio.

    Comblin no seu comentrio da carta aos Filipenses expe corretamente que a

    circunstncia que condiciona tanto o lugar como a data a priso de Paulo38. Ao mesmo tempo

    se torna difcil descobrir onde Paulo se encontra prisioneiro, pois no mencionado em lugar

    algum. A questo : Quando e onde Paulo se encontrou numa situao que se coaduna com as

    indicaes da carta? 39.

    Os Atos dos Apstolos mencionam dois lugares onde ele se encontra preso por mais

    tempo: Cesaria (cf. At 23,33; 24,27) e Roma (cf. At 28,16). Roma a soluo mais

    tradicional40. Na hiptese, se apresentam dois dados que favorecem Roma como o lugar da

    escrita da carta: a primeira a meno do Pretrio e a segunda o trecho de 4,22 em que consta

    uma saudao aos membros da casa do imperador, tradicionalmente entendida como sendo

    pertencentes da corte. Entretanto, os argumentos apresentados no so incontestveis. Pretrio

    designava tambm a residncia do governador, como aparece nos evangelhos (Mt 27,27; Jo

    18,28). Cada capital de provncia possua uma residncia do governador. Em segundo lugar, a

    expresso aqueles da casa do imperador... no necessariamente faz meno aos membros e

    funcionrios da corte, mas poderia referir-se aos escravos do imperador, em qualquer lugar do

    imprio.41

    Alm dessas refutaes, existem argumentos fortes contra a suposio de que Roma seja

    o local da redao. O principal seria a distncia entre Roma e Filipos pois a epstola evoca vrias

    viagens entre Filipos e o local aonde Paulo est preso, e supe comunicaes rpidas. Roma com

    a sua distncia de Filipos no sustentaria o fato de muitas viagens e rpida comunicao entre as

    duas cidades, que no teria sido possvel a partir de Roma42. O segundo argumento o fato da

    inteno de Paulo viajar para Filipos com tanto que fosse posto em liberdade (cf. Fl 2,24). Essa,

    sabemos que no era a inteno de Paulo quando estava encarcerado em Roma, pois de l ele

    38 COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses, p. 14. 39 BARTH, Gerhard. A carta aos filipenses, p. 7. 40 Defendem a origem da carta em Roma: BOOR, MACKENZIE, WITHERINGTON, HENDRIKSEN, BARTH. 41 BARTH, Gerhard. A carta aos filipenses, p. 7. 42 Carson atesta que o fato de Filipos ficar a cerca de 1900 quilmetros de Roma dificulta a suposio de

    que a cidade seja o lcus da escrita de Filipenses. Cf. CARSON, D. A. Introduo ao Novo Testamento. So Paulo: Vida Nova, 1997, p. 352.

  • 24

    queria viajar para Espanha (cf. Rm 15,28). O mesmo problema da distncia torna difcil a

    hiptese de Cesaria, pois os Atos dos Apstolos narram tambm uma priso de Paulo nessa

    cidade antes de seguir para Roma, para ser julgado.

    feso como o local possvel de encarceramento de Paulo vem sendo acreditado por

    muitos pesquisadores. Se apresentam, porm, muitas dificuldades sobre feso como hiptese de

    crcere. A circunstncia de Atos dos Apstolos no mencionar sobre este evento coloca em

    cheque o local como locus da escrita. Mesmo assim, no um argumento forte pois, a omisso

    do escrito lucano, no que se refere localizao do crcere paulino, no pode ser apresentada

    como argumento contra a suposio de ser feso o lugar de aprisionamento.

    Os Atos dos Apstolos, considerado por alguns como uma das fontes de dados sobre o

    apstolo, no tem como objetivo apresentar uma biografia de Paulo, por isso, no relatam por

    completo a trajetria biogrfica de Paulo, e ainda que apresente indcios de que o apstolo

    encontrou dificuldades diversas em feso (cf. At 19,21; 20,11). Em algumas cartas de Paulo

    existem indcios que apiam o argumento acerca do crcere em feso aonde o prprio apstolo

    alude aos outros cativeiros anteriores ao de Roma (Rm 16,7; 2Cor 6,5; 11,23).

    A ideia apresentada em 1Cor 15,32 de que Paulo teria lutado com animais selvagens

    em feso possui um sentido figurado, assim como indica que o Apstolo teria enfrentado uma

    sria ameaa em feso. Paulo, em 2Cor 1,8, escreve respeito de uma ameaa de morte na sia,

    a qual teria sido to sria que ele mesmo j teria dado a sua vida por encerrada. Levando em

    considerao que feso era a capital provincial da sia, bem possvel que esta informao se

    refira priso pressuposta na carta aos Filipenses.

    Barbaglio oferece outro olhar sobre o lugar e a possveldata de composio na sua

    apresentao do quadro das coordenadas geogrficas e cronolgicas da hiptese de trs cartas:

    A carta de agradecimento (4,10-20) foi escrita em feso, no incio da priso,

    logo aps Paulo ter recebido de Epafroditus o donativo da comunidade de

    Filipos, provavelmente no ano 56. A carta por excelncia da priso (1,1-3 +

    4,2-7.21-23) tambm foi escrita na priso efesina, mas algum tempo depois. De

    fato, o apstolo j conseguiu tornar-se conhecido como prisioneiro por Cristo,

    evidentemente durante uma ou mais audincias do tribunal (1,12-13), e

    Epafroditus j terminou a prestao de seu servio ao prisioneiro, tendo voltado

    para Filipos, provavelmente levando o escrito paulino (2,25-30). A carta

  • 25

    polmica (3,1b-4,1) posterior libertao da priso e supe que Paulo s

    agora tenha ficado a par do perigo por que passa a comunidade filipense, por

    causa dos missionrios judeu-cristos chegados cidade macednica.

    Deve-se concluir que, tendo sado da priso, ele imediatamente deixou feso e,

    visitando a Igreja filipense, tenha visto com os prprios olhos a ao dos seus

    rivais, preocupando-se muito (cf. 2Cor 7,5). Chegando depois em Corinto (cf.

    At 20,2-3), escreveu Igreja de Filipos, advertindo-a contra os ces, os maus

    operrios, os mutilados (3,2). Estamos, muito provavelmente, no ano 57. A

    carta polmica, de Fl 3, seria, pois, contempornea carta aos Romanos.43

    Como no est especificado textualmente o nome do lugar, esta suposio no

    plenamente garantida, porm, mais provvel que Roma ou Cesaria. Se feso foi o lugar da

    priso, pode se situar ento a data da redao entre o fim de 52 e o comeo de 55 ou entre fim de

    54 e comeo de 57, conforme a cronologia paulina que se queira adotar44. Se se considera como

    escrita em Roma ela seria posterior ao ano 60. No fcil especificar a data da redao da carta

    aos Filipenses conforme o estudo, sendo que a data depende inteiramente do local da escrita45.

    2.4 As motivaes e o contedo da carta

    Com base no texto cannico, possvel determinar as circunstncias e os propsitos sob

    os quais o remetente escreveu aos filipenses. Alm da sua condio de prisioneiro, a carta revela

    que Paulo esteve preocupado com a situao da igreja filipense. A desunio entre os fiis, os

    sofrimentos de perseguio em vrios nveis, e os opositores colocavam em risco a sua predileta

    fundao e, especialmente, o avano do evangelho de Cristo. Pode-se, portanto, classificar as

    duas matrizes que motivaram a carta: a condio do apstolo e a situao da igreja.

    a) O apstolo estava em algemas e essa experincia na priso contribuiu naturalmente

    para avano do Evangelho e, ao mesmo tempo, os filipenses se demonstraram

    solidrios para com o apstolo justamente a causa de seu encarceramento;

    43 BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo, II, p. 357-359. 44 COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses, p. 14. 45 A literatura consulta sobre a datao de Filipenses so o seguinte: WITHERINGTON, Bem III. Histria e

    histrias do Novo Testamento. So Paulo: Vida Nova, 2005, p. 71; KUMMEL, Werner G. Introduo ao Novo Testamento. 3 ed. So Paulo: Paulus, 2004, p. 433; CARSON, D. A. op. cit., p. 355; BARTH, G. Carta aos Filipenses, p. 8.

  • 26

    b) O segundo aspecto, motivador da carta, a situao da igreja de Filipos que pode ser

    subdividida em trs momentos conforme revela a preocupao do apstolo ao

    escrever-lhes:

    - A solidariedade e parceria a respeito a desunio entre eles;

    - Os bons exemplos contra as propostas contrrias dos adversrios;

    - A luta em nome do verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo.

    2.4.1. Uma carta que informa a situao pessoal do Apstolo

    Como consta em Fl 2,19-23, existe uma troca de correspondncias onde Paulo, de um

    lado e os cristos de Filipos do outro, se preocupam com o bem-estar de uns com os outros.

    Paulo mantinha um fluxo confivel de informantes sobre Filipos e, desta forma, ele poderia ser

    atualizado sobre a situao da comunidade. Pelo menos dois mensageiros de Filipos visitaram

    Paulo: Epafrodito e outro que o informou da preocupao da comunidade pela doena de mesmo

    (cf. Fl 1,25-30; 2,26-28). A carta exorta aos filipenses sobre um nmero razovel de assuntos e

    isto demonstra que as informaes sobre qualquer ensinamento alheia introduzida na

    comunidade chegavam, de alguma forma, ao apstolo por algum interlocutor.

    O apstolo escreveu igreja de Filipos atualizando-a sobre sua situao pessoal no

    momento em que esteve prisioneiro. aparentemente grave o perigo em que se encontrava o

    apstolo, pela carta pode se deduzir que ele corria perigo de morte (cf. Fl 1,21).

    Portanto, parece que um dos propsitos de Paulo foi o de informar os fiis sobre

    o verdadeiro perigo que ele estava enfrentando, mostrando-lhes que se tivesse

    chegado o tempo dele sofrer o martrio, estava preparado para tanto, e que ele

    sentia que at isso seria bom para ele, e no seria uma tragdia, como outros

    penderiam por pensar sobre a questo46.

    A inteno seria de aliviar os seus leitores acerca da sua segurana e ao mesmo tempo

    lhes dar a coragem para enfrentar qualquer tipo de tribulao, como a que ele estava enfrentando,

    alegremente.

    46 CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado, versculo por versculo. Vol. V. Guaratinguet: Voz Bblica, 1986, p. 3.

  • 27

    2.4.2. Uma carta de agradecimento

    A epstola se apresenta como um profundo agradecimento, dado que em Fl 1,5 e 4,10.14,

    revela-se que os filipenses haviam enviado muitas doaes ao apstolo. A colaborao dos

    filipenses merecia reconhecimento. Paulo interpreta o apoio recebido dando-lhe o significado no

    contexto da misso em favor do progresso do Evangelho. Isso ressoa fortemente quando o

    apstolo expressa a sua gratido pelo donativo oferecido. A repetio constante de quo grato ele

    era, ao receber essa ajuda, mostra que ele entendeu a ddiva dos filipenses ao seu ministrio em

    termos de companheirismo e parceria na estruturao do processo de evangelizao, constituindo

    assim o tema epistolar de ao de graas.

    Em diversos versculos Paulo se apresenta especificamente preocupado, no s com a sua

    prpria misso apostlica, mas com a participao dos filipenses e os demais na obra de

    propagao do verdadeiro Evangelho. O seu agradecimento transversal na carta, tanto para os

    seus colaboradores verdadeiros e outros que o fazem de outra forma (cf. Fl 1,18).

    A base do agradecimento do apstolo respeito a parceria dos filipenses na obra da

    evangelizao aparece claramente como o elemento central do discurso de ao de graas -

    (pela vossa parceria a favor do evangelho Fl 1,5). Fl 1,7

    reala o elemento de confirmao do Evangelho, os filipenses por sua parte so participantes no

    progresso do Evangelho -

    (tanto nas minhas prises - algemas - como na defesa e confirmao do

    Evangelho)47.

    2.4.3. Uma carta que procura estimular a vivncia fraterna

    Os planos de Paulo para enviar Timteo (cf. Fl 2,19) e para visitar os filipenses em

    pessoa (cf. Fl 2,24) indicam que eles tinham necessidade de orientao, incentivo e

    encorajamento. Para suprir esta necessidade foi este, sem dvida, um dos propsitos principais

    de Paulo ao redigir a carta.

    Ao escrever a carta o apstolo procura resolver os problemas gerados pelas questes

    pessoais que ameaavam a unidade da Igreja (cf. Fl 4,2.3). Na Igreja de Filipos, existiam alguns

    47 As nossas tradues do grego.

  • 28

    que se achavam melhores que os outros, e se viam como mais dotados e assim se afirmavam

    como superiores aos demais. A igreja estava atormentada por um conflito de personalidades48.

    Alguns estudiosos os chamam de partido dos perfeccionistas. Pensa-se de que foi por eles que

    Paulo havia escrito o trecho onde ele se mostra como ainda no tendo tido atingido a perfeio

    (cf. Fl 3,12-16). Entenda-se como um repdio indireto queles que pensavam j ter atingido a

    perfeio49.

    Em Fl 4,2 o apstolo exorta as duas mulheres Sntique e Evdia a serem unnimes no

    Senhor. Paulo reconhecia efetivamente o ministrio das mulheres e as encorajava50. As ambies

    egostas e os interesses pessoais na comunidade de Filipos encontravam a admoestao do

    apstolo (cf. 2,3-4). Esse conflito na vida da igreja revela a razo da repetida apelao do

    apstolo pela firme unio em esprito e alma (cf. 1,27; 2,1-5.14; 3,17.20; 4,2).

    2.4.4. Uma carta permeada de bons exemplos

    Os adversrios so por vezes pensados como sendo a principal razo para a composio

    da carta. Para confirmar este pensamento algumas pistas podem ser extradas dos trechos de 3,1-

    2 e 18-19. Paulo precisava apresentar-lhes o melhor exemplo para que a sua cooperao no

    avano do Evangelho fosse orientada e compreendida no caminho certo. Isto se dava

    especialmente pelo fato da presena dos falsos apstolos.

    Embora a carta chamada polmica parecesse fora de sintonia, pois se trata de

    severa repreenso contra os legalistas, nela Paulo mostra quais eram as razes

    que ele tinha de ufanar-se com um orgulho farisaico, mas como Cristo

    substitura toda essa ufania, permanecendo o Senhor como sua nica base de

    jactncia e seu alvo nico de perfeio51.

    Note-se bem, o problema do confronto entre vrios apstolos no se tratava de uma

    rivalidade pessoal, mas, sim, um confronto entre vrias maneiras de conceber a misso e, ao

    mesmo tempo, vrias concepes sobre o contedo da mensagem missionria. Alm disso, as

    incurses de elementos judaizantes em Filipos era claramente outro aspecto importante de

    48 MURPHY OConnor, Jerome. Paulo: biografia crtica, p. 231. 49 CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado, versculo por versculo, p. 3. 50 MURPHY OConnor, Jerome. Paulo: biografia crtica, p. 89. 51 CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado, versculo por versculo, p. 3.

  • 29

    preocupao. Paulo escreveu desejando fortalecer a coragem dos filipenses em seus sofrimentos

    e proteg-los contra os perigos espirituais que pudessem amea-los.

    2.4.5. Uma carta que defende o verdadeiro Evangelho

    A epstola aos Filipenses foi escrita para argumentar, no tanto com respeito a uma

    conduta moral ou instrues de comportamento inter-relacionais ou sociais, mas sim, certamente

    em prol do verdadeiro Evangelho52, sendo esse Evangelho em uma perspectiva de construo de

    fortalecimento de uma fraternidade, o qual seria o seu tema central.

    A linguagem mais voltada ao Evangelho uma caracterstica permanente na carta. A

    palavra aparece mais vezes em Filipenses do que em qualquer outra carta paulina, 9

    vezes, precisamente. Alm disso, na maioria dos casos, a palavra no se refere

    apenas mensagem do Evangelho, mas um nome empregado referindo-se obra do

    Evangelho, a atividade de estender o Evangelho.

    Algumas expresses tomam como referncia a pregao, por exemplo:

    falar a palavra (cf. Fl 1,14); pregando (cf. Fl 1,15);

    proclamando (cf. Fl 1,17.18) e outros termos associados na carta (1,22; 2,25.30; 3,2; 4,3.17).

    Aqui bem claro que os filipenses revelam um nvel extraordinrio de interesse na propagao

    do Evangelho. Isto sugere que o exemplo pessoal aos filipenses, usado e realado em toda a

    carta, de alguma forma til para o avano do Evangelho.

    O Evangelho o motivo que une e faz outros subtemas serem compreensveis, sempre a

    luz desse tema enfatizado, e condicionados por ele. O tema do Evangelho coloca em perspectiva

    a cooperao dos filipenses, e todas as demais orientaes, em vias de comprometimento com o

    desenvolvimento do mesmo implantado e inclinado a estender-se.

    A carta resiste a uma tentativa de fixar todo pressuposto e funo em um nico ncleo,

    em uma ordem fixa de ideias, determinando um motivo unilateral pelo qual Paulo escreve.

    Porm, como se trata de muitos e diversos assuntos aqueles apresentados na carta, a questo do

    debate permaneceria em aberto. Dado que muitos intrpretes consideram a carta como uma

    composio desprovida de qualquer foco de unificao ou tema central, muito difcil identificar

    52 COMBLIN, Jos. Epstola aos Filipenses, p. 16.

  • 30

    o foco principal ou tema central dentro da carta. A natureza pessoal e ocasional da epstola se

    ope a qualquer progresso sistemtico de pensamento nela contido.

    No que se refere ao problema da desunio na igreja, a experincia do sofrimento, e os

    vrios adversrios, Paulo compe uma matriz interpretativa da teologia e uma linha de

    exortaes ticas na carta. Quando esta matriz dos problemas em Filipos posta juntamente com

    os relatrios que o apstolo d de sua prpria situao na priso, e somado ao agradecimento

    pela ajuda financeira dos filipenses, comporia, de forma conjunta tudo isso, o quadro completo

    da criao da epstola aos filipenses.

    3. Paulo e o seu estilo no mundo greco-romano no sculo I d.C.

    A carta aos Filipenses demonstra uma influncia muito clara dos pensamentos esticos,

    Paulo recomenda comunidade, que deve dar testemunho diante do mundo (cf. 2,15-16), uma

    srie de virtudes inconfundivelmente gregas (esticas) 53.

    Gabar-se ou louvar-se amplo nas epstolas de Paulo e conhecida no Antigo

    Testamento e na literatura antiga. Trechos autobiogrficos na escritura do apstolo carregam

    indiretamente e so relacionadoscom o tema deautoelogio. Duas vezes em 1Cor 1,31 e 2Cor

    10,17 o apstolo faz referncia a Jr 9,22-23. A vanglria que sempre repreendida na escritura

    encontra apoio nesse trecho de Jeremias, mas aquele que queria gloria-se, glorie-se disso: de ter

    a inteligncia e me conhecer54.

    No contexto da moral helenstica e na sua prtica de imitao dos bons exemplos dos

    mestres, a chamada mmesis, que encontramos a influncia em Paulo com respeito a

    autoapresentao55 surgida na carta aos Filipenses. Assim, o princpio greco-romano de que uma

    boa carta deve substituir a presena pessoal um recurso que Paulo utiliza muito bem na carta

    53 BYRNE, Brendan. A carta aos Filipenses. In: R. E. Brown, J. A. Fitzmyer e R. E. Murphy, (eds.), Novo Comentrio Bblico So Jernimo: Novo Testamento e artigos sistemticos. So Paulo: Paulus, 2011, p. 452.

    54 A traduo de Jr 9,23a pela Bblia de Jerusalm. 2 Ed. So Paulo: Paulus, 2003, p. 1383. 55 A grande questo do uso paulino de expresses de autoapresentao se ele quer identificar o

    Evangelho consigo mesmo. Quando ele faz declaraes periautolgicas, autoironia quase uma parte previsvel de

    modo que seja uma forma para evitar desprezvel autoglorificao. Ele se descreve ironicamente em 1Cor 15,8-10,

    e brilhantemente em seu famoso discurso de tolo em 2Cor 11,1-12,10. A ironia est no fato de que a verdade

    est no contrrio.

  • 31

    aos Filipenses. A carta enviada deveria falar por si e levar o destinatrio a presena influente de

    quem a escreve.

    As cartas eram formas bastante utilizadas para fins comunicativos e informacionais.

    Paulo aprendeu e adaptou o estilo greco-romano de documentar uma comunicao via cartas. Por

    isso, pode se concluir que a influncia de modelos de cartas helensticas ao apstolo inegvel.

    Mesmo assim, o seu estilo literrio e forma epistolar no podem serjulgados fixo a um certo

    modelo, pois Paulo demonstra liberdade e seu estilo varia extensivamente. Porm, uma dessas

    cartas pode ser analisada usando o recurso de anlise crtica retrica.

    OBrien afirma que a retrica no tempo de Paulo era comum ao ponto de que no era

    necessrio um treinamento para poder utiliz-lo.56 A situao da acessibilidade do recurso,

    porm, no suprimiu a presena dos manuais que eram disponveis, e ensinavam que um

    ...discurso consistia em quarto elementos: 1) exordium (introduo); 2)

    narratio (exposio dos fatos); 3) probatio (argumento); e 4) peroratio

    (concluso). A introduo e a concluso destinavam-se a influenciar o pblico,

    atraindo seu interesse e sua boa vontade, e concluindo com a recapitulao dos

    argumentos e com um apelo. O contexto do discurso procurava estabelecer a

    circunstncia. Em sua maioria, as cartas crists primitivas eram escritas com um

    proposito basicamente deliberativo.57

    A carta aos Filipenses pode ser analisada em modelo retrico dos manuais greco-romanos

    da sua poca. A utilizao de expresses do recurso de periautologia que o apstolo emprega d

    motivo para explorar o propsito retrico e, as vezes, polmico do contedo.

    3.1 Periautologia na carta aos Filipenses

    A ocasio da carta aos filipenses leva a entender que um dos objetivos principais da carta

    a consolao. Ela escrita para responder a preocupao dos filipenses sobre a priso de Paulo

    e seu prprio sofrimento pelo Evangelho. Nesta carta, cristos encontram consolo e fora por

    entenderem como o seu sofrimento uma participao no sofrimento e vitria de Cristo. O

    paradigma que o prprio Paulo, alegremente identifica se apresenta no recurso de periautologia.

    56 OBRIEN, P. T. Cartas e formas epistolares, p. 194. 57 Op. cit., p. 194.

  • 32

    Paulo usa eu/me mais que cinquenta vezes na carta aos Filipenses e comea a propor-

    se como o paradigma da mimesis logo em 1,12-2758. O fato de ele se apresentar como algum

    que encontrou o seu lugar em Cristo (cf. Fl 1,1.8.13.20-21;3,7-10.12) o prope como um modelo.

    Expresses periautolgicas parecem ser o enfoque integrante em cada fragmento

    importante de Filipenses59. Paulo emprega essa categoria em todos os seus discursos e nas

    situaes retricas. Em algumas situaes retricas, se no se apresentam implicitamente a

    periautologia, o fazem de forma explcita. Alm da sua pessoa, ele menciona pessoas da sua

    equipe missionria (cf. Fl 2,22) e das comunidades (cf. Fl 2,29-30), tambm apresenta uma

    comunidade inteira para exemplificar as atitudes e aes desejadas (cf. Fl 3,17)60. Essas outras

    pessoas, de alguma forma representam o modelo dele, e assim os apresenta como se fossem ele

    mesmo61. Ele no o nico modelo na carta. O hino cristolgico situa o Cristo no meio das

    expresses autobiogrficas.

    3.1.1 Percopes com expresses periautolgicas

    A carta aos Filipenses aborda a experincia sofrida de Paulo e dos cristos. O sofrimento

    um tema crucial ao longo do discurso, ele descreve: a sua experincia em algemas e em risco

    de ser executado (1,12-26); explica que os cristos so chamados a sofrer por Cristo (1,29); ele

    cita o hino que descreve a morte de Cristo na cruz (2,8); aponta-se como sendo derramado como

    libao sobre o sacrifcio e a servio da f dos filipenses (2,17); relata como Epafrodito sofreu no

    curso de seu servio em nome dos filipenses (2,27-30); registra sua perda de todas as coisas para

    ganhar a Cristo (3,8); expressa seu desejo de compartilhar os sofrimentos de Cristo (3,10) e

    afirma saber o que passar necessidade (4,12). Contudo, deve-se notar um aspecto importante,

    ainda que Paulo se refira ao sofrimento, a perspectiva desta carta enfatiza e expressa,

    retoricamente, o alegre encorajamento ao qual a comunidade chamada.

    58 B. Fiore cita Dodd, Pauls Paradigmatic I, [...] que afirma que a proposta que Paulo faz de si mesmo como modelo vai muito alm das passagens especficas em que ele urge a imitao e inclui as mltiplas referncias a ele, s suas atitudes e experincias. Cf. FIORE, Benjamin. Paul, a exemplificao e a imitao, p. 171.

    59 B. Fiore explica que somente aps as suas notas autobiogrficas que destacam sua mudana de foco desde a sua origem Judaica e descrevem como ele participa do sofrimento de Cristo na esperana de participar da sua ressurreio que Paulo exorta seus ouvintes a imit-lo. Cf. Op. cit., p. 172.

    60 FIORE, Benjamin. Paulo, a exemplificao e a imitao, p. 211. 61 Op. cit., p. 213.

  • 33

    3.1.2 O anncio do verdadeiro Evangelho

    Sampley argumenta que existe certa proximidade entre a epstola aos Filipenses, aos

    Glatas e a Segunda aos Corntios62. As trs so pessoais na apresentao do pensamento mais

    ntimo do apstolo sobre o Evangelho. E acrescenta Comblin:

    Oobjeto dessas epstolas o Evangelho, isto , o que constitui a autenticidade

    do Evangelho, como identificar o verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo e como

    distingui-lo dos falsos Evangelhos, ensinados pelos falsos apstolos. Ora, Paulo

    apresenta-se aos seus interlocutores e s Igrejas como sendo ele prprio o

    portador do verdadeiro Evangelho. Ele mostra na sua carreira apostlica, na sua

    trajetria pessoal, o critrio do Evangelho autntico63.

    Para Paulo, o verdadeiro Evangelho o caminho da cruz e ele o escolheu e est vivendo

    na prpria carne esse caminho. O que o torna to vivo e profundo a sua encarnao na histria

    pessoal do apstolo Paulo, que se acha to identificado com o Evangelho de Jesus Cristo que se

    considera portador dos critrios de autenticidade do mesmo. No por causa dele, Paulo, o

    indivduo particular, mas porque ele se identifica com o caminho da pregao, da perseguio, da

    morte e da cruz de Cristo. Deste modo o Evangelho da cruz se torna presente e visvel na misso

    do apstolo64.

    Paulo ao escrever essas cartas se apresenta eminentemente como conhecedor do

    verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. E para defender o Evangelho ele se autodenomina

    - servo - de Cristo, eleito para defender o Evangelho (cf. Fl 1,1; 1,13; 1,16; 3,12).

    O sofrimento da perseguio um dos elementos que sublinha a autenticidade daquele

    que prega o verdadeiro Evangelho.Paulo oferece argumentos fortes referindo-se a sua pessoa ao

    seu pensamento e ao que ele acredita. Apartir do vnculo seguido pelo sofrimento por Cristo (cf.

    Fl 2,8-9), o sofrimento dos cristos aponta vitria final realizada no mesmo Cristo, que

    transformar nossos corpos humilhados, tornando-os semelhantes ao seu corpo glorioso (cf. Fl

    3,21). At no caminho da morte (cf. Fl 1,22), Paulo se apresenta com uma tranquilidade de

    algum que tem o poder de escolha.

    62 FIORE, Benjamin. Paulo, a exemplificao e a imitao, p. 216. 63 COMBLIN, Jos. Epistola aos Filipenses, p. 7. 64 Cf. COMBLIN, Jos. Epistola aos Filipenses, p. 7.

  • 34

    Paulo faz e submete o seu prprio interesse pessoal para mostrar mais amplamente o

    horizonte do Evangelho, ele ignora as suas obras anteriores como um meio para estabelecer a sua

    autoridade dentro da comunidade e se apresenta como subjugando seus prprios desejos para o

    bem da comunidade. Paulo apresenta essa caracterstica, discutindo sua escolha entre a vida e a

    morte. Embora, para ele, morrer e estar com Cristo a melhor opo, essa no o fundamento

    adequado para a sua deciso. As necessidades dos filipenses e dos outros tornam imperioso a sua

    escolha para vida 65. O recurso de autodoao reflete fortemente a categoria de periautologia.

    No exemplo supremo de autoesvaziamento de Cristo (cf. Fl 2,1-11), Paulo demonstra

    nesse trecho qual o verdadeiro Evangelho. Ele apresenta Cristo como o modelo da humildade,

    aquele que serviu at o fim: o Evangelho da cruz.

    Paulo um tipo para a comunidade porque eles, como ele, esto todos em

    Cristo. O autoesvaziamento pode bem ser uma atitude que liga Jesus como

    modelo (2,5) a Paulo, Timteo, Epafrodito e os Filipenses como imitadores.

    Nessa carta, Paulo ressalta a humildade, a qual d a prioridade aos outros e ao

    bem deles como modo de conformar-se imagem de Cristo. Assim Paulo espera

    que os filipenses vo prosseguir vigorosamente e com determinao semelhante

    sua para se acharem perfeitamente em Cristo. A meta escatolgica para Paulo

    e os filipenses est ainda alm dele (3,12 e deles), quanto Jesus j goza da glria

    celeste (2,11). Os adversrios vem a cruz e o sofrimento como uma maldio,

    talvez devido a uma atitude indicativa de triunfalismo ou a uma escatologia

    exagerada.66

    Paulo se apresenta como um que derramado em libao (cf. Fl 2,12-18). O

    compromisso de Paulo para ministrar aos filipenses foi sacrificial. Em suma, Paulo reconhece de

    forma realista que suas fadigas apostlicas e sofrimento poderia levar ao martrio, mas ele estava

    mais do que disposto a se gastar e ser gasto por causa de seus convertidos. As opinies que Paulo

    tem em mente respeito ao seu prprio trabalho sacrificial pode ser defendida, apontando para a

    nfase em um ministrio tal, neste contexto, e ao fato de que em Rm 15,16, o apstolo refere-se a

    si mesmo como ministro de Jesus Cristo e

    administrando sacrifcio sagrado.

    65 MURPHY OConnor, Jerome. Paulo: biografia crtica, p. 229. 66 FIORE, Benjamin. Paulo, a exemplificao e a imitao, p. 214.

  • 35

    Ao citar o exemplo de Timteo, em Fl 2,19-24, Paulo descreve o carter e valor de um

    dos seus colaboradores no ministrio. Paulo oferece comentrios muito positivos respeito dele,

    e parece compar-lo consigo mesmo. Paulo expressa duas vezes (cf. Fl 1,19.23) que deseja

    envi-lo em breve. O substantivo usado em grego que significa carter comprovado, se

    refere qualidade de ter permanecido fiel atravs de circunstncias difceis.67

    O exemplo de Epafrodito, citado em Fl 2,25-30, quem arrisca sua vida, compreendido

    como um argumento que refora o objetivo teolgico de Paulo. Epafrodito como Timteo foi

    igualmente empenhado em viver o exemplo altrusta, sacrificial diante dos outros. Portanto,

    Timteo e Epafrodito juntos fornecem os exemplos de auto-apresentao para o bem de todos 68.

    Paulo oferece exemplo pessoal contra os adversrios69.Em sua carta aos Filipenses, Paulo

    revela que est consciente dos adversrios da igreja que ameaam e procuram destruir a f dos

    cristos. A exortao do apstolo aos fiis a ficarem firmes no nico Esprito sem medo de

    qualquer maneira por aqueles que se opem a ele (1,27-28), revela que ele reconhece que esses

    filhos de Deus vivem no meio de uma

    gerao deformada e distorcida (2,15). A sua advertncia igreja forte: ,

    , Cuidado com os ces, cuidado com esses

    malfeitores, cuidado com mutiladores da carne (3,2) 70.

    Na carta pode-se detectar uma forte repreenso contra os inimigos da cruz em contraste

    dos cidados do cu (cf. Fl 3,17-4,1). O Apstolo escreve com lgrimas sobre os inimigos da

    cruz: o destino deles a perdio, o seu Deus o ventre, e sua glria para confuso deles.

    Sua mente est definitivamente nas coisas terrenas (3,18-19). Tambm descreve oposio a si

    mesmo em Fl 1,15-17 aonde destaca que alguns pregam a Cristo por ambio egosta, sem

    67 Timteo uma das mais frequentes personalidades ao lado de Paulo, de acordo com Atos, ele era de Listra, na sia Menor escolhido por Paulo como um companheiro de misso, circuncidado por Paulo quando seu status de incircunciso estava causando problemas (cf. At 16,1-3).

    68 Cf. FIORE, Benjamin. Paulo, a exemplificao e a imitao, p. 213. 69 A identificao dos oponentes referidos em Filipenses objeto de uma vasta pesquisa. Atualmente

    pesquisas propem pelo menos dezoito identidades diferentes para opositores. Alguns dos nomes rotulados so: cristos judeus, no cristos judeus, cristos gentios, no cristos gentios, judeus gnsticos, judeus helnicos missionrios, judeus convertidos, gentios convertidos ao judaismo, autoridades Romana. Cf BARNETT, P. W.

    Adversrios de Paulo. In: GERALD F. Hawthorne e RALPH P. Martin (orgs.). DPC. 2 Ed. So Paulo: Loyola, 2008, p. 34-44.

    70 A traduo nossa do grego.

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    sinceridade, pensando que eles podem criar problemas para o apstolo enquanto ele estiver em

    algemas.

    Em todo estudo da suaautoapresentao, o exemplo pessoal na sua prpria situao (cf. Fl

    1,12-26) d o mais forte testemunho do que Paulo se tornou. Nessa percope, Paulo expe aos

    seus destinatrios em Filipos algumas especficas circunstncias que ele teve a oportunidade de

    testemunhar de primeira mo, a sua estadia na priso. Ao compartilhar essas histrias Paulo

    espera encorajar os coraes dos filipenses. Ele no quer que o fato dele estar na priso cause

    dvida na mente dos filipenses a respeito de como isto est sendo positivo no avano do

    Evangelho.

    3.2 Dimenso retrica das expresses periautolgicas em Filipenses

    Paulo apresenta muitos feitos aos filipenses, a fim de demonstrar o modelo que ele em Fl

    3,17 chama a comunidade a imitar. Na base do recurso da periautologia est o apelo a imitao.

    O apstolo faz uso do termo imitar juntamente com- assim demonstrando que ele

    no o nico modelo na carta e assim se associa s pessoas da mesma opinio71 e da mesma

    atitude.

    Somente aps suas notas autobiogrficas [...] que Paulo exorta seus ouvintes a

    imit-lo (3,17)72. A renncia de Paulo s prerrogativas ecoando a renncia de

    Cristo (2,6-8) e sua entrega total ao poder de Deus, oferecido mediante o

    Evangelho est no corao daquilo que deve ser imitado.73

    Paulo afirma que ele um de Cristo, , posto (nomeado) por

    Deus para defender o Evangelho, e escolhido por Cristo (cf. 1,1.13.16; 3,12). Alm disso, ele

    apresenta-se como protegido de vergonha por Cristo e entregue na salvao por Cristo (cf. Fl

    1,18-19; 1,20). Em Fl 4,11-12, Paulo se gaba de que ele (autossuficiente), e, alm

    71 FIORE, Benjamin. Paulo, a exemplificao e a imitao, p. 213. 72 Aqui B. Fiore cita Stanley, Imitation in Pauls letters," p. 141, e Reinhartz, Pauline Exhortation, p.

    400-401, que analisam que o sintgma adotemos essa atitude, refere-se ao empenho de Paulo em busca da maturidade (Fl 3,15), desapego (3,8) e esperana na ressurreio (3,10-11), e tambm uma referncia a 2,5 tende em vs a mesma atitude e ao hino cristolgico. A defesa de sua autoridade no parece ser um problema para Paulo nessa carta, ao contrrio do que diz Michaelis que no a autoridade de Paulo, mas aspectos da sua atitude e conduta que ele quer que os filipenses imitem. Cf. MICHAELIS, Peter OBrien. The Epistle to the Philippians; A commentary on the Greek Text. Grand Rapids: Eerdmans, 1991, p. 446.

    73 FIORE, Benjamin. Paulo, a exemplificao e a imitao, p. 213.

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    disso, repetiu periautologia em 4,18-19 na afirmao que Deus ir retribuir o donativo dos

    filipenses em seu nome.

    Torna-se claro que na carta aos Filipenses a periautologia serve como um modelo para o

    tipo de comportamento que ele espera que a comunidade modele: perseverante em realizar aes

    que testemunham o verdadeiro Evangelho apesar de dificuldades de perseguio, pondo de lado

    as prprias conquistas e desejos pessoais para o bem da comunidade.

    Pode-se argumentar que Paulo discute, com intenes persuasivas, para um propsito

    exortativo ainda maior. Percorre em toda carta a expresso regozijo, felicidade frente ao

    sofrimento. O verbo regozijar- aparece constantemente em Filipenses: 1,18 (2x);

    1,17.18.28; 3,1; 4,4(2x).10. Tambm o substantivo recorrente: Fl 1,4.25; 2,2.29; 4,1. O

    conceito de alegria pe no segundo lugar o fato de sofrimento na carta. O tom confiante e alegre

    em expresses periautolgicas exorta imitao. A atitude autoconfiante convida seus leitores a

    acolherem, com graa, tudo, inclusive a possibilidade de sofrer por causa de Jesus (cf. Fl 1,29).74

    A retrica da ironia na carta aparece no fato de que a tendncia judaizante dos opositores

    poderia explicar a defesa do sofrimento na carta. O Antigo Testamento fornecia muitos recursos

    para interpretarem as aflies de Paulo, como sinais de que ele foi amaldioado por Deus (Gn 3;

    Sl 32), da parte daqueles que no seriam inimigos de Cristo, mas inimigos da cruz (Fl 3,18).

    74 GUEDES, Jos Otavio Oliveira. A gnese do discpulo: uma relao semntica e teolgica de Paulo e Joo a partir do estudo de Filipenses 3,1-16 e Joo 15,1-8. So Paulo: Paulinas, 2015, p. 391.

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    CAPTULO II

    ESTUDO EXEGTICO DO RECURSO PERIAUTOLOGIAEM FL 1,12-26

    Introduo Neste captulo, analisa-se exegeticamente a percope de Fl 1,12-26, considerada central

    na narrativa como texto de autoapresentao na qual Paulo expe aos seus destinatrios a sua

    situao pessoal e os seus efeitos dele e na vida dos filipenses.

    O captulo apresenta a crtica literria que considera o texto a partir de suas fontes

    literrias e diversos manuscritos. Esse passo visa ter um contato mais preciso com o texto para

    detectar e, na medida do possvel, definir alguns detalhes da sua prpria linguagem, bem como

    suas caractersticas e funes estruturais com o objetivo de aproximao ao texto e compreender

    as suas terminologias especificas. O estudo demonstrar, nesse captulo, como a anlise sinttica

    pode revelar as riquezas das articulaes que formam o texto da percope e em seguida, como a

    anlise semntica permitem a conhecer com profundidade o sentido dos termos, expresses e

    oraes que a compem.

    1. Anlise literrio-estrutural

    1.1 Questes de crtica textual

    A percope Fl 1,12-26 apresenta um nmero considervel de problemas de crtica textual

    e o estudo segundo 27 edio do aparato crtico, do Nestle-Aland, Novum Testamentum

    Graece75, permite a identificao e apresentao dos principais.

    No v. 14: encontra-se um problema com trs lies:

    Lio 1: ;

    Lio 2: ;

    Lio 3: .

    Primeira lio apresenta, nesse problema a frase genitiva - (de Deus) que

    aparece includa em alguns manuscritos gregos mais antigos76. Embora as evidncias para a

    75 Bblia: Novum Testamentum Graece. 27. Ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2006.

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    incluso de sejam muito fortes, o fato de que as palavras so encontradas em lugares

    diferentes nos manuscritos que as testemunham i