Notas sobre o conceito de logos e a origem da Metafísica · semântica do termo logos [λόγος]...

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Notas sobre o conceito de logos e a origem da Metafísica Prof. Dr. Jadir Antunes Dep. de Filosofia da Unioeste PR Agosto de 2017 Material didático da disciplina de Filosofia Política Moderna II Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unioeste Favor não reproduzi-lo, divulgá-lo ou citá-lo Escutando não a mim, mas ao λόγου, é sábio homologar: tudo é um [ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναί]. Por isso, é preciso seguir o-que-é-comum [ξυνῷ]. Mas, sendo o λόγου o-que-é- comum [ξυνοῦ], vivem os homens como se tivessem uma inteligência particular [ἰδίαν... φρόνησιν]. [Heráclito de Éfeso. Sobre a Natureza. Fragmentos 50 e 02] 1 . Introdução Nosso artigo pretende, a partir da definição fornecida por dois importantes dicionários da língua grega antiga, o Dictionnaire étymologique de la langue grecque, de Pierre Chantraine e de A Greek-English Lexicon, de Henry George Liddell & Robert Scott, mostrar a riqueza e a pluralidade semântica do termo logos [λόγος] presentes na cultura popular grega para em seguida comparar com o destino dado ao termo pelo nascimento da filosofia. No final do artigo, ainda, procuramos mostrar as possíveis causas para o surgimento da metafísica e da redução do termo logos ao seu sentido abstrato e moderno de ratio e cognitio. 1. Etimologia do termo λόγος Λόγος é uma palavra de origem grega derivada do verbo légo [λέγω] ou légein [λέγειν] que possui vários significados próximos. Entre os mais significativos sentidos de λέγω e λέγειν, geralmente empregados pela tradição 1 HERÁCLITO: Héraclite d’Ephèse. Edição online: http://philoctetes.free.fr/heraclite.pdf .

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  • Notas sobre o conceito de logos e

    a origem da Metafsica

    Prof. Dr. Jadir Antunes Dep. de Filosofia da Unioeste PR

    Agosto de 2017

    Material didtico da disciplina de Filosofia Poltica Moderna II Programa de Ps-graduao em Filosofia da Unioeste

    Favor no reproduzi-lo, divulg-lo ou cit-lo

    Escutando no a mim, mas ao , sbio homologar: tudo

    um [ ]. Por isso, preciso

    seguir o-que--comum []. Mas, sendo o o-que--

    comum [], vivem os homens como se tivessem uma

    inteligncia particular [... ]. [Herclito de feso.

    Sobre a Natureza. Fragmentos 50 e 02]1.

    Introduo

    Nosso artigo pretende, a partir da definio fornecida por dois

    importantes dicionrios da lngua grega antiga, o Dictionnaire tymologique de

    la langue grecque, de Pierre Chantraine e de A Greek-English Lexicon, de

    Henry George Liddell & Robert Scott, mostrar a riqueza e a pluralidade

    semntica do termo logos [] presentes na cultura popular grega para em

    seguida comparar com o destino dado ao termo pelo nascimento da filosofia.

    No final do artigo, ainda, procuramos mostrar as possveis causas para o

    surgimento da metafsica e da reduo do termo logos ao seu sentido abstrato

    e moderno de ratio e cognitio.

    1. Etimologia do termo

    uma palavra de origem grega derivada do verbo lgo

    [] ou lgein [] que possui vrios significados prximos. Entre os mais

    significativos sentidos de e , geralmente empregados pela tradio

    1HERCLITO: Hraclite dEphse. Edio online: http://philoctetes.free.fr/heraclite.pdf.

    http://philoctetes.free.fr/heraclite.pdf

  • filosfica, podemos citar: ao de colher e recolher; ao de reunir e ordenar;

    ao de contar e enumerar; ao de estender e entregar. e podem

    significar tambm ao de pensar, raciocinar, pronunciar e dizer. pode

    significar, ainda, a ao de conter e sustentar. O que recolhe, organiza,

    ordena, sistematiza e estende num conjunto, num universal, tambm, assim,

    o que contm e sustenta o conjunto daquilo que reunido e

    sistematizado.

    Segundo Liddell-Scott, etimologicamente o verbo tem sua

    origem em dois termos distintos: [gather = agarrar, reunir, juntar, colher,

    recolher, escolher, apanhar e congregar] e [lay = pr, estender, pousar,

    deitar e entregar]2. Para Chantraine3, possui o sentido original de juntar,

    recolher e escolher (rassembler, cueillir e choisir). , por isso,

    originariamente, ao de agarrar, reunir, colher, recolher e, ao mesmo tempo,

    estender, deitar, pousar e entregar.

    O verbo tambm pode significar a ao de contar, narrar,

    numerar, enumerar, calcular, pensar, dizer, discorrer, discursar e expor em

    palavras, aes que remetem ao significado de enquanto esprito e

    linguagem. Na linguagem, o aquela ao de organizar e dar forma s

    palavras recolhidas dentro de um discurso que se mostra ordenadamente

    diante daquele que diz. assume ainda o sentido de sentido orientador,

    significado, orientao. O que no possui no possui sentido, significado

    e orientao, sendo aquilo que vago, vazio, indeterminado e desorientado.

    De derivam palavras como , conversao,

    linguagem ou discusso; , dotado para a discusso; , arte

    do dilogo e da conversao; , refletir ou considerar; ,

    conversar, dialogar; , em Atenas significava lista de cidados inscritos

    para o servio militar; , reunio de pessoas, assembleia; ,

    anlogo; , palavra, estilo; , discurso; , o irracional, ausncia

    ou privao de . Traduzidos para o latim, , e podem

    significar ligare, colligare, colre, collgo, collgi, collectum, lgo, lgi e lectum.

    2 Henry George Liddell & Robert Scott: A Greek-English Lexicon.

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057%3Aentry%3Dle%2Fgw2 3 Pierre Chantraine: Dictionnaire tymologique de la langue grecque. Tomo III. Paris: ditions

    Klincksieck, 1974, pp. 625-626.

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057%3Aentry%3Dle%2Fgw2http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0057%3Aentry%3Dle%2Fgw2

  • , por isso, significa, originariamente, a ao de colher,

    recolher, coletar, ligar, coligar, reunir e ordenar o abstrato, o disperso e o

    indeterminado dentro de um nico sistema concreto, belo, harmnico e perfeito.

    O , portanto, aquilo que recolhe, rene, governa, ordena, regra, legisla

    e, assim, universaliza e sistematiza, seja todos os entes seja todas as palavras,

    dentro de um mesmo cosmos e de um mesmo mundo.

    2. Sentidos do termo

    em seu sentido originrio, no pode ser compreendido

    como ratio ou cognitio, seja como proporo entre dois nmeros, como ordem

    do discurso ou como faculdade humana. Ainda que o termo possa ser

    empregado com um sentido tcnico mais preciso, como ratio, por exemplo, e

    menos amplo para a filosofia, para a cultura popular grega em geral, no

    uma ao restrita exclusivamente esfera da linguagem e da matemtica,

    como se poderia supor, uma ao que se estende a todos os campos

    da atividade humana, sejam elas intelectuais ou manuais. Assim, por exemplo,

    tambm o pedreiro, o marceneiro, o construtor, e todos os demais artesos,

    praticam a ao de , na medida em que recolhem, renem, contam,

    enumeram, estendem e pousam o conjunto do material recolhido do seio da

    natureza, sobre uma ordem mtrica, regular, proporcional e humana antes no

    existente. Como ocorre em Homero e Pndaro, onde [aimasis

    lgon] pode ser traduzido como coletar pedras para a construo de muralhas

    [picking out stones for building walls]4.

    Na cultura grega antiga, pode ser empregado como sufixo

    indicador da atividade [como ] ou como sufixo indicador daquele que

    exerce determinada atividade [como ] nos mais variados domnios da

    realidade, desde as mais elevadas at as consideradas mais baixas e indignas.

    Como exemplos deste ltimo emprego podemos citar palavras tais como: 1.

    [o astrnomo ou astrlogo]; 2. [o coletor de tributos];

    3. [o coletor de impostos e pedgios - Aristophanes, Frogs Ar.

    Ras. 363]; 4. [o recolhedor de vegetais]; 5. [o

    recolhedor de resduos]; 6. [o investigador da physis - Arist.

    Metaph. 986b14, 990a3]; 7. [o recolhedor de frutas]; 8.

    [o coletor de pedras para a construo]; 9. [o investigador dos 4 Henry George Liddell & Robert Scott: An Intermediate Greek-English Lexicon:

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0058%3Aentry%3Dle%2Fgw2

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0058%3Aentry%3Dle%2Fgw2http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.04.0058%3Aentry%3Dle%2Fgw2

  • meteoros - Arist. Mete. 354a29: Pl. Cra. 401b]; 10. [o marujo

    coletor de peixes do mar]; 11. [o investigador das palavras]; 12.

    [o coletor de trigo para a cidade]; 13. [o poeta investigador

    e produtor de discursos sobre os deuses, como Hesodo e Orpheu - Arist.

    Metaph. 1000a9; Arist. Metaph. 1071b27]; 14. [o coletor de

    dinheiro]; 15. [o coletor de forragem]; 16. [o coletor de

    dinheiro]5.

    Alm destes, a cidade grega antiga contava ainda entre seus

    cidados com o mytholgo, o poeta criador dos mitos, com o dikaiolgos [o

    advogado guardio e defensor da justia], o physilogos [o investigador do

    da natureza], o genealgos [o investigador da gnese], o tholgos [o

    pintor dos caracteres e costumes humanos], o ionikolgos [o recitador de

    versos poticos], o mimolgos [o recitador da mmesis humana] e o

    anthropolgos [o conhecedor do homem].

    Na cultura grega antiga, litholgos [] aquele contrutor

    [; ], conforme referido por Plato nas Leis [858b] e por

    Thucdides na Gerra do Peloponeso [6.44]6, aquele pedreiro que constri

    uma casa no com qualquer pedra recolhida ao acaso, no com qualquer

    pedra indeterminada, mas com aquela pedra determinada, selecionada e

    recolhida reta e justamente do universo indeterminado das pedras para caber

    exatamente em seu devido e correto lugar e na ordem bela e harmnica da

    construo.

    Litholgos o lithotmos [], aquele cortador de pedras

    que sabe como serrar, como partir, como extrair do universo abstrato e

    indeterminado de uma rocha, a melhor e determinada pedra para a construo.

    O cortador de pedras aquele que, ento, da escurido da caverna, do breu da

    indeterminao, capaz de ver, escolher, recolher e trazer para a presena da

    determinao, para a presena do dia e da luz, a melhor parte do mrmore

    para a construo.

    O do arteso trabalhador , assim, negao e atuao,

    ao de arrancar a coisa do breu da abstrao e da indeterminao e traz-la

    5 Greek Dictionary Headword Search Results:

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/resolveform?lang=greek&type=end&page=1&lookup=logos 6 [one who picks out stones for building: hence, one who builds with stones picked

    out to fit their places, not squared]. Plato, Laws [Pl.Lg.858b; masons and joiners, [Thucydides, The Peloponnesian War Th.6.44, cf. 7.43, X.HG4.4.18].

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/resolveform?lang=greek&type=end&page=1&lookup=logos

  • para a luz da existncia, da concretude e da determinao. Este

    produtor, assim, como o da parteira socrtica, tem a fora de arrancar a

    coisa do interior e traz-la para a presena do exterior e da vida. Este

    poitico e construtor, assim, como o especulativo do filsofo, tem a fora

    de arrancar a coisa da indeterminao do esquecimento e traz-la para a

    presena da determinao e do conceito.

    O originrio grego no investiga, portanto, somente as

    coisas divinas e sobre-humanas, como fazem o thelogos, o meteorolgos, o

    astrlogos e o physilogos, mas, tambm, para no dizer sobretudo, as coisas

    no divinas e humanas como as coisas da natureza que esto a ao dispor do

    homem, como as rochas, as frutas e os vegetais, como fazem os lithologoi [os

    pedreiros coletores de pedras para a construo das casas e das muralhas da

    cidade], o karplogos [o coletor de frutas para uso humano] e o sitlogos [o

    coletor e guardio do trigo da despensa pblica]. O originrio grego se

    dedica, ainda, nas figuras do dasmolgos, do eikostolgos, do chalkolgos e do

    chrisolgos, a investigar, contar, coletar, recolher, entregar e guardar esta coisa

    baixa e impura chamada dinheiro, os tributos pagos pelos cidados. O

    abstrato da lei, que cria o tributo apenas em palavras, se mostra aqui em

    perfeita unidade e harmonia com o concreto do coletor e do contador,

    que o recolhem, contam e guardam nos cofres do tesouro da cidade.

    O originrio, portanto, no somente ao de dizer, e de

    dizer com ordem e sistematicidade, mas , sobretudo, ao de fazer e de

    construir, , sobretudo, ao de determinar, de conceber e de trazer vida,

    com ordem e sistematicidade, tudo aquilo que existe ainda somente na forma

    da dynamis, da indeterminao e do vir-a-ser. O originrio, seja o do

    intelecto, seja o das mos humanas, possui, assim, a capacidade

    extraordinria, capacidade divina para a cultura grega, de recolher e reunir o

    disperso dentro de uma ordem universal justa e proporcional e de um sentido

    belo, harmnico e inteligvel.

    O discurso e a prtica sustentados pelo em sua origem,

    assim como a prtica do arteso, recolhem, renem, unificam, ordenam e do

    um sentido comum a toda a multido dos entes da realidade, sejam estes os

    mais diversos e plurais dos entes: matemticos, divinos, sensveis ou

    inteligveis. O originrio, deste modo, a fora unificadora, ordenadora e

    inteligvel de toda a realidade das palavras e dos entes. Sendo o a arkh

  • de todas as palavras e de todos os entes, o tambm o princpio

    fundador, governador e ordenador de todos os discursos sobre os entes. As

    palavras e os entes so o que so pela fora e originalidade, pela

    primordialidade e precedncia ontolgica do em relao a todos os

    discursos e a todos os entes. Tudo o que s , portanto, no e atravs

    do . Fora do originrio no poderia haver, por isso, nenhuma

    existncia real e efetiva. Fora do a coisa viveria como coisa precria,

    indeterminada e abstrata. O , assim, em sua origem, a determinao

    viva e concreta de todas as coisas pensadas, ditas ou feitas.

    O originrio grego no est no particular e na abstrao,

    porque o no muitos, o nico, o a unidade viva e

    pulsante de todas as partes constituintes da realidade dentro de um nico e

    mesmo sistema concreto, belo, harmnico e ordenado. Saber conjugar estes

    muitos fatiados, desgarrados e esparramados pela realidade num nico

    e mesmo discurso, numa nica e mesma viso, numa nica e mesma prtica,

    saber homologar e dizer como Herclito que tudo um no universo do

    originrio, seja ele pensamento, ser ou linguagem.

    3. O empobrecimento do termo pela letra dos filsofos

    Ao longo do tempo, especialmente com o surgimento da filosofia

    clssica, porm, a riqueza semntica do termo ser lentamente reduzida

    a um significado abstrato de ratio e cognitio, pensamento, discurso, raciocnio,

    razo e linguagem. O deixar de representar assim, a plenitude dos

    sentidos prticos, poiticos e noticos do homem para representar apenas o

    significado abstrato de palavra, raciocnio ou razo.

    Segundo Michel Fattal7, Herclito fora quem, pela primeira vez,

    empregou o termo na histria da filosofia ocidental. Antes de significar

    razo e raciocnio cientfico, porm, para Herclito contm uma

    pluralidade de significaes, tais como inteligncia, palavra, discurso, fogo,

    guerra, harmonia, relao, lei sabedoria e deus que conservam o sentido

    originrio da palavra.

    7 Michel Fattal: Logos, pense et verit dans la philosophie grecque. Paris: LHarmattan, 2001,

    p. 75.

  • O heracliteano operaria em dois nveis distintos e

    complementares, diz Fattal8, como -cosmos e -inteligncia. Deste

    modo, Herclito teria sido o primeiro, para no dizer o nico, ao lado de Hegel,

    a transportar para a filosofia o significado originrio de , de unitrio

    que abarca em seu interior as duas dimenses da realidade: a csmica e a

    inteligvel; a ontolgica e a lgica; a do fazer e a do dizer; a do ser e a do

    pensar. Como diz Fattal9, para Herclito logos e cosmos so indissociveis. O

    -cosmos o onde tudo um, o da unidade e do arranjo

    harmonioso do mundo e de todas as coisas em comum. O -inteligncia

    o do universal e do que comum, o que faz abstrao do

    particular e do individual para deixar passar atravs dele o universal e a

    unidade de todas as coisas, diz Fattal10. O -inteligncia [ ;

    ] o comum [ ], o que se ope

    inteligncia particular [ ] do homem comum, deste homem cego

    e surdo que no v nem escuta o que comum.

    Neste mesmo sentido de compreender o heracliteano como

    unidade de pensamento e realidade, de abstrato e concreto, segue tambm

    Philip Wheelwright11, para quem a unidade indivisvel entre concreto e abstrato

    especialmente evidente em Herclito na ideia e na imagem central do fogo.

    O fogo aludido por Herclito, diz Wheelwright, no o fogo fsico, mas o fogo

    que simboliza a unidade do que inteligncia com o que o

    cosmos. Este fogo, diz ainda Wheelwright, o fogo dos romnticos alemes,

    como Goethe, que define o fogo heracliteano como um smbolo genuno, como

    uma instncia particular unida com o universal que, desse modo, desempenha

    um papel nico e revelador, de um modo que nenhum outro ente particular

    poderia revelar, da natureza universal desse algo mais geral e comum a todos

    os entes e inteligncias do mundo que o 12.

    Com Pitgoras, clebre filsofo dos nmeros que mais tarde

    influenciar toda uma ampla gerao de filsofos da cincia, ainda

    aparecer com o significado de conjunto de todos os sentidos e atividades do

    homem, de recolher, juntar e ordenar, porm, j aparecer em seu reduzido e

    abstrato sentido matemtico de ratio e cognitio, de razo, raciocnio ou

    8 Fattal, p. 77.

    9 Fattal, p. 79.

    10 Fattal, p. 83.

    11 Philip Wheelwright: Herclitus: New Jersey: Princeton University Press, 1959, p. 14.

    12 Wheelwright, pp. 14-15.

  • proporo entre dois nmeros. Como o nmero seria a arkh do universo, o

    nmero corresponderia sua razo, ao seu e quilo que permitiria ao

    conjunto dos entes sua estabilidade e unidade. Sem o nmero e a unidade, o

    universo estaria desprovido de uma arkh, de uma ordem e de uma

    estabilidade que lhe governassem e tornassem possvel sua existncia.

    Como diz Aristteles na Metafsica [985b]13, os pitagricos

    acreditaram que os princpios da matemtica eram os princpios de todos os

    seres e que os nmeros eram, por natureza, anteriores a todas as coisas. Os

    pitagricos acreditavam encontrar a essncia das coisas bem mais nas suas

    relaes numricas do que nos elementos qualitativos e sensveis da natureza,

    como o fogo, a terra, o ar e a gua. Sendo o elemento dos nmeros a essncia

    de todos os seres, os pitagricos abstraam da essncia dos seres, assim,

    todas as suas determinaes qualitativas e sensveis, convertendo-as em

    determinaes externas e sem nenhum valor ontolgico.

    Com os pitagricos, porm, ainda que o nmero em sua

    qualidade abstrata seja visto como a essncia da realidade e do pensamento,

    esta essncia ainda uma essncia visvel ao olhar do homem comum, pois

    uma essncia numrica presente nas prprias relaes entre os seres que

    poderia ser apreendida pelas mais variadas artes prticas e utilitrias,

    especialmente pela arquitetura. Como diz Gilberto Garbi14, comentando a

    matemtica pitagrica: apesar de ser a Matemtica algo ideal e abstrato, sua

    presena no mundo fsico era percebida por toda a parte, nos cus e na Terra.

    O famoso teorema pitagrico de que em qualquer tringulo retngulo o

    quadrado da hipotenusa igual soma do quadrado dos catetos de ampla

    verificao emprica e utilidade prtica. O nmero, assim, para os pitagricos,

    ordenava racionalmente tanto o universo dos cus e o mundo inteligvel do

    pensamento quanto o mundo emprico das mos e do cosmos humano. A

    linguagem abstrata dos nmeros, a linguagem da matemtica, de suas

    equaes, de seus teoremas e de suas frmulas seria, assim, na viso

    pitagrica, a verdadeira linguagem do .

    Com Parmnides, ao contrrio de Pitgoras, o nmero ser

    totalmente excludo da determinao essencial da realidade. A essncia,

    segundo ele, ser algo totalmente qualitativo e indeterminado, no ter 13

    Aristteles: Metafsica. Mxico: Editorial Porra, 1992, p. 14. 14

    Gilberto Geraldo Garbi: A Rainha das Cincias: um passeio histrico pelo maravilhoso mundo da matemtica. So Paulo: Editora Livraria da Fsica, 2009, p. 27.

  • nenhuma relao com o mundo fsico e sensvel nem ordenar este mundo,

    essencialmente desordenado em sua viso, mas somente o mundo inteligvel

    do pensamento e da linguagem gramatical. Com Parmnides, o ser

    excludo definitivamente das atividades manuais para tornar-se propriamente

    razo gramatical abstrata, crtica e negativa, como razo capaz de pensar e

    dizer o ser dentro de determinadas regras ou princpios precisos e a priori, tais

    como o princpio de identidade.

    Com Parmnides e Xenphanes, surge pela primeira vez na

    histria da filosofia a ideia de associar no mais ao conjunto das

    atividades manuais e mentais do homem, mas s ideias de verdade e razo, ao

    -altheia, ao -ratio, ao -noen, ao -noma e ao -

    lgein. Segundo Fattal15, Xenphanes j falava, antes ainda de Parmnides, da

    necessidade de se encontrar um caminho para o verdadeiro do discurso

    e das palavras puras [ ].

    O mtodo de Parmnides consiste em separar, primeiro, o

    das mos do do pensamento e da linguagem. Parmnides desconsidera

    totalmente o saber tcnico e poitico do homem comum, o saber necessrio

    vida, como saber do , para ele, somente o pensamento e a linguagem

    abstrata do ser podem ser considerados como verdadeiras atividades do

    . Uma vez que o separado do trabalho, Parmnides separa,

    ainda, o da doxa, atribuindo a esta o sentido de falso, irracional e

    desordenado. Enquanto o discurso abstrato do filsofo seria o discurso do que

    sempre [ ; ; ], o discurso dos mortais seria o discurso da doxa

    [], e do que no [ ]. O discurso do filsofo seria o nico

    discurso digno de f [ ] e a nica crena verdadeira [

    ], enquanto o discurso da doxa, da doxa dos mortais [ ],

    seria o discurso no fivel e no verdadeiro16.

    Para Parmnides, o nico caminho filosoficamente fivel o

    caminho do ser [], do ser abstrato que no nem este nem aquele ser, o

    ser que no no ser, do ser que o ser. O caminho do no ser [ ], o

    caminho da doxa e da glssa do homem comum, o caminho do totalmente

    impensvel e incognoscvel. O caminho do no ser o da falsidade e das

    15

    Fattal, p. 36. 16

    Le pome de Parmnide. Traduo francesa de Paul Tannery. Disponvel online na verso grego-francs com link de acesso ao site da Perseus Digital Library e do Dicionrio Grego-Ingls de Henry George Liddell & Robert Scott: http://philoctetes.free.fr/uniparmenide.htm.

    http://philoctetes.free.fr/uniparmenide.htm

  • trevas. O caminho do ser, porm, o da verdade e da luz, pois o mesmo

    pensar e ser [ ].

    A fora e a veracidade do poema de Parmnides residem no

    interior do prprio caminho escolhido para encontrar a altheia []: o

    caminho do pensamento e da linguagem racional. Uma vez que Parmnides

    escolhe o pensamento e a linguagem como o lugar natural do e da

    , fica fcil mostrar que a verdade no pode estar entre a doxa e a glssa

    da multido, mas somente na linguagem abstrata da lgica, que fala do ser

    somente enquanto categoria pura e abstrata do pensamento. Como diz Fattal17,

    Parmnides teria sido o iniciador da linguagem, na medida em que teria

    percebido... a importncia do verbo ser na constituio de toda proposio, de

    todo pensamento e, por consequncia, de toda lgica.

    Elegendo, assim, o apenas como pensamento e linguagem,

    tornou-se fcil para Parmnides excluir do toda forma de saber no

    fundamentada na nova ontologia por ele concebida. A concepo lgica de

    Parmnides teria, assim, um valor de verdade superior e insupervel em

    relao ao originrio enquanto saber da vida e do trabalho manual.

    Enquanto em Herclito predominaria a ideia original de

    enquanto sntese, de um -, de um do que comum, em

    Parmnides predominaria a ideia de um crtico e analtico, de um

    , de um -ratio que julga, discrimina, diferencia e separa.

    Em nome deste -ratio abstrato e purgado do sensvel de

    Parmnides, Scrates em sua Repblica imaginava uma cidade organizada e

    dirigida por uma classe elitizada de reis filsofos, onde as mais variadas

    atividades manuais e produtivas da cidade, por ele consideradas como

    carentes de , como atividades da doxa, ficariam submersas na base da

    pirmide de poder, trabalhando e vivendo para alimentar este abstrato

    dos filsofos. A razo abstrata dos filsofos purgaria a cidade de toda fealdade

    e imperfeio oriundas do que no , expulsando dela todos os

    defensores de um mltiplo e variado, como os poetas Homero, Hesodo,

    Simnides e Pndaro e todos os defensores da vida como relao, novidade,

    variao e movimento.

    17

    Fattal, p. 37.

  • Esta separao entre o que sensvel e concreto e o que

    abstrato e inteligvel tem origem em Scrates em sua conhecida Teoria das

    Formas [Repblica: 509d a 511e]18, onde Scrates institui a diviso da

    realidade em dois domnios distintos e separados: o domnio do visvel

    [], e o do inteligvel [], sendo o primeiro, o domnio onde residem

    as coisas sensveis produzidas pela natureza e pela arte humana, e o segundo,

    o domnio abstrato das ideias puras, que existiriam em si mesmas como

    substncias separadas do concreto e do sensvel. Estas substncias, agora

    separadas do concreto e da realidade humana, do cotidiano, do trabalho e dos

    afazeres prticos, s poderiam ser alcanadas pelo pensamento e, como o ser,

    enunciadas pela linguagem abstrata de Parmnides. Como em Parmnides,

    em Scrates se repete a ideia da existncia de um verdadeiro, de um

    abstrato que puro pensamento, e de um falso, que pura

    glssa, phon e doxa.

    Aristteles vai mais longe ainda do que Scrates na concepo de

    um totalmente abstrato e lingustico, ao separar o complexo das

    atividades humanas em categorias separadas e opostas entre si. Com ele, a

    atividade produtiva das mos, a tekn e a poisis, a atividade da maioria dos

    indivduos da cidade, ser excluda da atividade prtica poltica e moral, a

    chamada prxis, e das atividades noticas, as atividades contemplativas da

    alma humana que apreendem o absoluto e os primeiros princpios de todos os

    seres, atividades tidas como excelncias e prprias somente dos senhores.

    Em nome deste purgado e abstrato concebido por

    Parmnides, Aristteles em sua Poltica chegava, assim, at mesmo a negar o

    direito de cidadania a todos aqueles membros da cidade que no tivessem o

    , o enquanto linguagem e discurso, como sua atividade central, tais

    como as mulheres, os artesos e os escravos. Segundo Aristteles, estes

    indivduos podiam ser exmios manejadores do corpo e das mos, podiam

    ainda ser exmios manejadores dos nmeros, mas no da palavra, do discurso,

    do dilogo, da concrdia e do entendimento.

    Para justificar seu preconceito em relao s camadas populares

    da cidade e ao em seu sentido originrio, Aristteles diferenciava

    de glssa e phon. seria a atividade propriamente lgica do pensamento 18

    Plato: A Repblica. So Paulo: Perspectiva, 2006, p. 258. Disponvel online na verso grego-ingls no site da Perseus Digital Library: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0167 .

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0167

  • e da linguagem, enquanto phon e glssa seriam vistos meramente como voz

    e como lngua. Os artesos, os escravos e mesmo as mulheres gregas

    possuiriam phon e glssa, mas no . Em nome de um abstrato,

    do que somente palavra, Aristteles negava, assim, como Parmnides,

    haver racionalidade nas mais variadas atividades humanas, na maioria das

    atividades na verdade, nas atividades essenciais vida humana, onde o

    enquanto palavra no se fazia diretamente presente.

    J no mundo romano e a partir da emergncia do cristianismo,

    continuou a ser empregado especialmente, se no exclusivamente, no

    sentido unilateral e subjetivo de palavra e discurso. Nos evangelhos cristos,

    que mais tarde determinaro toda a concepo medieval de ,

    aparece claramente com este significado subjetivo de dizer, de verbo e palavra.

    Especialmente no Evangelho de Joo, sempre compreendido como

    verbo ou palavra. Irmos, no vos escrevo um novo mandamento, mas o

    mandamento antigo, que desde o princpio [] tivestes. O antigo

    mandamento a palavra [] que desde sempre ouvistes: Epstola de Joo

    2.7. O que era desde o princpio [], o que temos ouvido, o que temos

    visto com os nossos prprios olhos, o que contemplamos, o que as nossas

    mos apalparam, com respeito ao Verbo da vida [ ]: Epstola de

    Joo 1.1. No princpio era o Verbo [], e o Verbo [] estava com

    Deus, e o Verbo era Deus [ ]: Evangelho de Joo 1.1.

    Tambm no Livro do Apocalipse, aparece como palavra: Estava vestido

    com um manto tinto de sangue; e o nome pelo qual se chama a Palavra de

    Deus [ ]: Apocalipse 19.13.

    A partir da Modernidade e de volta s mos e letra dos filsofos,

    especialmente daqueles ligados ao nascimento das cincias da fsica e da

    matemtica, o termo voltar a ser visto em seu sentido pitagrico de

    nmero, razo e proporo. Ao sentido pitagrico de juntar-se-, ainda, o

    sentido latino de como faculdade, como cogito, ratio e cognitio. Com este

    sentido pitagrico e romano do termo, ser visto pelos filsofos da

    cincia moderna meramente como a faculdade da razo de raciocinar,

    enumerar e calcular corretamente.

    Mesmo em Hegel, filsofo de profunda inspirao grega e crtico

    da racionalidade cientfica concebida pela modernidade, o enquanto

    Geist ou Esprito ser visto essencialmente como linguagem, como j viam

  • Scrates, Plato, Aristteles e toda a tradio filosfica crist. Ser na

    linguagem, ainda que no na linguagem dos nmeros, do sentimento, da arte e

    da f, mas na linguagem do Esprito, que o se expressar em toda a sua

    verdade, especialmente em sua Cincia da Lgica, a cincia do ser puro e

    abstrato, do ser que totalmente pensamento.

    A Cincia da Lgica de Hegel a apresentao pura e racional do

    enquanto linguagem, do enquanto o conjunto das categorias

    abstratas e puras do pensamento, a cincia emancipada de todo carter

    prtico e utilitrio, a cincia das cincias, a lgica das lgicas e o saber de

    todo saber. A Cincia da Lgica, assim, o estudo do saber puro, das

    essencialidades puras e dos pensamentos puros. A Cincia da Lgica, assim,

    o esprito que pensa sua essncia19, diz Hegel. Deste modo, diz Hegel, a

    lgica se determinou como a cincia do pensar puro, que tem como seu

    princpio o saber puro... o ser sabido como conceito puro em si mesmo e o

    conceito puro sabido como o ser verdadeiro20.

    O conceito puro sabido como o ser verdadeiro porque para a

    lgica, como para toda ontologia desde Parmnides, ser e pensar, realidade e

    pensamento, so o mesmo. Estudando-se o pensamento em suas categorias

    puras e conceituais, estuda-se e se conhece, ao mesmo tempo, a realidade

    que estaria fora do pensamento, pois esta mesma realidade pensamento.

    Nesta relao de coincidncia entre pensamento e realidade e sendo as

    determinaes do pensamento as mesmas determinaes do ser, a Lgica se

    torna uma Ontologia e, por conseguinte, como diz Taylor comentando a Cincia

    da Lgica de Hegel21, descobrindo as relaes necessrias entre os conceitos

    categoriais da lgica transcendental [da lgica que uma ontologia], tambm

    estaremos descobrindo a estrutura necessria da realidade. Por conseguinte,

    diz Taylor a Lgica apresenta uma cadeia de conceitos necessariamente

    conectados que fornecem a estrutura conceitual da realidade22.

    Causas da noo abstrata de

    19

    George W. F. Hegel: Cincia da Lgica. 1. A doutrina do ser. Petrpolis R.J: Editora Vozes, 2016. 20

    Hegel, p. 63. 21

    Charles Taylor: Hegel: Sistema, mtodo e estrutura. So Paulo: Editora Realizaes, 2014, p. 255. 22

    Taylor, p. 259.

  • A separao do enquanto razo, pensamento e linguagem,

    enquanto ao abstrata do intelecto, do enquanto ao de recolher,

    juntar e ordenar manualmente tem origem, inicialmente, na diviso social do

    trabalho fundada na escravido. Com a escravido grega clssica, surge pela

    primeira vez na histria humana uma separao real e verdadeira entre as

    atividades puras e abstratas do intelecto e as atividades das mos operadas

    pelos escravos, artesos e mulheres da cidade. O surgimento de uma classe

    de homens ociosos e liberados das necessidades do trabalho tornou

    sociologicamente possvel a emergncia da metafsica, da lgica e da filosofia

    enquanto cincias puras e abstratas, sem qualquer propsito prtico e utilitrio

    imediato. A atividade manual das mulheres, dos escravos e dos artesos, que

    permaneciam presos s necessidades da natureza e do trabalho, aparecia,

    assim, para esses homens ociosos, diante da sofisticada e complexa

    linguagem categorial da filosofia e da lgica, como pura doxa sem pensamento

    e sem .

    A necessidade dessa base natural desenvolvida e dessa diviso

    social do trabalho para o surgimento de um pensamento de natureza

    especulativa e no utilitria j era compreendida por Aristteles ainda no

    mundo antigo. Como diz ele no Livro I da Metafsica comentando o surgimento

    das cincias no utilitrias, como a Matemtica egpcia e a Filosofia:

    Todas as artes utilitrias j estavam inventadas quando se

    descobriram estas cincias que no se aplicam nem aos prazeres

    nem s necessidades da vida. Nasceram primeiro naqueles

    pontos onde os homens gozavam do cio. As matemticas foram

    inventadas no Egito, porque neste pas se deixava muito tempo

    livre para a casta dos sacerdotes.23

    Hegel, que assim como Aristteles fora um grande historiador da

    filosofia, comenta esta passagem da Metafsica em sua Cincia da Lgica

    confirmando que a necessidade de ocupar-se com os pensamentos puros

    pressupe um longo percurso pelo qual o esprito humano tem que ter passado

    e que a ausncia e a abstrao da carncia, da utilidade, da praticidade e da

    23

    Aristteles: Metafsica, p. 07.

  • necessidade estavam na base do surgimento da lgica como a cincia dos

    objetos na sua abstrao completa24.

    Porm, j em sua juventude de Iena, Hegel compreendia que a

    filosofia como cincia tinha sua origem numa ciso ocorrida no interior do

    . Como diz ele na Diferena entre os sistemas de filosofia de Fichte e

    Schelling [p. 18], a ciso [Entzweiung] e a contraposio [Entgegenstze] entre

    esprito e matria, alma e corpo, f e entendimento, liberdade e necessidade,

    razo e sensibilidade, inteligncia e natureza, subjetividade e objetividade, ser

    e no-ser, conceito e ser, finitude e infinitude, e tantas outras, so as fontes da

    necessidade da filosofia.

    O desenvolvimento infinito da diversidade [unendlichen

    Entwicklung von Mannigfaltigkeit] e da particularidade no interior da unidade

    originria do , a transformao de contraposies relativas em

    contraposies absolutas [absolut Entgegengesetzten], o fixar absoluto da

    ciso por meio do Entendimento [das absolute Fixieren der Entzweiung durch

    den Verstand], o desenvolvimento da anlise e das contraposies do

    Entendimento em detrimento do desenvolvimento da sntese e da Razo e a

    transformao destas contraposies em essncias fixas, imutveis, isoladas e

    autnomas uma da outra esto na base da origem da necessidade da filosofia,

    diz Hegel [pp. 17-24].

    Uma vez que a unidade originria do cindida e suas

    partes complementares so isoladas e contrapostas como coisas estranhas

    umas s outras, uma vez que surge a atividade abstrata do Entendimento

    transformando aquilo que mera manifestao do absoluto no prprio

    absoluto, surge a necessidade da reunificao e da reconciliao do absoluto

    pela atividade da Razo e da Filosofia. Como diz Hegel: a necessidade da

    filosofia surge quando o poder de unificao [die Macht der Vereinigung]

    desaparece da vida dos homens e os opostos [Gegestze] perdem sua viva

    relao e interao e cobram uma vida de autonomia [Selbstndigkeit] [p. 20].

    A emergncia de um poder racional unificador representado pela

    Razo [Vernunft] e a Filosofia se faz necessria, diz Hegel, quando o

    Entendimento [Verstand] contrape, frente a frente, como duas essncias fixas,

    separadas e estranhas, um mundo de ser pensante e de essncia pensada

    24

    Hegel, p. 34.

  • em contraposio a um mundo de realidade efetiva [eine Welt von denkendem

    und gedachtem Wesen, im Gegensatz gegen eine Welt von Wirklichkeit] [p.

    21].

    Com a ciso no interior da unidade e da identidade originrias do

    surge a inverso metafsica e o que mero fenmeno aparece como

    sendo o prprio absoluto. Na histria da cultura, por isso, diz Hegel, aquilo que

    manifestao do absoluto [Erscheinung des Absoluten] se tem isolado do

    absoluto [Absoluten isoliert] e se fixado como algo autnomo [ein Selbstndiges

    fixiert] [p. 18]. Na formao da cultura surgem, deste modo, a metafsica e a

    inverso mstica da realidade, onde aquilo que era mero fenmeno

    [Erscheinung] e manifestao aparente do absoluto [Erscheinung des

    Absoluten], onde aquilo que era mera essncia parcial e diversa

    [mannigfaltigen Teilwesen], diz Hegel, se tem hipostasiado e se entificado na

    forma do ser absoluto enquanto tal.

    A histria da cultura filosfica, diz Hegel, pode ser assim definida

    como a histria das diferentes formas assumidas pelo absoluto enquanto

    essncia ou substncia no interior do mundo dos entes. No progredir da

    cultura, diz Hegel, estas diferentes contraposies e manifestaes do absoluto

    se isolam em domnios totalmente separados e para cada um deles no tem

    nenhum significado o que sucede com o outro [p. 22]. Nesta histria, porm,

    diz Hegel [p. 20], a atividade infinita do devir e do produzir [unendlichen

    Ttigkeit des Werdens und Produzierens] da Razo tem superado o

    Entendimento e unificado o que estava dividido, e rebaixado a ciso tida como

    absoluta [absolute Entzweiung] a uma ciso relativa [relativen Entzweiung]

    condicionada identidade originria [ursprngliche Identitt] do .

    O mesmo Hegel, porm, no tem qualquer pudor em se

    contradizer e repetir o velho modelo parmenideano de repartir o em

    material e espiritual, sensvel e suprassensvel, abstrato e concreto, finito e

    infinito e atribuir exclusivamente aos aspectos espiritual, suprassensvel,

    abstrato e infinito do o carter de verdade, efetividade, realidade e

    essencialidade, em contraposio aos demais aspectos contrrios,

    considerados como no verdadeiros, no efetivos, no reais e no essenciais

    [Colletti, pp. 11 a 13 principalmente].

    Alm desta origem sociolgica, a lgica e a metafsica possuem

    ainda uma origem ontolgica. Em segundo lugar, assim, a lgica e a metafsica

  • tm sua origem na capacidade natural contida no interior do prprio

    pensamento de se cindir com a realidade que est fora do pensamento, de se

    distinguir e se separar da ao e do fazer manuais. A metafsica e a eleio do

    como pensamento e linguagem tem origem na capacidade natural do

    intelecto de abstrair da multiplicidade emprica e sensvel dos entes suas

    determinaes essenciais e ontolgicas e da transformao destas abstraes

    em essncias, categorias e conceitos.

    O segundo passo para a transformao destas categorias e

    conceitos em abstraes e essncias metafsicas ocorre quando estas

    abstraes, estes meros predicados e qualidades abstratas da coisa pensada,

    so hipostasiadas e transformadas em sujeitos, essncias, substncias, almas

    e entidades separadas, independentes e autnomas, tornando-se coisas em si

    e por si mesmas, sem nenhuma dependncia com a coisa da qual tm sua

    origem e sua existncia. Uma vez hipostasiadas e entificadas, estas essncias

    e predicados passam, ento, invertidamente, a se relacionarem entre si como

    verdadeiras substncias e sujeitos autonomizados da vida humana. Nesta

    inverso metafsica, o que era predicado torna-se essncia e sujeito e o que

    era sujeito torna-se predicado e, assim, coisa de menor valor ontolgico.

    Deste modo, Scrates, por exemplo, acreditava, na Repblica

    [Livro X 596b a 599b], na anterioridade lgica e ontolgica do pensamento

    em relao ao de fazer pela circunstncia de que o arteso fabricante de

    camas, antes mesmo de se debruar sobre a matria da cama, antes mesmo

    de apreender, de separar e de arrancar a cama com as mos do interior da

    madeira, j a possua previamente apreendida e separada como ideia no

    interior do intelecto.

    A cama fabricada pelo arteso seria, assim, na ontologia de

    Scrates, mera cpia da cama ideal, da cama cujo autor seria Deus, sendo

    esta cama divina o modelo verdadeiro, fiel e perfeito da cama no divina. A

    ideia de cama guardada na memria do arteso, a representao ideal da

    coisa fabricada, a capacidade desta coisa permanecer separada e guardada

    eternamente na memria mesmo depois da cama real se desfazer, se consumir

    e desaparecer da realidade aparecia para Scrates como prova da existncia

    prvia, independente, separada, real e efetiva da ideia em relao matria

    fabricada que se encontrava fora da mente. A cama fabricada pelo marceneiro

    aparecia, ainda, para Scrates, como ontologicamente inferior em perfeio e

  • realidade cama que existia previamente como ideia e concepo de Deus. O

    verdadeiro da realidade aparecia, assim, para Scrates, como o

    passivo e abstrato do pensamento de Deus, e no como o concreto e

    ativo das mos do fabricante.

    Aristteles tambm partia desta mesma circunstncia para

    explicar a relao entre forma e matria na Metafsica [Livro Stimo captulos 8

    a 11]. Aristteles compreendia que a matria em si e por si mesma uma

    substncia inexistente e totalmente dependente da ao superior e inteligvel

    da forma, que a matria no poderia, nem mesmo em pensamento, existir

    separada da forma. A forma, por seu lado, por ser uma substncia imaterial,

    por ser puro pensamento, poderia ser separada, ainda que apenas

    mentalmente, da matria, podendo existir e ser pensada em si e por si mesma,

    independentemente da matria.

    A metafsica e a separao entre forma e matria se completa

    quando os filsofos passam a conceber entes e ideias puras, ao contrrio da

    ideia de um bem fabricado, que j no possuem qualquer referente sensvel

    fora do pensamento, tais como as ideias de beleza em si, bondade em si,

    justia em si, ser puro, nada puro, espao puro, tempo puro, eu puro, saber

    puro, essncia, substncia, alma, deus e tantas mais. A partir de ento, o

    filosfico se emancipa completamente do sensvel, partindo para uma

    viagem etrea alm do mundo e para a anlise metdica e detalhista de suas

    prprias criaes mentais puras e abstratas, sem se preocupar com sua

    existncia ou no fora do pensamento.

    A partir destas duas circunstncias, sociolgica e ontolgica, os

    filsofos puderam acreditar realmente que seria possvel separar o pensamento

    que est na mente da realidade que est fora da mente, produzindo, assim,

    uma viso de enquanto puro pensamento, enquanto pura ao de

    pensar e raciocinar que se manifestava em suas prprias produes

    intelectuais puras e abstratas, como na Metafsica, na Ontologia e

    especialmente na Lgica. A ideia original de como a totalidade viva,

    inteligvel e prtica das aes do homem, como unitrio que

    simultaneamente um fazer da mente e das mos, uma ao conjunta de

    distinguir, separar, juntar, enumerar, ordenar, dispor, estender e significar todos

    os entes da realidade, sejam estes entes os signos abstratos da linguagem e

    dos nmeros ou os demais signos da realidade, como os deuses, a justia, a

  • guerra, o trabalho, a pesca, o plantio, a colheita, a partilha, o consumo e a vida

    como um todo.

    Em terceiro lugar, o empobrecimento do rico sentido originrio do

    termo pela letra dos filsofos pode ser compreendido pelo seguinte

    motivo. enquanto linguagem se relaciona ideia de discurso, dilogo,

    concrdia e entendimento e se ope diretamente ao termo grego hybris, que

    pode ser compreendido como violncia, desmedida, excesso, desregramento,

    discrdia e disputa.

    Os filsofos gregos compreendiam que a linguagem seria aquilo

    que prprio natureza do homem, que o homem seria, sobretudo, um ser de

    linguagem, um ser capaz de se relacionar entre si de maneira ordenada,

    regrada e racional atravs da palavra racional e regrada do . Se

    relacionar entre si atravs do , de um que somente pensado,

    falado e ouvido, de um ordenado segundo as regras da gramtica, de

    um medido e comum a todos os falantes de uma comunidade, era o que

    haveria de propriamente humano no homem, ao contrrio da hybris, da

    selvageria, da violncia e da desmedida das paixes, da guerra e dos conflitos

    civis, das matanas e mortes entre si, to comuns entre as cidades gregas do

    perodo clssico. Pela fora divina e ordenadora do , pela fora do

    dilogo, de seus discursos, de sua concrdia, de seu entendimento, de suas

    palavras e de sua educao, os filsofos acreditavam poder domesticar e

    reprimir a fora violenta, selvagem e desumana da hybris grega.

    A hybris seria, assim, na viso filosfica grega, aquilo que

    prprio natureza dos animais e, quem sabe, dos brbaros e dos escravos do

    Mediterrneo, daqueles que no possuem linguagem, mas apenas lngua e

    voz, glssa e phon, como dizia Aristteles em sua Poltica referindo-se aos

    brbaros.

    No seria pela hybris e pela violncia, portanto, que os homens se

    entenderiam entre si como homens, mas pelo , pela palavra e pelo

    discurso. Para combater a violncia e a brutalidade da hybris, das paixes

    desenfreadas e dos excessos do prazer, os filsofos gregos passaram, ento,

    a imaginar e a descrever cidades ideais construdas e organizadas pelo ,

    pelo metafsico que somente razo, pensamento e linguagem, e a

    excluir destas cidades, ou da cidadania, todos aqueles que contrariassem, em

    aes ou em palavras, o abstrato e metafsico da linguagem filosfica.

  • Segundo o princpio de identidade concebido por Parmnides, da

    guerra s poderia surgir a guerra, assim como do fogo s poderia surgir o fogo,

    do ser o prprio ser e do no ser o no ser. A diferena e a desigualdade

    jamais poderiam vir do ser. Assim como a identidade e a igualdade jamais

    poderiam vir do no ser. Assim, para combater a hybris, a violncia e a guerra

    civil que tomavam conta da cidade clssica, no se poderia empregar a prpria

    hybris, pois da hybris no poderia vir o .

    Para combater a hybris seria necessrio ento, desenvolver sua

    fora contrria, a fora do , a fora abstrata da palavra e do

    entendimento, que se ope absolutamente desmedida e irracionalidade da

    hybris, pois do , que dilogo, concrdia e entendimento, s poderia vir o

    . O romantismo filosfico grego, em sua crena parmenideana da

    identidade e em sua viso abstrata e idealizada de , tombaria, assim,

    como tombou historicamente, vtima de seus prprios pressupostos idealizados

    e abstratos.

    Concluso

    Com a ciso e a dissoluo da unidade originria do , a

    realidade passa a ser determinada e governada monocraticamente por um

    nico fragmento particular do . Este cindido e autonomizado se

    apresenta, ento, diante dos outros fragmentos, como o absoluto e a

    verdadeira arkh de toda a realidade. Os demais fragmentos sero, por sua

    vez, considerados como falsos representantes do e da realidade. Na

    medida em que forem vistos como verdadeiros, a verdade destes fragmentos

    dever sua origem ao fragmento superior e autonomizado pelo pensamento.

    Com a ciso surgiro, assim, na histria da cultura, a filosofia e a metafsica

    como cincias oficiais da realidade.

    A metafsica se sustenta na ideia de que haja na realidade um ser

    absolutamente incondicionado que seja essencialmente em-si e para-si mesmo

    em oposio a outro que seja somente ser por-outro e para-outro. A metafsica

    se sustenta na prtica da hypostasia, na converso em absoluto daquilo que

    somente relativo e parte de uma totalidade maior. A metafsica possui, assim,

    como pressuposto, a ciso e a oposio entre pensamento e ser, esprito e

    natureza, linguagem e pensamento, trabalho material e trabalho intelectual, e

    tantas outras do rico arsenal categorial da realidade e do pensamento, e a

    crena que a parte relativa ao pensamento constitui, por si s e isoladamente,

  • toda a realidade e efetividade em si e por si mesma, independente da

    existncia de todas as demais partes.

    A Metafsica se constri atribuindo aos aspectos supostamente

    superiores do , os aspectos do pensamento, do espiritual, do infinito e do

    suprassensvel a qualidade de ser em-si e por-si, a qualidade de ser absoluto,

    em oposio aos aspectos supostamente inferiores, os aspectos da matria, do

    finito e do sensvel, que so vistos como dependentes e carentes de realidade

    em-si e por si-mesmos, sem perceber o carter contraditrio desta mesma

    atribuio, pois, como pode algo existir absolutamente ao lado do que no

    absolutamente sem deixar de ser absolutamente? Como pode o infinito existir

    absolutamente ao lado do finito sem deixar de ser infinito? Como pode a

    unidade existir absolutamente ao lado da multiplicidade sem deixar de ser

    unidade? Como pode o absolutamente espiritual existir enquanto tal ao lado do

    material sem deixar de ser absolutamente? Como pode o absolutamente

    pensado existir enquanto tal ao lado do no pensado sem deixar de ser

    absolutamente? Enfim: como pode o absoluto existir enquanto tal ao lado do

    no absoluto sem deixar de ser absoluto?

    A metafsica no consegue perceber que o abstrato, o infinito e o

    suprassensvel representados pelo pensamento e pelo espiritual no passam

    de meras qualidades abstradas do , no passam da negao da

    materialidade, da finitude, da sensibilidade e da concretude presentes no

    interior do prprio , que o abstrato, o infinito, o pensamento, o espiritual e

    o suprassensvel so, por isso, qualidades e entidades to negativas quanto as

    qualidades e as entidades que pretende combater e condenar ao mundo da

    no existncia e da no essencialidade. A mesma metafsica deixa

    transparecer em sua prpria linguagem que ao se referir ao abstrato, ao infinito,

    ao pensamento, ao esprito e ao suprassensvel, se refere, inconscientemente,

    ao que a negao do concreto, do finito, da matria, do corpo e do sensvel.

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