PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Carlos... · ii PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA...

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i PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Antonio Carlos de Oliveira Rodrigues A ἄσκησις de desapropriação epictetiana à luz da Κάθαρσις do Fédon de Platão DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2015

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Antonio Carlos de Oliveira Rodrigues

    A de desapropriao epictetiana luz da do Fdon de Plato

    DOUTORADO EM FILOSOFIA

    SO PAULO

    2015

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    Antonio Carlos de Oliveira Rodrigues

    A de desapropriao epictetiana luz da do Fdon de Plato

    DOUTORADO EM FILOSOFIA

    Tese apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr. Marcelo Perine

    SO PAULO

    2015

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    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________________

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    Agradecimentos

    Ao Prof. Dr. Marcelo Perine pela boa acolhida de sempre e pela orientao

    tranquila.

    Ao Francisco e ao Pblio Lentulus pelo apoio incondicional em todas as

    etapas do caminho.

    Ao Prof. Dr. Antonio Romera Valverde pela solidariedade de longa data.

    Ao Dr. Fernando R. Sapaterro pelas dolorosas crticas que me inspiraram

    novos rumos.

    Ao Prof. Dr. Guilherme M.B. Algodal por haver lido comigo o texto original do

    Fdon de Plato com extrema pacincia e amorosidade.

    Ao Armand Jagu pela sugesto do tema.

    Ao amigo Luis Cirillo pelo suporte na fase final do trabalho.

    Luiza, Mate e Lvia filhas queridas.

    E Nara, minha esposa, pelo amparo constante e firme em todas as etapas

    da caminhada.

  • v

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    ,

    ' ,

    []

    E purificao, no vem a ser,

    precisamente, o que dissemos antes:

    separar, sobretudo, a alma do corpo, e

    habitu-la a concentrar-se e a recolher-se a

    si mesma, a afastar-se de todas as partes do

    corpo e a viver, agora e no futuro, isolada

    quanto possvel e por si mesma, como

    libertada dos grilhes corporais?

    Fdon, 67d

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    RESUMO

    A noo de katharsis exposta no Fdon de Plato foi absorvida e incorporada ascese do desejo epictetiana. A katharsis ao ser deslocada de seu lugar de origem para o exerccio espiritual epictetiano sofreu transformaes para adaptar-se regra de conduta zenoniana de viver. Epicteto acredita piamente que para se viver em conformidade com a natureza no h como prescindir do esforo de separao da alma do corpo. De modo que, para ele, somente o homem que se apodera da liberdade adquire concomitantemente a habilidade de aceitar a vida como , capacitando-se a receber com total indiferena seja o que for que o destino traga. Para Epicteto a abolio de todas as escravaturas da alma comea na separao do nosso do alheio e se completa com a compreenso de que o alheio no nada para ns.

    Palavras-chave: Epicteto - katharsis - hegemnico prohairesis eleutheria.

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    ABSTRACT

    The katharsis concept exposed in Platos Fdon was absorbed and incorporated to Epictetus desire exercise. As katharsis was moved from its place of origin to Epictetuss spiritual exercise, it suffered transformations to adapt to the zenonian rule of life conduct. Epictetus strongly believes that to live in conformity with nature one needs to put a lot of effort towards the separation of body and soul. So that, to him, only the men who possesses freedom acquires, at the same time, the ability to accept life as it is, becoming capacitated to receive with complete indifference whatever may destiny bring. To Epictetus the abolition of all souls enslavement starts with the separation of ours and someone elses and completes itself with the comprehension that someone elses is nothing to us.

    Keywords: Epictetus - katharsis - hegemonic prohairesis - eleutheria

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    Sumrio

    INTRODUO..........................................................................................................................1

    Nota introdutria explicativa sobre a traduo do termo ephhemin ............................... 2

    CAPTULO I

    Estudo do primeiro captulo do Enquirdio de Epicteto......................................................4

    1. Fixao dos limites de propriedade: o sobre ns e o no sobre ns. A carne (sarks)

    no nos pertence, a escolha (prohairesis) sim ....................................................................... 5

    1.1. Cuidar do hegemnico: oficina e oficio ....................................................................... 7

    1.2. A necessidade da filosofia na educao para a liberdade e para felicidade do homem

    comum (idiotes) ..................................................................................................................... 8

    1.3. A origem aristotlica do termo ephhemin ................................................................. 10

    1.4. A contribuio de Epicteto axiologia estoica: um importante instrumento para a

    educao e orientao do homem ....................................................................................... 11

    1.5. Examinar as fantasias para us-las qual se deve ..................................................... 14

    1.6. tica e ontologia entre o sobre ns e o no sobre ns ........................................ 16

    2. A prohairesis como ao do hegemnico .................................................................... 18

    2.1. A pro-hairesis em sentido temporal e preferncial .................................................... 18

    2.2. Uma alma apenas .................................................................................................... 20

    2.3. Os dois princpios: o ativo e o passivo ...................................................................... 21

    2.4. O hegemnico e as asceses epictetianas ................................................................. 25

    2.5. O hegemnico e a prohairesis antepostos s coisas exteriores ............................... 27

    2.6. Hegemnico e prohairesis conformes a natureza ..................................................... 30

    2.7. A faculdade diretriz da alma enquanto escolhe prohairesis ................................... 35

    CAPTULO II

    Investigao do primeiro captulo das lies de Epicteto................................................36

    1. A dualidade entre o corpo e a faculdade racional ........................................................ 36

    1.1. Faculdade racional um dos nomes do hegemnico ............................................... 37

    1.2. As vrias capacidades da parte dirigente da alma .................................................... 39

    1.3. A compreensividade marca a diferena entre os homens e os animais .................... 41

    1.4. O corpo e as posses no nos pertencem ................................................................. 43

    1.5. O homem enquanto ser racional tem a obrigao de crescer em sua humanidade .. 48

    1.6. A faculdade racional essencialmente pura porque divina ...................................... 49

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    2. A disciplina do desejo e a aceitao do destino .......................................................... 51

    2.1. Epicteto e o Fdon de Plato ................................................................................... 51

    2.2. Desprendimento corpreo e aceitao do destino .................................................... 52

    2.3. A faculdade racional e a contemplao da ordem do universo ................................. 54

    2.4. Conteno do desejo: caminho para a felicidade e para a liberdade ........................ 57

    2.5. Laterano ................................................................................................................... 59

    2.6. Trasea.........................................................................................................................61

    2.7. Agripino .......................................................................................................................61

    2.8. O paradigma de separao do Fdon a servio da vida segundo a natureza ........... 63

    CAPTULO III

    A Presena da katharsis platnica na askesis epictetiana do desejo no ponto de vista

    da heautognose ................................................................................................................. 66

    1. O homem o tutor de sua prpria divindade ............................................................... 66

    1.1. A disciplina antecede a espontaneidade: autognose e cuidado ................................ 67

    1.2. Parresia e converso................................................................................................ 69

    1.3. A conteno do desejo encerra o sentido da filosofia ............................................... 72

    1.4. A ascese do desejo a prpria katharsis em ao ................................................... 73

    1.5. A morte simblica no episdio de Evnio ................................................................. 75

    1.6. Paixo e fantasia ...................................................................................................... 78

    1.7. Impermanncia e hupeksairesis ............................................................................... 80

    1.8. O livre curso virtuoso ................................................................................................ 82

    1.9. Filosofar se preparar para aceitar a vida ............................................................... 84

    1.10. Heautognose: renncia, abstinncia e destena .................................................... 87

    1.11. Toda sensao de perda vem da falsa sensao de posse .................................... 89

    1.12. No se deve procurar por figos no inverno ............................................................. 91

    1.13. A ratio cognoscendi e a ratio essendi ..................................................................... 95

    1.14. O homem eleutheros de Epicteto ........................................................................... 97

    1.15. O itinerrio de desapropriao ............................................................................... 98

    CONCLUSO.......................................................................................................................107

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 111

    Obras referentes a Plato .................................................................................................. 113

    Obras gerais.........................................................................................................................114

    Dicionrios............................................................................................................................117

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    INTRODUO

    No Fdon, Plato definiu a como sendo a separao da alma do

    corpo. O conceito transposto para a ascese do desejo, um dos exerccios espirituais

    preceituados por Epicteto em sua filosofia, foi transmudado para se adequar ao

    princpio mximo de Zeno aquele que recomenda o viver segundo a natureza.

    Aos olhos de Epicteto somente uma via levar observao rigorosa da

    recomendao zenoniana: o apoderamento da liberdade sobre a base do

    desprendimento corpreo.

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    Nota introdutria explicativa sobre a traduo do termo ephhemin

    ... Das coisas que so (ton onton) umas dependem de ns, outras, no

    dependem de ns (ta de ouk ephhemin)1. Ephhemin a combinao exgua de

    palavras, por meio das quais, Epicteto expressou a alma e o corao de sua

    Filosofia. Com elas e por elas indicou no somente um sistema de compreenso da

    vida em geral, abrangendo inclusive toda uma cincia e uma arte de viver, como

    tambm um plexo frreo de diretrizes da conduta, com vistas aquisio das

    qualidades capazes de tornar o homem livre e ipso facto feliz.

    O pugilo de palavras se encontra nas Lies de Epicteto, e no Enquirdio a

    ttulo de introduo ao pensar do filsofo estoico. Flavio Arriano parece haver

    alcanado a compreenso de que a ciso de carter tico-ontolgico, isto , a

    separao das coisas em prprias e alheias, era a viga mestra, a pedra angular de

    todo o sistema filosfico praticado por Epicteto.

    A locuo ephhemin combina a preposio epi sobre com o pronome

    pessoal locativo hemin ns. Epi mais locativo significa, em cima, sobre, indicando

    contato pleno, esttico. A combinao da preposio epi com o dativo resulta no

    seguinte significado, segundo o exemplo a seguir, to epemoi traduz-se assim: no

    que est sobre mim, isto , quanto a mim, no que me concerne2.

    A juno dos dois vocbulos comumente traduzida do grego, seja para o

    francs, para o espanhol ou para o portugus, utilizando-se a palavra depender. O

    que quer dizer que a preposio epi vertida na palavra depende. No rejeitamos

    de todo a tradio de traduo dos termos de que tratamos, mas preferimos

    acrescentar tambm outras palavras que auxiliem a expressar com clareza o sentido

    tcnico desse termo to utilizado por Epicteto e considerado por todos como a sua

    maior contribuio histria da Filosofia.

    Muito embora sejam referidos outros significados dupla epi+dativo, como no

    caso de Guglielmi em Le grec ancien3, que v na unio dos termos a locuo por

    causa de, o sentido mais apropriado ao que Epicteto disse em grego, levando-se

    em conta a totalidade sistemtica de seu pensar, o que indica pertencimento,

    1 Enquirdio de EPICTETO, I, 1. Doravante citado com a sigla E. 2 Henrique MURACHCO, Lngua Grega, viso semntica, Lgica, orgnica e funcional, vol. 1, p.572. 3 Jean-Pierre GUGLIELMI, Le Grec ancien.

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    competncia, alada, circunscrevendo um campo especfico de atribuies que se

    no observadas geram inevitavelmente a escravido.

    Ora, quando algum afirma que algo lhe pertence, est dizendo que esta

    coisa sua. A pequena sentena ephhemin sugere tambm, a ideia de posse que

    marca a diferena entre o que de um e o que de outro. preciso levar em conta

    todas essas questes, para se fazer aproveitamento mximo dessas palavras de

    Epicteto. Pelas razes expostas preferimos traduzir a passagem do Enquirdio assim

    ... Das coisas que so (ton onton)4 umas esto sobre ns (ta men estin ephhemin)5,

    outras no esto sobre ns (ta de ouk ephhemin) ... 6

    4Que quer dizer, da totalidade das coisas existentes. 5 Isto , so de nossa alada, se situam em nosso campo de ao a nos pertencer propriamente. 6 As tradues disponveis do texto grego de Flavio Arriano que nomeei guisa de Lies de EPICTETO (Diatribai), e que so mais conhecidas pela traduo francesa como Entretiens, no possuem traduo publicada em portugus. Como trabalho diretamente com o texto original grego, me pareceu lcito o esforo de traduzir as expresses tcnicas com que Epicteto exprimiu seu pensamento para nossa lngua mater, j que nem o francs nem o espanhol podem ser vertidos para o portugus sem exigir adequaes. porque afastamos a hiptese de estarmos a fazer postulaes em filosofia a partir de estudos acerca da sintaxe grega. Doravante as Lies de EPICTETO sero citadas com a sigla L.

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    CAPTULO I

    Estudo do primeiro captulo do Enquirdio de Epicteto

    (1-1) Das coisas que so, umas esto sobre ns7, outras no esto sobre ns. propriamente nosso8: julgamento de valor9, impulso para agir, desejo, averso, - em uma palavra - quantas sejam nossas obras. No so de nossa alada10: o corpo, os teres, as opinies dos outros sobre ns, os cargos pblicos, - em uma palavra quantas sejam as obras que no nos pertencem propriamente. (1-2) E as coisas que nos competem so por natureza livres, sem impedimentos, sem entraves, e as que no, so fracas, escravas impedidas, de outrem. (1-3) Lembra ento, que se consideras as coisas escravas por natureza, livres, e as coisas alheias, prprias, sers impedido, estars triste e perturbado, censurars tanto os deuses como tambm os homens. Mas se consideras ser teu, somente o teu, e o alheio, como , alheio, ningum te obrigar, nem te impedir, no censurars a ningum, tampouco acusars a algum, nenhuma ao contra vontade, ningum te prejudicar, no ters inimigo, uma vez que ningum te convencer de algo danoso.11 (1-4) Lembra-te, enfim, de que aspirando coisas de tal tamanho12 no preciso se mover moderadamente para alcan-las13, mas umas abandonar completamente, e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois. Mas se queres tambm essas coisas (isto , as elevadas e grandes) e mandar e enriquecer, talvez no obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade), por tambm demandares as primeiras (as elevadas e grandes), errars o alvo totalmente, pelo menos daquelas (coisas) atravs das quais to somente dominarias a liberdade e a felicidade. (1-5) Enfim, exercita-te rapidamente em acrescentar a toda fantasia14 que s impresso e de modo algum, o que se mostra (sendo). A seguir, investiga-a e submeta-a a esses cnones os quais tens, e em primeiro lugar esse e, sobretudo, qual dos dois, se a respeito das coisas sobre ns ou a respeito das coisas

    7 So de nossa alada. 8 de nossa competncia. 9 Aceito a traduo de Pierre HADOT da palavra hupolepsis. 10 No so de nossa competncia, no so propriamente nossos. 11 Ou seja, que tenha sofrido algo de danoso. Ningum nos convencer de havermos sido prejudicados. 12 Isto : to grandes. Elevadas. 13 Toc-las, obt-las. 14Optamos por traduzir phantasa por fantasia, em vez de usar os habituais termos representao e impresso que carreiam consigo interpretaes to incompatveis entre si que para utiliz-los se faria necessria uma elucidao crtica de cada um delas. De acordo com Sexto EMPRICO a traduo de phantasa para impresso (typosis) compatvel com o pensamento de CLEANTO, conforme a metfora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemnico, a feio de um sinete sobre a cera. J CHRYSIPO entende a he phantasa ao modo de uma alterao (heteroiosis) da alma. Sexto EMPRICO, M, VII, 228-230. Doravante citado com a sigla S.E.

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    que no esto sobre ns, e se for algo a respeito das que no esto sobre ns, por isso, esteja mo: nada perante a mim 15

    1. Fixao dos limites de propriedade: o sobre ns e o no sobre ns.

    A carne (sarks) no nos pertence, a escolha (prohairesis) sim

    O primeiro captulo do Enquirdio de Epicteto enfeixa ideias preciosas que

    auxiliam o acesso compreenso de sua proposta filosfica. Nele encontramos

    pontos essenciais de sua doutrina, de seu ensinamento. Se no seguimento da obra

    outros temas surgem e encontram, em tempo oportuno, explicao, nos seus cinco

    itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que vemos traado o panorama de pensamento do

    filsofo estoico.

    Desde o incio do Enquirdio de Epicteto v-se o estabelecimento de uma

    linha divisria que possui como principal objetivo demarcar a zona do eu - do

    verdadeiro eu -, distinguindo-a da regio em que se situam as coisas em relao

    estreita com o corpo. Eis a afirmativa de Epicteto a este respeito:

    Das coisas que so, umas esto sobre ns, outras no esto sobre ns. propriamente nosso: julgamento de valor, impulso para agir, desejo, averso, - em uma palavra - quantas sejam nossas obras. No so de nossa alada: o corpo, os teres, as opinies dos outros sobre ns, os cargos pblicos, - em uma palavra quantas sejam as obras que no nos pertencem propriamente...16

    15 Enquirdio de Epicteto, I, 1-5. ' , '. ' , , , ' , , , . ' , , , ' , , , . , , , , , , , , , , , , , , , , , , . , , , ' . ' , ' , , ' . . , , ' ' ' , . Todos os textos gregos que constam no rodap deste trabalho foram traduzidos pelo autor. 16 E., I, 1.

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    Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais face dessa tese

    epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses, fama, riquezas,

    inclusive nossos corpos no devam ser situados no campo de nossas preocupaes

    habituais por no nos pertencerem propriamente. Pois essas so coisas que se no

    passado j se procuravam, hoje, muito mais. Em contrapartida, o desejar, o julgar, o

    agir e o evitar no causam indignao como fazeres nossos apesar da descoberta

    nos ltimos sculos do inconsciente que parece gerar consequncias serissimas em

    torno das faculdades anmicas do homem.

    Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas no sobre

    ns e continuar aparecendo principalmente nas Lies de Epicteto17, toda vez que

    ele se referir distino essencial em que figura o campo de responsabilidade

    especfica humana. Vejamos por exemplo este trecho das Lies:

    Pois o corpo nos estranho, seus membros nos so estranhos, nossos teres nos so estranhos. Se, por conseguinte, tu te prendes a alguma dessas coisas como a alguma coisa pessoal, recebers o castigo que merece aquele que deseja aquilo que lhe estranho... 18

    Se o corpo, e seus amigos no nos pertencem propriamente, as obras da

    alma so nossas19, no s como propriedades inalienveis, mas, sobretudo, porque

    so livres, desimpedidas e isentas de qualquer obstculo, como o Enquirdio de

    Epicteto inicia separando esferas de responsabilidade, aquilo por que sou

    responsvel daquilo pelo que no sou responsvel, nem sempre se consegue

    perceber a questo de fundo por trs da diviso. Entretanto, quando Epicteto trata

    do assunto por outro ngulo, notamos aquilo que est em jogo na separao: a

    centralizao da vida humana nos valores da alma.

    Em uma declarao visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto se

    perguntando sobre quem, no filsofo do Jardim, produziu seus escritos, deixou que

    17 Traduzo Epiktetoi diatribai por Lies de Epicteto. Sero representadas com a sigla L. 18 , , . , . L., IV, 1, 130-131. 19 E as obras da alma so o impulso para agir, o impulso de se afastar, o desejar, o preparar, o intentar, o assentir. L., IV, 11, 6. O termo obras da alma demonstra que a real distino entre a psykhe e o corpo. Ora, as obras da alma, so as obras do hegemnico. Os estoicos afirmam que o hegemnico a parte mais alta da alma, aquela que produz as fantasias, os assentimentos, as sensaes, as tendncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) . 847. ATIOS IV, 21, 1-4 = Pseudo-Plutarque 90312c-10. CHRYSIPPE, Oeuvre Philosophique. Doravante citado com a sigla Chrys. O.C.

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    sua barba crescesse e tambm quem nele afirmou certa vez viver seus ltimos dias

    em estado de felicidade. E conclui sua indagao com a pergunta: ... A carne (sarks)

    ou a escolha (prohairesis)?...20, ou seja, se Epicuro escolheu escrever, a prohairesis

    aquele ato espiritual que o define, mesmo que sua filosofia negue isso. Na

    passagem que segue, se clareia por inteira a noo de que o bem humano por

    excelncia, e essencialmente, de ordem espiritual.

    1.1. Cuidar do hegemnico: oficina e oficio

    Digo espiritual no sentido de indicar o hegemnico em uma das suas

    funes primordiais21 mesmo sabendo se tratar de um pneuma corpreo, uma vez

    que o prprio Epicteto compara-o ao corpo utilizando termos antitticos.

    A divindade til: mas o bem tambm . Ento, verossmil, onde a essncia da divindade, l tambm a do bem. Ento qual a essncia da divindade? A carne? No viria a ser. Campo? No viria a ser. Fama? No viria a ser. A mente; a cincia, o pensamento correto. Logo, procura nessas coisas, simplesmente, a essncia do bem... 22

    Na introduo ao livro Le Manuel dpictte Pierre Hadot se refere

    concentrao do eu qual exerccio espiritual que se poderia derivar diretamente da

    separao sugerida por Epicteto. Seria a separao do eu do no-eu23 e no

    discordamos.

    Distinguir o que depende de ns e o que no depende de ns, a causalidade interior e a causalidade exterior, finalmente distinguir o eu do no-eu. um exerccio de concentrao e de delimitao do eu: eu no sou os objetos que me circundam e que por vezes me so caros, esta marmita ou este cavalo ou esta lmpada, eu no sou,

    20 L.,II, 23, 21. 21 O ato de escolher, a prohairesis. 22. . , , . . . . , , . . L., II, 8, 1-3. 23 Na medida em que se pe em operao a distino entre as coisas dependentes de ns e as coisas independentes de ns, o eu como que recolocado dentro de seus limites porque no avana mais sobre o que no lhe diz respeito. O eu reposicionado deixa para fora de si o no-eu, ou seja, todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente.

  • 8

    pode-se dizer, os atributos gramaticais que o Destino me impe, rico ou pobre, saudvel ou doente, senhor ou escravo, poderoso ou miservel, eu no sou os meus membros, eu no sou o meu corpo, nem a emoes involuntrias que podem emocion-lo...24

    O que esta no cerne da ciso preceituada por Epicteto a fixao de um

    lugar, o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se voltar a fim de

    concentrar todos os seus esforos. Na verdade, a concentrao do eu demarca dois

    itinerrios bem definidos: um em que a parte dirigente da alma25 assentada a ttulo

    de oficina, e outro em que definida a principal tarefa do homem, ou seja, o seu

    ofcio.

    Oficina e ofcio juntam-se num mesmo caminho espiritual. Enquanto a

    primeira diz respeito ao princpio diretor da alma, ao hegemnico como lugar de

    trabalho, a segunda se define como o prprio trabalho no cuidado dele.

    1.2. A necessidade da filosofia na educao para a liberdade e para

    felicidade do homem comum (idiotes)

    Desde seus comeos o Enquirdio de Epicteto fala de liberdade e de

    escravido. O homem comum (idiotes)26, por no saber a que se ater, vive

    normalmente cata de tudo o que o aprisiona. O sistema de valores que

    fundamenta seu modo de pensar no lhe permite enxergar nem avaliar o que de fato

    so as coisas, tampouco encontrar o caminho efetivo de chegar felicidade a que

    aspira. Semelhante incapacidade constitui a prova para Epicteto de que o homem

    desalumiado de conhecimento filosfico no faz aquilo que efetivamente quer fazer,

    porque no devemos ser rudes, ele aconselha, com aqueles que sofrem os

    prprios erros. Ora, esto praticando o que lhes parece ser o que tm de praticar

    para alcanar os seus objetivos.

    24 Pierre HADOT, Manuel dpictte, pags. 44,45. L., III, 24,56; IV, 1, 129-130. 25 CHRYSIPO se refere ao hegemnico como o verdadeiro eu. Galiano, sobre as doutrinas de Hipcrates e de Plato II, 2, 9, 1-11, 6, Chrys. O.C. 26 EPICTETO compara em suas Lies a posio, situao ou estado (stasis) do idiota (idiotou) com a posio, situao ou estado do filsofo (philosophou). Quem o idiota em sentido grego? O particular sem dvida. Entretanto, o particular aquele que no filsofo, o homem trivial, vulgar, normal, comum. L, III, 13, 1-3, E., V. A cette perfection morale Epictte oppose lattitude de lhomme ordinaire. Lide de Volont dans le Stocisme.

  • 9

    Lembremo-nos de Scrates que segundo o Enquirdio os outros procuravam

    quando desejavam ser apresentados aos filsofos por ele27. Se lhes parecia ser

    assim, no cabia ao pensador grego dissuadi-los, apresentando-se como aquele que

    procuravam.

    O homem falto de educao filosfica no consegue perceber que em seus

    empreendimentos poucamente alcana, ou quase nunca alcana seu desiderato.

    Sua ignorncia lhe entrava a perspectiva de que no um homem livre. Para

    Epicteto somente o livre faz o que quer. E a liberdade resulta sempre em se alcanar

    os objetivos desejados. Semelhante conquista comea a ser divisada quando mais

    consciente de si elimina as acusaes que atribui aos outros a origem dos males

    que lhe acontecem. Avanando um pouco mais, acusa a si mesmo e, completa o

    caminho autoeducativo (pepaideumenou) para a liberdade, quando no mais acusa

    seja a si mesmo ou a outrem28.

    Para ser livre preciso ter sabedoria, pois somente a phronesis transcende

    contemplando alguma coisa, a saber, as coisas boas e as ms, e as nem umas e

    nem outras29. A preciso de sabedoria, por sua vez, postula a urgente

    transformao do homem pela educao filosfica. A comparao entre o status do

    homem educado (paideutos30) como aquele que faz o que quer, e o carente de

    educao (apaideutos) qual aquele que no faz o que quer recurso didtico do

    alforriado para demonstrar atravs da diferena existente entre eles a

    imprescindibilidade da filosofia31

    Primeira diferena entre um particular e um filsofo: o primeiro diz: ai de mim! Por causa do filho, do irmo, ai de mim! Por causa do pai. J o segundo, se em algum caso se v obrigado a dizer: ai de mim! Acrescenta imediatamente a reflexo: por causa de mim!. E que nada alheio escolha (proairesin) pode pr impedimentos ou prejudicar a escolha, seno, ela mesma a si prpria. Portanto, se ns tambm nos inclinssemos a isso, de modo que, quando andssemos por maus caminhos, culpssemos a ns mesmos e recordssemos que ningum responsvel pela agitao e

    27 E., XLVI. 28 E., I, 5. 29 . L., I, 28, 6. 30 SOUILH traduz paideusthai por educao filosfica. 31 Na traduo francesa do grego de Joseph SOUILH profano. Na traduo espanhola do grego de Paloma ORTIZ GARCA particular.

  • 10

    alterao, a no ser a opinio, eu vos juro por todos os deuses que progrediramos... 32

    A axiologia estoica transforma visceralmente a forma de pensar do homem

    particular, do homem comum (idiotes), porque muda seu modo de avaliar

    circunstncias, ocorrncias e situaes, mormente aquelas que envolvem seu

    Destino. Para se ter em vista com clareza o motivo de Epicteto afirmar serem livres

    os atos da alma, isto , as coisas que dependem de ns, e escravas as que

    independem de ns33, preciso captar a ideia que vige no cerne desse modo

    inusitado de julgamento.

    1.3. A origem aristotlica do termo ephhemin

    Para ele o que importava acima de tudo era fornecer aos que o procuravam

    um cnone seguro de orientao do discernimento para a identificao, e a devida

    situao dos bens e males. Afirmou certa vez, referindo-se ao conhecimento de

    Histria, no ser to importante no interior dessa temtica, se obter opinio prpria,

    mas que nos assuntos de cunho tico (epi ton ethikom) a matria assumiria valor

    extremo. ... Fala-me a respeito dos bens e males...34 Portanto, para ele o

    norteamento da conduta era o mais importante, porquanto somente a ao bem

    dirigida possuiria fora suficiente para conduzir o homem rumo conquista da vida

    feliz.

    No h notcias na histria da filosofia, anterior ao aparecimento de Epicteto,

    do uso da discriminao por ele proposta, a que divide as coisas que so, em dois

    grandes hemisfrios. Segundo Jean-Batiste Gourinat35, existe a hiptese de que a

    expresso latina in nostra potestate, utilizada por Ccero na obra De fato, seria a

    traduo do termo ephemin numa referncia direta ao pensamento de Chrysipo.

    Fosse o caso e se poderia afirmar que Epicteto tirara a expresso de Chrysipo.

    Como o termo latino ciceroniano tambm aparece na traduo do pensamento de

    32 L, III, 13, 1-3. 33 E as coisas que nos competem so por natureza livres, sem impedimentos, sem entraves, e as que no, so fracas, escravas impedidas, de outrem. E.,I, 2. 34 L., II, 11-16. 35 Jean-Batiste GOURINAT, Philosophie antique.

  • 11

    Epicuro que jamais fez uso do ephemin, e sim do par hemas, pensa-se que a

    expresso in nostra potestate seja a traduo deste antes que daquele.

    Tudo leva a crer que Epicteto extraiu a expresso ephemin diretamente de

    Aristteles que utilizou o termo inclusive em associao estreita com outro termo

    tcnico de que tambm o filsofo estoico faz uso, a prohairesis, a escolha. Todavia,

    em sentido diferente ao do estagirita. Como so acontecer com os que no sendo de

    alma pequena, ao passo que absorvem as doutrinas em que militam, transformam-

    nas de algum modo, acrescentado um pouco deles mesmos a grande corrente de

    ideias, Epicteto adaptou tanto a expresso sobre mim (ephemin) quanto o ato de

    escolher (prohairesis) de Aristteles ao sistema estoico, sintetizando com elas

    algumas centenas de anos de Estoicismo.

    1.4. A contribuio de Epicteto axiologia estoica: um importante

    instrumento para a educao e orientao do homem

    Consta que os Antigos da stoa tinham por hbito recorrer seguinte anlise,

    conforme Digenes Larcio: ... Das coisas existentes os estoicos dizem que

    algumas so boas e outras so ms, outras no so nem boas nem ms...36. A

    ordenao da realidade aqui apresentada h por pressuposto duas outras ordens

    dispostas a partir de divises.

    O separatismo introduzido pelos estoicos nas coisas que so, isto , nas

    coisas existentes, construdo sobre a oposio contraditria entre as coisas boas

    e as no boas, constituindo uma primeira segmentao, e uma segunda, ao

    situarem as ms e as indiferentes na classe das no boas. Temos esta passagem

    das Lies de Epicteto que seria quase uma reproduo ipsis litteris do excerto de

    Digenes, no fosse o acrscimo de explicao concernente s coisas indiferentes:

    Das coisas que so, umas so boas, outras ms e outras indiferentes. Boas so as virtudes e o que delas participa, ms, as

    36, Digenes LARCIO, Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, VII, 101. Doravante citado com sigla D.L.

  • 12

    maldades e o que das maldades participa, indiferente, o que est entre ambas. A riqueza, a sade, a vida, a morte, o prazer, a dor...37

    No seio desta diviso entre as coisas boas, ms e indiferentes vige um

    princpio de grande importncia na economia do sistema estoico para a orientao

    da conduta. Esse afirma que bens e males no ocorrem pura e simplesmente, sem

    estreita conexo com a liberdade, o que leva concluso de que s existem o bem

    e o mal moral.

    Ao quadro axiolgico do antigo prtico Epicteto acrescentar um detalhe que

    viria a facilitar em muito a deteco, mediante anlise, da melhor ao a tomar em

    face das variadas situaes que ocorrem na vida do caminhante que fez a opo

    pela via estoica. Retomemos o sistema de valores da stoa situando agora o adendo

    de Epicteto.

    A contraditria boa e no boa determinada a partir da ciso ontolgica38

    efetuada pelos estoicos atuante sobre a totalidade das coisas que so. As no

    boas se repartem em duas: as ms e as indiferentes. Epicteto categoriza as coisas

    boas e as coisas ms na seo sobre ns (ephemin), e as nem boas e nem ms,

    quer dizer, as indiferentes na linha das no sobre ns (ta de ouk ephhemin).

    Desse modus operandi decorrero dois tipos de racionalidade a ratio cognoscendi e

    a ratio essendi de que trataremos na sequncia deste estudo.

    O modo de pensar impe um plexo frreo de diretrizes da conduta a comear

    pela necessidade incessante e contnua de investigar se as coisas esto ou no em

    nosso campo de ao, se nos pertencem propriamente ou no. ... E o educar-se

    isso, aprender o prprio e o alheio... 39

    Portanto, nisso consiste a tarefa principal da vida. Distingue as coisas e pem-nas em separado e diga: as coisas fora de mim no me pertencem; a escolha (prohairesis), sim. Onde buscarei o bem e o mal? Dentro de mim, nas minhas coisas. E em relao s coisas alheias, jamais nome-las de bem, nem de mal, nem de coisa

    37 L., II, 19,13. 38 Diviso do existente em dois hemisfrios. O que depende ou est sobre mim, na minha esfera de ao e o que no est, constituindo a esfera daquelas coisas que correm por si mesmas e independem do arbtrio humano. 39 , ' . L., IV, 5, 7.

  • 13

    vantajosa, nem de coisa prejudicial, nem algum outro desses tipos...40

    Os que pensam que o estoicismo somente ensina indiferena e resignao,

    desconhecem o verdadeiro papel que cabe ao estoico: lutar constantemente com o

    forneo, escrutinando-o a cada passo, porquanto o homem educado na via estoica

    sabe que toda vez que comete uma escolha est ao mesmo tempo escolhendo a si

    mesmo, isto , se preservar sua liberdade ou se se submeter ao domnio do que

    est sob autoridade de outrem e ipso facto colocar algemas em si prprio.

    Precisa estar atento e vigilante principalmente diante das solicitaes

    opressoras e angustiantes da vida trazidas pelo destino. Se nessas ocasies

    confundir o seu com o alheio cair imediatamente na infelicidade e no infortnio:

    ...Onde o bem? Na escolha. Onde o mal? Na escolha. Onde nenhum, nem outro? Nas coisas fora da escolha...41

    O homem instrudo o que recebeu as diretivas de conduta da escola

    filosfica a que pertence e vive de acordo com elas. E o ponto crucial em sua

    formao saber antecipadamente a que se ater. H necessidade de um critrio

    que lhe permita a identificao e o consequente reconhecimento dos valores

    imprescindveis para o bom encaminhamento da vida, a fim de que essa venha a ser

    livre e desimpedida de quaisquer entraves.

    Que afinal o ser educado (paideusthai)? Aprender a harmonizar as prenoes fsicas s partes, proporcionalmente natureza, e quanto ao resto, separar (dielein) das coisas que so, as de nossa competncia. Cabem a ns a escolha e todas as coisas obras da escolha. No nos competem, o corpo, as partes do corpo, teres, parentes, irmos, filhos, ptria, simplesmente, os que nos

    40 ' ' . . ' ' ' . L., II, 5, 4-5. 41. { } . { } { } . { } { } . L., II, 16, 1.

  • 14

    acompanham. Onde ento colocaremos o bem? Com qual essncia ns adaptaremos o bem? Com o que de nossa competncia?...42

    1.5. Examinar as fantasias para us-las qual se deve

    A liberdade e a felicidade so provenientes do uso correto do critrio de

    avaliao e classificao dos bens e males. E uma vez identificado onde o bem e

    onde o mal, e as coisas indiferentes, no poder haver por parte do aprendiz de

    sabedoria vacilaes quanto ao caminho a tomar, analogamente afirmao de

    Jesus de que o homem no pode ser escravo a dois senhores, Epicteto ensina

    existir total incompatibilidade entre os valores da alma e o af por teres e haveres.

    No final do primeiro captulo do Enquirdio, Epicteto faz um alerta em relao

    ao poder de seduo das fantasias:

    Enfim, exercita-te rapidamente em acrescentar a toda fantasia bruta que s fantasia e de modo algum, o que se mostra (phainomenon)43. A seguir, investiga-a e submeta-a a esses cnones os quais tens, e em primeiro lugar esse e, sobretudo, qual dos dois, se a respeito das coisas sobre ns ou a respeito das coisas que no esto sobre ns, e se for algo a respeito das que no esto sobre ns, por isso, esteja mo: nada perante a mim44

    As coisas nem sempre so o que parecem ser, da o cuidado que o aprendiz

    h de ter com as aparncias. Muito embora no conste na passagem referncia

    direta ao hegemnico, todos os conselhos de sabedoria epictetianos que tm como

    tema as fantasias visam-no. Fidelssimo antiga escola o filsofo estoico

    42 , ' , ' ' , ' , , , , , , , . ' L., I, 22, 9. 43 To phainomenon, particpio neutro do verbo phainomai, eu me mostro, eu apareo, caracteriza-se pelo sentido de coisa aparecente ou aparente. No dicionrio tcnico epictetiano significa: no e se mostra. um tipo de phantasia. Uma phantasia fenomnica. Comunicao PUC do Rio de Janeiro, 04.06.2015. Ttulo do trabalho: A lmpada de ferro roubada (uma releitura). 44 . , , ' ' ' , E., I, 5.

  • 15

    aconselhava incansavelmente aos alunos salvaguardassem o hegemnico

    (hegemonikon) no trabalho incessante de purificao das fantasias para que ele no

    se tornasse refm do mundo exterior.

    Portanto, em primeiro lugar hs de purificar teu prprio hegemnico e adotar este programa: Agora tenho por matria minha mente (dianoia)45, como o carpinteiro a madeira, como o sapateiro o couro, e por obra o uso correto das fantasias...46

    As fantasias s conseguem exercer seu encanto persuasrio sobre aqueles

    que ignoram onde precisam colocar seus bens e seus males, por isso, em relao a

    eles, o homem deve se tornar um especialista, tanto quanto o especialista para

    identificar uma verdadeira dracma, distinguindo-a da falsa47. Diante de cada fantasia

    preciso exigir: mostra-me teus papis!48 :

    Eis a forma de ginstica que preciso exercitar desde a primeira luz da manh, acercando-te de quem veja, de quem ouas, examina-os, responde como se te perguntassem: Que vistes? Um belo homem ou uma bela mulher? Aplica a regra: Alheio a escolha ou sujeito a escolha? Alheio a escolha: lana fora. Que viste? Algum de luto por seu filho? Aplica a regra: a morte alheia escolha. Tira do meio. Encontraste-te com um cnsul. Aplica a regra: como o consulado? Alheio a escolha ou sujeito a escolha? Alheio a escolha: aparta tambm isso, no aceitvel, deixa-o, nada tem a ver contigo. E se fizssemos isso e nos exercitssemos todos os dias desde a alvorada at a noite, algo aconteceria, pelos deuses!...49

    45 De acordo com o informe de Digenes Larcio, Segundo os estoicos, a alma se compe de oito partes: os cinco sentidos, o rgo vocal, a faculdade de pensar (to dianoetikon que o prprio pensamento he dianoia) e a faculdade geradora.VII, 110. Essa referncia faculdade de pensar ao to dianoetikon e ao prprio pensamento he dianoia indica exatamente o hegemnico. o que faz Epicteto nessa passagem. 46 , , ' . L., III, 22, 19-21. 47 L., II, 2, 3. 48 L., III, 12, 15. 49 . , , , . . .

  • 16

    Epicteto acreditava plenamente que todo aquele que se submetesse de

    corpo e alma a essa disciplina frrea de escrutnio das fantasias, progrediria no

    caminho de capacitao para a felicidade, e que algo aconteceria seria justamente

    isso: o conseguimento da vida serena que nada mais que a vida livre e

    desimpedida. O exerccio preceituado conhecido tambm pela denominao:

    ascese do assentimento50. Epicteto repete incansavelmente ao longo de toda sua

    obra a imperiosa necessidade do cuidado no uso das fantasias51. O procedimento

    tem como principal tarefa defender o hegemnico dos ataques do mundo externo

    depurando os juzos das falsas fantasias:

    Pois, no tarefa do filsofo vigiar as coisas de fora, nem a pequena proviso de vinho ou a de azeite de oliva, nem o pobre corpo52, nem algo outro, seno o prprio hegemnico (hegemonikon). E como tratar as coisas forneas? Viver em conformidade com elas sem ser irracional. Onde ento seguir havendo ocasio para temer? Onde cessa o temor pelo alheio, pelo que no vale nada? Estas duas coisas preciso ter mo: que fora da escolha no h nada, nem bom, nem mau, e que no preciso guiar os acontecimentos, mas segui-los...53

    1.6. tica e ontologia entre o sobre ns e o no sobre ns

    O princpio de separao de competncias estabelece muito mais do que uma

    mera diviso de coisas: ... Por trs desta distino aparentemente banal, entre o que

    depende de ns ou no, se esconde ao mesmo tempo toda uma ontologia e toda

    uma tica... 54 Ontologia na medida em que indica no elo do homem com o universo

    em derredor uma relao em que este sofre de forma constante e involuntria

    alteraes (heteroiosis) pelas fantasias. Para Epicteto e para a antiga escola o

    50 Pierre HADOT, La citadelle intrieure, introduction aux Penses de Marc Aurle. 51 . 52 Todas essas expresses se encontram no diminutivo no original grego e indicam a inteno de apoucar a importncia delas junto a ns. 53 , , . ' . , , ' . L., III, 10, 16-18. 54 Pierre HADOT, Apprendre philosopher dans lAntiquit.

  • 17

    homem basicamente um ser de fantasias. tica porque isso posto o homem

    dever ter como principal preocupao o uso correto delas.

    A nosso ver, o que prevalece no fundo do princpio de separao de

    competncias um modelo modificado do que ensinou Plato no dilogo Fdon. O

    apartamento da alma do corpo que no conhecido dilogo platnico chamado de

    purificao (katharsis) foi substitudo por Epicteto pelo dualismo prohairtico55, ou

    seja, o ato de escolher (prohairesis) apresentado sempre em contraposio ao

    corpo e aos interesses que se desdobram a partir dele.

    Integrada ao novo dualismo a katharsis reaparece na tica de Epicteto como

    o imperativo de purificao das fantasias, porquanto nas doutrinas do ser e do

    conhecimento da stoa h a postulao de que a relao homem/mundo de cunho

    patolgico (pathos). vista disso, a tica estoica defende uma vigilncia permanente

    e acirrada ante as fantasias constituindo, como se pode verificar no Enquirdio de

    Epicteto, grande parte de suas admoestaes56.

    Quando Epicteto se refere carne (sarks) em oposio escolha

    (prohairesis) ou ao antagonismo entre as obras da alma ou do hegemnico (erga de

    psykhes), quais coisas que nos pertencem, e o corpo e seus amigos, como

    imprprios, alheios, ou ainda, quando afirma que nem o corpo, nem os seus

    membros (to soma,ta mere tou somatos) so o homem, no est a dizer outra coisa,

    seno que o essencial nele a parte diretriz ou hegemnico, uma vez que a sede

    do pensamento sendo distinto do corpo. De acordo com Jamblico:

    Assim como a maa apresenta num s e mesmo fruto, a doura e um agradvel perfume, tambm o hegemnico encerra em uma s entidade, fantasia (phantasian), assentimento (sunkatathesin), tendncia (horme) e razo (logon)...

    O dualismo metafsico platnico transposto para o universo estoico

    Epictetiano visa em primeira e ltima instncia o pneuma corpreo, centro decisrio

    do ser humano que necessita de cuidados sui generis para no se tornar vtima do

    55 L., I, 1, 24, I, 22,18; III, 1, 40-43; III, 18, 1-3; III, 22, 103-105; IV, 1, 100. Essas Lies dizem respeito s ao dualismo prohairesis/corpo. 56 So exemplos do cuidado de Epicteto com o poder psichaggico das fantasias, a saber: E., XVI; XVIII;XX e XXI.

  • 18

    mundo e da prpria vida. Por isso o homem haver de concentrar todas as

    atividades em suas foras espirituais, submetendo sua vida rigorosas asceses a

    fim de preparar o desprendimento imprescindvel para o conseguimento da

    liberdade.

    Ento perguntamos: por que a prohairesis colocada por Epicteto em

    contraposio a todos os interesses meramente humanos? Assumindo inclusive o

    dualismo platnico? No seria porque a prohairesis representa o hegemnico em

    ao, a alma do homem? Acreditamos que sim. A nosso ver, esta a razo por que

    Epicteto probe terminantemente o envolvimento da prohairesis com qualquer coisa

    que lhe sendo indiferente fuja sua alada. Somente assim o hegemnico,

    protegido dos ataques do mundo exterior, ser uma fortaleza tranquila e livre.

    2. A prohairesis como ao do hegemnico

    2.1. A pro-hairesis em sentido temporal e preferncial

    Distante h algumas centenas de anos dos fundadores57 da antiga stoa, o

    mais digno representante do estoicismo na era imperial romana conduziu suas lies

    discutindo com seus discpulos os ensinamentos herdados pelos que deram

    continuidade escola no fio tempo. Na poca em questo ser filsofo no tinha

    nada a ver com criar novos sistemas filosficos, mas sim, em optar por um gnero

    de vida e conformar-se a ele, assimilando os ensinamentos reunidos na escola

    escolhida na forma de teoremas para a orientao da vida prtica.

    Da decorreu a imprescindibilidade da presena do mestre apresentando no

    s na palavra, mas, sobretudo no prprio gnero de vida a eficcia dos princpios de

    57Eis a viso de Epicteto de uns dos fundadores da Stoa: Ento o que nos oferece CHRYSIPO? Que saibas diz que no so falsas essas coisas das quais resultam o curso sereno da vida e a ausncia de sofrimento na alma: toma meus livros e sabe como so conformes e harmoniosas natureza as coisas que me tiram o sofrimento na alma grande boa fortuna! grande benfeitor que mostra o caminho! Ora, todos os homens erguem templos e altares a Triptlemo, porque ele nos deu os alimentos do cotidiano. Porm, quele que descobriu e iluminou a verdade e a exibiu a todos os homens, no s sobre o viver, mas sobre o bem viver57, qual de vs lhe construiu um altar, ou lhe ergueu um templo ou esttua, ou agradeceu a Deus por ele? Oferecemos sacrifcios porque nos deram as vinhas ou o trigo, mas no damos graas aos Deuses porque produziram fruto de tal qualidade no pensamento humano, pelo qual desejaram mostrar-vos a verdade sobre a felicidade?. L., I, 4, 28-32. Traduo indita do doutor Aldo Dinucci diretamente do texto original grego.

  • 19

    sua escola introjetados e manifestados em termos de autodomnio e serenidade

    ontolgica. A pro-hairesis em sentido temporal, isto , como escolha antes da

    escolha- sentido unvoco no antigo Prtico -, indica que o mestre ao por mostra os

    dons adquiridos a partir de sua prpria escolha induz a escolha antes da escolha

    do discpulo.

    A escolha do discpulo antes de tudo seria a de ser como o mestre, de entrar

    na posse daqueles valores, tais como o autodomnio e a ontolgica serenidade.

    Muito embora Epicteto haja sido a prova viva da sabedoria, o que de per si

    inspiraria a escolha de qualquer seguidor, utiliza na maior parte das vezes o termo

    pro-hairesis em sentido preferencial. A pro-hairesis para ele a ao de escolher

    entre o proairtico e o aproairtico, entre o que est sobre mim e o que no est

    sobre mim, selecionando e elegendo o sobre mim, uma vez que apenas aquelas

    coisas sobre mim, segundo o dogma da escola, causam dano ao provocar males58.

    O que implicar tambm na suspenso de juzo. No livro em que se refere ao modo

    como o discpulo deve enfrentar as fantasias, demonstra o sistema de

    funcionamento do ato de escolher e selecionar (pro-hairesis) aquelas que merecem

    assentimento. A fantasia catalptica (phantasia kataleptike).

    Tal como nos exercitamos em face das questes sofsticas, deveramos igualmente, nos exercitar todos os dias frente das fantasias. Porque elas tambm nos pem interrrogaes. Morreu o filho de fulano. Responder: inelegvel (aprohaireton), no um mal. O pai de sicrano privou-o da herana. Que te parece? Inelegvel (aprohaireton), no um mal. Csar o condenou. Inelegvel, no um mal. Entristeceu por causa dessas coisas. Elegvel, um mal. Fulano suportou nobremente. Elegvel, um bem. E se nos acostumarmos a isso, avanaremos, pois jamais daremos nosso assentimento a qualquer outra, a no ser fantasia catalptica...59

    58 D.L., VII, 101. Das coisas existentes os estoicos dizem que algumas so boas e outras so ms, outras no so nem boas nem ms.. Como situam as boas e as ms no mbito de decises humanas e as nem boas e nem ms como indiferentes ao homem, todo mal ou bem que lhe acontea est subordinado a suas escolhas. 59 , ' . . , . []. , . . , . . , . . , . , . L., III, 8, 1-4.

  • 20

    Para Aristteles a prohairesis tambm tem um carter, mutatis mutandis, de

    elegibilidade: para ele ela era a deciso, o desejo deliberativo do que est em nosso

    alcance60. Como Epicteto usou muitas vezes a pro-hairesis no sentido de escolha,

    Jean-batiste Gourinat faz derivar diretamente de Aristteles o significado do termo.

    Entretanto, ligada ao sistema orgnico de pensar da stoa assume estrutura prpria

    uma vez que associada ideia de unidade da alma.

    2.2. Uma alma apenas

    E j foi demonstrado que a justia segundo Epicuro uma coisa, e aquela segundo os discpulos do Prtico outra, porque eles negam a diviso tripartite da alma...61

    Chrysipo, aquele que revelou aos homens a luz da verdade sobre o viver e o

    bem viver, e seus companheiros de escola, sustentaram a existncia no homem de

    uma nica alma: a parte diretriz, o hegemnico. Concebendo-a como corpo, Zeno e

    Crysipo estabeleceram, conforme a inspirao monista que os conduzia, uma

    diviso dela que na verdade to somente determina um centro dirigente, um ncleo

    fundamental e as partes por ele comandadas.

    Os discpulos de Crysipo e de Zeno e todos os filsofos que concebem a alma como um corpo consideram as funes como qualidades reunidas em um substrato e a alma como uma substncia subjacente s funes...62

    Seguramente, enquanto imperou a ideia de que a alma se repartia, ao menos,

    em dois stios diferentes, um sendo o pensar (noein) e outro o desejar (epithimein)

    como relata Aristteles63, no foi possvel determinar uma instncia segura na

    intimidade do homem como centro de poder unificado de decises. Conforme Acio:

    60 ARISTOTELES, E.N., III, 5, 1113a 10-11. 61 Origne, contre Celse V, 47, 10-13, Chrys. O.C. 62 Jamblico, De lme, chez Stobe, Anthologie I, 49, 33, 9-13, Chrys. O.C., p. 256. 63 ARISTTELES, Peri psyches, I, 5, 411-b.

  • 21

    Os estoicos afirmam que ela (a alma) composta de oito partes: cinco correspondentes aos sentidos (a vista, o olho, o odor, o gosto, o toque) a sexta corresponde voz, a stima genital, a oitava ao prprio hegemnico do qual todas as outras provem por extenso, com seu rgo prprio, de uma maneira anloga aos tentculos de um polvo...64

    2.3. Os dois princpios: o ativo e o passivo

    O status conferido ao hegemnico na organizao hierrquica da alma

    remonta antiga theoria da physis estoica, para a qual, como assevera Digenes

    Larcio, o que d origem a toda a realidade so dois princpios: o ativo e o passivo.

    O princpio passivo a essncia sem qualidade a matria -; e o ativo nela, o logos

    divino.65

    Com a insero do logos na matria inerte, produz-se a qualidade prpria

    (idios poion). A ao do logos funciona no estoicismo como princpio de

    individuao, j que sua presena engendraria qualidades no substrato material.

    Conforme Voelke,

    Aplicada ao homem, essa doutrina leva a considerar cada ser humano como um indivduo dotado de uma qualidade prpria e irredutvel. Sem a presena dessa qualidade prpria, o ser humano seria inteiramente reduzido ao substrato material que preexiste ao seu nascimento e subsiste aps sua morte. ela (a qualidade prpria) que faz dele o que ele : Scrates existe tanto tempo quanto sua qualidade prpria existe...66

    Quando o estoico determina o carter especifico de um ser ele encontra a

    disposio (heksis), pois cada ser est disposto de certa maneira constituindo sua

    diferena especfica. o que Epicteto demonstra nessa passagem do Peri

    kallopismou:

    64 ETIUS, IV, 4, 4 = Pseudo-Plutarque 898E6-F3, Chrys. O.C., p. 258. 65 ' , . , . D.L., VII, 134. 66 Andr-Jean VOELKE, LIde de volont dans Le stoicisme, pg. 14.

  • 22

    - Por conseguinte, tambm os homens, uns so belos, outros feios?

    - E como no?

    - Logo, segundo o mesmo , por acaso nomeamos belas, dessas , cada uma no mesmo gnero ou cada uma particularmente? Deste modo tu vers. Uma vez que vemos ter nascido para uma coisa o co, para outra o cavalo e para outra o rouxinol, assim, de modo geral, no absurdo algum chegasse a declarar ento cada um ser belo quando obtivesse o melhor segundo a sua natureza. E como a natureza de cada um diferente, parece-me ser de modo diferente a beleza de cada um deles, ou no? ...67

    Ao longo do percurso dessa lio de Epicteto ser desenvolvido o argumento

    que desembocar na confirmao da quididade humana por excelncia, a

    declarao exata de sua qualidade sui generis e, como a lio busca prestar

    esclarecimento queles que procuram a beleza, conclui: embeleze ento a tua

    escolha (prohairesis).

    Em outras palavras, a excelncia de cada ser est subordinada sua

    disposio (heksis), porque a qualidade especfica a que torna cada um o que .

    No caso do homem, quanto mais este atentar para o acrisolamento de sua

    prohairesis mais se aproximar da plena realizao de sua essncia, a humana.

    Segundo a antiga escola a qualidade prpria (idios poion) ou disposio

    (heksis) decorre do princpio ativo nsito no passivo, contudo, aquele que confere

    unidade orgnica ao ser individuado o pneuma, o sopro. Como aventa Voelke:

    em virtude de sua quididade que a qualidade ou disposio reveste uma certa forma. Essa forma no consiste em um arranjo impresso de fora e mantido por uma ao exterior, mas exprime aquilo que um ser por si mesmo, graas a uma ao cujo princpio est nele mesmo. Essa ao unifica interiormente a matria constituindo o ser. graas a ela que o ser uma unidade orgnica e no um simples amontoado de partes exteriormente ajustadas umas sobre as outras, como em um navio (...) O princpio unitivo que se manifesta na qualidade ele de natureza corporal. um sopro ou pneuma...68

    67 , ' { } { } ' . , [] ' , ' , ' , ' ' , L., III, 1, 2-3. 68 Andr-Jean VOELKE, LIde de volont dans le stocisme.

  • 23

    Causa primeira da qualidade na matria passiva, o pneuma atua sobre si

    mesmo, mantendo sua prpria unidade. Uma vez que a razo de seu prprio

    movimento constitui-se basicamente em tenso (tonos) autodeterminante capaz de

    impor sua fora a partir de dentro para fora. Conforme Nemsius:

    O movimento do pneuma chamado tonos, isto , tenso. No se trata de uma translao de um lugar a outro, mas de um duplo movimento provavelmente de natureza vibratria ou ondulatria -, se propagando simultaneamente em dois sentidos: do interior dos corpos para o exterior, e inversamente. Como movimento centrpeto a tenso produz a unidade do ser, como movimento centrfugo, suas qualidades...69

    Ora, essa a descrio da forma de atuao do hegemnico, pneuma gneo

    que atravs de tenso (tonos) gera qualidades. Chrysipo tambm lhe atribui o papel

    de recipiente das afeces que chegam de fora. Ao situ-lo no corao, demonstra

    claramente a inteno de conjugar emoo e razo numa mesma base, lanando

    para longe a crena na existncia de uma hipstase irracional na a alma que a

    dividiria em duas ou mais partes. Como afirma Galeno:

    A doutrina sobre as afeces da alma nos necessrio igualmente examinar com propriedade, e esse exame impem-se mais prioritariamente em relao a Chrysipo e sua escola, pois que dela fazem uso para indicar o lugar em que se situa a parte diretora da alma, o hegemnico. Tendo com efeito demonstrado que creem que todas as afeces so reunidas no corao, quando na verdade se trata somente das afeces ligadas parte agressiva, e acrescentam em seguida que se as afeces da alma se encontram nesse lugar, a parte racional da alma se encontra igualmente, e terminam dessa maneira por situar a parte racional no corao...70

    notria a metfora chrysipiana que explica o sistema de atuao do

    hegemnico em relao s sensaes, analogamente, ao modo como a aranha no

    centro de sua teia registra a presena de sua presa atravs de simples toque. Pierre

    Hadot ao passo que reproduz o pensamento de Chrysipo explica-o da seguinte

    forma nesta passagem:

    69 NMSIUS, Sur La nature de lhomme 2, 44-60, Chrys. O.C. 70 GALIEN, Sur les doctrines dHippocrate et de Platon V, 1,1,1-2,6, Chrys. O.C.

  • 24

    Eu acabei de empregar a palavra . Contudo seria melhor falar de princpio diretor da alma, aquilo que os estoicos chamam de hegemonikon e que corresponde parte superior da alma, parte que raciocina. Como uma aranha no meio de sua teia percebe todas as vibraes dos fios, o hegemonikon situado no corao, percebe tudo que afeta o corpo. Esse hegemonikon um princpio de percepo crtica, porque no somente, como a aranha, percebe a ao dos objetos exteriores, mas exerce tambm uma atividade crtica: ele desenvolve um discurso interior; para exprimir aquilo que sente emite juzos de valor, e d ou no seu assentimento a esse discurso interior, a esses juzos de valor. Mas tambm princpio de movimento, uma vez que em funo dos sinais recebidos e interpretados pelo hegemonikon, este d um impulso para agir (horme) de tal ou tal maneira...71

    Como podemos verificar, o hegemnico, para os fundadores do prtico, o

    comandante supremo da alma. Seu campo de atuao abrange as funes anmicas

    mais altas, pois que as maneja desde dentro segundo a tenso (tonos) que lhe

    prpria. Conforme Acio:

    Os estoicos afirmam que o hegemnico a parte mais alta da alma, aquela que produz as fantasias, os assentimentos, as sensaes, as tendncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos)...72

    Quando os antigos se referem tendncia no pensam apenas no impulso

    para agir, tm em mente tambm o campo das paixes. Nisso Epicteto no segue a

    velha escola dado que destaca o desejo (oreksis) do campo da tendncia. nesse

    domnio que fundar sua teraputica das paixes. Gourinat afirma que,

    No estoicismo de Epicteto, a diviso tradicional dos impulsos racionais se v substituda por uma diviso entre horme e oreksis: Epicteto lhe acrescenta o assentimento para formar os trs domnios da filosofia. Para ele, oreksis e enklisis no so mais a inclinao e o rejeito, as duas formas prticas da impulso, essas so duas funes da alma diferentes da impulso e da repulso. As trs principais funes da alma so, pois a oreksis concebida como desejo, a horme concebida como tendncia e o assentimento concebido do mesmo modo que o antigo estoicismo...73

    71 Ilsetraut e Pierre HADOT, Apprendre philosopher dans lAntiquit, pg.28. C(h)alcidius, commentaire sur le Time 220, Chrys. O.C. 72 847. ATIOS IV, 21, 1-4 = Pseudo-Plutarque 90312c-10, Chrys. O.C. 73 Jean-Batiste GOURINAT, Les stociens et lme, p. 91.

  • 25

    2.4. O hegemnico e as asceses epictetianas

    Se levarmos em conta a alta posio do hegemnico na economia da alma

    aos olhos dos iniciadores da stoa, entenderemos o que est em jogo nos exerccios

    espirituais de Epicteto. Embora no haja em nenhum deles referncia expressa ao

    hegemnico basta uma simples averiguao para constatar que todos eles tm-no

    como ponto de partida e de chegada.

    So trs os domnios a respeito dos quais o homem precisa se exercitar para se tornar bom e honrado, o a respeito ao ato de desejar e de evitar (tas orekseis kai tas enkliseis), para que no se veja frustrado em seus desejos nem venha a cair em volta do evitado; o relativo aos impulsos e repulsas (tas hormas kai aphormas) ou simplesmente o domnio da convivncia (dever) para que atue em ordem, com reflexo, e sem negligncia ou descuido; o terceiro aquele que concerne fuga do erro, prudncia do julgamento, em uma palavra o que se refere aos assentimentos (tas sunkatatheseis)...74

    Nos trs domnios de exerccio ou topoi como Epicteto os chamava,

    comprovamos as funes ligadas parte dirigente da alma. A esfera das paixes

    regida pela disciplina do desejo (oreksis), o domnio da tica regido pela disciplina

    do impulso (horme) para a ao e a ascese ligada esfera das fantasias, na

    disciplina do assentimento (synkatathesis).

    Tais exerccios existem com a nica finalidade de defender o hegemnico das

    arremetidas do mundo circundante. Os que no praticam a ginstica de esprito, a

    arte de viver preceituada nos topoi epictetianos so aqueles com maior tendncia a

    se tornarem presas fceis diante das incontveis armadilhas que cercam o caminho

    dos que confundem o seu com o alheio, pratica totalmente desaconselhada no

    mbito da ascese do desejo.

    Epicteto alerta que quando descuidamos de nossos desejos e de nossos

    rechaos na verdade estamos descurando da parte dirigente da alma, do

    hegemnico:

    74 L., III, 2, 1-3.

  • 26

    Desditado, qual de tuas coisas vai mal? A propriedade? No, porque s rico em ouro e bronze. O corpo? No. O que vai mal? Qui aquilo que tens descuidado e estropiando-se, com o que desejamos, com o que rechaamos, com o que sentimos impulsos e repulsas. Descuidado como? Ignora a essncia do bem para a qual nasceu e a do mal e o que seu e o que alheio. E quando algo alheio vai mal diz: ai de mim que os gregos correm perigo! (pobre hegemnico descuidado e desatendido!)...75

    Como podemos verificar, discernir o prprio do alheio vital para a garantia

    da boa sade do hegemnico, e a forma ideal de atend-lo em suas necessidades

    no concernente manuteno de sua estabilidade diante do mundo externo. Ora, a

    separao que prepara o discernimento entre o que bom o que mau, e o que

    indiferente, ou seja, a operao que estabelece quem quem quando se trata de

    avaliar as ocorrncias que cercam a existncia do homem, superveniente do ato

    de escolher, da prohairesis. Por isso basta que o homem siga aos deuses no tocante

    quelas coisas que no dependem dele para que seu hegemnico se mantenha em

    paz.

    Pois, no tarefa do filsofo vigiar as coisas de fora, nem a pequena proviso de vinho ou a de azeite de oliva, nem o pobre corpo76, nem algo outro, seno o prprio hegemnico (hegemonikon). E como tratar as coisas forneas? Viver em conformidade com elas sem ser irracional. Onde ento seguir havendo ocasio para temer? Onde cessa o temor pelo alheio, pelo que no vale nada? Estas duas coisas preciso ter mo: que fora da escolha (prohairesis) no h nada, nem bom, nem mau, e que no preciso guiar os acontecimentos, mas segui-los... 77

    No dialeto epictetiano a realidade espiritual78 do homem ainda que corprea

    vezeiramente designada em contraposio s coisas exteriores, como no exemplo

    acima, o rol de exterioridades inclui muitos itens, desde os menores, tais como a

    75 L., III, 22, 31-33. 76 Todas essas expresses se encontram no diminutivo no original grego e indicam a inteno de apoucar a importncia delas junto a ns. 77 , , . ' . , - , ' . L., III, 10, 16-18. 78 Apud. A.d. BONHFFER via j na prohairesis a designao do ser espiritual em sua totalidade. Andr-Jean VOELKE, LIde de volont dans Le stoicsme.

  • 27

    pequena proviso de vinho ou de azeite de oliva at abranger gradativamente a

    casa, o campo, toda posse em geral, mas tambm, o prprio corpo, os membros do

    corpo, os cargos, as eventualidades, os familiares, a herana, os amigos.

    2.5. O hegemnico e a prohairesis antepostos s coisas exteriores

    Como contrapartida ao externo e forneo Epicteto costumava indicar tanto o

    hegemonikon, quanto a prohairesis, tomando um pelo outro indistintamente, ou seja,

    como termos sinnimos para designar o de que o praticante de filosofia deveria se

    ocupar dedicando todos os seus esforos, todos os seus cuidados.

    H de ser um homem bom ou mau. H de cultivar ou o prprio hegemnico ou as coisas exteriores, ou seja, possuir a disposio de um filsofo ou de um particular...79

    A sinonmia entre os termos hegemonikon e prohairesis tambm aparece em

    muitas passagens em que Epicteto afirma a necessidade de se viver segundo a

    natureza, princpio zenoniano de mxima importncia para a stoa desde seu incio.

    Para Epicteto h uma hierarquia de valores muito clara. Se os valores da alma so

    mais estimveis do que as coisas forneas no devemos ficar divididos entre estas e

    aqueles, mas antes, nos decidirmos a nos deter e cuidar do que realmente importa -

    o hegemnico.

    No podes ter por objeto de teus cuidados as coisas exteriores e teu prprio hegemnico. Se quiseres este, deixa aquelas. Caso contrrio, no ters nem estas, nem aquele, distrado com ambas as coisas. Se quiseres isso, hs de deixar aquilo. Meu azeite ser derramado, minha pobre moblia destruda: mas eu permanecerei impassvel. Um incndio se deflagrar na minha ausncia e meus livros perecero,

    mas eu usarei minhas fantasias conformemente natureza...80.

    79 L., III, 15, 13. 80 L., IV, 10, 25-26.

  • 28

    O mantimento da impassibilidade do hegemnico depende do uso das

    fantasias e a prohairesis justamente a escolha que separa e classifica os bens e

    males como dependentes de ns, e os indiferentes guisa de no dependentes de

    ns. Para se utilizar bem as fantasias preciso saber determinar os mbitos de

    pertena. Caso contrrio, toda perda externa seja ela qual for afetar o equilbrio

    interno do ser.

    Da mesma maneira, portanto, nisto consiste a tarefa principal da vida. Distinga e separe as coisas e diga: as exteriores no dependem de mim, a escolha (prohairesis) depende de mim. Onde buscarei o bem e o mal? No interior, em mim. Portanto, jamais qualifiques as coisas alheias como bem nem como mal, nem como proveitoso nem como prejudicial, nem com algum outro nome desse tipo...81

    A filosofia epictetiana prope basicamente uma troca. O externo pelo interno.

    O de fora pelo de dentro. Do lado de dentro temos o hegemnico, a prohairesis e

    isso o que importa. A troca exige renuncia, abdicao. Entretanto, ao abrir mo do

    prurido de reconhecimento, da ganncia por dinheiro, da disputa desenfreada pela

    conquista de privilgios e cargos, o praticante de filosofia se habilita a entrar na

    posse de bens muito mais preciosos, tais como, a libertao do sofrimento, a

    libertao da inquietude e a libertao que propcia a liberdade.

    Pensas que podes, ao empreenderes o filosofar, comer do mesmo modo, beber do mesmo modo, desejar de modo semelhante, irritar-te de modo semelhante? preciso que passes noites em claro, que te fatigues, que fiques distante da famlia, que sejas desprezado por um pequeno escravo, que todos os que te encontrem riam de ti, que tenhas a menor parte em tudo, nas honras, nos cargos pblicos, nos tribunais, em todo tipo de assunto de pequena monta. Considera essas coisas se queres receber em troca delas a ausncia de sofrimento, a liberdade, a ausncia de inquietude. Caso contrrio, nem comeces. No como as crianas: agora filsofo, depois coletor de impostos, em seguida orador, logo procurador de Csar. Essas coisas no combinam. preciso que sejas um homem, bom ou mau. preciso que cultives ou a tua prpria faculdade diretriz (hegemonikon) ou as coisas externas. preciso que pratiques ou a arte acerca das coisas interiores ou a acerca das exteriores. Isto : preciso que assumas ou o posto do filsofo ou o do homem comum...82

    81 L., II, 5, 4-5. 82 E., XXIX, 6-7.

  • 29

    Assim sendo o aspirante vida filosfica deve concentrar-se laboriosamente

    no cuidado do hegemnico tratando atenciosamente de sua prohairesis, trabalho de

    separao e selecionamento dos bens, dos males e dos indiferentes, jamais

    misturando-a com valores externos.

    A essncia do bem certa classe de escolha (prohairesis), a do mal certa classe de escolha (prohairesis). Que so ento as coisas externas? Matrias para a escolha que segundo seu comportamento em relao a elas, alcanar seu prprio bem ou mal. Como alcanar o bem? Se ela no admira as matrias. Pois, se as opinies sobre as matrias so corretas, elas tornam boa a escolha, mas se so torcidas e desviadas, tornam-na m. A divindade ps esta lei e disse: se queres algo bom, toma-o de ti mesmo. Mas, tu dizes: no. Tomo-o de outro...83

    Como vemos, para o filsofo estoico no existe a possibilidade de se recolher

    males ou bens de acontecimentos que sucederam ou sucedem revelia da vontade

    humana, todo mal e todo bem resulta necessariamente das escolhas que o homem

    fez ou faz. Isso porque Epicteto considera que as coisas pertencentes a outros so

    irremediavelmente escravas, logo, h que colocar todo empenho em separar o que

    da alteridade daquilo que propriamente nosso. Quando confundimos essas duas

    ordens de propriedades, pomos em risco o bem mais precioso para Epicteto, - a

    liberdade.

    Lembra ento, que se consideras as coisas escravas por natureza, livres, e as coisas alheias, prprias, sers impedido, estars triste e perturbado, censurars tanto os deuses como tambm os homens. Mas se consideras ser teu, somente o teu, e o alheio, como , alheio, ningum te obrigar, nem te impedir, no censurars a ningum, tampouco acusars a algum, nenhuma ao contra vontade, ningum te prejudicar, no ters inimigo, uma vez que ningum te convencer de algo danoso.84

    Sempre que Epicteto comete afirmativas desse jaez o hegemnico e a

    prohairesis esto no centro de suas preocupaes. Ipso facto reproduz a mancheias

    alertas e lembranas acerca de como se deve usar com corretismo o ato de

    83 L., I, 29, 1-4. 84 Ou seja, que tenha sofrido algo de danoso. Ningum nos convencer de havermos sido prejudicados.

  • 30

    escolher: ... Lembra-te, simplesmente, de que se estimares qualquer coisa fora de

    tua prpria escolha (prohairesis), esta ser destruda...85. Toda vez que

    comprometemos a prohairesis escolhendo como nosso o alheio, desguarnecemos

    de proteo o hegemnico, deixando-o a merc de ataques externos e sem abrigo.

    preciso colocar a prohairesis do lado das coisas que nos pertencem propriamente,

    ento, somente ento o eu, digo, o hegemnico no sofrer dominncia estranha,

    assumindo o seu lugar de princpio diretor da alma.

    Pois onde estiver o eu e o meu, para l necessariamente pender o ser vivente: se na carne, l estar o que domina, se na escolha (prohairesis), l o que domina, se nas coisas exteriores, l o dominante. Se ento eu estiver l onde a escolha tambm estiver, somente assim serei amigo, filho e pai como se deve...86

    Afirmamos algumas linhas atrs que Epicteto no esforo de mostrar a

    imperiosa urgncia de se separar o que prprio do homem do que lhe

    secundrio e at dispensvel, desdobra muitos exemplos em sua obra, ora opondo a

    prohairesis contra as coisas exteriores, ora o hegemnico. Disso j apresentamos os

    exemplos. Mas ainda faltam os concernentes s afirmativas de Epicteto que se

    referem ao viver segundo a natureza. Nesses ensejos o filsofo estoico lana mo

    tanto do hegemnico como da prohairesis maneira de realidades indiscernveis.

    2.6. Hegemnico e prohairesis conformes a natureza

    Iniciemos pelo hegemnico. Arriano nos narra um episdio em que o mestre

    de Nicpolis questionado a respeito do desenvolvimento da lgica nos tempos

    idos, creio que poca de Crysipo, comparando-a com o estgio alcanado naquele

    momento em que se encontravam, quando Epicteto assevera:

    Em que se trabalha e em que eram maiores ento os progressos? No que se trabalha agora, nisso se acharo tambm agora

    85 L., IV, 4, 23. 86 , , , , . , , . L., II, 22, 19-20.

  • 31

    progressos. E agora se trabalha em resolver silogismos e nisso fazem progressos; mas antes se trabalhava em procurar que o hegemnico fosse acorde com a natureza e nisso faziam progressos. No te confundas, nem procures avanar em uma coisa quando trabalhas em outra, mas observa se algum de ns estando nesse atuar e viver conforme a natureza no avana. No achars ningum...87

    No poucas vezes Epicteto refletir sobre o significado do verdadeiro

    aprimoramento face do arremedo do cultivo ntimo. A filosofia sendo para ele um

    modo de viver jamais poderia ser transformada num pretexto para pavoneamentos e

    pedantismos. Por isso, para ele o mais importante o trabalho do discpulo consigo

    mesmo, o cultivo do eu, do hegemnico, o bom trato das escolhas, o bom uso das

    impresses.

    A matria do homem bom e honrado seu prprio hegemnico. O corpo matria do mdico e do massagista; o campo do campesino. A obra do homem bom e honrado consiste na serventia das impresses em conformidade com a natureza...88

    Vendo ser muito fcil o discpulo inexperiente cair nas armadilhas do

    caminho do melhoramento prprio, reproduz profusamente os conselhos que

    mostram os desvios da estrada ao modo de estaes aprazveis do percurso em que

    os viajantes se esquecem de seguir viagem. Um desses descaminhos a

    permanncia exclusiva na estncia do estudo, da leitura, com o completo

    esquecimento da vivncia dos ensinamentos, dos princpios, das regras de conduta.

    Mas, eu no filologo? Por causa de que filologas? Escravo, no para ser feliz? No para ter um curso sereno? No para que te mantenhas e dirijas at ao fim em conformidade com a natureza? E que te impede em tendo febre manter o teu hegemnico em conformidade com a natureza? A est a confirmao do assunto, a prova do filosofante. Pois tambm isso parte da vida; como o passeio, a navegao, as viagens; igualmente a febre...89

    87 L., III, 6, 1-4. 88 L., III, 3, 1. 89' { } ' , ' , . , , , , . L., III, 10, 10-11.

  • 32

    Os princpios ou regras (theoremata) existem para orientar a conduta prtica

    do discpulo na vida e no para que se torne um amante de palavras destitudo de

    qualquer preocupao com a aplicao deles. ... Diante do que os filsofos tm

    regras (theoremata90)? Para isto: para conservar e dirigir at ao fim o hegemnico

    conforme a natureza suceda o que suceda...91

    O que de fato interessa filosofia estoica a absoro das regras de vida por

    parte do discpulo a fim de que apresente um hegemnico altura dos eventos que

    ocorrem sua revelia.

    Aqueles que receberam puros princpios, sem mais querem rapidamente vomit-los como fazem com a comida aqueles que sofrem do estmago. Comece por digerir os princpios e no os vomite assim. Seno se transformaro de verdade em vmito, coisa impura e indigervel. Pelo contrrio, a partir de hav-los digerido, mostra-nos alguma mudana em teu hegemnico, como os atletas, os ombros conforme exercitaram e comeram...92

    O hegemnico se torna invencvel quando suspende a escolha do campo em

    que no tem capacidade de ingerncia, quando aceita que o que sucede, sucede

    assim como sucede por conta do destino, se concentrando to somente em sua

    esfera de ao.

    Que outros se exercitem em pleitos, outros em problemas, outros em silogismos! Tu em morrer, em ser aprisionado, em ser atormentado, em ser desterrado. E tudo isso valorosamente, confiando em quem te chamou para isto, nele que te julgou digno desta terra a qual foste destinado e em que mostrars de que capaz o hegemnico lgico (logikn hegemonikon) quando se ope s foras alheias ao arbtrio (aproairetous)... 93

    do conhecimento de todos que Epicteto aps sofrer desterro por parte de

    Domiciano fundou uma escola em Nicpolis no piro. L recebia os alunos em

    regime de seminrio. O que significa que os estudantes deixavam seus lares, suas

    90 Os theoremata estoicos so muito mais do que simples regras, encerram em si a leitura estoica da realidade ao mesmo tempo em que indicam a forma de conduo da vida prtica. 91 { } , , . L., III, 9, 11. 92 L., III, 21, 1-3. 93 L., II, 1, 38 -39.

  • 33

    aldeias, suas cidades para viverem por um tempo junto ao mestre estoico.

    Naturalmente, de quando em vez, um ou outro desses alunos enfermava. numa

    circunstncia dessas que presenciamos o mestre estoico aconselhando um aluno

    adoentado.

    Aqui estou enfermo, disse um estudante, quero voltar para minha casa. Mas, em casa estaria imunizado contra a doena? No queres examinar se realizas aqui esses atos que contribuem para a correo de teu ato de escolher (prohairesin)? Porque se no avanas em nada, tua vinda para c foi intil. Ocupa-te dos afazeres de tua casa. Se teu hegemnico no pode se manter em conformidade com a natureza, teu pequeno pedao de campo, ao menos, poder; aumentar, ao menos, a pequena fortuna; cuidars de teu velho pai, andars pela praa, ters um cargo. Miservel, fars todo resto miseravelmente...94

    Aqui percebemos sem equvocos o que queremos demonstrar. A correo no

    ato de escolher, da prohairesis significa nada mais nada menos do que o

    mantimento do hegemnico em conformidade com a natureza. O livre curso do

    hegemnico entre os empeos naturais do caminho depende em primeira e ltima

    instncia da escolha, da prohairesis. Ora, quem o que escolhe seno que o prprio

    hegemnico? A garantia da paz de esprito, da serenidade do hegemnico

    descansa sobre as bases do uso que ele mesmo faz de suas escolhas. Por isso que

    na maioria das vezes em que a prohairesis citada por Epicteto, junto a ela aparece

    o hegemnico. tambm por que, frequentemente, um tomado pelo outro.

    Neste excerto podemos verificar a relao estreita entre a prohairesis e o

    hegemnico:

    H apenas um caminho de curso suave e livre (e isso esteja mo desde o nascer do sol e junto ao dia e a noite) o de renunciar as coisas que no dependem de escolha (aproaireton), nada considerar como prprio, entregar tudo divindade, fortuna, pondo-as no lugar de cuidadoras destas coisas de que Zeus as encarregou, nos consagrar a uma s tarefa, quela que nos prpria, quela que livre de todo entrave, e ler referindo nossas leituras a esse fim, e escrever e escutar do mesmo modo. Por isso no posso chamar algum de laborioso se ouo que apenas l ou que escreve; e mesmo que algum acrescente que faa isso todas as noites, eu no poderei cham-lo assim, a no ser que conhea qual o seu fim.

    94 L., III, 5, 1-4.

  • 34

    Porque tampouco chamas laborioso aquele que no dorme por amor a uma jovem mulher; nem eu. Mas se age assim pela glria, eu o chamo ambicioso; se pelo dinheiro, eu o chamo avarento, no laborioso. No entanto, se o hegemnico for o fim de seus esforos, se ele trabalha para conserv-lo em pleno acordo com a natureza, somente ento eu o chamarei de homem laborioso...95

    Como pudemos verificar, Epicteto manifesta em vrios extratos de sua obra a

    preocupao com a manuteno do hegemnico harmonizado com a natureza. Nas

    passagens que seguem agora, constataremos que Epicteto apresenta a prohairesis

    de modo semelhante forma como apresenta o hegemnico.

    Afinal, onde o progresso? Se algum de vs se aparta do externo e centraliza o interesse em sua escolha (prohairesis), em cultiv-la e model-la de modo a que esteja em harmonia com a natureza, elevada e livre, sem impedimentos, sem travas, leal e respeitosa; se aprendeu que o que deseja ou recusa o que no depende dele no pode ser leal nem livre, seno que por fora se modificar e se ver arrastado para isso e por fora ele mesmo se subordinar a outros, aos que podem fornecer ou impedir isso, e se ento, ao se levantar pela manh, observa e guarda esses preceitos, se banha como pessoa leal, respeitosa, come do mesmo modo, praticando em qualquer matria os princpios que o guiam, como se aplica o corredor corrida e o maestro ao canto no cultivo da voz, esse o que progride de verdade e o que no saiu de casa em vo...96

    Nesse fragmento testemunhamos todos os elementos que antes apareceram

    associados ao hegemnico. O sentido do progresso, o apartamento das coisas

    exteriores, o estar em relao harmnica com a natureza, a concentrao no cultivo

    e na modelao, no mais do hegemnico, mas, da prohairesis.

    Se queres progredir, conforma-te em parecer insensato e tolo quanto s coisas exteriores. No pretendas parecer saber coisa alguma. E caso pareceres ser algum para alguns, desconfia de ti

    95 ( ' ), , , , , , , , , , . , , , , , , . ' . ' , , ' , , . ' , ' , . L., IV, 4, 39-44. Traduo de Joseph SOUILH com algumas modificaes feitas pelo autor. 96 L., I, 4, 18-21.

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    mesmo, pois sabe que no fcil guardar a tua escolha (prohairesis), mantendo-a de acordo com a natureza, e, as coisas exteriores, mas necessariamente quem cuida de uma descuida da outra...97

    2.7. A faculdade diretriz da alma enquanto escolhe prohairesis

    Percebendo a constante alternncia entre os termos prohairesis e

    hegemnico nas Lies de Epicteto Gourinat formulou a seguinte tese:

    evidentemente pensando na prohairesis como uma faculdade que Epicteto a identifica com o eu. Igualmente, em III, 5, quando fala de da prohairesis, no lugar de dizer, como ele diz frequentemente, que necessrio se empenhar em conservar ou em tornar sua prohairesis em conformidade com a natureza, aplica esta frmula parte hegemnica da alma, implicando que a prohairesis se encontra na parte hegemnica da alma, e at mesmo que, de certa maneira, a prohairesis a parte diretriz da alma. A prohairesis aparece ento essencialmente como uma faculdade de escolher, habitualmente identificada ao eu para Epicteto, mesmo se nem sempre seja o caso...98

    Sendo a prohairesis a faculdade de que faz uso o hegemnico para atuar

    sobre o desejo, a tendncia e o assentimento, temos que ela representa o prprio

    hegemnico em ao. Ora, o hegemnico, como sabemos, o princpio diretor da

    alma, a parte governante da psykhe, logo, a alma do homem compreendida em

    sentido volitivo-diretivo.

    Definir a prohairesis como ao do hegemnico, no s nos parece o

    caminho natural de entendimento de sentido desta atividade extremamente

    importante para Epicteto, seno que tambm, no ponto de vista etimolgico mais

    coerente do que a notria traduo do termo cometida por Joseph Souilh. Se

    seguirmos o sufixo sis da palavra prohaire(sis) esse indicar ao, enquanto que

    o termo pessoa moral de Souilh no