O Corcunda de Notre-Dame - Victor Hugo

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Transcript of O Corcunda de Notre-Dame - Victor Hugo

  • Prefcio

    H alguns anos, o autor deste livro, visitando, ou melhor dizendo,esquadrinhandoa igrejadeNossa Senhora, encontrou, numescuro recantodassuastorres,aseguintepalavragravadamonumaparede:

    (Fatalidade).

    Estes carateres gregos, j negros de velhos, e profundamente gravadosnapedra, no sei que sinais particulares da caligraia gtica, impressos nassuas formas e nas suas atitudes, como para indicar que fora um punhomedievalqueosescreveraali,eprincipalmenteaintenolgubreefatalquecontm,impressionaramvivamenteoautor.

    Perguntouasimesmoqualpodiaseraalmaangustiadaquenoquiseraabandonar o mundo sem deixar gravado na fronte da velha igreja esseestigmadecrimeoudedesgraa.

    Como tempo, rebocaramou rasparam (ignoroqualdasduas coisas)aparede,eainscriodesapareceu.Hunsduzentosanosquecostumefazeristo nos maravilhosos templos da Idade Mdia. As mutilaes procedem detoda a parte, de dentro e de fora. O padre reboca-os, o arcediago raspa-os;depois,vemopovoqueosdeitaporterra.

    Assim,almdafrgilrecordaoquelheconsagraaquioautorjnadamais resta hoje da palavra misteriosa gravada na sombria torre de NossaSenhora,nadadodestino ignoradoque tomelancolicamente representava.O que escreveu essa palavra nessa parede, apagou-se na memria dasgeraeshmuitossculosj;apalavra,aseuturno,desapareceudaparededotemplo,comoestedesaparecerdaterra,muitobrevetalvez.

    Foidessapalavraquenasceuestelivro.

    1demaro,1831.

  • Livroprimeiro

  • I.Agrandesala

    Fazem hoje hoje trezentos e quarenta e oito anos, seis meses edezanove dias que os parisienses despertaram ao repique de todos ossinosbadalandonotrplicerecintodaCit,daUniversitedaVille.[1]

    No entanto, o dia 6 de janeiro de 1482 no igurava nos livros dehistria. Nada havia de notvel no acontecimento que assim agitava, logodemanh,ossinoseosburguesesdeParis.Nemsetratavadeumtorneiodepicardosoudeborguinhes,[2]nemdaconduoprocessionaldeumarelquia, nem de uma insubordinao de estudantes na cidade de Laas,nem de uma entrada donosso muito temido senhor o senhor rei , nemmesmodum suplciomirabolante de ladres e ladras na Justia de Paris.No era, to pouco, o aparecimento, to frequente no sculo quinze, dequalquer embaixada, agaloada e empenachada. Ainda no eramdecorridos dois dias que a ltima cavalhada deste gnero, a dosembaixadoreslamengosincumbidosdetratarocasamentoentreodelim[3] eMargarida de Flandres, izera a sua entrada em Paris, com grandepesar do senhor cardeal de Bourbon, que, para ser agradvel ao rei, seconstrangeu a receber amavelmente toda essa turba rstica deburgomestres[4] lamengos, obsequiando-os, no seu palcio deBourbon,comrepresentaesdeautos,comdiasefarsas,enquantoachuvacaindoacntaroslheinundavaportaosmagnficostapetes.

    Nesse dia, a 6 de Janeiro, o queagitava de emoo o povo de Paris,comodiz JehandeTroyes,eraaduplasolenidadedosReiseda festadosLoucos,celebradasaomesmotempo,hlongosanosj.

    Nesse dia queimar-se-iam fogueiras na Greve, haveria plantao demaio[5]nacapeladeBraqueemistrionoPalciodaJustia.Devspera,os alabardeiros do sr. preboste, trajando belas fardas de camelo violetacom cruzes brancas no peito, haviam lanado o prego pelasencruzilhadas,aosomdetrompas.

    Logo pela manh, tudo fechado ainda, casas e lojas, a multido de

  • burgueseseburguesasvindosdetodosospontosdacidade, iaacaminhodos trs lugares designados. A escolha estava feita; uns optavam pelasfogueiras, outros pelo mastro, outros pelo mistrio. Diga-se sempre emhonra do velho bom-senso dos basbaques de Paris, que a maior partedessa multido se dirigia para as fogueiras, diverso mais prpria daestao,ouparaomistrio,quedeviaserrepresentadonagrandesaladoPalcio,bemabrigadae fechada;equeoscuriososeramtodosconcordesemdeixaropobremastrotemporotiritar,sozinho,sobosrigoresdocudejaneiro,nocemitriodacapeladeBraque.

    O povo concorria principalmente s avenidas do Palcio da Justia,porque era sabido que os embaixadores lamengos, chegados na ante-vspera, tencionavam assistir representao domistrio e eleio dopapadosLoucos,quetambmdeviaverificar-senagrandesala.

    Naocasio,noera coisa fcil entrarnagrande sala, quenoentantopassavaaotempoporseromaiorrecintocobertodetodaaterra.ApraadoPalcio,apinhadadegente,ofereciaaoscuriososdasjanelasoaspetodeumoceano,noqualcincoouseisruas,comooutrastantasembocadurasderios, iam despejar a cada instante ondas e ondas de cabeas. As ondasdessamultido, crescendo incessantemente, iam esbarrar de encontro sesquinas das casas que avanavam aqui e alm, como outros tantospromontrios,nabaciairregulardapraa.AocentrodaaltafachadagticadoPalcio,agrandeescadaria,porondesubiaedesciaininterruptamenteumadupla corrente,quedepoisdequebrar-senoperistilo intermedirio,se expandia em vagas enormes pelas duas rampas laterais; a grandeescadaria, dizia eu, jorrava incessantemente na praa como uma cascatanumlago.Osgritos,asrisadas,otripdiodessesmilpsfaziamumgranderudoeumgrandeclamor.Detemposa tempos,esseclamoreesserudoredobravam. A corrente que impelia toda essa multido no sentido dagrande escadaria, retrocedia, turvava-se, remoinhava. Era o arremessodum archeiro, ou o cavalo dum sargento no prebostado que espinoteavapara restabelecer a ordem; tradio admirvel que a jurisdio dosprebosteslegoudoscondestveis,adoscondestveisdosmarechais,eadosmarechaisnossagendarmeriadeParis.

    s portas, s janelas, nas trapeiras, pelos telhados formigavammilharesdeiguraspassadasdeburgueses,repousadasehonestas,vendoo palcio, vendo a turba, inteiramente satisfeitos; porque hmuita gente

  • emParisquesecontentacomoespetculodosespetadoreseparans jno pouco interessante uma muralha, por detrs da qual se estpassandoalgumacoisa.

    Se nos fosse dado a ns outros, homens de 1830, confundirmo-nospelo pensamento com esses parisienses do sculo quinze, e entrar comeles aos safanes, acotovelados, repelidos, nessa enorme sala do Palcio,toacanhadaa6dejaneirode1482,oespetculonemseriadestitudodeinteresse,nemdeatrativo,epoderamosobservaremvoltadenscoisastovelhasquenospareceriamabsolutamentenovas.

    Se o leitor no se ope, tentaremos reconstituir a impresso queconnosco experimentaria, ao transporo limiarda grande sala, quando sevisseemcontactocomessaturbamultadegiboecotademalha.

    antesdemaisnada,umensurdecimentoeumdeslumbramento.Porsobreasnossascabeas,umaduplaabbadaemogiva,revestidadetalha,pintadadeazul, eornamentada com loresde lisdouradas; anossosps,um pavimento lajeado alternativamente a mrmore branco e preto. Apoucospassosdens,umenormepilar,depoisoutro,emseguidaoutro;aotodo seis pilares, ao comprimentoda sala, servindode apoio s razes dadupla abbada. Em volta dos quatro primeiros pilares, barracas demercadores, reluzentes de vidrarias, ouropis e lantejoulas; em volta dostrsltimos,bancosdecarvalho,gastose lustrosospeloroardoscalesdos litigantes, e das togas dos procuradores. Em torno da sala, a todo ocomprimentodaparedeelevada,entreasportas,entreasjanelas,entreospilares,ainterminvelileiradeesttuasdetodososreisdeFranadesdePharamond;osreisindolentes,debraospendidoseolhosnocho;osreisdestemidos e batalhadores, a cabea e as mos valorosamente erguidasparaocu.Depois,nasaltas janelasogivais,vitraismulticores;nasvastasaberturasdasala,riqussimasportadas, inamenteesculpidas;e tudo isto,abbadas, pilares, paredes, guarnies de umbrais, arteses, portas,esttuas, revestidos de alto a baixo de uma esplndida iluminao azul eouro,quejumpoucoempanadanapocaemqueavemos,desapareceraquase completamente sobapoeira e as teiasde aranha,no anoda graade1549,entoqueduBreulaindaaadmiravaportradio.

    Imaginem agora essa enorme sala oblonga, iluminada pela claridadebaadeumdiadeJaneiro,invadidaporumamultidovariegadaeruidosa

  • lanada ao longo das paredes e redemoinhando em torno dos pilares, eter-se-umaideiaconfusadoaspetogeraldoquadro.

    Estavam ocupadas as duas extremidades desse gigantescoparalelogramo, uma pela famosa mesa de mrmore, to comprida e tolarga,etogrossaquedizemosvelhosalfarrbios,numestiloqueabririao apetite a Gargntua, nunca se viu no mundosemelhante talhada demrmore;aoutra,pelacapelaemqueLusXIse fezesculpirprosternadodiantedaVirgemeparaondemandou transportar, deixandodoisninhosvaziosnaGaleriadasesttuasreais,oCarlosMagnoeS.Lus,dois santosquesupunhamuitoacreditadoscomoreisdeFrana,nacortedoCu.Estacapela, aindanova, ediicadahaviaapenas seisanos,nogostoencantadorde arquitetura delicada, de escultura maravilhosa, de ina e profundacinzeladura, que carateriza entre ns a ltima fase da era gtica e seperpetua atmeados do sculo dezasseis nas fantasias daRenascena. Apequenina roscea rendilhada, aberta acima do prtico, constitua umaverdadeiraobra-primadetenuidadeamaisgraciosa;dir-se-iaumaestreladerendas.

    Aomeiodasala,erigira-separaosenviadoslamengosemaispessoasimportantes convidadasparaa representaodomistrio,umestradodebrocado de ouro, junto parede, onde, aproveitando-se uma janela docorredordacmaradourada,seabriraumaentradaparticular.

    Segundoouso, omistriodevia ser representado sobre amesa, queparaesseimforapreparadalogodemanh;sobreariqussimapedrademrmore,todariscadapelossapatosdosrbulas,assentavaumaarmaodemadeirabastante alta.Aparte superior, ao alcancede todas as vistas,deviaservirdeteatro;ointerior,dissimuladopormeiodetapearias,eraocamarim comum das personagens da pea. Uma escada, colocadaingenuamente vistade todos forado arcabouodo teatro, estabelecia acomunicaoentreacenaeoscamarinsepelosdegrausngremessesubiaou descia, conforme se saa ou entrava. No havia personagem pormaisimprevista,nemperipcia,nemlanceteatralquenotivessedesubiressaescada.Inocenteevenervelinfnciadaarteedomaquinismo!

    Aos quatro cantos damesa demrmore, de p, quatro sargentos dobailiodoPalcio,guardasobrigadosemtodososprazeresdopovo,emdiasdefestacomoemdiasdeexecuo.

  • A pea devia comear quando o relgio grande do Palcio desse altimabadaladadomeio-dia.

    Ora, sucedequeamultidoesperavadesdepelamanh, enoerampoucososque, jdemadrugada,batiamoqueixo, tiritantes,em frentedoPalcio; alguns havia mesmo que airmavam ter passado a noite,atravessados porta, para serem os primeiros a entrar. A turbaengrossavaacadamomento,e,comoaguagalgandoonvel,comeavaatrepar pelas paredes, a avolumar os pilares, a transbordar sobre osentablamentos,sobreascornijas,sobreosparapeitosdasjanelas,sobreassalinciasdaarquitetura,sobretodososrelevosdaescultura.Assim,omalestar,aimpacincia,oenfado,aliberdadedeumdiadecinismo,edefolia,as questinculas que a cada passo se travavam por futilidades, por umacotovelada mais brusca, um sapato mais ferrado; a longa expectaofatigante, contriburam para que muito antes da hora a que osembaixadores deviam chegar, se manifestasse j pronunciadamentedesagradvelehostiloclamordapopulaaencurralada,entalada,calcada,asixiada. No se ouviam seno queixas e imprecaes contra lamengos,contraoprebostedosmercadores, contraocardealdoBourbon,contraobailiodoPalcio,contraMme.Margaridadeustria,contraosbastesdosbedis,contraofrio,contraocalor,contraomautempo,contraobispodeParis, contraopapadosLoucos, contraospilares, contraasesttuas,oraumaportafechada,oraumaportaaberta:comgrandegudiodarapaziadadas escolas e dos lacaios disseminados no ajuntamento, que punham nodescontentamento da turba uma nota impertinente e maliciosa,estimulando, por assimdizer, a picadelas de alinete, omauhumor geral.Entreoutros,haviaumgrupodedemonicos,que,tendoquebradoosvidrosde uma janela, se foram sentar, muito atrevidos, na cornija doentablamento,deondeobservavamalternativamenteamultidodapraa,chasqueandode ambas.As truanices gaiatas, as gargalhadas ruidosas, asgraolas chocarreiras, que trocavam entre si os estudantes, dum para ooutro lado da sala, faziam compreender facilmente que no participavamdoenfadoedocansaodorestodaassistncia,eque,pelocontrrio, iamengenhosamente e pormero prazer, tornando interessante o espetculo,paracommaispacinciaesperarooutro.

    f!s tu,JoannesFrollodeMolendino?gritavaumdelesparauma espcie de demnio, louro, com uma carinha bonita e esperta,suspensodosacantosdeumcapitelBomnometepuseramdeJehandu

  • Moulin, porque esses braos e essas pernas tm jeitos de varais demoinho.Hquantotempoestsai?

    Deixa-me, homem! respondeu Joannes Frollo H mais dequatrohoraseestoucertodequemaslevaroemcontanoPurgatrio. Jc estava quando os oito chantres do rei da Siclia comearam a dizer amissadassetenaSainte-Chapelle.

    Sofrescosostaischantres!tornouooutro.Tmavozmaisbicuda do que o barrete que usam! Antes de criar amissa ao senhor S.Joo,oreideveriaprocurarsaberseelegostade latimsalmodiadocomaacentuaoprovenal.

    Pois foi para empregar esses chantres de uma iga que o rei daSicliaacriou!berrouaziumadaumavelhota,porbaixodajanela,entreo povo. Ora faam o favor de dizer se isto ou no uma poucavergonha!Mil librasparisis porumamissa!Edemais amais cobradasnoimpostodopeixedomercadodeParis!

    No d tanto lngua! replicou uma grave e rotundapersonagemdirigindo-sepeixeira,comamononarizBemvqueamissaeraprecisa.Queriatalvezqueomonarcarecasse?

    Apoiado, sireGilles Lecornu,mestre peleiro de suamajestade!gritouoestudantinhoagarradoaocapitel.

    O apelido fatal do pobre peleiro do rei foi acolhido comuma grandegargalhadaportodososestudantes.

    Lecornu!GillesLecornu!diziamuns.

    Cornutusethirsutustornavaoutro.

    Ento que tem isso? continuava o demonico do capitel.Queesto vocs para a a rir? O respeitabilssimo Gilles Lecornu, irmo demestre Jehan Lecornu, preboste do pao real, ilho de mestre MahietLecornu, primeiro porteiro do bosque de Vincennes, todos burgueses deParis,todoscasadosdepaiafilho!

    Ahilaridaderecrudesceu.Muitocalado,orotundopeleiroesforara-se

  • porfugircuriosidadedequesetornaraobjeto,mas inutilmentesuavaeresfolgava; como uma cunha cravada num tronco, os esforos que faziamais solidamente entalavam entre os ombros dos que lhe estavamprximos,alargafaceapopltica,rubradeindignaoededespeito.

    Enim, um deles, nutrido, baixo e, como ele, venervel, props-sedefend-lo.

    Patifaria!Estudantesfaltaremassimaorespeitoaumburgus!Nomeutempohaviamdeserbatidosequeimadosvivos!

    Todoogrupoprorrompeuemgrita:

    Ol!Queestesseparaaacantar?Quemopapo?

    Olha!disseummestreAndryMusnier.

    Fala de cadeira porque um dos quatro bibliotecrios daUniversidade!disseoutro.

    Tambmnessepardieiro tudoporquatro!gritouumterceiro As quatro naes, as quatro faculdades, as quatro festas, os quatroprocuradores,osquatroeleitores,osquatrobibliotecrios.

    Poisvaiverodiaboconnosco!replicouJehanFrollo.

    Havemosdetequeimaroslivros,Musnier.

    Havemosdetedesancaroscriados,Musnier.

    Havemosdeamarfanhartuamulher,Musnier.

    AgorduchitamademoiselleOudarde.

    Tofrescaetoalegre,quepareceterenviuvado.

    Diabosvoslevem!resmungoumestreAndryMusnier.

    MestreAndrytornouJehan,sempreagarradoaocapitelCala-teoudesabo-tesobreotoutio!

  • MestreAndryolhouparacima,pareceucalcularaalturadacolunaeopeso do garoto, multiplicou mentalmente este peso pelo quadrado davelocidade,ecalou-se.

    Jehan,senhordocampodebatalha,prosseguiutriunfante:

    Equelhofazia,apesardeeuserirmodeumarcediago!

    Belos idalgos, os cavaleiros da Universidade! Nem sequer fazemrespeitarosnossosprivilgiosnumdiadestes!Noimdecontas,hmaioefogueirasnaVille;mistrio,papadosLoucoseembaixadoreslamengosnaCit;enaUniversidade,nada!

    Ainda cabe muita gente na praa Maubert! replicou um dosestudantes,sentadonoparapeitodajanela.

    Fora o reitor, fora os eleitores, fora os procuradores! gritouJoannes.

    Estanoitedevemos fazeruma fogueiranoChamp-GaillardcomoslivrosdemestreAndryprosseguiuoutro.

    Easestantesdosescribas!disseumquelheestavaprximoHdesertudolanadoaofogo!

    Eosbastesdosbedis!

    Easescarradeirasdosdecanos!

    Eosbufetesdosprocuradores!

    Easarcasdoseleitores!

    Eosescabelosdoreitor!

    Abaixo! tornou Jehan, em voz de baixo profundo AbaixoMestreAndry,osbediseosescribas!Abaixoostelogos,osmdicoseosdecretistas!Abaixoosprocuradores,oseleitoreseoreitor!

    Isto o im do mundo!murmurou mestre Andry, tapando osouvidos.

  • Apropsito,olhaoreitor!Aatravessaeleapraa!bradouumdosdajanela.

    Palavra? o nosso venerando reitor, mestre Teobaldo? perguntouJehanFrolloduMoulinque,agarradoaopilardasala,nopodiaveroquesepassavafora.

    Sim,sim!responderamosoutrosele,mestreTeobaldo,oreitor.

    Era, com efeito, o reitor e todos os dignitrios da Universidade, queiam processionalmente ao encontro da embaixada e atravessavam nessemomentoapraadoPalcio.

    Os estudantes, apinhados janela, acolheram a passagemdo cortejocom sarcasmo e aplausos trocistas. O reitor, que ia na frente, afrontou aprimeiracarga;foirude.

    Bonsdias,senhorreitor!Entocomopassou?Falegente!

    Olhaobatoteiroquedeixouosdadosparairprocisso!

    J viram como o reitor monta? A mula tem as orelhas maispequenasdoqueodono!

    Adeus, senhor reitor Teobaldo!Tybalde aleator![6] Imbecil!Batoteiro!

    Orasalve-oDeus!Estevecomsorteestanoite?

    Olha o estafermo do velho cor de chumbo; esparvonou-te o jogo,vicioso!

    Onde vai nesse andar, Teobaldo? Tybalde ad dados[7], de costasvoltadasparaaUniversidade,atroteparaacidade?

    Talvez v procurar casa na rua Teobaldodado gritou Jehan doMoulin.

    Ogruporepetiuogracejoemcoro,atroadoramente,acompanhando-odesalvasdepalmasfrenticas.

  • Sempre certoqueo jogadordasdzias vai procurar casa ruaTeobaldodado?

    Emseguida,coubeavezaosoutrosdignitrios.

    Foraosbedis!Foraosmadeiros!

    RobinPoussepain,quemaquele?

    EGilberto de Suilly,GilbertusdeSoliaco, o chancelerdo colgiodeAntun.

    Toma omeu sapato; tu, que ests da melhor que eu, atira-lho cara!

    Saturnalitiasmittimuseccenuces.

    Foraosseistelogos!Foraassobrepelizesbrancas!

    Aqueles que so os telogos? Pensei que eram os seis gansosbrancosdadosaomunicpioporSantaGenoveva,paraofeudodeRoogny.

    Foraosmdicos!

    Foraosjris!

    Apanhaomeubarrete,chancelerdeSantaGenoveva!Pregaste-meuma raposa. Palavra! Preteriu-me para dar o lugar da Normandia aoAscnioFalzaspada,opetiz,queitaliano,daprovnciadeBourges.

    uma injustia! disseram todos os estudantes Fora ochancelerdeSantaGenoveva!

    Ol,mestre JoaquimdeLadehors!Ol,LusDahuille!Ol,LambertHoctement!

    DiaboslevemoprocuradordanaodaAlemanha!

    E os capeles de Sainte-Chapelle e mais as muras pardas; cumtunicisgrisis!

  • Seudepellibusgrisisforratis![8]

    Ol! Osmestres em artes! As belas capas pretas! As belas capasvermelhas!

    Queesplndidacaudaparaoreitor!

    PareceumduquedeVenezaacaminhodosesponsaisdomar.

    Jehan!AvmoscnegosdeSantaGenoveva!

    Quevoparaodiabo!

    AbadeCludioChoart!DoutorCludioChoart!AndaprocuradaMariaGiffarde?

    Podeencontr-lanaruadeGlatigny.

    Estafazeracamaaoreidosdebochados.

    Estpagandoosquatrodinheiros;quatordenarios.

    Autunumbombum.[9]

    Vaiverapaga?

    Rapazes!MestreSimoSanguin,oeleitordaPicardia,comamulhernagarupa.

    Postequitemsedetatracura.[10]

    umvalente,mestreSimo!

    Bonsdias,senhoreleitor!

    Boanoite,senhoraeleitora!

    E eles a verem tudo isto! dizia, suspirando, Joannes deMolendino,empoleiradonafolhagemdocapitel.

    Entretanto,o livreiro juradodaUniversidade,mestreAndryMusnier,

  • falavaaoouvidodopeleirodorei,mestreGillesLecornu.

    Digo-lhoeu,istooimdomundo.Nuncaseviuumabusoassimdaestudantada; so as malditas invenes do sculo que perdem tudo. Asartilharias, as serpentinas, as bombardas, e principalmente a imprensa,essa praga da Alemanha. Eliminados os manuscritos, adeus livros! Aimprensamataalivraria.ofimdomundoqueestaavir.

    Issoestsevendonosprogressosque fazemosestofosdeveludodisseopeleiro.

    Deumeio-dia.

    Ah!...exclamouamultidoemcoro.

    Os estudantes calaram-se. Depois fez-se um grande rebolio; umgrandemovimento de ps e de cabeas; uma grande detonao geral detosses epigarros;procuravam-se lugares, algunspunham-se embicosdeps, outros agrupavam-se. Depois, um grande silncio; todos os pescoossedistenderam, todasasbocas se abriram, todososolhares convergiramparaamesademrmore...nadaapareceu.Osquatrosargentosdobailiolestavamdep, irmese imveis comoquatroesttuaspintadas.Todososolhares se voltavam para o estrado destinado aos embaixadoreslamengos. A porta conservava-se fechada e o estrado vazio. Desde pelamanhqueessamultidoesperavatrscoisas:omeio-dia,aembaixadadeFlandreseomistrio.Someio-diaaparecerahora.

    Realmente,erademais.

    Esperou-seum,dois, trs, cincominutos;nadadenovo.Entretanto, impacinciasucederaaclera.Palavrasirritadascirculavamemvozbaixaainda,certo.Omistrio!Omistrio!murmurava-sesurdamente.Osnimos aqueciam. Pairava uma tempestade, bramindo j, tona damultido.FoiJehanduMoulinquemdespediuaprimeirafasca.

    Venha omistrio e basta de esperar pelos lamengos! berroucomtodaaforadospulmes,estorcendo-secomoumaserpenteemvoltadocapitel.

    Aturbaaplaudiu.

  • Venhaomistrio,eaFlandresquevpassear!

    J para aqui o mistrio tornou o estudante se no sou depensarqueenforquemosobailiodoPalcio,paraexemplo.

    Apoiadogritouopovoepodemosjcomearpelossargentos.

    Seguiu-se uma grande aclamao. Os quatro pobres diaboscomearamaempalidecereaolharunsparaosoutros.Amultidoagitava-se impelida para eles; viam j a frgil balaustrada de madeira que osseparava,vergarecederpressodopovo.

    Asituaoeracrtica.

    Saque!Saque!bradava-sedetodososlados.

    Neste instante, levantou-se a tapearia dos camarins quedescrevemos, e apareceu uma personagem, cuja presena sofreourapidamenteaturbaevolveu,comoporencanto,airaemcuriosidade.

    Silncio!Silncio!

    Apersonagem,muitopoucosenhoradesietodatrmula,avanou,atfrentedamesademrmore,fazendosemprereverncias,quemedidaqueseaproximava,maispareciamgenuflexes.

    Entretantorestabelecera-se,poucoapouco,osossego.Restavaapenasessevagorumorquesedesprendesempredosilnciodopovo.

    Senhoresburguesesdisseesenhorasburguesas,vamosterahonradedeclamarerepresentar,napresenadesuaeminnciaosenhorcardeal, um belo auto denominadoObom juzo da SenhoraVirgemMaria .EstevossoservofazdeJpiter.Suaeminnciaacompanhanestemomentoa respeitabilssima embaixada do senhor duque de ustria a qual estouvindo a alocuo do senhor reitor da Universidade, na porta Baudets.Comearemos,logoquechegueoeminentssimocardeal.

    certo que foi preciso nadamenos do que a interveno de Jpiterparasalvarosquatro infelizesdobailiodeParis.Se tivssemosaventurade haver inventado esta verdica histria, e por consequncia de

  • assumirmos a sua responsabilidade perante nossa senhora a Crtica, noseriacontransquepoderiaminvocarnestemomentoopreceitoclssico:Necdeus intersit.[11]De resto, o trajo do senhor Jpiter era lindssimo eno contribura pouco para acalmar a turba, absorvendo-lhe toda aateno. Jpiter vestia uma cota de malha coberta de veludo preto, compregosdourados;nacabeaostentavaumagorraguarnecidadebotesdeprata, tambm dourados: e, se no fora o carmim e as grandes barbaspostiasquelheocultavammetadedorosto,senoforaorolodepapelodouradoqueempunhava,todoconsteladodelantejoulaseeriadodeitasdeouropel,emqueolhosprticosreconheceriamdesdelogooraio;senoforaospscordecarneenleadosgrega,poderiafacilmentecomparar-se,pela severidade do porte, a um archeiro breto do corpo do senhor deBerry.

  • II.PedroGringoire

    Contudo,aperlengadissiparaopasmoeocontentamentoqueotrajodapersonagemprovocar;equandochegouaestadesastradaconcluso:comearemos logo que chegue o eminentssimo cardeal, a voz perdeu-se-lhenumatempestadedevaias.

    Hodecomearj!Omistrio!Venhaomistrio!gritavaopovo.

    E,dominandotodasasvozes,ouvia-seadeJohannesdeMolentino,quesilvavanotumultocomoopfanonumcharivarideNimes.

    Tocaaprincipiar!ganiaoestudante.

    Fora Jpiter! Fora o cardeal de Bourbon! vociferavam RobinPoussepaineosoutrosrapazes,empoleiradosnajanela.

    Venhaoauto!repetiaamultidoJparaaquioauto!forcaoscomediantes,forcaocardeal!

    O pobre Jpiter, desnorteado, cheio de medo, a empalidecer sob ocarmim que lhe tingia o rosto, deixou cair o raio e tirou a gorra;cumprimentava e tremia balbuciando: sua eminncia... osembaixadores...madameMargaridadeFlandres...E,muitoatrapalhado,nemsabiaquedizer.Nofundotinhamedoqueoenforcassem.

    Enforcadopelapopulaapora fazeresperar, enforcadopelo cardealpornoteresperado,via-seentredoisabismosduasforcas.

    Felizmente, algum veio livr-lo de embaraos e assumir aresponsabilidadedasituao.

    Umindivduoque,haviamuitosepostaranoespaolivreemtornodamesademrmore,eporcujapresenaningumaindatinhadado,portalformaasuaestaturadehomemaltoemagrosedissimulavaatrsdopilaraqueseencostara;esse indivduo,dizamos:seco,esgalgado,descoradoe

  • louro, cavado de rugas, muito embora moo de olhar brilhante e bocasorridente, trajandovelhasroupasdesarja,gastase lustrosas,acercou-sedamesa demrmore e fez um sinal ao triste padecente. O outro porm,atnito,noovia.

    Orecm-chegadodeuumpassofrente:

    Jpiter!disseCarssimoJpiter!

    Ooutronooouvia.

    Porfim,impaciente,berrouquaseaoouvido:

    MiguelGiborne!

    Quem me chama? disse Jpiter, como quem acorda emsobressalto.

    Eurespondeuapersonagemvestidadepreto.

    Ah!exclamouJpiter.

    Mandeprincipiartornouooutro.Faaavontadeaestagente;osenhorbailioficaporminhaconta,eocardeal,eleoamansar.

    Jpiterrespirou.

    Senhores burgueses berrou com toda a fora dos pulmes, turba, que continuava a apupa-lo vamos dar princpio ao espetculoimediatamente.

    Evoe,Jupiter!Plaudite,cives![12]clamaramosestudantes.

    Aleluia!Aleluia!gritouopovo.

    Rompeu uma salva de palmas ensurdecedora e, pormuito tempo, asala tremeu ao rudodas calorosas aclamaes.O Jpiter recolhera-se aofundodoteatro.

    Entretanto, a personagem desconhecida que, por uma formaverdadeiramentemgica,volveraa tempestadeembonana latempte

  • en bonance, como diz o nosso velho e querido Corneille voltaramodestamentepenumbradopilareaseconservaria invisvel, imvelecaladocomoantes,seduasraparigasdaprimeirailadosespetadoresnootivessemsurpreendidonocolquiocomMiguelGiborne-Jpiter.

    Mestredisseumadelaschamando-o.

    Ento? Que isso, Linarde? disse a outra, fresca, bonita egarrida. Olhe que um secular; chame-lhemessire, no lhe chamemestre.

    MessiredisseLinarde.

    Odesconhecidoacercou-sedabalaustrada.

    Quemequeremasmeninas?perguntoumuitoamvel.

    Oh! Nada respondeu Linarde, toda confusa Gisquette aGencienne,aminhacompanheira,queochamou.

    Deixefalar!replicouGisquettecorandoALinardedisse-lhemestre;eeunotei-lhequesedeviadizermessire.

    As duas raparigas baixaram os olhos. O outro que queria conversa,observava-assorrindo:

    Entonomedizemnada?

    NadarespondeuGisquette.

    NadadisseLinarde.

    Orapazdeuumpassoparaseretirar;asduas,porm,nooqueriamdeixar.

    Messiredisse vivamenteGisquette coma impetuosidadedumarepresaquerompeoudumamulherquetomaumaresoluoconheceaquele soldado que vai representar o papel da senhora Virgem, nomistrio?

    QuerdizernopapeldeJpiter!explicouodesconhecido.

  • PoisclarodisseaLinardejviramatola!ConheceentoJpiter.

    MiguelGiborne?respondeuSim,minhasenhora.

    Temumasbarbaasmagnficas!disseLinarde.

    E bonito isso que vo representar? perguntou timidamenteGisquette.

    Muitobonitorespondeuodesconhecido,semamenorhesitao.

    Eoque?disseLinarde.

    ObomJuzodaSenhoraVirgem,umauto.

    Ah!exclamouLinarde.

    Seguiu-seumapausa.Odesconhecidotornou:

    umautonovinhoemfolha;aindanoserviu.

    EntodisseGisquettenoomesmoquerepresentaramhdois anosnodia da entradado sr. legado, e emquehavia trs raparigasmuitolindasquefaziampapis...

    DesereiasdisseLinarde.

    Epor sinal vinhamnuasacrescentouo rapaz. Linardebaixoupudicamente os olhos. Gisquette olhou para ela e fez outro tanto. Elecontinuousorrindo:

    Issoeraoutracoisa.HojeumautoescritoexpressamenteparaasenhoradonzeladeFlandres.

    Ecantampastoris?inquiriuGisquette.

    Horror!disseodesconhecidoNumauto!Noconfundamososgneros.Sefosseumafarsaissoeraoutracoisa!

    penareplicouGisquette.NapontedoPonceauhaviaento

  • espetculo por homens e mulheres selvagens, que combatiam e faziamtrejeitoscantandomotetosepastoris.

    Oqueadmitidoparaumlegadodisseodesconhecidonumtomdevozbastanteseconoseaceitaparaumaprincesa.

    juntotornouLinardehaviahomensquetocavammelodiaseminstrumentostoscos.

    EpararefrescaragentecontinuouGisquetteafontedeitavaportrsbocas,vinho,leiteehipocras,dequesebebiaatnoquerermais.

    E um pouco abaixo do Ponceau prosseguiu Linarde naTrindade,haviaunsPassoscomfigurasquenofalavam.

    Parece-me que ainda os estou a ver! exclamou Gisquette Deusnacruzeosdoisladresdireitaeesquerda.

    Nesteponto, asduas, exaltadas, comearama falar aomesmo temporecordandoaentradadosenhorlegado.

    E mais adiante, na porta dos Pintores, havia outras pessoas comtrajosmuitoricos.

    E na ponte Saint Inocent, esse caador que perseguia uma cerva,soprandoemtrompas,eosceslatindo!

    E no aougue de Paris, esses cadafalsos que representavam aBastilhadeDieppe!

    Equandoo legadopassou, lembras-te,Gisquette?Deu-seoassaltoeosinglesesforamtodosdegolados.

    EaslindaspersonagensquehavianaportadoChatelet?

    EnaponteauChange,queestavatodaforradaporcima.

    E quando o legado passou, deixaram voar sobre a pontemais deduzentas dzias de pssaros de todas as qualidades; era muito bonito,Linarde.

  • A festa de hoje sermelhor do que isso tudo replicou enimointerlocutor,quepareciaouvi-lascomimpacincia.

    Promete-nosqueestemistriohdeserbonito?disseGisquette.

    Pois quem duvida? respondeu; depois acrescentou com umacertanfaseFuieuquefizapea.

    Palavra?disseramasraparigasestupefactas.

    Palavra! respondeuo poeta, umpouco cheio da suapessoaIsto , somos dois; Jehan Marchand, que serrou as tbuas e construiu oteatro,eeu,quefizapea,chamo-mePedroGringoire.

    OautordoCidnodiriacommaisarrogncia:PedroCorneille.

    Os leitoresdevemternotadoquedecorreraumcerto tempodesdeodesaparecimento de Jpiter por detrs da tapearia, at que o autor donovo auto se revelava assim bruscamente, cndida admirao deGisquetteedeLinarde.Circunstncianotvel: todaessamultido,algunsminutosantes to tumultuosa, esperavaagora resignadssima,depoisqueouviraocomediante;oquemaisumavezvemprovarestaverdadeeterna,quotidianamenteveriicadanosnossos teatros, e queomelhormeiodefazer com que o pblico espere com pacincia, anunciar-lhe que oespetculovaiprincipiar.

    Entretanto,oestudanteJoannesestavaalerta.

    Eh, eh!gritoude repenteemmeiodapacienteexpectaoquesucedera ao tumulto Jpiter, senhora Virgem, charlates de mildemnios! Esto zombando connosco? Ento a pea, vem ou no vem apea?V,tocaacomearoucomeamosns!

    Nofoiprecisomaisnada.

    A orquestra comeou a tocar no interior do teatro; a tapearialevantou-se; quatro personagens saramde dentro, pintalgadas, pintadas,subirama escada ngremedo teatro e, chegadas que foram plataformasuperior, colocaram-se em linha diante do pblico, cumprimentando-oreverentemente;ento,cessouamsica.Eraomistrioquecomeava.

  • As quatro personagens, depois de haverem recebido em aplausoscopiosos a paga dos profundos cumprimentos, deram princpio, emmeiode um silncio religioso, a um prlogo que o leitor nos dispensar decontar. De resto, como ainda hoje sucede, o pblico preocupava-se maiscomos trajosdaspersonagensdoque comosprpriospapis; e, diga-seemverdade,noera semrazo.Vestiamosquatrograndes tnicas,meiobranco, meio amarelo, perfeitamente iguais; faziam diferena apenas nopano. A primeira era de brocado, ouro e prata, a segunda de seda, aterceira de l e a quarta de linhagem. A primeira das personagensempunhavaumaespada, a segundaduas chavesde ouro, a terceira umabalana,aquartaumaenxada;e, comoauxiliardas inteligncias rebeldesque no compreendessem a signiicao desses atributos, lia-se, emgrandescaraterespretosbordados:emvoltadatnicadebrocado, chamo-me Nobreza; na tnica de seda,chamo-me Clero; na de l,chamo-meMercancia;nade linhagem,chamo-meTrabalho.Osexodasduasalegoriasmasculinaseraindicadoaoespetadorjudiciosopelastnicasmaiscurtasepelacoifaqueastoucava,enquantoasduasalegoriasfemininas,detnicascompridas,traziamcapuz.

    Era,portanto,misterumaboaporodemfparanocompreender,atravsdapoesiadoprlogo,queoTrabalhoeracasadocomaMercancia,e o Clero com a Nobreza, e que os dois pares ditosos, possuamcomummenteumesplndido golinhode ouro, que s mais bela dentretodas as belas seria adjudicado. Percorriam, pois, omundo embusca, emdemanda dessa beleza superior, e depois de haverem repudiadosucessivamentearainhadeGolconda,aprincesadeTrabizonda,ailhadoGrande Khan da Tartria, etc, etc, o Trabalho e o Clero, a Nobreza e aMercancia, vinham repousar das fadigas sobre a mesa de mrmore doPalcio da Justia, propinando ao honesto auditrio tantas sentenas emximasquantoerapossvelditaraotemponaFaculdadedasartes,pelosexames,sofismas,atosefigurasemqueseformavamlicenciados.

    Etudoistoproduziaumbelssimoefeito.

    No entanto, entre essa multido, sobre a qual as quatro alegoriasentornavam conscienciosamente ondas e ondas de metforas, no haviaouvidomaisatento,coraomaispalpitante,olharmaisperturbado,doqueo olhar, o ouvido e o corao do autor, do poeta, desse excelente PedroGringoire,que,ummomentoantes,nopuderaresistirtentaodedizer

  • o seu nome a duas mulheres bonitas. Postara-se a curta distncia delas,por detrs do pilar e da, escutava, olhava e saboreava. Os aplausosbenevolentes com que fora acolhido o princpio do prlogo vibravam-lheainda em todo o ser; estava completamente absorvido nessa espcie decontemplao exttica comqueo autor v as suas ideias caindoumaporuma, da boca do ator no silncio de um vasto auditrio. Digno PedroGringoire!

    -nos penoso diz-lo, mas este primeiro xtase foi logo perturbado.Mal Gringoire havia aproximado os lbios dessa taa embriagadora dealegriaedetriunfo,quandoumagotaamargalhaturvou.

    Um mendigo esfarrapado, no podendo fazer pingues colheitas, nasituaoemque seencontrava,despercebidoemmeiodamultidoenoseconsiderandosuicientementeindemnizadopeloqueatentoapuraraem derredor, pensou em atrair as atenes e as esmolas, pondo-se emevidncia.Portanto,enquantoserecitavamosprimeirosversosdoprlogo,marinhava pelos pilares do estrado reservado at cornija que orlava aparte inferior da balaustrada, e, ali sentado, solicitava a ateno e acomiseraoda turba, exibindoos farrapos e a hediondezdeumalceraque lhecobriaobraodireito.Deresto,nodiziaumapalavra;eassim,oprlogocontinuavaecontinuariasemmaiorempenose,porinfelicidade,oestudante Joannes, do alto dopilar, no tivesse reparadonomendigo e onolobrigassecaramunhando.Odemniodorapazcomeouarircomoumdoido, e, sem lhe passar pela cabea que estava interrompendo oespetculoeperturbandoorecolhimentogeral,exclamoujovialmente:

    Ah!Umaleijadinhoapediresmola!

    Quem j alguma vez atirou uma pedra a um chavascal de sapos, ouquem j disparou um tiro de espingarda contra um bando da aves podefazer ideia do efeito que estas palavras produziram, emmeio do silncioatento da multido. Ao ouvi-las, Gringoire teve um estremeo, como serecebesse um choque eltrico. O prlogo foi interrompido e todas ascabeas se voltaram tumultuosamente na direo do lugar em que seencontrava o mendigo, que, sem se perturbar, e pelo contrrio, vendoneste incidente um excelente ensejo de colheita boa, entrou a dizer numtomdevozdolente,semicerrandoosolhos:

  • UmaesmolinhapeloamordeDeus!

    Ah! Mas... se no me engano tornou Joannes ClopinTrouillefou. Ol, tu! Amazela incomodava-te na perna, mudaste-a para obrao?

    E ao mesmo tempo que dizia isto, atirava uma moeda, com umadestrezademacaco,aochapusujoque,comobraoenfermo,omendigoestendia caridade pblica. Recebeu sem pestanejar a esmola e osarcasmo,econtinuouimplorandonumtomdevozlamentvel:

    UmaesmolinhapeloamordeDeus!

    Este episdio distrara consideravelmente o auditrio, e um grandenmero de espetadores, Robin Poussepain e a estudantada frente,aplaudiamcontentssimosesteduetoextravagantequese improvisavaali,duranteoprlogooestudanteruidosoeomendigoimperturbvel,comasuasalmodia.

    Gringoireestavadescontentssimo.Passadooprimeiromovimentodeespanto, entrou de gritar para a cena s quatro personagens! Continuem! Que diabo! Continuem! sem mesmo se dignar lanar umolhardedesdmparaosdoisinterruptores.

    Nestemomento, sentiu que o puxavampelas abas do casaco; voltou-se,mal humorado, e no lhe custou pouco a sorrir; no entanto, assim foipreciso.EraolindobraodeGisquetteaGenciennequeassimsolicitavaasuaateno,porentreabalaustrada.

    Vaicontinuar?dissearapariga.

    Pois est claro que vai continuar respondeu Gringoire,mostrando-semelindradocomapergunta.

    Nesse caso, messire tornou ela quer ter a bondade demeexplicar...

    Oquevodizer?interrompeuGringoire.Oua-os.

    No isso replicou a Gisquette o que eles tm dito at

  • agoraqueeuqueriasaber.

    Gringoire teve um sobressalto como se lhe pusessem o dedo sobreumaferida.

    Estpida!rosnou.

    Apartirdeento,Gisquettedecaiucompletamentenoseuesprito.

    Entretanto, os atores haviam obedecido s intimaes do poeta, e opblico, vendo-osdenovo a falar, voltara a ouvi-los, no sem ter perdidobomnmerodebelezas,extraviadasnaespciedasoldagemqueseizeraentre as duas partes da pea, assim bruscamente cortada. Gringoirereletiunisto comamargura.Noobstante, a tranquilidade restabelecera-sepoucoapouco,oestudantecalara-se,omendigodavabalanocolheita,nofundodochapu,eapeaentraranovamenteacaminho.

    Erarealmenteumabelaobraedequenosparecequeaindahojesepoderia tirarpartido,sujeitaaalgumasalteraes.Aexposio,umpoucolonga e um pouco banal, isto , nas regras, era singela; Gringoire, nocndidosanturiodoseuforo ntimo,admirava-lhea lcidaclareza.Comodevem supor, as quatro personagens alegricas estavam um poucocansadasdeterpercorridoastrspartidasdomundo,semlograremmeiode se desfazerem convenientemente do golinho de ouro. Neste ponto,elogio do peixe maravilhoso, com mil aluses delicadas ao noivo deMargaridadeFlandres, bem tristemente recluso ao tempoemAmboise eno lhe passando sequer pela cabea que, por sua causa o Trabalho eClero, a Nobreza e a Mercancia, haviam dado a volta ao mundo. O ditogolinhoera,pois,jovem,erabelo,eraforte,esobretudo(origemmagnicadetodasasvirtudesrealengas)erailhodoleodaFrana.Declaroqueadmirvelestametforaaudaciosa,equeahistrianaturaldoteatro,numdia destes de alegria e de epitalmio real, no acha de forma algumaestranhoqueumgolinhosejailhodeumleo.Sojustamenteestasrarase pindricas mixrdias que provam o entusiasmo. Notar-se- entretanto,paradaroseu lugarcrtica,queopoetapoderiadesenvolveresta ideiaemmenosdeduzentosversos.

    certo que, segundo as disposies do senhor preboste, o mistriodeviaprolongar-sedomeiodiaatsquatrohorasequealgumacoisasehavia dizer durante esse tempo todo. No im de contas o pblico ouviu

  • pacientemente.

    Sbito, em meio de uma altercao entre a menina Mercancia e asenhora Nobreza, justamente quando mestre Trabalho pronunciava esteversomirfico:

    Oncnevisdanslesboisbteplustriomphante;

    aportadoestradoreservado,queatentoseconservarafechadatofora do propsito, abriu-se ainda mais fora de propsito, e a vozretumbantedoporteiroanunciarabruscamente: SuaeminnciamonsenhorcardealdeBourbon.

  • III.Osenhorcardeal

    PobreGringoire!OestampidodetodososmorteirosdaSaintJehan,adescarga de vinte arcabuzes, a detonao dessa famosa serpentina datorre de Billy, que, por ocasio do cerco de Paris, no domingo 29 desetembro de 1465,matou sete borguinhes de um s tiro, a exploso detodaaplvoraarrecadadanaportadoTemplo,irromper-lhe-iacommenorviolnciapelos ouvidos, nessemomentodramtico e solene, doque essasseissimplespalavraspronunciadaspelabocadumporteiro: SuaeminnciamonsenhorcardealdeBourbon.

    No vo com isto supor que Pedro Gringoire temia ou desprezava osenhor cardeal. Nem era to fraco, nem to ftuo. Verdadeiro ecltico,comosediriahoje,Gringoirepertenciaaonmerodosespritoselevadoseirmes, moderados e calmos, que sabem adaptar-se a todas ascircunstncias(stare in dimidio rerum) cheios de razo e de ilosoialiberal, semcontudodesestimarcardeais.Raapreciosae ininterruptadeilsofos, aos quais a cincia da vida, qual outra Ariadne, parece haverdado um novelo de io que vo dobando, desde o princpio do mundo,atravs do labirinto das coisas humanas, isto , sempre com todos ostempos.

    No havia, portanto, nem dio ao cardeal nem desprezo pela suapresena,naimpressodesagradvelqueproduziuemPedroGringoire.

    A entrada de sua eminncia revolucionara o auditrio. Todos sevoltaram para o estrado. Confusamente, todas as bocas repetiram: Ocardeal! O cardeal! O prlogo, o triste prlogo, foi mais uma vezinterrompido.

    Ao aparecer no estrado, o cardeal parou um instante. Enquantopercorriaoauditriocomumolharindiferente,cresciaotumulto.Todosoqueriamver.Osdetrspassavamacabeapelosombrosdosdafrente.

    Era, com efeito, uma bela personagem, por quem valia bem a pena

  • deixar de parte qualquer outra comdia. Carlos, cardeal de Bourbon,arcebispo e conde de Leo, primaz das Glias, desposado da ilhaprimognita do rei, aliado de Carlos o Temerrio por sua me Ins deBorgonha. Ora o trao dominante, o trao caraterstico e distintivo doprimazdasGliaseraoespritocortesanescoeadevooqueconsagravas grandes foras. Era um bom homem: vivia regaladamente a suaexistncia de cardeal, permitia-se alegrar-se um tudo nada com os bonsvinhosreaisdeChalluau,noqueriamalnenhumaRicharde,aGarmoisenem a Thomasse a Saillarde, mais esmoler com as novas do que com asvelhas,eportodasestasrazesmuitosimpticoaopopulachodeParis.Nosaaquenofosseacompanhadodumapequenacortedebisposeabadesdealta jerarquia,galantes,maliciososeestroinas,seassimfossemister;eno poucas vezes aos ouvidos devotos dos iis de Saint Germaind'Auxerre, que noite passavam por debaixo das janelas iluminadas daresidnciadeBourbon,chegavamcomescndalosasmesmasvozesquededia lhes haviam cantado vsperas, salmodiando, ao tilintar dos copos, oprovrbio bquicodeBentoXII, esse papa que acrescentouuma terceiracoroatiara:Bibamuspapaliter.[13]

    Foi, por certo, esta popularidade, to justamente adquirida, que opreservou, sua entrada, de um acolhimento desagradvel da parte daturba, momentos antes descontente e muito pouco disposta a guardarrespeito a um cardeal no prprio dia em que ia eleger um papa.Mas osparisienses no so de rancores; e demais, tendo feito com que oespetculo principiasse, a autoridade dos bons burgueses haviaprevalecido sobre ado cardeal, e esse triunfo lhesbastava.Almdisso, osenhor cardeal de Bourbon era um belo homem, em quem assentavamaravilhosamenteumabelatnicaescarlate,oquequerdizerquetinhaaseu lado todas as mulheres, e por consequncia a melhor metade doauditrio.Seriainjustoedemaugostoenxovalharumcardealquenoveioa horas, quando esse cardeal um belo homem em quem assentamaravilhosamenteatnicaescarlate.

    Entrou,pois,cumprimentouaassistnciacomessesorrisohereditriodosgrandespelopovo,eencaminhou-selentamenteparaasuacadeira,develudoescarlate,comoarmaisdistradodestemundo.Ocortejo,oquenschamaramos hoje o estadomaior de bispos e de abades, irrompeu, apsele, no estrado, o que fez crescer o tumulto e a curiosidade na plateia.Apontavam-nos, pronunciavam-lhes os nomes: toda a gente forcejava por

  • conhecer ao menos um; se no me engano, aquele o senhor bispo deMarselha,Alaudet;aqueleoutro,oprimicriodeSaint-Denis;odealm,RobertodeLespinasse,abadedeSaintGermaindePrs,irmolibertinodeuma amante de Lus XI; tudo isto dito num cachoar de sarcasmos ecacofonias.Osestudantesessespraguejavam.Eraodiadapndega,oseudia, a saturnal, a orgia anual da toga e da batina. No havia torpeza quenoseconsentisseerespeitasse,comocoisa livreeadmitida.Eentoquemeninas no estavamna sala! SimoneQuatrelivre, Ins a Gadine, RobinePidebou. Ao menos, era um dia cheio; podia-se praguejar e maldizer vontadeonomedeDeus,aliemboacompanhia,combarregseprelados.De forma que usavam e abusavam; e, em meio dobrouhaha, era umcharivari espantoso de blasfmias e de enormidades, nessas lnguasdesenfreadasdeescreventeseestudantes, coatosduranteo restodoanopeloreceiodoferroquentedeS.Lus.PobreS.Lus,quetroaqueeleslhefaziam no seu prprio palcio de Justia! poria, iam tomando suaconta, entre os recm-chegados do estrado, uma sotaina preta ou parda,branca ou violeta. Joannes Frollo de Molendino, esse, na qualidade deirmodeumarcediago,atirava-sevalentementevermelha;cantavacomopossesso,fixandodescaradamenteocardeal:Capparepletamero![14]

    Todas estas minudncias, que esmiuamos aqui para ediicao doleitor, eram por tal forma dominadas pelo rumor geral, que noconseguiam chegar at ao estrado reservado; de resto, ainda quechegassem, no seria o cardeal quem se melindrasse, porque nesse diapermitiam-se todas as liberdades. Alm disso, e dava-o bem a conhecerexteriormente, sua eminncia tinha uma outra preocupao que o seguiade perto e que entrou quase ao mesmo tempo que ele no estrado: aembaixadadeFlandres.

    Noeraporque fosseumpolticoprofundo,nemquesepreocupasseemexcessocomasconsequnciaspossveisdocasamentodasenhorasuaprimaMargarida deBorgonha como senhor seu primoCarlos, delimdeViena; inquietava-omediocremente o saber se durariamuito ou pouco afalsaharmoniaentreoduquedeustriaeoreidaFrana,eaindamenosamaneiracomooreideInglaterraacolheriaodesdmdailha;etodasasnoites fazia honra ao vinho das adegas reais de Chaillot, sem sequer lhepassar pela mente que algumas garrafas desse mesmo vinho (um tudonada correto e aumentado, certo, pelo mdico Coictier), cordialmenteoferecidas a Eduardo IV por Lus XI, livrariam um belo dia Lus XI da

  • presenadeEduardoIV.LamoulthonoreambassadedemonsieurleducdeAutriche, no eramotivo, para o cardeal, de nenhumapreocupaodestaordem,masimportunava-oporoutrolado.Comefeito,eraumpoucoduroserobrigadoamostrarseamveleacolhedor,eleCarlosdeBourbon,comquaisquer burgueses: ele cardeal, com almotacs; ele francs, convivajovial,comlamengosbebedoresdecerveja;e istoempblico.Nunca,poramordorei,tiveraacumprirumamissotopenosa.

    Voltou-se, pois, do lado da porta e com amais graciosa amabilidade(por tal forma o sabia aparentar) quando o porteiro anunciou com vozsonora osSenhoresenviadosdosenhorduquedeustria . intildizerquetodaasalafezoutrotanto.

    Ento, com uma gravidade que contrastava em meio do petulantecortejo eclesistico de Carlos de Bourbon, chegaram, dois a dois, osquarenta e oito embaixadores de Maximiliano de ustria, tendo suafrenteoreverendopreenDieu,Jehan,abadedeSaintBertin,chancelerdoTosodeouro,eJacquesdeGoy,sieurDaubi,grandebailiodeGand.Fez-sena assembleia umgrande silncio acompanhadode frouxos de riso, paraouvir todos esses apelidos extravagantes e todos esses atributos aburgueses que, um por um, as personagens iam transmitindoimperturbavelmenteaoporteiro,oqual,aseuturno,oslanavademistura,apelidoseatributos,tudoestropiado,atravsdamultido.EramestreLoysRoelof, almotacda cidadede Louvain;messire Clays d'Etueide, almotacde Bruxelas;messire Paul de Baeust,sieur de Voirmizelle, presidente daFlandres; mestre Jehan Coleghens, burgomestre da cidade de Anvers;mestre George de la Moere, primeiro almotac do quere da cidade deGand;mestreGheldolfvanderHage,primeiroalmotacdamesmacidade;eosieurdeBierbecque,eJehanPinnockeJehanDymaerzelle,etc,etc,etc;bailios, almotacs, burgomestres; burgomestres, almotacs, bailios; todosempertigados, afetados, engalanados de veludo e de damasco,encapuchadoscomcoifasdeveludopretodegrandesborlasdeiodeourode Chipre, pendentes; no im de contas, boas cabeas lamengas, igurasdignaseseveras,dafamliadasqueRembrandtfazavultar,tofortesetograves, no fundo negro da suaRonda da noite; personagens quejustiicavam bem a frase de Maximiliano da ustria, que dizia coniarabsolutamente conierplain como rezava o seumanifesto,en leursens,vaillance,experience,loyaultezetbonnespreudomies.

  • Havia, no entanto, uma exceo. Era uma isionomia ina, inteligente,sagaz, uma espcie de focinho de macaco a de diplomata, em frente dequemocardealdeutrspassos, fazendoumaprofundarevernciaeque,ainal, apenas se chamavaGuilherme Rym, conselheiro e pensionrio dacidadedeGand.

    Pouca gente sabia ento quem era esse Guilherme Rym. Gnio raroque, num perodo de revoluo, romperia luminosamente tona dosacontecimentos, mas que, no sculo quinze, estava reduzido s entregascavernosas e a viver nas minas vivre dans les pades como diz oduque de Saint-Simon. De resto, era apreciado pelo primeiro sapador daEuropa;maquinavafamiliarmentecomLusXI,enopoucasvezestomaraparte nas tarefas secretas do rei. Coisas, no im de contas, ignoradas daturba,maravilhada por ver as cortesias que o cardeal dispensava a essafiguramesquinhadebailioflamengo.

  • IV.MestreJacquesCoppenole

    Enquanto a eminncia e o pensionrio de Gand trocavam umacontumlia profunda e algumas palavras em voz baixa, apresentava-separaentrar,conjuntamentecomGuilhermeRym,umhomemalto,delargafaceeombros formidveis;dir-se-iaumbuldogueao ladodeumaraposa.O seu gorro de feltro e a sua vstia de couro faziam mancha entre osveludoseassedasqueocercavam.Tomando-oporqualquerpalafreneiro,aquemumequvococonduzisseali,oporteiroembargou-lheapassagem.

    Ehl,poraquinosepassa.

    Ohomemdavstiadecourorepeliu-ocomoombro.

    Quequer esteparvo?disse, num tomde voz to vibrante, quetodaasalavoltouassuasatenesparaoestranhocolquio.Nosabescomquemestasfalando?

    Oseunome?perguntouoporteiro.

    JacquesCoppenole.

    Assuasfunes?

    Fabricantedemeias,proprietriodasTroisChainettes,estabelecidoemGand.

    O porteiro recuou. Anunciar almotacs e burgomestres, v: mas umfabricantedemeias,eraforte.

    O cardeal estava sobrebrasas.Opovoouvia eobservava.Haviadoisdias que sua eminncia passava omelhor do seu tempo a alisar o pelo aesses ursos lamengos, para os tornar um pouco mais apresentveis, esucedia-lhe uma daquelas. Entretanto, Guilherme Rym, aproximou-se doporteiroe,comoseusorrisosubtil:

  • Anuncie mestre Jacques Coppenole, escrivo dos almotacs dacidadedeGanddisse-lhe,emvozmuitobaixa.

    Porteiro! replicou o cardeal em voz alta. Anuncie mestreJacquesCoppenole,escrivodosalmotacsdailustrecidadedeGand.

    Foi tolice. Sem a interveno do cardeal, Guilherme Rym teriaarranjadoascoisaspelomelhor;masCoppenoleouviraocardeal.

    Nada disso! bradou com a sua voz de trovo. JacquesCoppenole, fabricante demeias, que , ouviste, porteiro? Fabricante demeias, pois ento?! Fabricante de meias at muito bonito. O senhorarquiduquenodesdenhaottulo.

    Estrondearamosaplausoseasgargalhadas.EmPariscompreendem-seimediatamente,eporconsequnciaaplaude-sesempreumbomdito.

    Junte-se a circunstncia de Coppenole pertencer ao povo e ser povoessepblicoqueocercava.Assim,acomunicaoentreosdois foi sbita,eltrica e, por assim dizer, familiar. A arremetida insolente domercadorlamengo,humilhanteparaoshomensdacorte, revolveraem todasessasalmasplebeiasnoseiquesentimentodedignidadeaindavagoeindistintono sculo quinze. Era um igual, esse fabricante de meias que vinhalevantar cabea em presena do senhor cardeal! Relexo consoladoraparaospobresdiaboshabituadosaorespeitoeobedinciapelosservosdos sargentos do bailio do abade de Santa Genoveva, caudatrio docardeal.

    Coppenole cumprimentou com um grande ar sua eminncia, queretribuiu o cumprimento ao burgus omnipotente, temido por Lus XI.Depois,enquantoGuilhermeRym,sagehommeetmalicieux,comodizFilipede Comines, os observava com um sorriso de sarcasmo e superioridade,encaminharam-secadaumparaoseu lugar:ocardealperturbadssimoeinquieto,Coppenolecalmoealtivo, reletindotalvezque,no imdecontas,valiabemmaisdoquequalqueroutrooseuttulodefabricantedemeias,equeMaria deBorgonha,me dessaMargarida que Coppenole tratava decasar, o respeitariamenos como cardeal do que comomercador; porque,no era um cardeal quem sublevaria os habitantes de Gand contra osfavoritosda ilhadeCarlos,OTemerrio;noeraumcardealquemdariafora multido, comumapalavra s, para a fazer resistir s lgrimas e

  • aosrogos,quandoadonzeladeFlandresveioimplorarparaelesoperdodoseupovo,atjuntodocadafalso;enquantoaomercadornofoiprecisomaisdoquelevantaroseubraodecouro,paravosfazercairascabeas,ilustrssimossenhores,Guyd'Himbercourt,chancelerGuilhermeHugonet!

    Entretanto, novos dissabores esperavam esse pobre cardeal,destinado a pagar bem caro a circunstncia de se encontrar em to mcompanhia.

    provvel que o leitor ainda se lembre do desalmadomendigo que,logo ao principiar o prlogo, se alcandorara nas franjas do estradocardinalcio.A chegadados ilustres convidadosnoo fez retirardopostoqueescolherae,enquantopreladoseembaixadoresseempilhavamcomosardinhas em canastra, como bons arenques lamengos, ele punha-se vontade e cruzava conscienciosamente as pernas na arquitrave. Ainsolnciaerainaudita,mascomoasatenesestavamvoltadasparaoutrolado, ningum deu pela coisa. Pela sua parte, no ligava importnciaalgumasala;balouavaacabeacomumadespreocupaodenapolitano,repetindodevezemquando,porentreorumor,ecomoquecedendoaumhbitomaquinal:Umaesmolinha,peloamordeDeus!Foitalvezonico,de toda a sala, que no se dignou voltar a cabea para presenciar aaltercao entre Coppenole e o porteiro.Mas, quis o acaso que omestrefabricante de Gand, com quem o povo j simpatizava muitssimo, sobrequem dardejavam todos os olhares, fosse precisamente sentar-se naprimeira ila de lugares do estrado, por cima do mendigo; e, no foipequeno o espanto de ver o embaixador lamengo, aps uma rpidainspeo do malandrim, tocar-lhe amigavelmente no ombro andrajoso. Omendigo voltou-se; houve entre ambos uma surpresa, reconhecimento,expanso nos dois semblantes, etc; depois, sem se preocuparemabsolutamente nada com os espetadores, o fabricante de meias e omendigoentraramaconversaremvozbaixa,demosdadas.OsandrajosdeClopinTrouillefou,sobreopanejamentodeoirodoestado,produziamoefeitodeumalagartapousadanumalaranja.

    A originalidade desta cena singular excitou um tal burburinho decontentamento e jovialidade na sala, que o cardeal no tardou em fazerreparo:debruou-seumpoucoenopodendodistinguirbemdolugaremque estava o casaco ignominioso de Trouillefou, igurou-se muitonaturalmente que o mendigo pedia esmola, e, revoltado pela audcia,

  • bradou:SenhorbailiodoPalcio,atire-meaquelemariolaaorio.

    CroixDieu!SenhorcardealdisseCoppenolesemdeixaramodeClopinumamigo.

    Bravo! Bravo! ululou a turba. A partir de ento, mestreCoppenole teve em Paris, como em Gand,grand crdit avec le peuple; cargens de telle taille l'y ont , diz Filipe de Comines,quand ils sont ainsidesordonns.

    O cardeal mordiscou os lbios. Inclinou-se para o abade de SantaGenoveva,queestavaaolado,edisse-lheemvozbaixa:

    So divertidos os embaixadores que o senhor arquiduque nosenviaparanosanunciarmadameMargarida!

    Oabaderespondeu:

    Vossa eminncia est a dar prolas a porcos.Margaritas anteporcos.

    Diga antes respondeu o cardeal, sorrindo: Porcos anteMargaritam.

    A pequenita corte de sotaina achou o trocadilho adorvel. O cardealsentiu-se um poucomais satisfeito: estava quite com Coppenole: tambmfizeraumbomdito.

    E agora, que os nossos leitores que dispem da faculdade degeneralizar uma imagemou uma ideia como se diz no estilo de hoje, nospermitam saber se tm a compreenso bem ntida do espetculo queoferecia, no momento em que lhe tommos a ateno, o vastoparalelogramo da grande sala do Palcio. Ao meio do recinto, apoiado paredeocidental,umespaosoemagnicoestradodebrocadodeouro,noqual entram processionalmente, por uma pequenina porta ogival, gravespersonagens, sucessivamente anunciadas pela voz penetrante dumporteiro. Nas primeiras bancadas, grande nmero de iguras venerveiscoifadas de arminho, de veludo e de escarlate. Em volta do estradosilenciosoedigno,embaixo,emfrente,portodaaparteenormemultidoeburburinhoenorme.Sobrecadaisionomiadoestradomilolharesdopovo,

  • sobre cada nome mil comentrios surdos. Inquestionavelmente oespetculo curiosoemerecebemaatenodosespetadores.Masalm,laofundo,oqueessaespciedebarracacomquatrotterespintadosaduas cores? E ao lado da barraca, quem esse homem plido, de blusapreta?Ah!Meucaroleitor,PedroGringoireeoseuprlogo.

    Todosnsohavamosprofundamenteesquecido.

    Eaquiestprecisamenteoqueelereceava.

    Desde que o cardeal entrara, Gringoire no descansou um smomento, trabalhando infatigavelmente para salvar o seu prlogo.Comeara por incitar os atores que se haviam calado, a prosseguir e alevantaravoz;depois,vendoqueningumlhesprestavaateno,mandou-oscalar; ea interrupodurava,hmaisdeumquartodehora j,oqueno impedira de bater o p, agitadssimo, interpelando Gisquette eLinarde e instigando o pblico que o rodeava a ouvir a continuao doprlogo;debaldeseesforou.Ningumtiravaavistadecimadocardeal,daembaixadaedoestrado,nicocentrodessavasta circunfernciade raiosvisuais. Concorria para isto, com pesar o dizemos, a circunstncia doprlogo comeara aborrecer ligeiramenteo auditrio,naocasioemquesua eminncia interveio, por uma forma to terrvel. No im de contas, oespetculo era o mesmo tanto no estrado como namesa demrmore; oconlitodoTrabalhoedoClero,daNobrezaedaMercancia.Emuitagentepreferia v-los assim, bem vivos, bem autnomos, acotovelando-se emcarne e osso, nessa embaixada lamenga, nessa corte episcopal, sob atnica de cardeal, sob a vstia de Coppenole, do que calados, pintados,ataviados, falando em verso, e por assim dizer, empalhados nas tnicasbrancaseamarelasemqueGringoireosenvolvera.

    Contudo,malopoetaviuqueaordemseiarestabelecendo,concebeuumestratagemaparasalvarasituao.

    Cavalheiro disse para um sujeito gordo, de ar pacato, que lheestavaprximoesetornssemosaprincipiar?

    Oqu?disseohomem.

    Oquehdeser!OmistriotornouGringoire.

  • Comoquiserreplicouosujeito.

    Gringoire no quis ouvir mais, e, como quem faz a festa e atira osfoguetes,entroudegritarconfundindo-seomaispossvelcomamultido:Omistrio!Tocaarecomearomistrio!

    Diabo!disse JoannesdeMolendinoQueestoelesparaaliaberrar?(Comefeito,Gringoirefaziagrandealgazarra).rapazes!Entoomistrioaindanoacabou?Voltaraoprincpioquenovale.

    No, no! bradaram todos os estudantes Fora o mistrio!Fora!

    Gringoire,porm,cadavezgritavamais:

    Aoprincpio!Aoprincpio!

    Aberrariachamouaatenodocardeal.

    Senhor bailio do palciodisse dirigindo-se a umhomemmuitoalto, tododepreto,postadoadistnciaOnde imaginamelesqueesto,estesmariolas,parafazeremumainferneiradestaordem?

    ObailiodoPalcio eraumaespciedemagistradoanbio, comoqueummorcego de ordem judiciria, participando a um tempo do rato e daave,dojuizedosoldado.

    Aproximou-sedesuaeminncia,nopoucoreceosodoseudesagrado,e explicou-lhe, balbuciando, a inconvenincia popular: que o meio-diachegara antes de sua eminncia e que os comediantes se tinham vistoobrigadosaprincipiarsemesperarsuaeminncia.

    Ocardealdeuumagargalhada.

    Era o que o sr. Reitor da Universidade deveria ter feito. Que lheparecesmestreGuilhermeRym?

    MonsenhorrespondeuGuilhermeRymdemo-nospormuitofelizesemterescapadoametadedacomdia.Jnomau.

    Vossa Eminncia d licena que esses bilhostres continuem?

  • inquiriuobailio.

    Continuem,continuemdisseocardealQuemeimportaamimcomisso.Enquantocontinuam,vouleromeubrevirio.

    O bailio aproximou-se do parapeito do estrado e, tendo impostosilnciocomumgesto,clamou:

    Burgueses, rsticos e habitantes: para contentar toda a gente, osque querem que se recomece e os que querem que se acabe. Suaeminnciaordenaquesecontinue.

    Foi portanto mister que de ambos os campos se resignassem. Mas,tantooautorcomoopbliconuncaopuderamperdoaraocardeal.

    No tablado, as personagens voltaram pois, ao recitativo, e Gringoireconiavaque,pelomenos, lheouviriamo restodaobra. Iluso,que, comoasoutrasno tardariaa serdesvanecida;efetivamente, restabeleceu-seomximosilncioquesepoderiaexigirdoauditrio;Gringoire,porm,noreparara que o estrado no estava ainda cheio, quando o cardeal deuordem para prosseguir; que, aps os enviados lamengos, outraspersonagens do cortejo iriam aparecendo, e que os seus nomes edignidades lanados de permeio com o dilogo da pea, pelo gritointermitente do porteiro, lhe prejudicariam consideravelmente o efeito.Imaginem,durantearepresentaodeumapea,oguinchodumporteiroabrindoentreduasrimas,eporvezesentredoishemistquios,parntesiscomoestes:

    MestreJacquesCharmolue,procuradoreclesisticodorei!

    JehandeHarly,escudeiro,guardadoociodecavaleirodarondadacidadedeParis!

    MessireGaliotdeGenoilhac,cavaleiro,senhordeBruscac,mestredeartilhariadorei!

    Mestre Dreux-Raguier, iscal das guas e lorestas do rei nossosenhor,emterrasdeFrana,ChampagneeBrie!

    Messire Lus de Graville, cavaleiro conselheiro e camareiro do rei,

  • almirantedeFrana,guardadobosquedeVincennes!

    MestreDenisLeMercier,guardadohospciodecegosdeParis!Etc,etc,etc.

    Porfimistotornava-seinsustentvel.

    E Gringoire estava tanto mais indignado com o acompanhamentoabsurdo que assim lhe diicultava o andamento da pea, quanto certoque se convencera j de que o interesse pela obra aumentava e que lhefaltavaapenasserouvida.Era,comefeito,dicil imaginarumacontexturamais engenhosa e mais dramtica. As quatro personagens do prlogocarpiam o embarao mortal em que se encontravam quando Vnus empessoaselhesapresentavarevestindoumabelacotademalha,armoriadacomanaudomunicpiodeParis.Vinhapessoalmentereclamarogolinhoprometidomaisbelaentreasbelas. Jpiter,queseouvia trovejarentrebastidores, patrocinava-lhe a pretenso, e a deusa tinha segura a vitria,isto , em sentidomenos igurado, amo do senhorDelim, quando umacriana vestida de damasco branco, entre os dedos uma margarida(personiicao transparente da donzela de Flandres) vinha lutar comVnus. Lance teatral e peripcia. Controvrsia. Vnus, Margarida e osrestantesacordavamporfimemreportar-seaobomjuzodasantaVirgem.Aindahaviaumbompapel,odeD.Pedro,reidaMesopotmia:mas,entretantasinterrupes,eradicilperceber-lheasigniicao.Tudoistosubirapelaescada.

    Mas, era irremedivel; nenhuma dessas belezas fora sentida,nenhuma compreendida. entrada do cardeal, dir-se-ia que um ioinvisvel emgicodesviara todososolharesdamesademrmoreparaoestrado, da extremidade meridional da sala para o lado ocidental. Nohaviameiodearrancaroauditrioaesseencanto;osolhosnosetiravamdali, e os que iam chegando, os malditos nomes de toda essa gente, aexpressodassuas isionomias,apompadosseus trajosconstituamumadiverso constante. Era desolador. Com exceo de Gisquette e Linarde,quesevoltavamdevezemquando,semprequeGringoireaspuxavapelobrao;comexceodosujeitopacato,ningumprestavaateno,ningumfaziacasodopobreautoabandonado.Gringoireapenasviaperfis.

    Comqueamarguraassistiuaolentodesmoronardetodooseuedicio

  • deglria edepoesia!E lembrar-se eledeque essepovo, impacienteporlhe ouvir a obra, estivera a pontode rebelar-se contra o senhor bailio! Eagoraqueapodiaouvir,nemdelaselembravaj.Essemesmoespetculoque comeara entre aclamaes to unnimes! Eterno luxo e reluxo dasimpatia popular. E lembrar-se de que, por pouco, essa gente noenforcavaos sargentosdobailio!Oqueeledariaporpodervoltar a essedeliciosomomentodeventura!

    Entretanto, cessou o monlogo brutal do porteiro; j ningum maishavia para anunciar, e Gringoire respirou; os atores prosseguiamcorajosamente. Mas no se lembra de repente mestre Coppenole de selevantar e de impingir, em meio de um recolhimento profundo, estaabominvelestopada!

    SenhoresburgueseseidalgotesdeParisnosei,croixDieu!Oqueestamosaquia fazer.verdadequevejo ladiante,nessabarraca,umascriaturas que me parecem dispostas luta! Ignoro se a isto que ossenhores chamam ummistrio, mas no acho que seja coisa muitodivertida:aquelagentedlnguamasnopassadisso.Humquartodehoraqueestoudaquiaverqualdelesqueatiraaprimeira,enada;souns poltres, e o que sabem descompor-se. Contratem lutadores deLondresoudeRoterdoeentovero!Davamparaasocodeseouvirnapraa;masaqueles,causamd!Aomenosqueapresentassemumadanamauresca ou outra pantomina qualquer! No foi isto que me disseram;falaram-me duma festa dos loucos e da eleio dum papa. Ns tambmtemosonossopapadosloucosemGand,e lnissonosomospecos,croixDieu! Rene-se a gente, comoaqui; depois, vez, cadaummete a cabeaporumburacoe fazumesgaraosoutros;oqueizeracaretamais feiaeleito papa por aclamao; ora a est. muito divertido. Querem ossenhores eleger o seu papa moda minha terra? Sempre ser menosmaador do que ouvir estes tagarelas. Se quiserem tambm podem virfazerasuacareta.Quelhesparece,senhoresburgueses?Haquiumbomnmero de exemplares dos dois sexos, razoavelmente grotescos, que nosfarorirlamenga;ecomosnossoscares,podemosteracertezadequenofaltarocaretas.

    Gringoire responderia, se a sua estupefao, a clera, a indignaono lhe embargassem a voz. Demais, amoo do fabricante popular foraacolhidacomumtalentusiasmoporessesburgueses, lisonjeadosporlhes

  • chamaremfidalgotes,queeraintilresistir.Haviaumanicacoisaafazer:deixar-selevarpelatorrente.Notendo,comooAgamemnondeTimanteaventura de possuir um manto para cobrir a cabea, Gringoire cobriu orostocomasduasmos.

  • V.Quasimodo

    Numabrirefechardeolhos,preparou-setudoparapremexecuooprojetodeCoppenole.Burgueses,estudantesebeleguinslanarammosobra.

    Foiescolhidapara teatrodosesgaresapequeninacapelasituadaemfrentedamesademrmore.Partidoumvidrodabelarosceadecimadaporta, icou aberto na pedra um culo, por onde se combinou que osconcorrentesmetessemacabea.

    Para chegar abertura, bastava saltarpara cimadedois tonis, queforambuscarnoseiondeequeequilibraramcomopuderam.Decidiu-seque, para que a impresso do esgar fosse completa e imprevista, oscandidatos, homens ou mulheres (porque tambm se podia eleger umpapa feminino) cobrissem o rosto e se ocultassem na capela, at quetivessemdeaparecer.Numsegundo,acapelaencheu-sedeconcorrentes,fechando-seaporta.

    Do seu posto, Coppenole ordenava tudo, tudo dispunha. Durante orebolio, o cardeal, no menos atnito que Gringoire, pretextandoocupaes e vsperas, retirou-se com todoo squito semque amultido,que ao v-lo chegar se agitara, sentisse o menor abalo ao v-lo sair.Guilherme Rym foi o nico a compreender que sua eminncia tinha sidovencida.Aatenopopular,comooSol,prosseguiranasuaderrota;tendopartido de um extremo da sala, depois de se deter por algum tempo aocentro,estavaagoranooutroextremo.Amesademrmore,oestradodebrocado tiveram-napresa; cabiaavez capeladeLusXI.Livreo campoparatodososexcessos,restavamapenasosflamengoseavilanagem.

    Deu-se princpio funo. A primeira igura que apareceu naaberturairregulardaroscea,osolhosoureladosdesangueporefeitodasplpebrasreviradas,abocahiantecomoumagoela,atestaenrugadacomoum canho de bota hussard, das do imprio, produziu umdesencadeamento de uma alacridade to nova, to inextinguvel, que

  • Homero tomaria toda essa malandragem por um bando de deuses. Noentanto, a grande sala era nada menos que um Olimpo, e o Jpiter deGringoiresabia-omelhorqueningum.Sucederam-senoculodarosceauma segunda, uma terceira careta, veio outra, outra em seguida; econtinuamente cresciam as risadas e alegria tripudiante. Havia nesseespetculonoseiquevertigemespecial,noseiqueforadeembriaguezedefascinao,dequeseriadicildarumaideiaaoleitordosnossosdiase dos nossos sales. Imaginem uma srie de rostos afetandosucessivamente todas as formas geomtricas, desde o tringulo, at aotrapzio, desde o cone at ao poliedro: todas as expresses humanas,desde a clera at luxria; todas as idades, desde as rugas do recm-nascido at s rugas da velha moribunda; todas as fantasmagoriasirreligiosas, desde Fauno at Belzebu; todos os aspetos animais, desde agoela at ao bico, desde tromba at ao focinho. Imaginem todas ascarrancas da ponteNova, esses pesadelos petriicados entre os dedos deGermano Pilon, vivendo e respirando, e vindo alternativamente encarar-nos de frente, com os olhos em fogo; todas as mscaras do carnaval deVeneza passando pelos vidros de um binculo; em uma palavra, umcaleidoscpiohumano.

    A orgia tomava cada vez mais um carcter lamengo. Tniersdiicilmente a conseguiria reproduzir. Suponham por um momento abatalha de Salvator Rosa em bacanal. Ali j no havia estudantes, nemembaixadores, nemburgueses, nemhomens, nemmulheres; jnohaviaClopinTrouillefou,GillesLecornu,MarieQuatrelivresouRobinPoussepain.Tudo se confundia, tudo se nivelava na licena comum. A grande salapassava a ser uma vasta fornalha de desbragamento e jovialidade, ondecada boca era um grito, cada face um esgar, cada indivduo uma atitude;tudo isto clamava e ululava. As caras novas que vinham a seu turnoarreganhandoosdentes,naaberturadaroscea,eramcomooutrostantosties lanadosaobraseiro;e todaessaturbaefervescentepartia,comoovapor da fornalha, um rumor desagradvel, agudo, penetrante, sibilantecomoodasasasdeummoscardo.

    Hoh!Maldio.

    Olha-meparaaquelacara!

    Novalenada.

  • Vamosaoutra!

    Guillemette Maugerepuis, repara naquelas ventas de touro, slhefaltamoscornos.Noteumarido.

    Outra!

    Ventredupape!quedemniodecaretaaquela?

    Ol!Istobatota.Ssedevemostraracara.

    AqueleraiodaPerreteCallebotte!capazdisso.

    Aleluia!Aleluia!

    Abafo!

    Aquelenopodefazerpassarasorelhas!

    Etc,etc.

    Em meio de tudo isto, faamos justia ao nosso amigo Jehan. Nodesencadeardaorgia,distinguiam-noaindanopilar,comoumgrumetenagvea.Agitava-se comum furor inacreditvel.A bocadesmesuradamenteaberta,davagritosqueningumouvia,oqueporcertonoeradevidoaoclamor da turba, que pormais ruidoso que fosse no vingaria abaf-los,mas semdvidaporqueatingiamo limitedos sonsagudospercetveis, asdozemilvibraesdeSauveurouasoitomildeBiot.

    Gringoire, esse, dominara-se passado o primeiro instante deabatimento.Fizera-sefortecontraaadversidade.Continuem!disserapelaterceiravezaoscomediantes,mquinasdefalar;depois,passeandoalargos passos por diante da mesa de mrmore, sentia mpetos de irtambm,comoosoutros,meteracabeanarosceadacapela, aindaqueno fosse seno pelo prazer demostrar a lngua a esse povo ingrato.Masno,seriaindignodens;nadadevinganas!Lutemosataocabopensavagrandeaascendnciadapoesiasobreopovo;heidecham-losabomcaminho.Veremosquemlevaamelhor,seascaretasseasbelasletras.

  • PobreGringoire!Eraonicoespetadordapea.

    Eagora,aindaerapiordoquehpouco.Sviacostas.

    Peoperdo.Osujeitopacato,aquemopoetajtinhaconsultadonummomento crtico, conservara-se voltado para o teatro. Gisquette e aLinarde,essas,tinhamdesertadohmuitotempo.

    Esta prova de idelidade do seu nico espetador, impressionouprofundamente Gringoire, que se lhe acercou, e lhe dirigiu a palavratocando-lhe ligeiramentenobrao;ohomemencostara-sebalaustradaedormitavaumpouco.

    Muitoagradecido,cavalheiro!disseGringoire.

    Agradecidoporqu?respondeuohomembocejando.

    Naturalmente o que o incmoda tornouo poeta todo estebarulhoquenolhepermiteouvirsuavontade.Masiquecertodequeoseunomepassarposteridade.Asuagraa?

    RenauldChteau,guardaselodoChteletdeParis,umseucriado.

    Cavalheiro, o senhor aqui o nico representante das musasdisseGringoire.

    SofavoresrespondeuoguardaselodoChtelet.

    Ocavalheiro tornouGringoireanicapessoaqueouviuapeadecentemente.Quetalaacha?

    H?H!respondeuomagistrado,meioadormirmeioacordadoNom.

    Gringoire teve de se contentar com este elogio; um estrondear deaplausos, de envolta com uma aclamao prodigiosa, veio interromper aconversao.Foraeleitoopapadosloucos.

    Aleluia!Aleluia!Aleluia!gritavaopovodetodososlados.

    Era, com efeito, uma carantonhamaravilhosa a que, nestemomento,

  • resplandecia pela abertura da roscea. Depois de todas as facespentagonais,hexgonaseheterclitas,quesehaviamsucedidonesseculosem realizar o ideal grotesco construdo nas imaginaes exaltadas pelaorgia, faltava esse esgar sublime que enchia a assembleia de umdeslumbramento,paraalcanardeprontotodosossufrgios.

    O prprio mestre Coppenole aplaudiu; e Clopin Trouillefou, queconcorrera (e Deus sabe a que grau de fealdade poderia chegar),confessou-sevencido.Faremoscomoele.Notentaremosdaraoleitorumaideia desse nariz tetraedro, dessa boca recurva como uma ferradura,dessepequeninoolhoesquerdoobstrudoporumapequeninasobrancelharuiva e spera como tojo, enquanto o olho direito desapareciacompletamente sobuma enorme verruga; dessa dentadura desordenada,aquiealmbrechada,comoasameiasdeumforte;desselbiocaloso,porsobre o qual avanava um desses dentes como uma presa de elefante;desse queixo fendido; e, principalmente, da isionomia diluda sobre tudoisto;dessemistodemalcia,deestranhezaedemgoa.Sonhemisto,selhespossvel.

    Aaclamao foiunnime; correram todosparaa capelae trouxerampara fora, em triunfo, o bem aventurado papa dos loucos. Mas, foi entoqueasurpresaeaadmiraosubiramdeponto:oesgareraoseuprpriorosto.

    Ou antes, todo ele era um esgar. Uma cabea formidvel, eriada deumacabeladuraruiva;entreosdoisombrosumabossaenormeque,comomovimento, fazia vulto por diante; um sistema de coxas e de pernas tosingularmente descambadas que apenas se podiam aproximar pelosjoelhoseque,vistasde frente,pareciamduas lminas recurvasde foices,unidas pelo cabo; ps largos, mos monstruosas; e, com toda estadeformidade,noseiquearde forte, todoelevigor, agilidadee coragem;estranhaaceoeternaregraquepretendequeafora,domesmomodoqueabeleza,resultedaharmonia.Taleraopapaqueosloucosacabavamdeeleger.

    Dir-seiaumgigantedespedaadoeinabilmenterecomposto.

    Quando essa espcie de ciclope apareceu porta da capela, imvel,quasetolargocomoalto;quadradopelabase,comodizumgrandehomem;

  • ao v-lo com a sua vstia,metade vermelha,metade violeta, semeada decampainhas de prata, ao v-lo, em toda a perfeio da sua fealdade, apopulaareconheceu-oimediatamenteeexclamouaumavoz:

    Quasimodo, o sineiro! Quasimodo, o corcunda de NossaSenhora!Quasimodo,ozanaga!Quasimodo,ocambaio!Aleluia!Aleluia!

    Como se v, com respeito a apelidos, o pobre diabo tinhamuito porondeescolher.

    Acautelem-seasgrvidas!berravamosestudantes.

    Ouasoutras!replicavaJoannes.

    Defeito,asmulherescobriramorosto.

    Feiobicho!diziauma.

    Feioemau!tornaraoutra.

    odiabo!ajuntavaumaterceira.

    Porinfelicidade,moropertodaigrejadeNossaSenhora,edenoiteouo-oqueandapelasgoteiras.

    Comoosgatos.

    Estsemprenostelhados.

    Atira-nossortespelaschamins.

    Umanoitesdestasfoijaneladaminhatrapeirafazerumacareta.Imagineiqueeraumhomem.Tiveummedo!

    Ia jurarqueelevaiaosabbat.Umavezdeixou icarumavassouranotelhadodeminhacasa.

    Oh!Queestafermodecorcunda!

    Tearrenego!

  • Quenojo!

    Oshomens,aocontrrio,estavamencantadoseaplaudiam.

    Quasimodo, objeto do tumulto, continuava de p, porta da capela,sombrioegrave,deixando-seadmirar.

    Umestudante(RobinPoussepain,creioeu)chegou-semuitoparaeleaescarnec-lo.Quasimodolimitou-sealevant-lopelocinturoeaatir-loadezpassosdedistncia,porentreaturba;isto,semabriraboca.

    Maravilhado,mestreCoppenoleaproximou-sedele.

    Croixdieu! SantoPadre!sacriaturamaissoberbamentefeiaqueat hoje tenho visto. Merecias o papado de Roma como mereceste o deParis.

    Dizendo isto, pousou-lhe amo no ombro familiarmente. Quasimodonosemexeu.Coppenoleprosseguiu:

    summariolacomquemnosemedavadefazerumapatuscada,ainda que isso me custasse umdouzain novo de doze torneses. Que teparece?

    Quasimodonorespondeu.

    Croixdieu!disseofabricantedemeiasssurdo?

    Era,comefeito,surdo.

    Entretantocomeavaaimpacientar-secomasmaneirasdeCoppenolee,sbito,voltou-separaelecomumrangerdedentestoformidvelqueogiganteflamengorecuou,comoumbuldogueemfrentedeumgato.

    Fez-seento,emvoltadaestranhapersonagemumcrculodeterrorederespeito,que,pelomenos,tinhaquinzepassosgeomtricosderaio.UmavelhotaexplicouamestreCoppenolequeQuasimodoerasurdo.

    Surdo! disse o fabricante, rindo no seu bom rir lamengo Croixdieux!umpapaconsumado.

  • Ol!AqueleconheoeuexclamouJehan,quedesceraporimdocapitel para ver Quasimodo de perto sineiro de meu irmo oarcediago.Bonsdias,Quasimodo?

    Diabo do homem! disse Robin Poussepain, ainda aturdido emresultado da queda. Aparece: corcunda. Anda: cambaio. Olha: vesgo.Falam-lhe: surdo.Mas, comosdiabos,que fazeleda lngua, essePolifemo?

    Fala quando quer disse a velhota; ensurdeceu a tocar ossinos.Nomudo.

    oquelhefaltaobservouJehan.

    TemumolhoamaisacrescentouRobinPoussepain.

    PuroenganodissejudiciosamenteJehan.Umzanagamuitomaisincompletodoqueumcego.Elebemsabeoquelhefalta.

    Entretanto, mendigos, lacaios, ratoneiros, estudantes foi tudoprocessionalmente, buscar no armrio do tribunal a tiara de papelo e asamarra irrisria do papa dos loucos. Quasimodo deixou-se vestir sempestanejarecomumaespciededocilidadeorgulhosa.Depois,izeram-nosentar numa padiola de cores variegadas. Doze oiciais da confraria dosloucos levantaram-no s costas; e uma espcie de jbilo amargo edesdenhosopassouporsobreafacemelanclicadociclopequandoviuaosseus ps disformes todas essas cabeas de homens gentis, aprumados,perfeitos.Emseguida, aprocissoululante e andrajosa,ps-se a caminhoparapercorrer,segundoausana,ointeriordasgaleriasdoPalcio,antesdecomearopasseiopelasruaseencruzilhadas.

  • VI.AEsmeralda

    Entretanto, a pea prosseguia e Gringoire, por seu turno nodesanimava,comverdadeiro jbiloodizemos.Osatores, incitadosporele,iamfalando;eleia-osouvindo.Estavaresolvidoaesgotartodososmeios,enoperderacompletamenteaesperanadequeopblicovoltasse,ecomele a ateno. Vendo Quasimodo, Coppenole e o cortejo ensurdecedor dopapa dos loucos sair da sala, esse raio de esperana rutiloufulgurantemente.Amultido correu sofregamente apso cortejo.Bem disse consigo destes ruies estou eu livre. Infelizmente, essesrufieseramopblico.Numabrirefechardeolhos,asalaesvaziou-se.

    Restavam ainda, certo, alguns espetadores, uns dispersos, outrosagrupados em volta dos pilares, mulheres, velhos, crianas, em nmerosuicienteparaquenodeixassedehaverrudoetumultonasala.Algunsestudantes,acavaladosnoentablamentodasjanelas,olhavamparaapraa.

    Pblico de sobra para ouvir o resto pensou Gringoire Sopoucosmasbons,gentefina,genteletrada.

    Ao aparecer em cena a Virgem Santa, devia escutar-se uma sinfoniadum efeito magnico. No se executou. Os msicos tinham ido com aprocissodopapadosloucos.

    AdiantedisseGringoireestoicamente.

    Acercou-se de um grupo de burgueses, que lhe pareceu estarem afalardapea.Eisotrechodeconversaoquepdeouvir:

    Conhece o palcio de Navarra, propriedade que foi do sr. deNemours,mestreCheneteau?

    Conheo.EmfrentedacapeladeBraque.

    Poiso iscoacabadeoalugarporseis librasoitosoldosparisis, aoano,aohistoriadorGuilhermeAlexandre.

  • Comoasrendasestocaras!

    Pacincia!pensouGringoiresuspirandoOsoutrosouvem.

    Rapazes gritou de sbito um dos folies da janela laEsmeralda!LaEsmeralda!napraa!

    Aomesmotempoouvia-se,fora,umestrondeardeaplausos.

    La Esmeralda, que isto? disse Gringoire alitssimo, demospostasAh!MeuDeus!Agorasoosdasjanelas.

    Voltou-se para a mesa de mrmore; interrompera-se o espetculo.Precisamente, Jpiter devia aparecer em cena brandindo o raio. Ora,Jpiterestavaembaixo,imvel.

    MiguelGiborne!disseopoeta irritadoQuefazesai?Faltasentrada,sobe!

    Quequeres!disseJpiterUmestudantelevou-meaescada.

    Assim era, a escada no estava no seu lugar. Portanto, intercetadaqualquercomunicaocomacena,perdidoodesenlacedapea.

    PatifemurmurouEparaquelevoueleaescada?

    ParaveraEsmeraldarespondeuJpiteralitivamenteDisse:Magnfico!Umaescadaquenoserve!elevou-a.

    Foioltimogolpe.Gringoirerecebeu-ocheioderesignao.

    Vo para o diabo! disse aos comediantes Se me pagaremcontemcomapaga.

    Bateuentoemretirada,decabeabaixa,masemltimolugar,comoogeneralquesebateuatltima.

    EresmungavadescendoastortuosasescadasdoPalcio:umacorjadebestas ede estpidos estesparisienses!Vmouvirummistrio enoprestamatenoaumapalavra!Passaramotempoaolhardebocaabertapara toda a gente, Clopin Trouillefou, o cardeal, Coppenole, Quasimodo, o

  • diaboqueos leve!MasnemumolharsedignaramlanarparaasenhoraVirgemMaria,essesbasbaques!Eamim,amim,que tinhavindoparaosver,voltam-meascostas!Umpoetarecebidoacomoqualquerboticrio!verdadequeHomeromendigoupelasaldeolasdaGrciaeOvdiomorreuno exlio, entre os moscovitas. Mas diabos me levem se sei o que elesqueremdizercomatalEsmeralda!Quepalavra!egpcio!

  • Livrosegundo

  • I.DeCilaparaCaribdes

    Em Janeiro anoitecemuito cedo. Escurecia quandoGringoire saiu doPalcio.Ocairdatardefoi-lhepropcio;tinhapressaemseembrenharporqualquervielaobscuraedeserta,ondepudessemeditarempaz,paraqueoilsofocolocasseoprimeiroblsamosobreaferidadopoeta.Deresto,afilosofiaeraoseunicoalbergue,porquenosabiaaondeirdormir.

    Depoisdomalogroruidosodasuatentativateatral,notinhacoragemde entrar na casa que habitava na rua Grenier-sur-l'Eau, em frente doporto do Feno, porque, contando como que o sr. Preboste lhe daria peloepitalmio,prometerapagar amestreGuilhermeDoulx-Sire, fermierde lacoutunedapiedfourchdeParis,osseismesesderendaquelhedevia,isto, doze soldosparisis, doze vezes o valor de tudo o que possua,compreendendoos cales, a gorrae a camisado corpo.Provisoriamenteacantoado no postigo da priso do tesoureiro da Sainte-Chapelle,relexionandoemquelugarpassariaanoite, tendosuadisposiotodasas ruas de Paris, lembrou-se de que, na semana anterior, descobrira naruada Savaterie, portadahabitaodeum conselheirodoparlamento,um banco de pedra dos que serviam para montar nas mulas, e quenaquelaoportunidade,nodeixariadeconstituirumexcelentetravesseiropara um mendigo ou para um poeta. Agradeceu Providncia o ter-lheinspirado esta boa ideia e, dispunha-se a atravessar a praadoPalcio aim de penetrar no ddalo tortuoso da Cit, por onde serpeiam essasvelhas irms as ruas de Barillerie, da Vieille-Draperie, da Savaterie, daJuiverie, etc, ainda hoje de p com as suas construes de nove andares,quandoviuaprocissodopapados loucos,quetambmsaadoPalcioeirrompianoptio, comgrandesclamores,grande luzdearchotes,ea suamsica,amsicadele,Gringoire.

    Este espetculo irritou-lhe o amor-prprio ferido; fugiu. Azedava-o,parecia-lhesangrara ferida tudooqueviesserecordara festadodia,naamargasituaoemqueolanaraoseuinfortniodeatordramtico.

    Quis seguir pela ponte de S. Miguel; crianas corriam, aqui e alm,

  • brandindoosarchotesefoguetes.

    Diabos levem os fogos de articio! disse Gringoire. Nas casasqueentestavamcomaponte,lutuavamtrsdrapelsrepresentandoorei,odelim eMargarida de Flandres, e seis pequenosdrapelets, em que eramretratadosoduquedaustria,ocardealdeBourboneosr.deBeaujeu,eMadameJoanadeFranaeobastardodeBourbonenemeuseiquemais,tudoistoiluminadoaoclarodastochas.Aturbaadmirava.

    Um felizo, o pintor Jehan Fourbaul! disse Gringoire com umprofundosuspiro;evoltoucostasaosdrapelseaosdrapelets.

    Viunasuafrenteumarua;achou-atoescuraetoabandonada,quetomouporela,esperandorefugiar-sealicontraorumorea irradiaodafesta. Tinha dado alguns passos, quando tropeou num obstculo:cambaleou e caiu. Era ummolho demaio que os escreventes do tribunalhaviam colocado pela manh porta de um presidente do parlamento,para comemorar a solenidade do dia. Gringoire suportou heroicamenteeste novo encontro; ergueu-se e entrou em caminhar em direo margem do rio. Passando pela torre civil e pelo torreo criminal, tendocaminhado ao longo dos altos muros dos jardins do rei, nessa praia emque,nohavendopavimento,a lamaeratantaque lhedavapelos joelhos,chegou ao estremo ocidental da Cit e entreteve-se a olhar por algumtempoparaailhotadoPasseur-aux-Vaches,quedepoisdesapareceusobreocavalodebronzedaponteNova.Ailhotaemergiadassombrascomoumamassa negra, para alm da estreita corrente de gua que a separava.Adivinhava-se pelo bruxulear de uma luz dbia, a espcie de cabana emformadecortioondenoiteserecolhiaobarqueiroquepassavaasvacasdeumaparaaoutramargem.

    Felizcriatura!pensouGringoire.Nopensasnaglriaenofazesepitalmios!QueteimportamosreisquesecasameasduquesasdeBorgonha!Margaridasconhecesapenasasqueastuasvacasesmoemnaspradariasemabril!Eeu,poeta, souapupado, tiritoao frio, tenhodemeudoze soldos e as solas do calado to transparentes que poderiam servirdevidrotuacandeia.Deusteabenoe!Atuacabanadistrai-meefaz-meesquecerParis!

    Despertou-odoseuxtasequaselrico,umaenormebombaduplado

  • S. Joo, que partiu bruscamente da felicssima cabana. Era o homem dasvacasquetomavaasuapartenoregozijododia,queimandotambmfogodeartifcio.

    AbombairritouaepidermedeGringoire.

    Maldita festa! bradou. Est ento escrito que me hs deperseguirportodaaparte?Oh!MeuDeus!Atohomemdasvacas!

    Depois,entrouaolharparaoSenaquelhecorriaaospsesentiu-sepossudodeumatentaohorrvel.

    Oh!disse.Comqueprazermedeitariaaafogar,seaguanoestivessetofria!

    Tomouentoumaresoluodesesperada.Comono lheerapossvelfugir ao papa dos loucos, nem aosdrapelets de Jehan Fourbault, nem aosmolhosdemaio,nemaos foguetes,nemsbombas,decidiu-seapenetraraudaciosamentenocentrodafesta;decidiuirpraadeGreve.

    Aomenos pensou sempre a terei minha disposio umabrasa das fogueiras para me aquecer e talvez me no seja dicil cearalgumamigalha dos trs grandes brases de acar real, que devem terarmadonobufetepblicodacidade.

  • II.ApraadeGreve

    Da praa de Greve, tal como ento existia, resta apenas hoje umpequenssimovestgio:aencantadoratorrinhaqueocupaongulonortedapraa,eque, jocultapelo ignbilcaleamentoquelheembotaasvivasarestas das esculturas, ter talvez em breve de desaparecer, subvertidapelanovacasaria,quetorapidamentedevoratodasasvelhasfachadasdeParis.

    Quem, como ns, nunca passa pela praa de Greve sem lanar umolhar de comiserao e simpatia para esta pobre torrinha estranguladaentredoispardieirosdotempodeLusXV,podementalmentereconstruirsem custo o conjunto de edicios de que ela fazia parte e ali encontrar,completa,avelhapraagticadosculoquinze.

    Constitua,comohoje,umtrapzioirregular,fechadoporumladopelocaisedostrsoutrosporumasriedecasasaltas,estreitasesombrias.Dedia, avultava a diversidade de construes esculpidas em pedra ou emmadeira, e apresentando j exemplares completos das diversasarquiteturasdomsticasdaIdadeMdia,remontandodosculoquinzeaosculo onze, desde a janela quadrada que comeava a desprestigiar aogiva, at ao pleno arco romano, suplantado pela ogiva. De noite, dessamassa de edicios apenas se distinguia o recorte negro dos telhadosprojetandoemderredordapraaasuacadeiadengulosagudos.Porqueumadasdiferenasradicaisentreascidadesdeentoeasdehojeconsisteem que hoje so as fachadas que deitam para as ruas e dantes eram asempenas.Emdoissculos,ascasasvoltaram-se.

    Nocentro,doladoorientaldapraa,elevava-seumapesadaehbridaconstruo, formada de trs corpos justapostos. Era conhecida por estestrsnomes,queexplicamasuahistria,oseudestinoeasuaarquitetura:aCasa do Delim , porque Carlos V, quando Delim, a habitara; a Fazenda,porqueserviadecasadecmara;aCasadospilares porcausadumasriede grossos pilares que sustentavam os trs andares. Nessas trs casas,haviatudooqueumaboacidadecomoParispodeexigir:umacapela,para

  • orar a Deus; um tribunal, para audincias e para conter em respeito,quando preciso, os sbditos do rei; e nos subterrneos um arsenalatulhadodemquinasdeguerra.PorqueosburguesesdeParissabemqueem muitos casos no o bastante pedir e pleitear pelas franquias dacidadeetmsempredereserva,numarmazmdacasadacmara,algunsarcabuzesferrugentosmasdebomcalibre.

    AGrevetinhaaotempooaspetosinistroqueaindahoje,comoento,inspira ideias execrveis, como as inspirava a sombria habitao deDominiqueBocador, que substituiu aCasadosPilares.Devedizer-sequeumaforcaeumpelourinhopermanentes,umajustiaeumaescada,comoentosedizia,erguidosladoalado,aomeiodarua,nocontribuampoucopara fazer desviar os olhos desta praa fatal, onde tm agonizado tantascriaturas, esplndidas de sade e de vida; onde devia nascer cinquentaanosmaistardeessa febredeSaintVallier ,omaismonstruosodetodososflagelos,porquenovemdeDeus,masdohomem.

    uma ideia consoladora pensar que a pena de morte que, htrezentos anos obstrua ainda comas suas rodas de ferro, as suas forcasdepedra,comtodooseucortejodeinstrumentosdesuplcio,permanentese chumbados ao cho, a Greve, os Mercados, a praa Delina, a cruz doTrahoir, o Mercado dos Porcos, o hediondo Montfaucon, a barreira dossargentos, a praa dos Gatos, a porta de So Dinis, Champeaux, a portaBaudets,aportaSoTiago,semcontarasinmerasescadasdosprebostes,do bispo, dos captulos, dos abades, dos priores juzes; consolador que,hoje, depois de ter perdido sucessivamente todas as peas da suaarmadura, a suapompade suplcios, a suapenalidade toda imaginao efantasia, a sua tortura para a qual renovava de cinco em cinco anos umleitodecoironoGrandeChtelet,estavelhasuseranadasociedadefeudal,corridadecdigoemcdigo,expulsadepraaempraa,stenhanonossoimenso Paris um canto vil da Greve, uma miservel guilhotina, furtiva,inquieta, tmida, que, dir-se-ia, alimenta o receio constante de sersurpreendidaemflagrantedelito,todepressafoge,malperpetraocrime.

  • III.Besosparagolpes

    Quando Pedro Gringoire chegou praa de Greve, estava transido.SeguirapelapontedosMoleirosparaevitaraturbadapontedeCmbioeospainisdeJehanFourbault;masasrodasdosmoinhosdobispohaviam-nosalpicadonapassagemeeisporquetinhaasotainaencharcada;depois,parecia-lhequeodesastredasuapealhefaziamaisfrio.Deu-seportantopressa em se abeirar da fogueira que ardia magniicamente ao meio dapraa.Cercava-a,porm,umgentioenorme.

    Parisiensesdumdardo!disse consigo (porqueGringoire, comoumverdadeiro poeta dramtico, era atreito aosmonlogos)agora nome deixam aquecer! E eu ento que tanto preciso de lume! Tenho ossapatosencharcadosdaquelesmalditosmoinhosquenosecansavamdechorarsobremim!LeveodiaboobispodeParisemaisosseusmoinhos!Oqueeuqueriasaberparaqueserveummoinhoaumbispo!Quererelemudar de proisso, fazer-se moleiro? Se para isto lhe basta a minhamaldio,aa tem,debomgrado lhadou,aele,suacatedralemaisaosseus moinhos! Vejam l se aqueles basbaques se do ao trabalho de s