MEMORIA DE LUCIANA STEGAGNO PICCHIO (1920-2008) · na luz da eternidade, ... Ε Monsenhor Agostinho...

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MEMORIA DE LUCIANA STEGAGNO PICCHIO (1920-2008) A última vez que a vimos foi, na sua casa de Roma, numa tarde de domingo de Fevereiro, passou já mais de um ano. Frágil, muito frágil, na elegância do seu vestido e das palavras gentis que nos dirigiu. Recebeu-nos, de pé, na sua biblioteca, com a fidalguia de uma Grande Senhora e a graciosidade de um ser,já quase etéreo. Impressionara-nos a dignidade do gesto, a voz com timbre firme e bem audível, num português correctíssimo, um olhar iluminado, um sorriso. Apreciei-a, a seguir, no recanto do seu sofá, de longas horas, ladeada por aquelas estantes, estilizados ramos de árvore a apoiarem o acervo bibliográfico da grande investigadora, filóloga e erudita qual Silua do conhecimento, que estava ali, símbolo de si própria, da sua realização, da sua erudição e criatividade. Assim a descreveu José Cardoso Pires: «o perfil de Luciana Stegagno Picchio ergue-se perante nós a traço aprumado corno um ex-libris incon- fundível e tem a sedução e a serenidade de quem se construiu com rigor e mão feliz» gomai de Letras 990, de 10-23/9/2008, p. 6). Ε Maria de Lourdes Belchior (ibidem) acrescentara que Luciana tinha «uma inteligência aguda, rápida no captar das realidades e exigente no aprofundar das intuições, uma grande generosidade na partilha de pontos de vista e um sentido de humor que anima a seriedade dos princípios e dos propósitos». A sua obra fala por si. Sem esquecer os dois volumes de La méthode philo- logique, com Prefácio de Roman Jakobson, é a autora de dois estudos que se tornaram clássicos, História do Teatro Português e História da Literatura Brasileira, e ainda de Mar aberto. Viagens dos portugueses (Lisboa, 1999), de centenas de artigos, ensaios, edições críticas de poesia e prosa medieval, renascentista e moderna: da lírica galaico-portuguesa a Gil Vicente e João de Barros, de Camões a Camilo, de Eça de Queirós a Fernando Pessoa. Sobre Pessoa reuniu vários estudos, em Nel segno di Orfeo, Fernando Pessoa e VAvanguardia portoghese (Génova, 2004), a sair, em português, pela INCM. Ε ainda sobre Aquilino, Torga, José Cardoso Pires, Jorge de Sena, José Saramago (Instantanee per un ritratto, Florença, 2000). Entre os autores brasileiros, salientem-se os estudos sobre Jorge Amado e Murillo Mendes, Drummond de Andade, Jorge de Lima, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa.

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MEMORIA DE LUCIANA STEGAGNO P I C C H I O (1920-2008)

A última vez que a vimos foi, na sua casa de Roma, numa tarde de domingo de Fevereiro, passou já mais de um ano.

Frágil, muito frágil, na elegância do seu vestido e das palavras gentis que nos dirigiu. Recebeu-nos, de pé, na sua biblioteca, com a fidalguia de uma Grande Senhora e a graciosidade de um ser,já quase etéreo. Impressionara-nos a dignidade do gesto, a voz com timbre firme e bem audível, num português correctíssimo, um olhar iluminado, um sorriso. Apreciei-a, a seguir, no recanto do seu sofá, de longas horas, ladeada por aquelas estantes, estilizados ramos de árvore — a apoiarem o acervo bibliográfico da grande investigadora, filóloga e erudita — qual Silua do conhecimento, que estava ali, símbolo de si própria, da sua realização, da sua erudição e criatividade. Assim a descreveu José Cardoso Pires: «o perfil de Luciana Stegagno Picchio ergue-se perante nós a traço aprumado corno um ex-libris incon­fundível e tem a sedução e a serenidade de quem se construiu com rigor e mão feliz» gomai de Letras 990, de 10-23/9/2008, p. 6). Ε Maria de Lourdes Belchior

(ibidem) acrescentara que Luciana tinha «uma inteligência aguda, rápida no captar das realidades e exigente no aprofundar das intuições, uma grande generosidade na partilha de pontos de vista e um sentido de humor que anima a seriedade dos princípios e dos propósitos».

A sua obra fala por si. Sem esquecer os dois volumes de La méthode philo-

logique, com Prefácio de Roman Jakobson, é a autora de dois estudos que se tornaram clássicos, História do Teatro Português e História da Literatura Brasileira, e ainda de Mar aberto. Viagens dos portugueses (Lisboa, 1999), de centenas de artigos, ensaios, edições críticas de poesia e prosa medieval, renascentista e moderna: da lírica galaico-portuguesa a Gil Vicente e João de Barros, de Camões a Camilo, de Eça de Queirós a Fernando Pessoa. Sobre Pessoa reuniu vários estudos, em Nel

segno di Orfeo, Fernando Pessoa e VAvanguardia portoghese (Génova, 2004), a sair, em português, pela INCM. Ε ainda sobre Aquilino, Torga, José Cardoso Pires, Jorge de Sena, José Saramago (Instantanee per un ritratto, Florença, 2000). Entre os autores brasileiros, salientem-se os estudos sobre Jorge Amado e Murillo Mendes, Drummond de Andade, Jorge de Lima, Clarice Lispector e João Guimarães Rosa.

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Com os seus discípulos, António Tabucchi, Maria José de Lancastre e Fernanda Toriello, funda a revista de referência Quaderni Portoghesi.

Quem conheceu e apreciou a investigadora, a filóloga, a historiadora da Literatura, a ensaísta, a professora da "Sapienza" de Roma, vergou-se perante a figura de mulher e de intelectual que sempre se assumiu, por paixão, "Lusitanista". São palavras suas, em entrevista, dada ao Jornal de Letras (401, de 13/3/1990): «Portugal é o meu trabalho, o meu quotidiano, terra de escolha e língua de todos os dias. Faz parte da minha acção no mundo [...]. Aliás, sempre digo que viajei pelo mundo atrás da isotopia portuguesa. Quando viajo, não procuro apenas os portugueses, mas igualmente os amigos de Portugal, com os quais sinto uma grande cumplicidade».

Ε foi, envolvida na reciprocidade do mais puro afecto, da mais sentida

ternura, que os portugueses a viram partir... A última das Parcas não se detinha, acelerava o passo e, perto, mais perto, batia à porta. E, no instante em que penetrara na luz da eternidade, o seu discípulo dilecto, o Henrique de Almeida Chaves, estava lá, em sua casa, junto dela. Ε Monsenhor Agostinho da Costa Borges, reitor

do Instituto Português de Santo António, seu amigo desde a sua chegada a Roma — concelebrando a Missa com o Conselheiro Eclesiástico da Embaixada de Portugal junto da Santa Sé e o pároco de S. Maria delia Mercede, o seu pároco - , faria, naquele sábado, dia 30 de Agosto, por ocasião das suas exéquias, o seu elogio fúnebre, na sua muito amada língua portuguesa.

NAIR NAZARé DE CASTRO SOARES

MEMORIA DE HAQUIRA OSAKABE (1939-2008)

Professor do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas, S. Paulo, Brasil (Unicamp) desde 1969, Haquira Osakabe era licenciado em Letras Vernáculas pela Universidade de São Paulo (1969), fizera o Mestrado em Linguística pela Universidade de Besançon (1971), o Doutoramento em Linguística pela Unicamp (1976) e três Pós-doutoramentos: pela Universidade de Franche Comté (1982), Universidade de Lisboa (1986) e Universidade Nova de Lisboa (1999).

A sua carreira de intelectual está indissoluvelmente ligada à história do Instituto de Estudos da Linguagem — que ajudou a fundar — da qual constitui um dos capítulos mais memoráveis, referiu-o, na recente homenagem que lhe prestou, o seu actual Director, Alcir Pécora, que se orgulha de ter sido seu discípulo.

Professor no Programa de Pós-graduação em "Teoria e História Literária", Haquira Osakabe manteve até à sua morte diversas actividades de orientação e de pesquisa. Alunos há que perderam o orientador das suas teses de Doutoramento, inacabadas.

A sua docência e investigação repartiu-se pelas áreas da Linguística, da Literatura Portuguesa, da Literatura Brasileira e ainda — sem descurar as suas raízes — da Cultura japonesa (cf. seus artigos "Passagem para Ocidente: Poesia e imigração", 1996; "Um olhar do exterior sobre a cultura dos imigrantes japoneses no Brasil", 2002). Haquira Osakabe, nascera em Ribeirão Preto, filho de japoneses que vieram para o Brasil, nos anos 30.

O mérito e a reputação do seu saber contribuíram para a difusão e o prestígio das Letras Portuguesas e Brasileiras, nos Estados Unidos da América, onde leccionou. Foi Professor Visitante da Universidade de Georgetown e ministrou cursos, nas Universidades de Berkeley e Los Angeles, ao nível da Pós-graduação, de Literatura Portuguesa ("Fernando Pessoa e sua geração"); de Literatura Portuguesa e Brasileira ("Modernismo Brasileiro e Português") e de Literatura Brasileira ("Cânones da Literatura Brasileira Moderna").

Publicou os livros Argumentação e discurso político, Fernando Pessoa: resposta a decadência. Além de muitos e variados artigos em revistas, de capítulos em diversas obras de autoria colectiva, desde a poesia medieval portuguesa a Fernando Pessoa,

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de artigos em jornais (e.g. "Neither sublime nor gallant: The Demanda and the new destiny of a man"; "Fernando Pessoa e a tradição do Graal"; "Fernado Pessoa - o Livro do Mundo"; "Livro do desassossego - Fernando Pessoa"; "Fernando Pessoa e a concepção de Deus"; "A pátria de Inês de Castro - Mito e história"; "Mário de Sá Carneiro. Eu próprio e o Outro"; "Sá Carneiro e Gomes Leal"; "Antero e Pessoa"; "Florbela Espanca. Uma estética da Teatralidade"; "Portugueses contemporâneos"; "Poesia e indiferença"; "A palavra imperfeita"; "A linguagem na/da educação"; "Ética da linguagem"; "Literatura e História"; "História e ficção"; "O crime como redenção"; "Escola e discriminação racial"; "A integração do Ensino"; "A produção de textos e o livro didáctico".

Homenageado pela Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (2004), foi-lhe dedicado um volume, que reúne estudos de vários autores sobre temas de interesse do homenageado, de Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira e Cultura Japonesa, intitulado Verdade, amor, razão, merecimento: Coisas do mundo em de quem nele anda — Homenagem a Haquira Osakabe. Sua vida estava lá.

Haquira Osakabe, de uma inteligência, delicadeza e sensibilidade singulares, era, antes de tudo, um professor, um mestre iluminado, um sábio samurai... Assim o recordam os que tiveram o privilégio de o conhecer!

NAIR NAZARé DE CASTRO SOARES