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Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

considerado na natureza

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Jacques Pierre Brissot

Cultura e BarbárieDesterro, 2015

PARRHESIACOLEÇÃO DE ENSAIOS παρρησία

Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

considerado na natureza,para servir de primeiro capítulo à Teoria das Leis, de M. Linguet.

por um jovem filósofo

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Título OriginalRecherches philosophiques sur le droit de propriété considéré dans la nature, pour servir de premier chapitre à la “Théorie des lois” de M. Linguet [1780]

TraduçãoFelipe Vicari de Carli

RevisãoFernando Scheibe e Alexandre Nodari

DiagramaçãoAlexandre Nodari

Conselho Editorial da C&BAlexandre Nodari, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila e Rodrigo Lopes de Barros

Cultura e Barbárie Editora

www.culturaebarbarie.org | [email protected] Postal 5348 - Curitiba/PR - CEP: 80040-981

B859i Brissot de Warville, J.-P. (Jacques-Pierre), 1754-1793. Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade considerado na natureza, para servir de primeiro capitulo à Teoria das Leis, de M. Linguet, por um jovem filósofo / Jacques Pierre Brissot; tradutor Felipe Vicari de Carli. – Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie, 2015. 64p. – (PARRHESIA, Coleção de Ensaios) Tradução de : Recherches philosophiques sur le droit de propriété considéré dans la nature, pour servir de premier chapitre à la “Théorie dês lois” de M. Linguet [1780]. ISBN: 978-85-63003-22-5 1. Filosofia moderna ocidental. 2. Filosofia política. I. Título. II. Série. CDU: 1

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

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Sumário

A propriedade originária Alexandre Nodari 7

Investigações filosóficas sobre o direito de propriedadeJacques Pierre Brissot 11

Nota do autor 13

Prefácio 15

Seção Primeira: O que é a propriedade? Sua origem; exame da sua extensão, sua definição. 17

Seção IIPor que se é proprietário? 23

Seção IIIQuais são os proprietários? 33

Seção IVSobre o que o direito de propriedade pode ser exercido? 41

Seção VPode-se alienar o direito de propriedade? 55

Conclusão 61

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A propriedade origináriaAlexandre Nodari

1. Jacques Pierre Brissot, o girondino Brissot de Warville, como mui-tos outros revolucionários franceses que tanto defenderam o uso político guilhotina, acabou morrendo nela em 1793, aos 39 anos de idade. Durante a Revolução, advogou arduamente a guerra preven-tiva para proteger a França das ameaças das monarquias circundantes, guerra que caracterizava como sendo em nome da humanidade - algo a que estamos assistindo cada vez mais frequentemente. Mas justamente onde parece defender mais arduamente um princípio da Revolução, um daqueles “direitos naturais e imprescritíveis do homem” da Declaração de 1789 – a propriedade – é que Brissot não coincide com ela. Pois as Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade, aqui publicadas na excelente tradução de Felipe Vicari de Carli, e atribuídas ao girondino (na folha de rosto, somos informados apenas que a obra foi composta por “um jovem filósofo”), operam uma das críticas mais violentas e bem formuladas à forma jurídica da propriedade. Segundo Marx, é dessa obra que Proudhon extrai (rouba?) sua famosa formulação – “a propriedade é um roubo” –, embora aqui ela apareça de forma levemente diferente: a “propriedade exclusiva é um verdadeiro crime na natureza” (p. 31; grifo nosso). Essa diferença mínima, contudo, tem o máximo efeito, pois o “crime” para Brissot não é a propriedade em si, mas o caráter de exclu-sividade (de exclusão dos demais como proprietários) que a acompanha na “sociedade”. Desse modo, em um paradoxo só aparente, o que ele advoga para evitar tal crime é a universalização do direito de proprie-dade: “O direito de propriedade que a natureza concede ao homem não é restringido por nenhum outro limite que o da necessidade satisfeita, ele se estende sobre tudo e a todos os seres. Esse direito não é exclusivo, é universal. Um francês tem na natureza tanto direito sobre o palácio do Mogol, sobre o serralho do Sultão, que o Mogol e o Sultão mesmos” (p. 49). Como se vê, universal não deve ser confundido com absoluto – a propriedade tem um limite: a satisfação da necessidade (que é, para o

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autor, variável). Aqui, a aparência de paradoxo se desfaz, dando lugar a um princípio vital da teoria de Brissot: na natureza (as condições ideais de temperatura e pressão desse livro), “a necessidade é o único título de propriedade”, assim como a “sua satisfação é seu único termo” (p. 49). Para o autor, a propriedade é tão universal quanto efêmera; abarca a tudo e a todos, mas está limitada temporalmente pela necessidade e sua satisfação. Dito de outro modo: a propriedade natural não é um estado, é uma situação. E por isso, nada, ninguém, nenhum ente externo, nenhum Estado pode garanti-la.

2. A “natureza” (o “direito de propriedade considerado na natureza”) evo-cada por Brissot é tão ficcional quanto sua referencialidade é concreta e heteróclita, como sói acontecer com todas as variantes dessa figura na filosofia política moderna, de Hobbes a Rousseau: os nativos da Amé-rica, mas também os da África, do Taiti, etc., aproximados, além disso, aos “Autóctones” da Grécia (pré-)antiga. Mas ao contrário do Leviatã, essas Investigações não tomam a “natureza” como algo sobre o qual o Estado deve se fundar (ou seja, algo que o Estado deve afundar), mas a mobili-zam justamente para, numa comparação centrífuga, deslocar o Estado (atual), mostrar a sua contingência (e a da história). E não é só pelas referências positivas ao “selvagem” como modelo em relação ao qual o homem da “sociedade” se empalidece (ainda mais) que esse livro lembra o clássico ensaio de Montaigne; é também, e especialmente, pela defesa do canibalismo. Pois o selvagem de Brissot não é o “bom selvagem” de Rousseau; sem papel algum que lhe autorize, ele se apropria do que necessita, até mesmo do corpo de seus inimigos. “Esses selvagens creem ter tanto direito sobre os cadáveres de seus inimigos quanto os corvos ou os vermes”, afirma o autor, que logo assevera a legitimidade de tal pre-tensão: “por que não se alimentariam disso? (...) Os indivíduos de cada espécie podem (...) exercer seu apetite sobre os indivíduos de sua espécie, pela mesma razão que podem fazê-lo sobre indivíduos estranhos à sua classe” (p. 45-6). E como era de se esperar, sem Rei, nem Lei, o selvagem canibal de Brissot tampouco tem Fé: “Ele não precisa de sacerdotes para atar seus laços, de templo para consagrá-los. Sua necessidade, eis aí seu título; o céu é a testemunha de seu amor, a natureza é seu templo” (p. 27).

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Desse modo, a comparação entre “natureza” e “sociedade” permite às Investigações traçar uma relação inesperada (e totalmente inversa ao teo-rema hobbesiano) entre o caráter universal da propriedade e a ausência da forma-Estado em todas as suas manifestações (da soberania ao sacerdó-cio, passando pelos títulos legais de patrimônio): é só quando todos têm direito a tudo (no “estado de natureza”) que se pode falar propriamente de direito de propriedade.

3. Mas a natureza considerada por Brissot vai mais longe, não se restrin-gindo à natureza humana. A propriedade universal dessas Investigações não é humanamente universal, é universalmente universal: não só também os animais, mas até mesmo as plantas (sobre as quais Brissot não está convencido de que não sintam ou gozem) têm direito de propriedade. Universal, a propriedade é extensível a todos os seres, e extensível nos dois sentidos: todos podem ser sujeitos proprietários e também objetos da propriedade alheia. Por isso, os animais podem legitimamente ser pro-prietários de (nosso) corpo humano, e consumi-lo: são antropófagos de (e com) pleno direito. A argumentação de Brissot parece girar sempre em torno da alimentação, a ponto de, em uma variante da formulação já citada, ele afirmar que “O amor é o único título do gozo, como a fome é o da propriedade” (p. 27; grifo nosso) Na natureza, tudo é devoração: a alimentação (canibal, pois, segundo o autor, ela é o consumo das mes-mas partículas de que somos feitos) seria algo assim como a expressão da termodinâmica, e o direito de propriedade natural, as leis desta. Curio-samente, Brissot, fazendo uso da propriedade universal que a natureza lhe concede, aparece nesse livro ele próprio como um antropófago, ainda que em outro sentido, na medida em que se apropria de trechos de diver-sos autores, às vezes sem nomeá-los (o caso mais emblemático talvez sejam as passagens extraídas - copiadas - do clássico ateísta Système de la nature, do Barão d’Holbach).

4. Como toda teoria que nega o exclusivismo (humano) da propriedade, a de Brissot constitui, portanto, uma crítica ao antropocentrismo e mesmo à noção moderna de sujeito, advogando um monismo (ou algo como um materialismo selvagem e/ou sensível). Por isso, este não é apenas um livro

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sobre o direito de propriedade, nem mesmo só sobre o direito natural: é um tratado sobre a matéria, a natureza, a vida e, especialmente, o sensí-vel, incluindo uma bela teoria (provavelmente de inspiração aristotélica) sobre o tato como único sentido. Se “Todos os corpos têm a (...) quali-dade (...) de abalar e ser abalado alternadamente”, e “o tato não é mais do que a aplicação de um corpo sobre outro”, então ele “é a única maneira de sentir que temos. Mas há diferentes maneiras de exercê-lo, de acordo com as diferentes qualidades dos corpos que causam e recebem esses abalos” (p. 38). Poderíamos arriscar dizer, assim, que a universalização do direito de propriedade – ao colocar abaixo “essas fossas, esses muros” que cercam “parques imensos”, “essas barreiras” que proíbem “o acesso” de “patrimônios”, prova de “tirania” e não de “propriedade” (p. 29) – é uma universalização da possibilidade do contato. Possuir seria, se estamos corretos, fazer contato, afetar e ser afetado: ser proprietário é abrir-se ao toque daquilo que se possui, e não negá-lo (objetificá-lo). No limite, a universalização proposta por Brissot implicaria a impossibilidade de discernir quem é sujeito e quem é objeto na relação de propriedade, ou melhor, de se definir a estabilidade (a estatalidade) dessas posições: sendo uma situação, e não um estado, a propriedade é sempre instável.

5. Para encerrar, é possível afirmar que as Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade inauguram (sem nenhuma originalidade, já que seu texto também está composto, como vimos, de apropriações de passagens alheias) uma linhagem de crítica à propriedade distinta daquela que dará no socialismo (e mesmo no anarquismo de Proudhon), na medida em que não visa à sua abolição, e sim à sua universalização. Linhagem torta e incerta, de autores que talvez não tenham se lido, que de Brissot vai a Max Stirner e seu egoísmo anti-narcisista, desse à monadologia de Gabriel Tarde e sua noção de “possessão recíproca”, chegando até, por fim, à Antropofagia oswaldiana e sua teoria da “posse contra a propriedade”. Em 1780, avant la lettre, Brissot parecia já enunciar aquela máxima do Manifesto Antropófago: a de que a Revolução Francesa legaria uma “pobre declaração dos direitos do homem”, intuindo, assim, que a verdadeira riqueza jurídica está naqueles direitos (antes de - e contra - qualquer Estado) que mais tarde seriam chamados de “originários”.

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Si ad naturam vives, numquam eris pauper;si ad opinionem, numquam dives.

[Se vives de acordo com a natureza, jamais serás pobre; se de acordo com a opinião, jamais rico.]

sêneca, Epist. 16.

.

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Nota do autor

Este opúsculo estava composto quando o primeiro volume da Théorie des loix [Teoria das leis] me caiu às mãos. Vi com surpresa que seu eloquente autor, ao desenvolver com tanta força a origem da propriedade social, não havia sequer roçado o capítulo da propriedade natural. Estas investiga-ções poderão suprir-lhe; se elas não têm o colorido sedutor com que o autor dos Anais embeleza todas suas produções, têm ao menos o caráter da verdade.

O sistema que se estabelece aqui é estranho; poderá revoltar alguns leitores; a boa-fé que o ditou deve desarmá-los.

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Prefácio

Fala-se todos os dias de propriedade, sem se conhecer a verdadeira sig-nificação desta palavra. Mesmo aqueles que se destinam ao estudo do homem e de seus direitos, exaltam a todo instante as leis sagradas da pro-priedade, e ignoram no entanto seus atributos, sua extensão, sua origem. Está-se tão acostumado a repetir o que os outros pensaram, que seus sistemas, embora ridículos, ainda assim encontram admiradores. O auto-matismo nunca se cansa; e cumprir a tarefa do homem que pensa oprime estes cérebros frágeis que imaginam que não há proveito em raciocinar porque há dois ou três séculos alguém o fez. Trata-se de algo que se ve-rifica todos os dias. Grita-se por toda parte que tudo está esgotado, que um pensamento novo é uma quimera, que nos devemos limitar a conferir graciosamente uma nova roupagem aos pensamentos daqueles que nos precederam. Semelhante absurdo, despejado com confiança, faz desapa-recer a ousadia de se ser original, para deixar apenas a inerte mania de se copiar. Assim, na maioria das ciências, quem leu um autor, leu-os todos. Um pintor expõe uma cinquentena de cabeças, e jamais se vê mais do que uma. Eis os escritores de nossos dias. Essa doença epidêmica produz um desalento em todas as ciências. Não aprofundamos, porque imaginamos que tudo já está aí.

É sobretudo na jurisprudência que encontramos o preconceito de que se fala aqui. Tão logo alguém cita uma sentença, um autor, o oráculo falou. Dixit Calchas, obstupuere Pelasgi [Assim falou Calcas, e os pelasgos se maravilharam].

É a destruir esta funesta crendice que todo homem de bem deve apli-car-se com ardor. Eis o motivo que produziu este opúsculo; ele o será de tudo aquilo que virá na sequência.

Este tratado não é longo; mas uma casa pequena abrigava Sócrates. Este opúsculo não é feito para todo mundo. Mulheres, não falamos aqui

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de moda; ignorantes e vaidosos, fechai este livro, ele vos fará dormir; eru-ditos, aqui há poucas citações; juristas, não se veem aqui vossos precon-ceitos consagrados; filósofos... o que resta deles? Só há uma única espécie a quem este livro poderá ser útil. Lede Lamétrie, ele vos a nomeará.

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Seção Primeira

O que é a propriedade? sua origem; exame da sua extensão, sua definição.

Não podemos adaptar à propriedade natural a definição que todos nos-sos jurisconsultos dão deste direito quando considerado em sociedade. Estando este último fundado somente sobre o capricho dos primeiros legisladores, variável consequentemente por natureza, não é de modo algum e não pode constituir o direito imutável, inalienável, da proprie-dade primitiva, de que a existência dos seres é o título e o fim. Vamos nos perder muito menos remontando à origem desse direito que seguindo as rotas tortuosas traçadas pelos jurisconsultos.

Há no universo certa quantidade de movimento difundido; é isso o que a experiência nos atesta. Os corpos, que são apenas modificações di-ferentes da matéria, princípio no qual reside esse movimento, têm deste uma parte maior ou menor. Não é, em absoluto, em razão da grandeza que os corpos gozam do movimento, dado que as pirâmides e os mais imensos colossos parecem não o ter. Não é, em absoluto, em razão da pequeneza, dado que a mais diáfana, a mais livre partícula de poeira não tem dele mais do que um impulso; mas é em razão da organização que o movimento e a vida, que é seu sinônimo, são atribuídos. Os corpos mes-mos não passam de produtos do movimento. Com efeito, sem ele, não há nada de mescla, nada de combinação, e, consequentemente, nada de corpo. Sem a mistura de ácido vitriólico com flogístico poderíamos ob-ter enxofre?

Podemos distinguir três espécies de movimento, o essencial, o es-pontâneo, o acidental ou impelido.

Há movimento essencial difundido na matéria, aplicado a todos os corpos, agindo entre eles intrinsecamente, e fazendo parte de sua essên-

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cia? Toland o defendeu. Foi refutado. É a sorte de qualquer sistema. Ne-gar a existência desse movimento numa pedra, nos metais, porque não o percebemos, é negar a circulação do sangue e a fermentação interna que se faz em todos os fluidos, porque não os vemos. Com semelhante raciocínio, todo homem sem microscópio poderá rejeitar a existência desses pequenos insetos imperceptíveis a olho nu, de que o ar, os licores e todos os elementos formigam; ele poderá rejeitar a existência das enguias de Vallisnieri, dos animálculos de Needham. Esse movimento essencial não parece restrito unicamente ao reino animal ou ao vegetal; ele abarca toda a matéria, penetra em sua menor partícula. É a alma universal dos antigos.

A segunda espécie de movimento chama-se espontâneo. Parece-me bastante evidente que entre dois caminhos que se apresentam a mim eu posso preferir um ao outro, que eu posso escolher livremente tanto pas-sear quanto repousar. É essa liberdade que forma a essência do movi-mento de que falamos. Os teólogos e os filósofos alternadamente nos de-ram e nos tiraram tal liberdade. Collins quis provar que não a tínhamos. Era um Zenão negando a existência do movimento. Andemos, ajamos, e deixemos os filósofos disputarem. A faculdade desse movimento que reside em nós liga-se a partes finas e soltas ou a um ser espiritual? Os animais compartilham-na conosco? Terão os vegetais a mesma sorte? Eis aí algumas questões que discutimos há muito tempo sem esclarecê-las, e que permanecem ainda inconclusas.

O movimento acidental e impelido é aquele que é causado em um corpo por um móvel qualquer. Assim é o de um moinho, o de um navio: a água, o ar, eis os motores. Esse movimento é acidental porque um corpo pode subsistir sem o ter.

Os movimentos essencial e acidental são comuns a todos os corpos. Não é todo mundo que concede a mesma ubiquidade para o espontâ-neo. Qual partido tem razão? Poderíamos responder, com Henri[que] IV: ambos; a dúvida sobre uma matéria tão problemática não é, segura-mente, um erro.

É a reunião em um corpo do movimento essencial e do espontâneo que chamamos vida. Diz-se que as plantas vegetam porque elas só têm o primeiro.

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19Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

Portanto, tudo neste universo está dotado da faculdade do movi-mento; e, desde a menor partícula de matéria até o imenso globo solar, todo corpo pode aplicar sucessivamente suas partes sobre as partes de um outro corpo, transportar-se e ser transportado de um lugar a outro. Mas este é o efeito dessa ação e reação perpétua dos corpos uns sobre os outros: eles se alteram, eles se destroem; e como os princípios de seu ser jamais caem no nada, de seus escombros renasce um outro corpo; ou seja, a matéria-prima de uma árvore, após ter perdido esse modo de ser, assu-me uma outra configuração, e torna-se planta, animal ou pedra. Assim, o pasto desaparece entre os dentes do boi, reproduz-se sob a forma da car-ne, reveste-se com uma outra modalidade no homem que se alimenta do boi, e então se dissipa pela evaporação ou de alguma outra forma. Assim, extinta a vida no homem, não há mais movimento espontâneo; o signo da animalidade desaparece; os princípios que o compõem retornam a seu lugar. O ar se une ao ar, a cinza à terra, etc. Foi ao refletir profundamente sobre esses efeitos que Pitágoras fabricou seu sistema e estendeu às al-mas a transmigração dos corpos.

Tudo está, portanto, em movimento neste universo, e sem ele o uni-verso não pode subsistir. Não tinha Descartes, tão inoportunamente censurado pelos teólogos, razão de exclamar: que me sejam dados movi-mento e matéria, e eu construirei o universo; operarei todos estes efeitos surpreendentes, todas estas maravilhas com as quais estais familiariza-dos?

O movimento supõe a ação e reação dos corpos; a ação supõe a des-truição; e neste combate perpétuo dos seres, o mais frágil sucumbe ao mais forte, é sua presa e o alimenta.

Entre os corpos, uns duram mais, outros, menos. Os limites de sua vida são medidos de acordo com sua organização. Ela é firme ou frágil? Seu desenvolvimento é lento ou rápido? Eis as causas que produzem nos corpos uma resistência mais ou menos prolongada contra sua destruição. Uma árvore dura mais que uma flor, um homem mais que um ácaro. Isso porque a árvore e o homem são mais bem organizados, desenvolvem-se mais lentamente. Trata-se de um efeito tão necessário das leis do movi-mento quanto a queda de uma pedra, a gravitação da terra em torno do sol etc.

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Um corpo destruído se reproduz sob uma outra forma; nessa des-truição nada é perdido, nada é aniquilado: só o acidental mudou.

Assim, a ação e a reação dos corpos produzem estas estranhas meta-morfoses de forma que vemos a todo instante. Eis a fonte dessa admirá-vel variedade de fenômenos que impressionam sem parar nossos olhares. É nesta sucessão, nesta troca perpétua de modos que o universo encontra seu ornamento. É na destruição que ele rejuvenesce... Em sua mão todo--poderosa o universo sustém a vida e a morte; cesse ele seu movimento, tudo cai na apatia; a natureza fica muda; o caos estende seu véu lúgubre sobre ela, e o nada se aproxima...

Todos os seres têm, portanto, necessidade de se mover e, conse-quentemente, de conservar seu movimento. É um efeito necessário de sua existência. Percebemos que não se trata aqui de outra coisa que o movimento essencial, e não do espontâneo, que só está por acidente nos corpos.

Mas, dado que eles não podem conservar seu movimento sem se apli-car a outros corpos, que essa aplicação sucessiva, imediata, opera uma alteração fatal das partes de uns e de outros; segue-se que a destruição é tão necessária quanto a conservação; segue-se que a destruição conduz à vida, a vida à destruição. Assim, dois princípios certos e provados: 1º Todos os seres devem conservar seu movimento. 2º Não há conservação de movimento num corpo sem destruição de outro corpo.

Desses dois princípios resulta um corolário igualmente certo, o de que todos os corpos têm direito de se destruírem uns aos outros. Esse é o direito que chamamos de propriedade.

Não falarei aqui desse direito relativamente aos metais, nem aos ve-getais, mas somente quanto aos animais. O movimento essencial e [o] espontâneo parece[m] reunido[s] neles. Dissemos que essa reunião cha-ma-se vida. Todos os animais por sua natureza tendem a se conservar. Eles não podem fazê-lo sem destruir outros corpos, sem se alimentar, sem os transformar em si mesmos, sem os adaptar à sua forma. Essa é sua propriedade; ela deriva da natureza dos seres. Quão falsa é, portan-to, a opinião de Grotius, erudito demasiadamente preconizado, de que

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21Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

o direito da natureza não estabeleceu a propriedade!1 Que se consulte a própria etimologia da palavra, e se notará ainda mais a exatidão de minha definição. Assim, a propriedade é a faculdade que tem o animal de se ser-vir de toda a matéria para conservar seu movimento. Essa conservação é o ponto central de suas necessidades. Essas necessidades são, portanto, ao mesmo tempo o fim e o título da propriedade.

Como não desejo surpreender meus leitores por meio de um sofis-ma ardiloso, vou expor-lhes a verdade toda nua, em um resumo simples que contém o encadeamento completo de meus princípios e de minhas consequências.

Tudo está em movimento.Não há movimento sem ação.Toda ação supõe a aplicação de um corpo sobre um outro.Toda aplicação causa fricção, alteração de partes do modo.A alteração do modo causa a sua destruição.Portanto, a destruição é um efeito necessário do movimento.Portanto, todos os seres têm necessidade de se entredestruírem.Portanto, a propriedade não passa da faculdade, em um corpo, de

destruir um outro corpo para conservar-se a si mesmo.Que seja dada atenção a esta definição; mil consequências que pare-

cerão monstruosas dela decorrem necessariamente.Muitos escritores distinguiram três espécies de propriedades, a pes-

soal, a mobiliária, a fundiária. Nota-se bem que não se trata aqui absolu-tamente da primeira.

A pessoal é a faculdade de agir e de pensar como quiser, de dispor ao bel-prazer de seus órgãos e de suas qualidades; como se vê, essa proprie-dade pessoal não é outra coisa que a liberdade, e não queremos fazer aqui um tratado sobre a liberdade, matéria demasiado vasta, em que sem dú-vida nos extraviaríamos com tantos moralistas. Encontraríamos aí uma infinidade de questões que ainda não foram resolvidas, e que provavel-mente não o serão no longo prazo.

Somos livres ou não? Pode-se obrigar alguém a um tipo de trabalho de que ele não gosta? As corveias são justas? Pode-se constranger a forma

1 O direito da guerra e da paz, tomo primeiro, página 10, tradução de Courtin.

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de pensar, de agir, de escrever? A escravidão é permitida na natureza? O tráfico de negros é injusto? O homem pode alienar sua liberdade? etc. etc. etc. Essas questões são vastas, espinhosas; não tocaremos nelas aqui.

Onde Collins se perdeu, poderíamos ter sucesso!Quanto à propriedade mobiliária, inoportunamente a distinguiram

da propriedade fundiária. Aquela é um ramo essencial desta, ela consiste na propriedade desses objetos que não estão fixos na terra e que podem ser deslocados.

Esses mesmos escritores, imbuídos de preconceitos sociais, defini-ram a propriedade fundiária como o direito de dispor de um lote de terra e de seus produtos; até mesmo de aliená-lo. Eles não viram que a nature-za só permite ao homem cujas necessidades são prementes gozar e dispor dos produtos da terra, e sempre na proporção dessas necessidades. Não viram que na natureza, quando o homem cessava de ter necessidades, ces-sava de ser proprietário fundiário; que, consequentemente, ele não podia alienar, pois não tinha direito sobre nada. Essa opinião revoltará, eu o sei; mas se demonstrações sólidas podem demover o espírito de seus pre-conceitos, orgulhar-nos-emos de que, após a leitura deste livro, todas as dúvidas sobre o assunto terão sido dissipadas.

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Seção II

Por que se é proprietário?

Encontra-se facilmente a resolução dessa questão em minha definição. A propriedade não passa, com efeito, do direito de se servir da matéria, ou mesmo do seu uso para satisfazer as necessidades; essa satisfação de necessidades é, portanto, o fim e a causa do próprio direito de proprie-dade. Quantas consequências resultam daí! Vós que as entrevedes, de-tende-vos... É preciso, antes de explorá-las e de sentir toda a sua força, examinar previamente em que consistem essas necessidades.

A necessidade [besoin] é uma dessas palavras que servem para de-signar ideias abstratas, e consequentemente não significam nada, já que abarcam demasiadas significações. Ordinariamente, ela é sinônimo da-quilo que falta ao homem, e daquilo que lhe é necessário [nécessaire] para a realização de algum desígnio, ou para alcançar algum fim.

Mas antes de examinar todas as diferentes acepções deste termo, ve-jamos qual foi sua origem.

Estando os corpos sempre em movimento, agindo e reagindo uns so-bre os outros, alteram suas partes, e as perdem continuamente. É preci-so, portanto, substituí-las continuamente, se quisermos conservar sem-pre os mesmos movimentos, a mesma modificação. Ora, não podemos substituí-las a não ser trocando as partes dissipadas por partes similares. Chamamos necessidade esse gasto das partes do animal; e a satisfação da necessidade não é mais do que uma recuperação, do que uma nutrição de partes semelhantes.

Assim, na origem, a palavra necessidade limitava-se a significar o esgo-tamento das forças e aquilo que as reparasse. Mas desde então estende-mos sua significação. Teríamos dificuldades em percorrer todas as acep-ções que deram em abuso e em tolice; pois, pela mais singular corrupção,

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todos, até mesmo o voluptuoso, chamaram de necessidade os objetos de seu luxo, de seus caprichos. Não abonemos em absoluto essa mania, e não acreditemos que o direito sagrado da propriedade nos seja concedi-do para irmos de coche quando temos pernas, para comermos o alimento de vinte homens quando é suficiente a porção para um só. A ignorância e a vaidade puderam consagrar semelhantes erros, e o tempo, por usuca-pião, conferiu-lhe um ar de verdade. É preciso distinguir as necessidades naturais das factícias. Essas últimas são crimes – sim, crimes – pois estão contra o voto da natureza.

Entre nossas necessidades naturais, encontraremos inicialmente aquelas que decorrem essencialmente de nossa natureza, de nossa orga-nização e aquelas que o clima, que as circunstâncias particulares trazem consigo.

Quanto às necessidades do capricho, o número delas é imenso.

necessidades essenciais

Os animais, após terem sido desenvolvidos na matriz que convém aos elementos de sua máquina, crescem, fortificam-se, seja ao alimenta-rem-se de plantas análogas a seu ser, seja ao devorar outros animais, cuja substância se mostra própria para conservá-los, ou seja, para reparar o gasto contínuo de algumas parcelas de sua própria substância que se des-prendem a cada instante. Esses mesmos animais alimentam-se, crescem, multiplicam-se e fortificam-se com a ajuda do ar, da água, do fogo, da terra. A água combinada com o ar entra em todo o seu mecanismo, cujo jogo ela facilita; a terra lhes serve de base, ao dar solidez a seu tecido; ela é carreada pelo ar e pela água, que a levam às partes do corpo com que ela pode se combinar; enfim, o próprio fogo, disfarçado sob uma infinidade de formas e de invólucros, é continuamente recebido pelo animal, confe-rindo-lhe o calor e a vida.

Não sendo o animal nada mais que o resultado de todos esses ele-mentos, tem, assim, necessidade de alimentar-se deles, de fazer-se pe-netrar por eles a cada instante, porque a cada instante ele perde algo de suas partes elementares. Assim, a primeira necessidade do animal é

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25Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

a nutrição. Essa necessidade supõe uma outra, a evacuação. Eis aí duas necessidades essenciais, que resultam da constituição do animal. As ma-neiras com que elas operam são infinitas. A expiração, a evaporação, a trituração, a digestão, a excreção são os principais canais pelos quais as partes de nossa substância se desprendem continuamente, e se dissipam. É ao se alimentar de partes sólidas, ao se abeberar de fluidos, é ao inspirar um ar puro que o animal repara suas perdas.

O desenvolvimento do animal é um efeito necessário da nutrição. Esse desenvolvimento é nele uma adição, às partes de que é composto, de partes semelhantes. Podemos ver no eloquente Buffon a descrição dessa operação. A verdade não rasga as páginas do seu livro, e o tédio não afasta dele o leitor.

As partes de que é formado o animal associam-se às partes seme-lhantes que se encontram no alimento. Estas as fazem crescer e as desen-volvem. É uma espécie de inserção, de intussuscepção, da qual podemos fazer uma ideia pela imagem de várias camadas de terra engrenadas umas nas outras.

O exercício dos membros e dos órgãos do homem conta como neces-sidade essencial no plano da conservação de sua existência. O exercício faz parte de sua natureza e a sustenta. Imagine uma infinidade de cordas, de rodas, de polias; é ele que coloca tudo isso em movimento, eu quase diria que ele é a alma da máquina.

Ora correndo com rapidez, o animal mal parece roçar a terra; ora subindo uma montanha, transpondo os precipícios mais assombrosos, ele deseja penetrar em todos os segredos da natureza. A água, o fogo, nada o assusta, nada o detém, ele tudo desafia. É por seus exercícios sa-lutares que o animal fica rijo, conserva seu movimento e prolonga seus dias. Permanecendo ele inerte, o sangue circula com menos fluência, os humores se acumulam, estagnam; a digestão, a partição, a evaporação, tudo sai mal; as molas enferrujam, o jogo da máquina fica desarranjado, e logo o ponteiro já não marca as horas.

O exercício dos membros é portanto uma necessidade do animal. É isso que favorece seu desenvolvimento, que conserva a natureza em sua força, que impede o abastardamento, a degeneração de seus produtos. Assim vemos que, em todos os lugares em que os exercícios corporais fo-

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ram encorajados, os homens adquiriram uma boa compleição. Percorrei a história dos gregos e dos romanos. Que fardos enormes carregaram os atletas e os soldados! Que força prodigiosa Milo exibiu na arena! Entre os selvagens, é pela força que se aceitam o comando e a superioridade.

É no animal já desenvolvido que nasce esta necessidade terrível; por vezes a dor, mas no mais delas o prazer dos homens: o amor. Ao som dessa palavra, vejo tremer essas moralidades austeras que, não pregando nada mais que a aniquilação de todas as nossas faculdades, querem abafar o grito da natureza e degradar o prazer mais puro da humanidade. O amor é uma necessidade no homem, como o sono e a fome. A natureza orde-na-lhe imperiosamente satisfazê-lo. Infelizes daqueles que lhe desobe-decem. A negra melancolia, os remorsos, as enfermidades multiplicadas vingam a natureza ultrajada; e, carrascos de sua própria existência, es-ses infelizes levam uma vida dolorosa, expiam seu crime por uma morte precipitada. Eis aí o retrato tão frequente que apresentam essas tristes solidões consagradas pelo fanatismo, habitadas pelo desespero, asilos da morte onde o prazer é frequentemente invocado pelos gritos e rugidos do amor acorrentado, mas onde ele não se deixa nunca ver. Obrigados a recorrer a remédios impotentes, essas vítimas infortunadas enganam por vezes suas necessidades, mas a ilusão passa como um clarão, e o fogo que devora permanece para sempre.

É daí que nascem estes crimes que horrorizam a natureza, que a so-ciedade proscreve e de que ela necessita. Por exemplo, o celibato, esse crime mais colossal que o suicídio, dado que este destrói apenas um ser, e o outro destrói uma infinidade; o celibato pode, por suas leis rigorosas, acorrentar a natureza, mas não a abafar. Em meio a seus grilhões, o celi-batário compensa seus sacrifícios. Ele acende sempre a chama do amor, mas não na lareira da natureza. O exemplo se espalha, e os retiros dos bonzos se povoam de jovens em toda parte.

De outro lado, a união dos dois sexos nas sociedades depende de mil convenções. O laço se estreita numa idade tardia por interesse, e nunca por amor. Em toda parte vemos o despotismo paternal abafar nos jovens os gritos de seus sentidos. Em toda parte o vemos, junto ao fanatismo religioso, pintar com as cores mais negras a homenagem legítima que presta à natureza o ser virtuoso demais para ser celibatário. Os homens

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27Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

têm o poder de mudar a seu arbítrio o curso das coisas? Têm eles o direi-to de reprimir, de apagar as paixões naturais? Não. É uma torrente cuja impetuosidade um dique artificial detém por algum tempo, mas que logo transborda pelos campos.

Ó, homem! não escutes, portanto, as leis da sociedade; elas são injus-tas. Segue os votos da natureza, escuta tua necessidade; é o teu único se-nhor; teu único guia. Sentes acender em tuas veias um fogo secreto com o aspecto de um objeto encantador? Sentes em teu ser um tremor, uma perturbação? Sentes se levantarem em teu coração movimentos impetu-osos? Experimentas esses felizes sintomas que te anunciam que tu és um homem? ...A natureza falou, este objeto é para ti, goza. Tuas carícias são inocentes, teus beijos são puros. O amor é o único título do gozo, como a fome é o da propriedade.

Se o homem social ainda pudesse ponderar, eu lhe recomendaria que lançasse o olhar sobre o selvagem que não foi corrompido por nossas ins-tituições. Ele ama? É amado? Ele é esposo, ele é senhor, ele goza. Ele não precisa de sacerdotes para atar seus laços, de templo para consagrá-los. Sua necessidade, eis aí seu título; o céu é a testemunha de seu amor, a natureza é seu templo.

Se quisermos saber quais são as verdadeiras necessidades do homem, não é sobre nossas sociedades que devemos lançar os olhares, é sobre o homem selvagem; o homem social não tem quase nenhum vestígio da natureza. As necessidades do selvagem são muito poucas. Abramos, para nos convencer disso, as histórias, seja dos primeiros povos, seja das novas descobertas.

Na origem, a Grécia foi habitada pelos Autóctones, que se asseme-lhavam inteiramente aos selvagens que foram encontrados nas florestas da América. As frutas e a carne dos animais eram seu alimento; a pele das bestas e a casca das árvores, sua roupa; a cavidade das árvores e uma caverna lhe serviam de abrigo. Não tinham mais do que uma vaga ideia do Ser supremo. O direito do mais forte era sua lei. Todos os homens fugiam de medo reciprocamente uns dos outros. Este é o quadro que Tucídides pinta desses primeiros homens.

Don Joseph Cajot, em suas Antiquités de Mets, descreve os primei-ros belgas como homens ferozes, mais ou menos semelhantes aos nossos

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hurões e a nossos iroqueses. Algumas choças formadas com galhos de árvores recobertas por argila lhes serviam de abrigo contra a intempérie das estações. Muito raramente se as viam contíguas. Cada pai de família construía a sua no meio do sítio que os chefes lhe atribuíam.

Os habitantes da Terra do Fogo formam a sociedade menos nume-rosa que podemos encontrar em todas as partes do mundo. Vivem pre-cisamente no estado de natureza. Suas cabanas são formadas com galhos de árvores. Os selvagens aí habitam em confusão de homens, mulheres, crianças. Algumas ervas espalhadas na choça servem-lhes de camas; fa-zem as vezes de vaso as bexigas dos animais. O clima mais rigoroso não os impede de andar nus. Os mariscos e os peixes são seu principal alimento. Não têm a menor noção de religião, de polícia, etc.2

Esses exemplos são o suficiente; eles provam que as necessidades do homem no estado de natureza são em número muito pequeno. Multi-plicamo-las extraordinariamente nas sociedades. Mas, ao multiplicá-las, não aumentamos o direito primitivo da propriedade, que a natureza res-tringiu somente às necessidades essenciais, e a algumas necessidades que o clima faz nascer.

necessidades de circunstâncias

Um homem é acometido por uma doença. Ele morre sem a quinquina. Essa planta lhe é, portanto, necessária.

necessidades de capricho ou de luxo

A lista seria enorme. O luxo, tão preconizado pela maioria dos escritores modernos, é somente a arte de inventar novas [necessidades], para satis-fazê-las sem parar. É por ele que ficamos sempre em dívida com as espe-ciarias, com o tabaco, com o café, com o chá. Alimentação, vestimentas, penteados, casas, móveis, veículos, etc.: refinamos tudo.

2 Hist. des nouvelles découvertes faites dans la mer du Sud [História das novas descobertas no mar do Sul], por M. Fréville.

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29Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

Percorrei o universo, e encontrareis em todo lugar necessidades for-jadas pela fantasia. Desde o humilde casebre do agricultor até o palácio dos reis, nada é isento de luxo. Não há nada mais do que graus de in-tervalo entre esses dois extremos! Comparai nossos camponeses com os negros da África, com os selvagens da América. São ainda voluptuosos, seus hábitos são fastuosos. Julguemo-los por esses traços. Um cacique in-dígena se enfeitaria satisfeito com uma camisa preta, furada, abandonada por um marinheiro, e se pavonearia diante de seus súditos com esses ri-cos andrajos.

Soberbos europeus, vós mal baixais a vista sobre esses mortais que têm tão poucas necessidades para elevarem-se a vosso nível. Mas eles es-tão acima de vós! Vós degradais a natureza, e eles a conservam em toda a simplicidade.

Que tristes efeitos não resultaram do luxo! Aqui seria preciso uma pluma de ferro para descrevê-los, para atemorizar os homens pelo rela-to horrível dos crimes que o luxo fez cometer. Nós nos apiedamos dos lapões, mas nós, mais do que eles, é que somos dignos de pena. Satis-feitas suas necessidades, eles não desejam mais nada, e nós, miseráveis que somos, damos à luz incessantemente novos desejos que nos devoram. Poderíamos nos comparar àquele Prometeu cujas entranhas um abutre rói sem parar.

Não foi em absoluto para satisfazer essas necessidades criadas pelo capricho ou pelo luxo que a natureza nos conferiu o direito da proprie-dade. Concentrado unicamente nas necessidades naturais, é violar esse privilégio, é ultrapassar os limites estendê-lo mais longe.

Homem soberbo, que, do seio da opulência em que nadas, insultas com desprezo os miseráveis que despojaste, cessa, portanto, de decorar tuas usurpações com o nome de propriedade! Cessa de consagrá-las por leis injustas, de espantar com castigos severos os inocentes que protes-tam contra elas. Sim, essas fossas, esses muros, com que cercas teus par-ques imensos; essas barreiras que protegem o acesso a teus patrimônios; tudo comprova tua tirania, e nada tua propriedade. A natureza não te concedeu em absoluto esse direito para que fosses conduzido por um séquito fastuoso, para que te embriagasses em suntuosos repastos, para ofuscar teus semelhantes pela ostentação insolente de tuas riquezas. Em

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tua porta cem infelizes morrem de fome, e tu, saciado de prazeres, tu te crês proprietário; tu te enganas: os vinhos que estão em tuas caves, as provisões que estão em tuas casas, teus móveis, teu ouro, tudo é deles: eles são senhores de tudo. Tu serias um tirano se lhes opusesse algum obstáculo; eis a lei da natureza.

Poderíamos duvidar disso quando lançamos o olhar seja sobre os ani-mais seja sobre os costumes desses selvagens que não têm a infelicidade de ser civilizados? Um cavalo que se saciou de pasto permanece senhor da pradaria, e impede que seus semelhantes dela se sirvam?

Na maior parte dessas pequenas tribos de selvagens errantes da América, as provisões de caça, de pesca, são comunitárias. Sequer as mu-lheres estão livres disso. Um taitiano acossado pela necessidade do amor goza hoje de uma taitiana, e no dia seguinte a vê passar com indiferença aos braços de outro. Esse povos jogados numa ilha na extremidade do mundo conservaram as noções primitivas do direito de propriedade, in-teiramente obliteradas na Europa. Convencidos de que o direito termi-na onde a necessidade cessa, eles se considerariam indignos de existir se apropriassem às custas de seus semelhantes coisas de que não têm neces-sidade. É por isso que eles oferecem com tamanha boa-fé suas mulheres a nossos franceses que desembarcam em sua ilha. Na Europa esses costu-mes parecem bizarros. As mulheres não são sempre dos que têm necessi-dade delas, mas dos que as compram. Estes querem gozar sozinhos: como se um riacho não estivesse destinado a dar de beber ao lobo e ao cordeiro, como se as árvores não produzissem seus frutos para todos os homens!

Os taitianos não são os únicos em que se encontraram traços da sim-plicidade, da igualdade primitiva da natureza. As Índias Orientais são habitadas por uma infinidade de povos que conservam os mesmos costu-mes. Qualquer viajante o atesta.

Em Esparta, quem o creria?, numa nação organizada, tudo era em comum. Licurgo tinha lido a natureza, ditou as leis dela a seus concida-dãos, e realizou em parte o belo sonho de governo de Platão.

No entanto, seria cair em erro crer que na natureza deve haver uma igualdade perfeita nas propriedades. Os animais não têm todos a mesma quantia de necessidades. Uns são mais fortes, outros mais fracos, estes digerem mais prontamente, aqueles têm vários estômagos, e os têm bas-

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31Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

tante grandes. Sendo a alimentação proporcional às necessidades, resulta que o direito de propriedade é maior, mais amplo em certos animais. O sistema de igualdade de propriedades é assim, por este ângulo, uma qui-mera que se desejaria em vão realizar entre os homens. Ainda que sejam semelhantes em sua organização, esta difere em muitos aspectos. Suas necessidades não são as mesmas. Um pitagórico vivia de legumes. Era preciso ao atleta voraz uma grande quantidade de carne. Milo comia um touro em um dia. Dado, portanto, que as necessidades dos homens di-ferem, seja em qualidade, seja em quantidade, eles não podem ser igual-mente proprietários. Assim esse sistema da igualdade das fortunas, que certos filósofos quiseram estabelecer, é falso na natureza.

No entanto, podemos dizer que é verdadeiro por outros ângulos. Existe, por exemplo, entre nós, especuladores enriquecidos pela pilha-gem do Estado que possuem fortunas imensas. Existem também cida-dãos que não têm um vintém de propriedade. Estes últimos têm, entre-tanto, necessidades, e os outros não as têm certamente em proporção a suas riquezas. Duplo abuso, consequentemente. A medida de nossa fortuna deve ser a de nossas necessidades; e se quarenta escudos são su-ficientes para conservar nossa existência, possuir 200 mil escudos é um roubo evidente, uma injustiça revoltante. Houve grita contra a pequena brochura do Homme aux quarante écus [O homem dos quarenta escudos]. Os eruditos disseram: castigat ridendo mores [castigam-se os costumes rindo]. O rico prelado, o magnífico especulador clamaram contra essa obra. M. Josse, o senhor é ourives.3 O mais belo elogio que se pôde fazer da obra é dizer que os sacerdotes quiseram condená-la ao fogo e que os especula-dores pagaram para que a censurassem.

Nela, o autor pregava grandes verdades. Pregava a igualdade 4 das

fortunas, pregava contra a propriedade exclusiva. Pois tal propriedade exclusiva é um verdadeiro crime na natureza.

3 Nota do tradutor: Frase de L’amour médecin, de Molière: “Vous êtes orfèvre, M. Josse, et votre conseil sent son homme qui a envie de se défaire de sa marchandise”. Conselho interessa-do, como a critica interessada do rico prelado e do especulador.

4 Os antigos legisladores sentiam bem a necessidade da igualdade das fortunas. Era o ob-jetivo das leis de Sólon, de Licurgo, de Faleas da Calcedônia, de Rômulo. O legislador dos espartanos, o fundador de Roma partilharam igualmente as terras entre seus concidadãos. Quantas infelicidades, quantas divisões intestinas, quantas querelas domésticas o senado de

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Thiago se diz possuidor de um jardim. Tem ele mais direito que Pe-dro? Não, certamente. Os pais de Thiago, na verdade, transmitiram-lhe em sua sucessão esta herança. Mas em virtude de que título eles mesmos o possuíam? Remontai tão longe quanto quiserdes, e descobrireis sem-pre que o primeiro que se diz proprietário não tinha título algum sobre o jardim. O Ser supremo deu a terra a todos os homens: ele não disse em absoluto a este: tu terás esses arpentos; àquele: goza dessas imensas pradarias. Mas ele disse a todos: tendes necessidades; eu vos dou a todos o direito de empregar a matéria para satisfazê-las. Ora, essa concessão se estende à natureza inteira. Minha propriedade não é em absoluto res-trita nem a este casebre em que nasci, nem a uma certa região. Posso exercê-la em toda parte.

Resulta deste capítulo, primeiro, que nossas necessidades naturais são em número pequeno; que nós não somos proprietários a não ser para satisfazê-las; por fim, que essa propriedade se estende junto com a pró-pria necessidade.

Roma teria poupado se tivesse seguido o sábio plano de seu instituidor! Não vereis um único tribuno que não tenha proposto leis agrárias e que não se serviu dessa demanda para soprar o fogo da discórdia no coração dos cidadãos. Se a partilha tivesse sido aceita seriamente (pois os falsos decenviratos não passaram de um jogo em que os plebeus, em vez de serem ludi-briados por trezentos senadores, foram-no por dez), então os plebeus, permanecendo unidos aos patrícios, não teriam derrubado por suas mãos essa república tão formidável ao universo enquanto a calma ali reinou.

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Seção III

Quais são os proprietários?

Se basta ter necessidades para ser proprietário, todo indivíduo que tem necessidades pode então gozar do direito de propriedade. Não se con-testará que os homens pertençam a essa espécie. Crescer, conservar-se, estender sua existência comunicando-a a outros, são prerrogativas liga-das a seu ser, e que provariam ao cético mais incrédulo que ele tem ne-cessidades.

O mesmo vale para os animais, eles são proprietários assim como o homem. Essa proposição, que tem o ar de um estranho paradoxo, tor-na-se certa no primeiro exame que se faz sobre a definição que dei da propriedade. Não são os animais, com efeito, como nós, tendo de con-servar sua existência? Seu corpo não se desenvolve? Não cresce? Não experimenta as mesmas variações, as mesmas sensações que as nossas? Não têm eles, como nós, esta necessidade, fonte de mil delícias, de se unir em conjunto, de confundir em conjunto sua existência, para fazer nascer um outro indivíduo semelhante a eles? Organização, necessida-des, prazeres, sensações, tudo, tudo neles se assemelha a nosso ser; e nós desejaríamos privá-los do direito que a natureza lhes deu sobre toda a matéria! Homem injusto, cessa de ser tirano! O animal é teu semelhante; sim, teu semelhante; esta é uma verdade dura; talvez ele seja até mesmo teu superior. Ele o é, se é verdade que os felizes são sábios; ele não sofre os males cruéis que tu te crias em tua sociedade. Mais feliz que tu em seu estado isolado, ele goza sem amargura dos bens que a natureza lhe ofere-ce; ele degusta os prazeres que ela prodigaliza a seus pés, e não inveja os de seus semelhantes. “Amor e liberdade”, exclama o eloquente Buffon, “que benesses! As bestas gozam deles talvez mais que nós. Esses animais que chamamos de selvagens, porque não nos são submissos, têm eles ne-

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Jacques Pierre Brissot34

cessidade de algo mais para serem felizes? Eles ainda têm a igualdade; eles não fazem nem escravos, nem tiranos de seus semelhantes. O indiví-duo não tem que temer como o homem todo o restante de sua espécie. Eles têm entre si a paz, e a guerra só lhes

5 sobrevém de nós...”Se quiséssemos encontrar a imagem do primeiro modo com que os

homens exerciam seus direitos de propriedade, ela se apresentará a nós nos animais. Ardentes para satisfazer as necessidades que a natureza lhes dá, eles não buscam em absoluto dar origem a outras. Contentam-se com o que a sorte lhes oferece para se alimentar e para se conservar. Não têm a tolice de gastar os produtos da natureza por afetações [apprêts] artificiais. O modo de vida dos animais é simples, como são moderados os seus apetites, e eles têm o bastante para nunca invejar coisa alguma. Satisfeitas suas necessidades, não têm a mania de querer intitularem-se proprietários de uma porção de matéria que lhes é inútil. Saciados, dei-xam o campo livre para aqueles que têm necessidade.

Sentimos aí o quanto o célebre Despréaux tinha de razão em sua sá-tira sobre o homem, a única porventura filosófica, ao elevar a besta acima do homem. Vemos o quanto La Métrie, tão perseguido, tinha de razão ao fazer o homem descer à categoria dos animais. Eles são, portanto, nos-sos semelhantes. Tudo o comprova. Eles são animados. Não nos importa pelo quê. Neste particular, eles se assemelham sempre a nós.

Cremos ridicularizar o sistema da alma das bestas ao sustentar que, se as bestas tivessem uma alma, deveríamos atribuí-la às plantas, ao ímã. O autor do Anti-Lucrécio se serviu desta ideia para sustentar o automa-tismo de Descartes.6

5 Os autores mais célebres caem em contradições bem ridículas. Basta, para comprová-lo, comparar o que diz aqui M. de Buffon com o sistema que ele sustenta no sexto tomo de sua Histoire naturelle, para ver sua inconsequência.

“Como”, diz ele, “a igualdade, a felicidade podem ser compartilhadas pelos seres que não pensam? Como tais seres podem gozar da liberdade? Ser livre e não ter a liberdade de refletir é uma contradição em termos.

Mesmo concedendo que os animais tenham um instinto, palavra que nunca se explicou bem, esse instinto pode estar de acordo com a liberdade?”

6 O Anti-Lucrécio foi traduzido por M. de Bougainville. No início dessa tradução se encon-tra um enorme discurso preliminar em que se ultrajam todos os grandes homens deste sécu-lo ao se analisar os sistemas dos antigos, no qual se sustenta que os filósofos modernos não passam de plagiários malogrados da antiguidade; censura em desuso, de que se serviram os escolásticos, com que se louva M. Crevier, ou seja, o autor da vivaz, da picante, da divertida

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35Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

É certo que há uma cadeia indissolúvel entre todos os seres que co-brem a superfície do globo. Formados da mesma matéria, a diversidade de sua configuração perfaz a sua diferença. Essa atividade que distingue principalmente o homem de todos os outros indivíduos parece estar dis-tribuída a todos, na proporção de sua semelhança com a nossa. Assim os animais devem ter uma dose maior de atividade, uma vez que a estru-tura de sua máquina assemelha-se à nossa. Uma ostra que tem menos atividade tem muito pouco sentimento. As plantas devem, portanto, ter pouco sentimento, não sendo configuradas como nós. Assim também os minerais.

Uma vez, portanto, que os animais têm a mesma organização, as mes-mas sensações, as mesmas necessidades que nós, eles são proprietários como nós; ou seja, eles têm direito de se servir da matéria para conservar seu indivíduo.

Creríamos assim que os vegetais são proprietários? É um absurdo, dir-se-ia. Lede, e se não crerdes neste absurdo, queimai este livro.

Homens que acreditaram ler na natureza o que não estava ali em ab-soluto distinguiram diferentes classes para seres que pertencem a uma mesma. Colocamos o homem na primeira classe; a besta marchava atrás; vinham em seguida os vegetais, e por último os minerais.

Um erudito, filósofo o bastante para esquecer o que havia lido e para se limitar a pensar, fez desaparecer esses sonhos da imaginação escolás-tica de nossos primeiros naturalistas. Ele fez ver que não havia diferença essencial alguma entre os seres que cobriam este globo; que no máxi-mo havia algumas ligeiras nuances de diferença, pelas quais se passava de uma espécie a outra. Assim o macaco poderia fazer a nuance entre o homem e a besta, a ostra entre o animal e o vegetal, e a planta sensitiva entre o vegetal e o animal. Este sistema esclareceu o gênero humano; a natureza pareceu mais bela desde que Buffon a livrou das classificações, das divisões, subdivisões, pelas quais os escolásticos haviam desfigurados suas obras.

Histoire des empereurs, & de la Critique raisonée de l’Esprit des loix [História dos imperadores, e da Crítica racional do Espírito das leis]. Spinoza, acusado de ter copiado Estratão de Lâmp-saco, estava apto a dar lições a seus mestres e a todos os filósofos da Grécia. Ah! que importa a um quadro ser uma cópia, se ele supera e faz esquecer o original?

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Não entrarei em detalhes acerca das semelhanças entre o vegetal e o homem. Remeto ao célebre autor que acabo de citar. Mas direi aos homens: se vós vos desenvolveis, se conservais vossa existência, é ao in-gerir um alimento que, inicialmente digerido em vosso estômago, in-corpora-se, identifica-se convosco, torna-se vós pela intussuscepção das partes similares deste alimento. Essa operação é a mesma nos vegetais. Os sucos grossos que retiram da terra purificam-se, elaboram-se em suas veias. Eles os liberam de suas partes brutas e terrestres, tomam somente o espírito que se identifica consigo e serve para desenvolvê-los. A parte bruta compõe a massa, a parte óssea da planta; o espírito é essa fina seiva tão semelhante a este licor divino, a primeira fonte de nosso ser. As ope-rações dos vegetais são portanto perfeitamente semelhantes àquelas da máquina animal. Diferença em sua configuração exterior; mas sempre e em toda parte o mesmo modo de impedir-lhes a destruição.

Poderíamos duvidar dessa similitude perfeita entre vegetais e ani-mais depois da demonstração feita pelo célebre autor da Théorie du jar-dinage [Teoria da jardinagem]? As plantas se desenvolvem por gradação, como o animal; suas doenças têm as mesmas causas, os mesmos remédios que as nossas. Sangrias, cataplasmas, fumigação, emprega-se de tudo.

E de outro lado, se vós dais movimento ao vosso corpo, seja para vos afastar de corpos nocivos, seja para vos aproximar de corpos salutares, como qualificais essa ação das raízes dos vegetais de se afastar dos lugares cuja terra não fornece sucos análogos à sua constituição, essa avidez em se estender a todos os terrenos cujos sucos lhes são favoráveis? Como chamareis a expansão de suas raízes, de seus ramos? É verdade que per-correis um maior espaço de terra que uma raiz de árvore, que vós vos transportais por onde quiserdes: mas porque a faculdade de se mover dos vegetais está limitada a um certo terreno, direis que não têm movimen-to? Uma ostra então não passará de um vegetal; e quantos entre nós não poderiam ser colocados na classe dessas ostras!

É, portanto, certo que os vegetais têm necessidades; e se a necessida-de é o único título de propriedade que os homens, os animais, indubita-velmente têm, quem então poderia privá-los do direito de propriedade? Se eles têm a faculdade, como os animais, de apetecer os corpos que são

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os mais análogos à sua natureza, de se afastar daqueles que os prejudi-cam, não exercem eles essa propriedade?

Mas os vegetais não gozam, exclamar-se-á. Ah! quem vos disse isso, homem presunçoso, que ousais falar quando ignorais tudo? Quem vos disse que essa rosa que murcha sob um hálito empestado, que desabrocha aos raios de sol, que essa planta extraordinária que se retira ao aproxi-mar-se uma mão imprudente não sente nada, não goza de nada? Se seu gozo escapa a vossa visão grosseira, por que falais que elas não o têm? Falai então também que não há vermes em vossa semente; falai que as moléculas orgânicas de Buffon não passam de quimeras; falai que não há habitantes nesses globos imensos que giram sobre vossas cabeças, porque vossos olhos, vossos olhos frágeis, não percebem nem vermes, nem mo-léculas, nem homens.

Vou ainda mais longe, e quero provar-vos que as plantas podem go-zar. Analisemos o gozo. Não gozamos a não ser pelos sentidos.

Os sentidos estão nos corpos, partes de matéria a tal ponto modi-ficadas que podem receber os diversos choques dos corpos exteriores, análogos a seu modo de ser, e comunicá-los ao princípio ativo que reside em si. Parece, para melhor aprofundar as coisas, que há apenas um senti-do geral na natureza: o tato. Todos os demais sentidos não passam nunca de um tato diferentemente qualificado.

Se eu vejo, se escuto, se saboreio, se cheiro, é porque os glóbulos de luz, as ondulações do ar, as desigualdades das superfícies dos corpos, os vapores que deles se exalam, atingem, chocam, abalam essas partes de matéria a que demos o nome de olho, ouvido, paladar e olfato. Todas essas operações não se dão senão pelos abalos causados a meu indivíduo. É sempre um corpo que se aplica sobre outro, e todo mundo sabe que o tato não é mais do que a aplicação de um corpo sobre outro.

Assim, para falar corretamente, o tato é a única maneira de sentir que temos. Mas há diferentes maneiras de exercê-lo, de acordo com as diferentes qualidades dos corpos que causam e recebem esses abalos. Nomeamos e qualificamos diferentemente as partes do corpo que rece-bem diferentemente esses choques exteriores; daí a origem dessa distin-ção de órgãos, entre olhos, ouvidos e olfato.

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A partir da definição dos sentidos que acabamos de dar, sentimos que é preciso distinguir em toda sensação o abalo causado pelo corpo exterior, o sentimento que o princípio ativo a quem ele é comunicado extrai dele, e a reflexão sobre esse sentimento.

Todos os corpos têm a primeira qualidade, a de abalar e ser abalado alternadamente. Poucos são dotados da segunda. Buscaríamos por mui-to tempo com a lanterna de Diógenes aqueles que exercem a terceira faculdade.

Os vegetais terão, portanto, a faculdade de receber e de dar choques. Esses choques serão análogos a suas qualidades. A doce sensação que causa a meu olfato o perfume agradável que se exala da rosa não é a que eu experimento ao comer uma maçã, ou qualquer outra fruta deliciosa. Eles têm, portanto, o tato.

Mas esses vegetais têm um princípio ativo, que reside em si, que pos-sa sentir os choques que eles recebem, e dirigir sua máquina?

Esta questão pareceria se ligar àquela famosa disputa tantas vezes animada; [a] saber, se a matéria pode pensar. Sobre este ponto, o sábio Locke não forneceu conclusões em um tom dogmático e incisivo, mas propôs suas dúvidas em tom socrático. Seus raciocínios pareceram tão vigorosos que seus críticos argumentaram contra ele cum fuste & conviciis [com um bastão e ruidosamente]. Era o método dos bravos scotistas e dos tomistas. Seus descendentes o herdaram. Não entrarei nesta querela. Depois de Locke não restou mais nada para se debater. Seria de desejar, pela honra de Voltaire, que este não tivesse querido restolhar nesta ques-tão depois daquele ilustre filósofo.

Como quer que seja, assumindo que os vegetais não têm nenhum princípio pensante, têm eles um sensitivo?

Não nos posicionaremos sobre essa matéria delicada. O sentido ín-timo pode apenas nos convencer da existência de tal princípio em nós. Mas esse sentido não é nada no que tange aos outros corpos. E os senti-dos exteriores são grosseiros demais para penetrar em seu interior, para apreender aí alguns princípios, caso existam. Estaremos sempre nas tre-vas enquanto a natureza não nos der melhores instrumentos. Evitemos, portanto, decidir, e limitemo-nos a acreditar que pode existir algum princípio sensitivo nos vegetais. Sua conformação e a espécie de sensi-

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bilidade que manifestam as plantas e as flores são indícios. Mas julgar a partir de indícios é estar louco.

Como não bastasse, se chegássemos a adquirir a certeza de que os ve-getais não gozam à nossa maneira, não seria preciso concluir daí que eles não têm espécie alguma de gozo. A natureza não segue apenas um cami-nho, não se serve apenas de um só recurso, não sujeita todos os corpos a uma única lei. Se os vegetais têm no exterior uma organização diferente da nossa, por que não teriam assim um gozo distinto e particular?

Que diríamos de um ignorante que sustentasse que a geração dos seres segue em todas as espécies a mesma lei; quem sustentaria que os insetos se repovoam à nossa maneira, ou que não se repovoam em abso-luto? Não riríamos de seu erro, e não o desfabularíamos revelando-lhe os singulares mistérios da geração dos peixes, dos insetos, das plantas, dos metais?

Não é tão fácil desfabular os homens sobre a impossibilidade da existência de um princípio sensitivo nos vegetais. Estamos ainda numa ignorância demasiadamente profunda sobre a natureza dos princípios ativos, pensantes, sensitivos; nós ignoramos os limites colocados pela na-tureza, seus jogos, suas bizarrices; e não há ainda nenhum Leeuwenhoek, nenhum Malpighi que, nesta parte, tenha abordado a natureza sobre este fato, tenha revelado suas operações, seguido suas diferentes combina-ções. Até essas descobertas, é preciso suspender nosso juízo.

O autor de uma viagem à ilha de França [Maurício] forneceu um sistema bastante engenhoso sobre os vegetais que, em sendo verdadeiro, favoreceria em muito a opinião que avançamos. Ele afirmou que todos eram habitados; que as flores, as frutas eram a obra de uma infinidade de pequenos animais; que a casca das árvores era o abrigo das células em que eles trabalhavam. O autor apoiou esse sistema com raciocínios sedutores e resolveu mui espirituosamente as objeções que pareciam destruí-lo.

Seguindo essa opinião, ficaria menos surpreso quem nos visse sus-tentar que os vegetais partilham com o homem e os animais o direito de propriedade. Com efeito, os seres, que têm seu laboratório nos vegetais, que se encarregam de construí-los, e fazê-los crescer, de aperfeiçoá-los, de defender seus frutos, seus grãos, de enviar suas colônias para povo-ar outros lugares; esses seres, digo, são suscetíveis às necessidades como

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todos os outros animais. Tendo, com efeito, uma forma, e dependendo essa forma ou modificação, para ser conservada, de meios que nós mes-mos empregamos para conservar e propagar nossa existência, esses inse-tos têm direito de se alimentar, de se desenvolver, de propagar. Eles têm portanto direito, por isso mesmo, a tudo aquilo que existe sobre a terra, a tudo o que pode se assimilar a sua natureza. Têm direito, portanto, sobre nós. Esses vermes hediondos que se arrastam sobre nossos orgulhosos cadáveres dão-nos provas de seu direito de propriedade; e essas lições são muito frequentemente e muito vivamente repetidas para que seja possível contestá-las.

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Seção IV

Sobre o que o direito de propriedadepode ser exercido?

Tudo é oprimido se não oprime. Tudo combate sobre a terra e tudo é combatido,

O mais forte é tirano, o mais fraco é vítima.

Epístola de M. de S. L. 7

Gentes cheias de preconceito, que gritais sem parar contra o paradoxo quando a verdade se apresenta a vós sob o rosto da novidade, redobrai aqui vosso clamor. Vós me tratareis como homem abominável, pernicio-so. Não importa, serei verdadeiro. Não faço senão deduzir aqui as conse-quências de minha definição da propriedade.

Sobre o que este direito pode ser exercido? Sobre tudo. Sim, o ho-mem, os animais, todos os corpos na natureza têm direito sobre tudo. Têm direito uns sobre os outros. O homem tem direito sobre o boi, o boi sobre o pasto, o pasto sobre o homem. É um combate de propriedades, que pareceria tender à destruição da natureza, mas que a vivifica, renova--a, ao destruir suas formas.

Essa verdade dá origem aqui a questões bem importantes, e que não foram bem resolvidas, porque não temos regras certas para determiná--las.

Os homens devem se alimentar simplesmente de vegetais? Podem se alimentar da carne dos animais? Podem se alimentar de seus semelhan-tes? Os animais, os vegetais têm os mesmos direitos sobre nós? Até onde se estende a propriedade dos seres? Qual é o termo que lhes marcou a natureza?

7 N.T.: Marquês de Saint-Lambert. Original: “Tout est opprimé s’il n’opprime./ Tout combat sur la terre, & tout est combattu, / Le plus fort est tyran, le plus foible est victime.”

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Não tenho outra asserção para resolver essas questões, que parecem tão problemáticas; e essa asserção é ditada pela própria natureza: Os seres têm direito de se alimentar de toda matéria própria a satisfazer suas necessi-dades.

Aprofundemos este princípio. As consequências assustarão porven-tura; mas devem elas alarmar, quando conduzem à verdade, quando in-vertem os preconceitos?

Filósofos austeros quiseram limitar o direito de propriedade dos ho-mens aos vegetais, e a tudo o que não tinha vida. O furor de se distinguir, de se fazer um nome, uma seita, inflama Pitágoras; ele prega uma moral extraordinária; ele deslumbra por seus sofismas, seduz por seu exemplo, e assim que o universo é povoado por uma multidão de seus discípulos que, semelhantes a nossos monges ou aos faquires orientais, juram não mais se alimentar que de vegetais, proclamam o anátema contra os ho-mens sensatos que faziam os animais servirem a suas necessidades. Essa seita se estende por toda parte, e por toda parte vemos uns frenéticos sacrificar seus prazeres e seus direitos em favor da observação rigorosa da dieta pitagórica.

Tentou-se justificar por razões físicas e morais essa abnegação cega ao direito de propriedade do homem, que se estende sobre os animais. Afirmou-se que ele conservaria sua força, prolongaria e tornaria seus dias mais serenos e mais risonhos se ele se limitasse aos vegetais. Cita-ram-se os pais da idade de ouro; o Sócrates de nossos dias ergueu sua voz e trovejou contra os homens que bebiam do sangue e saciavam-se da car-ne dos animais degolados. Não nos deixemos seduzir por sua eloquência; abramos o livro da natureza, é somente ele que deve nos guiar.

A experiência e a ciência da análise ensinaram aos observadores que o homem não poderia jamais subsistir com simples vegetais; que mesmo o trigo e as plantas mais substanciais não poderiam, a não ser debilmente, retardar o deperecimento de sua frágil máquina. Esses desertos famo-sos da Tebaida, e os de nossos dias, que Madame de Sévigné chamava de hospitais de loucos, oferecem uma prova convincente disso. As vítimas infelizes que se dedicam cegamente à sobriedade austera veem apagar ra-pidamente a chama pálida e languescente de seus dias. E se é verdade que nas Índias os sectários rígidos de Brahma prolongam o curso de sua vida

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mesmo em meio à dieta pitagórica, isso se deve a um favor de seu clima muito quente, em que os vegetais são suficientemente substanciais para dispensá-los de se alimentarem da carne dos animais. Reportemo-nos à organização do homem comparada com a dos animais.

Tendo os bois quatro estômagos que podem conter uma grande quantidade de pasto que lastreia seu corpo, tal quantidade contém uma porção de moléculas orgânicas suficiente para fazer crescer e desenvolver esse boi. Mas tendo o homem apenas um estômago, que contém somente uma pequena quantidade de alimento, é completamente necessário que esse alimento compense em qualidade o que perde em quantidade. Ora, está demonstrado que a carne dos animais contém infinitamente mais moléculas orgânicas que as plantas. Portanto, o homem pode e deve se alimentar de carne, até mesmo preferencialmente ao vegetal.

Ah! se os animais não se destruíssem, não se devorassem reciproca-mente, que desordem se introduziria sobre a superfície desse universo! Há na natureza insetos que pululam ao infinito, como os pulgões, os quais é preciso necessariamente destruir, se não quisermos ser destruídos por eles. Este raciocínio pode se aplicar a todos os animais, tanto os nocivos quanto os úteis. Se deixássemos multiplicarem-se os arenques no mar, se nenhum peixe carnívoro se alimentasse deles, se nenhum pescador não os fisgasse, esses arenques, cujo número cresceria ao infinito, não encon-trando alimento o suficiente, pereceriam e corromperiam tudo. A natu-reza supriu sabiamente este inconveniente. A maioria dos peixes faz dos arenques seu alimento. A imensa quantidade desses animais que escapam à voracidade de seus confrades aquáticos vem se oferecer em nossas or-las às redes dos pescadores, e serve de alimento a províncias inteiras. Há uma justa compensação entre a propagação e a depopulação. A natureza não falta jamais a si mesma.

É, portanto, obedecer a essas ordens sagradas banquetear-se com a carne dos animais.

Mesmo o brâmane, que crê se furtar à lei geral, ao se alimentar so-mente de plantas e de frutas, é ainda assim um animal carniceiro. Pois quantos seres animados as plantas e os vegetais guardam em seu seio! Quantos milhões de animálculos cobrem os legumes e as ervas que lhes

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servem de alimento! É preciso, portanto, que todo ser animado se ali-mente de seres animados, ou que ele pereça. É a lei irrevogável do forte.

Mas se o carneiro tem o direito de engolir milhares de insetos que povoam os pastos das pradarias, se o lobo pode devorar o carneiro, se o homem tem a faculdade de poder se alimentar de outros animais, por que o carneiro, o lobo e o homem não teriam igualmente o direito de submeter seus semelhantes a seu apetite?

Alguém creria evitar este argumento objetando que todos os seres sentem uma repugnância invencível a dilacerar, a devorar os da sua es-pécie. Para responder a semelhante objeção, levaria aquele que a fez às florestas; mostrar-lhe-ia o lobo abeberando-se do sangue do lobo, sa-ciando-se com sua carne; mostrar-lhe-ia mil animais, como os ratos, os camundongos, os ouriços, exercendo seu apetite sobre seus semelhantes, sobre seus filhotes; mostrar-lhe-ia nas pradarias uma infinidade de inse-tos, no mar milhares de peixes, que vivem dos seres de sua classe; condu-zir-lhe-ia aos antropófagos; e aí, espectador desses festins de carne hu-mana, em que a própria alegria preside, eu lhe perguntaria o que é feito nesses seres dessa pretensa repugnância pela carne de seus semelhantes; perguntar-lhe-ia por que a natureza não é nada uniforme em suas insti-tuições, por que em um clima ela inspira o que ela desaprova em outro; eu o conduziria enfim aos caraíbas, que não sentem repugnância alguma ao devorar os membros ainda palpitantes de suas crianças, que eles en-gordaram. Se é à educação que esses selvagens devem a terrível felicidade de não ficarem enojados com semelhante alimento, para que servem en-tão esses princípios inatos da natureza? Se um ligeiro momento de erro pode apagar sua marca, de que nos importava tê-los? Ou melhor, não seria à educação que nós deveríamos esta aversão pela carne de nossos semelhantes; enquanto esses selvagens antropófagos, que não são em ab-soluto estragados por nossas instituições sociais, não fazem senão seguir o impulso da natureza? Uma outra observação me confirma essa ideia, porventura demasiado verdadeira. Nesses momentos horríveis, em que, entregues a uma fome cruel, sitiados reduzidos ao desespero lançam-se, para retardar os passos da morte, sobre cadáveres, disputam-nos entre si, dilaceram-nos com voracidade; o que é feito então dessa aversão que a natureza, diz-se, gravou em nossos corações por essa espécie de alimen-

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to? Não é a natureza que se cala; é a voz da educação; é o preconceito que desaparece. O homem, de volta aos seus direitos primitivos, se isola, concentra tudo em si mesmo, não vê mais do que a si mesmo, e sacrifica tudo por suas necessidades. É o homem social transformado em homem natural, em selvagem.8

Aqueles que me lerão ficarão revoltados, não tenho dúvida: eu fu-giria deles se não o ficassem. Mas estejamos avisados, é a natureza que eu pinto; não é a partir do espírito de nossas sociedades que eu reflito. Eu parecerei esquisito; mas quão mais não devemos parecê-lo aos olhos dos selvagens quando eles nos veem enterrar os cadáveres sangrentos de nossos inimigos ao invés de comê-los. O discurso proferido por aquela mulher selvagem a um grande rei, não era ele sensato; e não tinha ela razão de disputar com os vermes o cérebro delicado de um homem?

Na Nova Zelândia, onde se encontram antropófagos, um navegador perguntava a um neozelandês bastante idoso o que ele fazia com a cabe-ça, ao comer um homem. Nós comemos seu cérebro, disse o velho; se o senhor está curioso para experimentar, amanhã eu quero presentear-lhe um.9

Esses selvagens creem ter tanto direito sobre os cadáveres de seus inimigos quanto os corvos ou os vermes. Os navegadores que aí penetra-ram viram sete de seus inimigos sendo por eles assados no espeto.

Ah! por que não se alimentariam disso? Qual é a razão por que nós comemos os animais? É porque eles estão cheios de moléculas orgâni-cas que se assimilam perfeitamente às partes de nosso corpo, servem a nossa nutrição, ao crescimento, à propagação da espécie. Ora, um lobo encontrará em um lobo, o homem no homem, essas moléculas orgânicas

8 Ao ler no excelente romance de Cleveland suas aventuras trágicas entre os selvagens da América, o coração mais bárbaro se amoleceria. Que pavor gela a alma quando o vemos cair com sua querida Fanny nas mãos dos Rouintons, esses terríveis antropófagos! Aí então de-ploramos os males da humanidade que geme sob a Europa civilizada, martirizada sobre as fogueiras dos antropófagos, e em toda parte sofredora.

Molhei o papel com minhas lágrimas quando cheguei nesse lugar assustador em que Cleveland, ao ver uma chama se erguer, imagina que os Rouintons queimam sua filha e vão devorá-la. Ao me transportar a esses horríveis desertos, ao me colocar em seu lugar, tremi, repeti o voto de Nero. Era um tributo que meu coração pagava à humanidade; mas a verdade arrancou de meu espírito as ressalvas sobre o antropofagismo no estado natural.

9 Histoire de nouvelles découvertes dans la mer du Sud [História das novas descobertas no mar do Sul], 1776, por M. Fréville.

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que sozinhas podem sustentar a economia animal. Os indivíduos de cada espécie podem então exercer seu apetite sobre os indivíduos de sua es-pécie, pela mesma razão que podem fazê-lo sobre indivíduos estranhos à sua classe. Conhecemos o axioma já muito batido, ubi eadem ratio, ibi idem jus tenendum [para a mesma razão, emprega-se igual direito]. Foi o bom senso que o determinou.

Que importa, de resto, a diversidade de classes, de espécies? São di-visões quiméricas que não existem em absoluto na natureza. Os animais, as plantas e todos os seres se reproduzem uns a partir dos outros. O pasto alimenta o boi, o boi alimenta o homem. O homem reduzido a pó exala vapores tênues que fazem crescer as ervas e as frutas. As mesmas opera-ções se encontram na vida, na dissolução de todos os seres. Da destruição de uns nascem os outros que, destruídos por sua vez, servem à produção daqueles que lhes sucedem.

Se então os seres que parecem mesmo os mais dessemelhantes uns dos outros servem mutuamente a sua produção; se a erva pode alimentar o animal, e o animal a erva, eles são então compostos das mesmas molé-culas, consequentemente das mesmas partes. A diferença que nos parece tão grande entre eles só existe exteriormente. Mas no fundo tudo se as-semelha. A construção é diferente, mas a construção não passa do modo variável de um sujeito invariável.

Resulta daí: 1º que não há nenhuma classe na natureza, pois todos os corpos pertencem à mesma natureza; 2º que todos os seres, para subsistir, têm direito de se servir de outros seres suscetíveis de serem assimilados a seu indivíduo; 3º que os indivíduos de cada espécie podem se alimentar de seus semelhantes.

Esta consequência parece amedrontadora. Mas ela está demons-trada. Que não se perca jamais de vista o que nós já dissemos, que não consideraríamos aqui a propriedade a não ser pelo direito natural. Seria perigoso aplicá-la em nossas sociedades. Perdoa-se ao reverendo P. Jean o ter comido uma coxa do suicida Anglois.10 Ele estava nos desertos da Sibéria, prestes a morrer de fome. Mas infeliz daquele que, na sociedade, tiver algum gosto pela carne humana! A lei o puniria severamente. A lei

10 Ver Le Compère Mathieu [O compadre Mathieu].

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só se cala nessas circunstâncias terríveis em que todo freio é rompido, em que a fome transforma soberbas cidades em covis horríveis, em que os homens se devoram para aplacar sua fome.

Resulta do princípio que assentamos, das provas sobre as quais nos apoiamos, que os animais, os vegetais têm tanto direito sobre nós quanto nós temos sobre eles. Felicitemo-nos de não encontrar nos bois, nos car-neiros, em outros animais domésticos que servem a nossas necessidades, nada além de escravos dóceis que se prestam a nossas correntes, vítimas submissas que sacrificam sua vida para conservar a nossa. Felicitemo-nos porque o espírito da vingança não os inflama, porque eles não exercem cruéis represálias contra nós; eles têm direito a isso. Tendo as mesmas necessidades, os mesmos órgãos, moldados com a mesma substância que nós, por que não poderiam eles gozar dos mesmos privilégios que nós? Se não temos outros títulos de superioridade sobre eles além da força, da coragem e da destreza, não nos queixemos, portanto, que o lobo voraz, o leão sanguinário, o cruel tubarão, dilacerem e devorem nossos mem-bros. Eles são nossos superiores, se eles são os mais fortes. Eles vingam as barbáries que nós exercemos sobre os quadrúpedes que domesticamos para imolar a nossas necessidades. E é tão natural que o homem sirva de pasto ao lobo faminto, quanto é natural que este homem se alimente de frutos e da carne animal. Mas eu deixo meus olhos vagarem sobre cenas terríveis. A mão da educação os fecha contra minha vontade.

Examinemos então agora qual deve ser o termo da propriedade, qual é sua extensão. O homem tem direito sobre tudo o que pode satisfazer suas necessidades: o fim destas, eis seu limite. A propriedade dos seres é universal. Ela não se refere, em absoluto, a um certo espaço, concentra-do em um certo rincão, que na sociedade chamamos de pátria. Isso não ocorre na natureza. O homem é de todos os países: senhor de toda a ter-ra, senhor para subjugar todos os seres a suas necessidades, ele comanda em todo o universo. Os ares, a terra, as águas, o fogo, todos os elementos apressam-se em executar suas ordens, em satisfazer seus gostos. Nada detém sua marcha poderosa; nada se opõe a seus direitos. Eles se esten-dem sobre tudo. Os corpos perniciosos a sua constituição são os úni-cos que a natureza lhe interdita. Este é o homem no estado de natureza. Aquele das sociedades, abastardado por nossas instituições, degradado

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de sua dignidade primitiva, só respira a escravidão. Mergulhado nos hor-rores da fome, ele pede esmolas humildemente, e ele é tão proprietário quanto o rico que lha dá.

Mas se nós quisermos ver o homem verdadeiramente grande, verda-deiramente proprietário, consideremos este selvagem nascido no fundo do Canadá. Robusto, rijo contra a fadiga, criado na caça desde a juventu-de, com que celeridade, com que orgulho ele atravessa as vastas florestas que cobrem as regiões que ele habita! São seus domínios, suas possessões. Não há contrato notarial, mas há um muito melhor em sua necessidade, e em seu braço que o permite satisfazê-la. Ele não tem nada a temer da cólera de senhores invejosos, da vigilância de gardes-chasse

11 que o dete-nham. Não há nenhum parque, nenhuma muralha, nenhuma proprieda-de particular; tudo é para ele, ele é senhor de tudo, ele é senhor por toda a parte em que há animais, aves, peixes. Ele tem necessidade, e esses são seus alimentos.

A natureza acende no coração o fogo do amor: se se apresenta a seus olhos um desses objetos encantadores que a embelezam, e se o mesmo fogo os abrasa, eles se esposam. Eles não fazem nenhum sermão. Eles se amam, porque têm necessidade de se amar. Satisfeita essa necessidade, desaparece o título de esposo.

Não respeitam todos os outros animais o mesmo limite em sua pro-priedade? O cavalo se apropria do pasto que ele não pode comer? O tou-ro velho e exaurido, que não sente mais o aguilhão do amor, combate ain-da pelas jovens novilhas que ele não poderia satisfazer? Não, a natureza diz a esses animais como ao homem selvagem: tua propriedade termina com tua necessidade.

Mas o homem social não escuta a natureza. Ele prolonga, ele estende sua propriedade para além de suas necessidades; ele se acantona, isola-se, e ele tem a audácia de chamar essa propriedade de sagrada, natural!

De acordo com os princípios que assentamos, o que se pensará de um tal direito de propriedade, invocado por todos os homens na sociedade, preconizado por todos os escritores de nossos dias; desse direito precário no qual os reis não podem pôr a mão sem expor sua cabeça? Crê-se que

11 N.T.: Vigias de terrenos particulares encarregados de proteger os animais da caça indis-criminada, reservando-os para tal fim aos proprietários

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ele decorre da natureza, todos os filósofos o gritam aos ouvidos do imbe-cil vulgar. Homem justo, compara e julga!

O direito de propriedade que a natureza concede ao homem não é restringido por nenhum outro limite que o da necessidade satisfeita, ele se estende sobre tudo e a todos os seres. Esse direito não é exclusivo, é universal. Um francês tem na natureza tanto direito sobre o palácio do Mogol, sobre o serralho do Sultão, que o Mogol e o Sultão mesmos. Não há nenhuma propriedade exclusiva na natureza. Esta palavra está riscada de seu código. Ela não autoriza o homem a gozar exclusivamente mais da terra que do ar, do fogo e da água. Eis a verdadeira propriedade, a pro-priedade sagrada, a propriedade que os reis devem respeitar, que eles não devem nunca violar impunemente. É em virtude dessa propriedade que este infeliz esfomeado pode tomar, devorar esse pão que é seu porque ele tem fome. A fome, eis o seu título. Cidadãos depravados, mostrai um tí-tulo mais poderoso. Vós o comprastes, pagastes... Infelizes! Quem tinha o direito de vo-lo vender? Não é nem vosso, nem de vossos vendedores, pois nem um nem outro tínheis necessidade.

Qual é esta outra propriedade social, que tomou os traços dessa pro-priedade natural, e que, sob essa máscara imponente, soube atrair uma veneração que não merece, defensores obcecados pelo desejo de gozo exclusivo? É essa propriedade que reclama este rico especulador que construiu soberbos palácios sobre as ruínas da fortuna pública; aquele prelado ávido que nada na opulência; essoutro burguês ocioso, que goza tranquilamente enquanto o infeliz trabalhador diarista sofre. É essa propriedade que reclama este senhor cioso de seus direitos, que fecha os muros de seu parque, seus jardins... É essa propriedade que criou as fechaduras, as portas e mil outras invenções que acantonam o homem, isolam-no, protegem os gozos exclusivos, o flagelo do direito natural. O caráter, com efeito, da propriedade natural é o de ser universal. As propriedades sociais são individuais, particulares; esses dois direitos são, portanto, absolutamente contrários, e há quem lhes dê a mesma origem, os mesmos atributos!

Se a necessidade é o único título de propriedade do homem, se a sua satisfação é o seu único termo, não devemos rejeitar os sistemas desses escritores que a fizeram repousar na força, ou na anterioridade da posse?

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No estado de natureza, diz Hobbes, todos têm direito a tudo: donde ele conclui que todos podem se apropriar de tudo. Segue-se daí que Pe-dro e Paulo têm direito à mesma coisa. Mas se eles querem tê-la ambos ao mesmo tempo, qual terá a preferência? Não há juiz; e quando eles convierem com um, como este poderá decidir? Ela não pertence mais a um que a outro. É preciso portanto que eles se combatam, e o mais forte a levará.

Eis a substância do raciocínio de Hobbes. Que terríveis consequên-cias derivam disso! Mas eu só examino aqui o princípio.

Que no estado natural todos tenham direito a tudo, conviemos nis-so, mas isso se dá enquanto se tem necessidade. Eis o limite colocado ao direito geral de propriedade, limite assentado pela própria natureza. Pois, estando satisfeitas nossas necessidades, por que teríamos nós direi-to de nos apropriar de tudo? A que serviria essa usurpação? E a utilida-de, como sabemos, é a regra do homem selvagem. O voto da natureza é, portanto, que nós deixemos de ser proprietários tão logo não tenhamos mais necessidades.

Assim dentre Pedro e Paulo, pretendendo ambos a mesma coisa, é aquele que dela tem necessidade para a conservação de seu ser que deve tomá-la e dela gozar. Onde está o juiz que assentou este princípio, per-guntar-me-á algum jurisconsulto? Abra o grande livro da natureza, pois o senhor não viu dele mais do que as margens, e o senhor aí encontrará. Um rio que corre num leito vasto o suficiente para conter suas águas correrá para inundar os campos? O carvalho que se eleva nos ares disputa com o junco um terreno que lhe seria inútil? Sim, a natureza disse e dirá sempre a todos os seres cujas necessidades estão satisfeitas: sta [detenha-se].

Há somente um caso em que a lei do mais forte poderia ser justa-mente evocada e servir de decisão entre dois contendores: é na hipótese em que Pedro e Paulo tivessem ambos igual necessidade. Necessitando ambos conservar o princípio de sua vida, têm igual direito à coisa que pode preservá-la: imaginai duas bolas movidas em uma mesma linha em sentido contrário; elas se encontram, chocam-se; a mais pesada, a mais rápida faz desaparecer a outra.

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Todos os jurisconsultos partem da regra primo occupanti [primeiro possuidor]. Alguns a adotaram, poucos a acharam satisfatória. Onde está escrita essa regra? Que nos seja mostrado um lugar da natureza em que ela o tenha consagrado. Que importa aqui a anterioridade da posse? Se o possuidor não tem necessidade alguma, se eu a tenho, aí está meu título que destrói a posse. Se ambos estamos sem necessidade, nenhum de nós tem aí direito. No caso contrário, é um assunto de estática.

A necessidade é portanto o único título de nossa propriedade. Re-sulta deste princípio que quando ela está satisfeita o homem não é mais proprietário. Resulta que o direito de propriedade é tão intimamente ligado ao uso dessa propriedade que não podemos supô-los separados. Pois supor um homem proprietário que não exerça sua propriedade é supor que suas necessidades estão satisfeitas. Ora, neste ponto termina seu título de propriedade.

Por outro lado, como supor um homem se servindo da matéria sem ser dela proprietário? Seria uma contradição em termos. Se o homem não é proprietário a não ser enquanto ele faz a matéria servir a suas ne-cessidades, é propor o absurdo mais revoltante supô-lo servindo-se da matéria sem ser proprietário dela.

Estes princípios fazem ver de modo evidente o ridículo que havia nessa patética disputa desses imbecis franciscanos, que sustentam não serem proprietários da sopa que comem. Eles demonstram muito palpa-velmente o quanto os usos sociais, os lugares-comuns sobre a proprieda-de civil, são falsos e antinaturais. Pois como conceber na natureza um ser que chamamos de agricultor arrendatário e que goza sem ser proprietá-rio! Como conceber a existência de um indivíduo que, a duzentas léguas de suas terras, se proclama proprietário de trinta arpentos cuja situação ele sequer conhece! Como enfim conceber essas distinções sutis, imagi-nadas pelos jurisconsultos, do direito de propriedade, entre posse, uso, propriedade, ação petitória, possessória, etc. Qualquer homem que con-sulte apenas as ideias naturais, que não se deixe cegar pelo preconceito, pode imaginar um proprietário que não seja possuidor nem usuário, um usuário que não seja nem possuidor nem proprietário? Pode ele chegar a conceber que se possa arrendar seu direito de propriedade? Se isso fosse possível, ser-nos-ia preciso então não ter necessidades; e se não tivés-

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semos necessidades, não seríamos mais proprietários. Essas máximas adotadas no direito civil, longe de decorrer do direito natural, são-lhe inteiramente contrárias: o que comprova que a propriedade civil que os políticos de nossos dias veem como um direito tão sagrado, tão natural, não passa de uma invenção social, que fere integralmente o direito da natureza.

Na natureza, a propriedade não pode ser separada do uso, não pode ser estendida para além deste uso. Eu transformo em minha substância a matéria que serve à minha alimentação. Este pão que como, esta água que bebo, este ar que respiro, tudo isso se torna eu pelo uso que deles faço. Não me é preciso mais que uma certa quantidade desses elementos para conservar minha máquina. Se eu ultrapasso essa quantidade, o equi-líbrio se destrói, e conduz à ruína da máquina. É portanto da natureza, da essência de meu ser, que eu não empregue mais do que a matéria necessá-ria para minha conservação.

Ora, se no exercício minha propriedade não se estende mais do que até este ponto, então ele também deve servir de limite à faculdade do exercício: caso contrário, eu teria direito de fazer o que eu não poderia fazer. E o que é um direito que não pode ser reduzido ao ato? Uma pura quimera.

Mas não é assim na sociedade. A propriedade se estende para além das necessidades naturais. E eis aqui o porquê. O homem criou para si uma imensa quantidade de necessidades factícias. Sua propriedade se es-tendeu na razão de suas necessidades. Ele rompeu o limite que a natureza tinha colocado a seus direitos. Satisfeito em suas necessidades naturais, ele conservou sua propriedade para satisfazer suas necessidades artifi-ciais. Isso foi um crime, pois tal conservação não podia se dar a não ser à custa de outros indivíduos. Mas, longe de isso parecer um crime à socie-dade, chegamos, ao contrário, a considerar um delito abominável a ação do infeliz desprovido de seu direito de propriedade primitivo que ou-sasse reclamá-lo para se subtrair à morte. Este é o caráter de nossas ins-tituições sociais. Elas canonizam o que a natureza chama de crime; elas punem severamente uma ação virtuosa, ordenada pela própria natureza.

Mas ao avaliar com um olho filosófico essa propriedade civil, desco-brimos quão frívola e fútil ela é. Não somos proprietários, não gozamos

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senão pelos sentidos. O gozo é uma sensação agradável, causada em nos-sa alma pela presença de um objeto externo, e pela percepção sensual deste objeto. Nós gozamos da luz ao ver, do fogo ao nos aquecer, de uma flor pelo olfato. Os sentidos são os únicos canais do gozo, os únicos ins-trumentos da propriedade.

Como um homem pode então se dizer o único proprietário, gozando de patrimônios extensos, de uma floresta imensa, de jardins magníficos? Para abrir-lhe os olhos, eu lhe diria: o senhor só pode gozar pelos senti-dos. Ora, por qual sentido o senhor goza deste arpento de terra? Não é nem pelo ouvido, nem pelo gosto, nem pelo olfato, pois um pedaço de terra não se escuta, não se degusta, não se cheira. Não pode ser senão pela via da visão ou do tato, mas quantos outros partilham com o senhor deste gozo!

Ricos orgulhosos, cessai, portanto, de vangloriar vossos palácios, vossas riquezas, vossa pompa. Eu gozo deles como vós, e frequentemente mais do que vós. Vossas charmosas pinturas, vossos perfumes deliciosos, vossos concertos encantadores, eu os vejo, eu os cheiro, eu os ouço como vós, e cem pessoas partilham este prazer comigo. Não são vossos praze-res que vós pagais, são os meus; são os de todos os seres que vos rodeiam, e que frequentemente degustam deles muito mais que vós. Transportai um Buffon a vossos gabinetes de física, um le Notre a vossos jardins, um filósofo a vossos parques imensos, e todos gozarão mil vezes mais que vós. A natureza e a arte desdobrarão a vossos olhos mil maravilhas escon-didas de vossos olhos grosseiros, fornecer-vos-ão mil prazeres que esca-pam a vossos sentidos demasiado obtusos. É, portanto, para eles que vós trabalhais, que vós sois proprietários. Assim, o príncipe que faz construir este soberbo palácio, o voluptuoso que espalha de mão cheia o perfume sobre suas roupas, todos trabalham para mim, eu gozo de suas obras, eu sou proprietário como eles.

Um bonzo rico e avaro tinha feito uma pilha considerável de joias. Um outro bonzo mencionou-lhe o desejo de vê-las. O bonzo avaro lhas mostrou com muita pompa. Depois de o bonzo curioso tê-las examina-do, eu lhe agradeço, diz-lhe, por suas joias. Por que me agradecer, respon-de o outro, se eu não lhas dou? Foi o prazer que tive ao vê-las. É todo o proveito que o senhor tira delas; e o senhor só tem como vantagem sobre

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mim o estorvo de guardá-las. Essa diferença é ligeira, e eu não o invejo em nada.

O gozo, a propriedade dos ricos são apenas palavras; eles partilham sempre com outros; eles não têm mais que os outros senão os gastos. Eis o efeito ordinário daquilo que chamamos de propriedade civil.

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Seção V

Pode-se alienar o direito de propriedade?

Esta é a vantagem que se pode encontrar na definição que dei da proprie-dade de acordo com o direito natural: nela encontramos a solução de to-das as questões que podem se fazer sobre esta matéria. A que acabamos de propor, por exemplo, não é difícil de resolver.

Com efeito, se nós somos proprietários, se nós temos o direito de nos servir da matéria apenas para satisfazer nossas necessidades; se, satisfei-tas essas necessidades, nossa propriedade cessa, não resulta claramente daí que não se pode alienar seu direito de propriedade? Pois, ou aquele que o alienasse teria necessidades a satisfazer, ou não as teria. Se as ti-vesse, ele violaria a lei da natureza ao ceder ou vender sua propriedade. A natureza lhe ordena imperiosamente satisfazer suas necessidades para conservar a vida e a saúde em sua máquina, que seria rapidamente des-truída se não executasse essa lei. Não é portanto mais lícito ao homem vender sua propriedade do que vender sua vida ou sua liberdade. Sua vida depende do exercício dessa propriedade. Aliená-la é alienar a sua vida, é desobedecer à natureza, é violar as leis.

Mas se o homem que aliena sua propriedade quando tem necessi-dade é um criminoso, então ele não é senão ridículo e louco quando a vende em um momento em que não tem necessidades. Pois se ele não é proprietário senão em razão de sua necessidade, se sua propriedade se extingue com sua necessidade, o que ele pode vender quando não tem mais necessidades? Nada, pois não é senhor de nada, pois não tem direito sobre nada, sendo sua necessidade o título de sua propriedade. Uma tal alienação é portanto ridícula, e nula. O vendedor dispõe de um direito que não tem.

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Este dilema é suficiente para convencer da inalienabilidade do direi-to de propriedade. Não acrescentarei portanto nem outras razões, nem autoridades. Seriam supérfluas.

Uma consequência dessa verdade é que na natureza, assim como não se pode vender o direito de propriedade, não é possível arrendá-lo.

Uma questão bem interessante seria a de saber se a sociedade pode fazer seus membros renunciar a esta propriedade. A resolução da ques-tão não é difícil: a menos que esta sociedade ou suprima as necessidades do homem ou lhe dê um meio tão sagrado, tão invariável quanto sua pro-priedade primitiva para satisfazê-las, uma tal renúncia é nula, antinatural e ninguém é obrigado a observá-la.

Não há nenhuma sutileza que os autores que trataram dessa maté-ria não tenham inventado para amparar esse pretenso direito de dispor, de alienar um lote de terra, que eles atribuem muito gratuitamente ao homem. Eu não me reportarei a eles; não passam de erros já refutados. Temos tão pouco tempo e é preciso ler tantos livros para encontrar uma única verdade que é inútil ampliar aqui a lista de nossos erros.

Há no entanto uma objeção capciosa, que pôde causar alguma im-pressão, sobretudo neste século em que os escritos econômicos criaram tantos agrômanos e tantos políticos. Diz-se que, para colocar um terreno em situação de produzir, seria preciso crédito e trabalho. Inferiu-se disso que era justo que aquele que houvesse semeado colhesse e pudesse gozar do fruto de seu crédito e de seu trabalho. Concluiu-se que ninguém além dele poderia ter direito, nem ao fruto nem ao lote.

Que nos recordemos sempre do grande princípio que assentamos, que o homem só é proprietário em razão de suas necessidades, e teremos logo em seguida a solução desta dificuldade. O homem tem um único tí-tulo para gozar, é sua necessidade. Se seu trabalho pudesse constituir um outro título, este permaneceria sempre subordinado ao primeiro. Sua propriedade não tem outro termo que sua necessidade. O trabalho não lhe é em absoluto um termo. Que um homem tenha semeado cem ar-pentos de terra, quando um único basta para sua alimentação, para suas necessidades, ele não é proprietário senão dos produtos deste único ar-pento. Não tem direito natural algum sobre os outros noventa e nove. Se ele se arrogasse a propriedade destes, violaria a lei da natureza; esses ar-

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57Investigações filosóficas sobre o direito de propriedade

pentos e suas produções pertencem àqueles que têm necessidade, e não àqueles que as semearam. Ele não poderia portanto vender esses frutos a nenhum outro que tivesse necessidade; não teria nenhum direito sobre eles. Ele venderia ao proprietário o bem deste. Além disso, estes termos venda, alienação, são desconhecidos no estado da natureza. O homem só tem direito sobre o que pode satisfazer suas necessidades, e ele não pode dispor desses objetos.

Eu o repito aqui: falo somente a respeito do estado de natureza; pois no estado social, a tese muda completamente de figura. Não há dúvida que nesse estado, para tornar fértil um terreno, é preciso crédito e traba-lho. Não há dúvida que é justo que aquele que trabalhou goze do fruto de seus esforços.

A agricultura é a base do Estado; mas para fazê-la florescer, é preciso assegurar ao trabalhador a faculdade de gozar do fruto de seu trabalho. Sem esse privilégio ligado à propriedade, não há cultivos de terras, não há víveres, não há riquezas, não há comércio. Além disso, os proprietá-rios fundiários são os únicos ligados ao Estado; os proprietários mobili-ários podem deixá-lo a qualquer momento. Essas considerações e outras mil deveriam engajar todos os governos no favorecimento da agricultura. Porém só se lhe arrumaram entraves em todos os tempos! As absurdas leis do governo feudal, esses imensos direitos de franc-fief 12, de laudê-mio; essa lei tão preconizada, porém tão perniciosa, da inalienabilidade dos domínios da realeza e dos servos de mãos-mortas13, e tantas outras servidões de toda espécie em todos os tempos estorvaram o cultivo das terras e a circulação das propriedades. Já se propôs por milhares vezes re-formá-las. Mas, ainda que seja justo assegurar a propriedade do cidadão, devem-se punir tão cruelmente os infelizes que são forçados por suas necessidades a perturbá-la? O erro que se estende rapidamente dificil-mente se desenraiza.

12 N.T.: Direito pago, na Idade Média feudal em França, ao senhor de um domínio fundiário por um possuidor não nobre que o explora economicamente.

13 N.T.: Gens de main-mortes: as mão-mortas eram a incapacidade, durante a Idade Média, de o servo legar seus bens como herança à sua família, de modo que estes bens permaneces-sem sob o domínio do seu senhor.

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Se o homem, mesmo na sociedade, ainda conserva o privilégio inde-lével da propriedade que a natureza lhe deu, nada pode portanto tirar-lho, nada pode impedi-lo de o exercer. Se os outros membros dessa socie-dade concentram unicamente para si a propriedade de todos os lotes de terra; se nessa espoliação aqueles que são dela privados, forçados a recor-rer ao trabalho, não podem por seus próprios meios providenciar para si mesmos sua completa subsistência; então eles são senhores para exigir dos outros proprietários14 algo com que dar conta dessas necessidades. Eles têm direito sobre suas riquezas. Eles são senhores para delas dispor na proporção de suas necessidades. A força que se opõe a isso é violência. Não é o infeliz esfomeado que merece ser punido; é o rico bárbaro o bas-tante para dar as costas à necessidade de seu semelhante que é digno do suplício. Esse rico é o único ladrão; apenas ele deveria ser suspenso nes-ses patíbulos infames, que parecem ter sido erguidos somente para punir o homem nascido na miséria pelo fato de ter suas necessidades; para for-çá-lo a abafar a voz da natureza, o grito da liberdade; para constrangê-lo a se lançar a uma dura escravidão a fim de evitar uma morte ignominiosa.

Juízes das nações, vós que as sociedades escolheram para proteger suas leis, para deter o crime e defender o oprimido, até quando sereis inconsequentes e cruéis? Quando finalmente cessareis de violar as leis da natureza? Quando cessareis de punir, com um suplício infame, os seres infelizes que a fome fez lançar sobre alimentos que só podem pertencer àqueles que têm necessidade? É preciso então que, para respeitar essa propriedade civil, que não passa de uma usurpação social, eles pereçam de fome e desobedeçam à lei da natureza que lhes ordena velar por sua conservação? Quem entre vós que, reduzido a essa situação deplorável, coagido a optar entre a morte e o que vós chamais de roubo, não tomaria este último partido? E punis com o suplício supremo esse pretenso crime que a natureza vos coage a cometer! A morte! Palavra terrível, que vós não devíeis jamais pronunciar! Sequer o homicida a merece. É prejudicar a sociedade, é ferir a natureza, é duplicar um crime punir com a morte. E todos os dias, no entanto, vós pronunciais com leviandade essa punição cruel pelas ofensas as mais leves! Mas quem então vos deu esse direito?

14 Há uma lei na Inglaterra que ordena aos mendigos trabalhar, às paróquias de lhes forne-cer trabalho, ou, ao menos, de alimentá-los.

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Foi o homem ao entrar na sociedade? Mas ele não poderia jamais ter-vos cedido um direito que ele não tinha sobre sua vida. Mas ele não poderia jamais renunciar à sua propriedade, e dar-vos o direito de condená-lo à morte, quando a fome o coagisse a fazer reviver esse direito.

Suponde que roubar para não perecer de fome seja um crime, mas ao menos não o punis tão severamente. Há tantos castigos mais suaves, pelos quais o culpado pode até mesmo se tornar útil à sociedade: por que não os empregar? Conservaríeis um cidadão para o Estado, e não ul-trajaríeis a natureza. Legisladores! vós que mantendes em vossas mãos o destino das nações, não vos limiteis a prevenir o abuso; cortai-o pela raiz; por uma justa distribuição das riquezas do Estado, fazeis desaparecer a triste mendicância, e não haverá mais roubo. Não há senão maus gover-nos, nos quais se é obrigado a multiplicar as penas.

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Conclusão

Dissipei preconceitos, talvez úteis ao gênero humano; mostrei a este ver-dades tristes, sem dúvida; eu fiz meu dever. Um belo espírito, a quem concedemos mui gratuitamente o título de filósofo, dizia que, se pudesse manter todas as verdades humanas encerradas em suas duas mãos, cui-daria bem para não abri-las. Essa não é a linguagem de um amigo da hu-manidade, mas de um amigo da ignorância, de um sacerdote de Baal ou de uma falsa religião, que busca apenas perpetuar os erros dos homens, afundá-los na ignorância para ludibriá-los mais facilmente. O erro fez correr rios de sangue; a verdade nunca teve como cortejo nada além da candura e da paz. Todo filósofo deve portanto abrir os olhos dos homens a respeito de mil mentiras, mil preconceitos, que eles adotam mui fa-cilmente fiando-se tão-somente na palavra dita. Somente o amigo do despotismo poderia lamentar ver o universo esclarecido. Tive portanto razão ao dizer aos homens: ó meus semelhantes!, sois todos proprietários ao nascer, a natureza não restringe vosso direito de propriedade em lugar algum, sobre corpo algum. Podeis estendê-lo para toda parte, exercê-lo sobre tudo. Ela não colocou nenhum outro limite a esse direito sagrado a não ser a extinção de sua própria necessidade. Estando ela satisfeita, vós não tendes mais direito sobre a matéria. Vós deveis deixar gozar aqueles que têm necessidade. Perturbar seu gozo é violar a lei mais sagrada da natureza. Não crede nesses personagens austeros que, matando-se lenta e gradativamente, gostariam de abreviar vossa existência, reduzindo-vos aos vegetais. Não vos deixei seduzir por suas declamações empoladas contra o uso de vos alimentar de carne animal. Vossa natureza vo-lo prescreve, vo-lo ordena. Mas resisti também a esses bajuladores da es-pécie humana que creem que os animais não têm direito de se alimentar de nossa carne. Eles os chamam de cruéis; e como nos chamaríamos os carneiros, os bois, se eles escrevessem! Se um lobo pudesse fazer impri-

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mir suas reflexões, teria ele tanto trabalho para vos provar que tem um direito legítimo sobre vós? Sua fome; eis seu título. Suas garras e seus dentes, eis suas razões...

Alguém me dirá talvez, pois é uma objeção que frequentemente se me fez: para que serve esta obra? Ela só seria boa no estado de natureza, e este estado não passa de uma quimera.

O cui-bono não é sempre o melhor meio de apreciar uma obra. Have-ria mil delas que seriam proscritas se só as levássemos em conta sob seu aspecto de utilidade. Bastar-me-ia, de resto, ter descoberto uma única verdade: ela sozinha justificaria esta obra contra sua pretensa inutilidade.

Mas poder-se-ia me censurar por ter esclarecido a matéria da pro-priedade, por ter levado a chama da razão a essa parte tão obscura do di-reito natural, num tempo em que os povos e os reis buscam se esclarecer sobre seus respectivos direitos, num tempo em que se remonta à origem dos direitos sociais, num tempo em que o respeito pelas propriedades é visto pelos economistas como o fundamento de todo Estado?

Eu não busquei, ao escrever, outra coisa que o bem de meus seme-lhantes. Se os tribunais, convencidos por meus princípios, persuadidos que o homem não pode alienar o direito de propriedade que sua existên-cia lhe dá, que quando ele tem fome ele tem direito sobre tudo, que ele não rouba, portanto, que ele não faz mais do que realizar o voto da natu-reza; se os juízes, digo, apagarem as barbáries dos séculos passados, não punirem mais severamente o infeliz esfomeado que providenciou para si mesmo a subsistência ao custo de seu vizinho, eu ficaria muito feliz. Eu teria salvado a vida de inocentes. Isso vale por séculos de imortalidade.

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Nota dos editoresEssa tradução teve como base a edição fac-similar da original (1780)

publicada em 1966 pela EDHIS (que utilizou exemplar da coleção Michel Bernstein)

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Este livro digital foi disponibilizado gratuitamente no 129o aniversário do início greve geral nos Estados Unidos

por jornada de trabalho de oito horas e da sua violenta repressão em Chicago, onde 8 anarquistas seriam injustamente

condenados por incitá-la.