ATO E POTÊNCIA: UM ESTUDO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE … · livro Θ está inserido num plano maior...
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ALEXANDRE LIMA
ATO E POTNCIA: UM ESTUDO SOBRE A RELAO ENTRE SER E
MOVIMENTO NO LIVRO DA METAFSICA DE ARISTTELES
Florianpolis
2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
ATO E POTNCIA: UM ESTUDO SOBRE A RELAO ENTRE SER E
MOVIMENTO NO LIVRO DA METAFSICA DE ARISTTELES
Dissertao submetida ao corpo docente do departamento de Ps-graduao em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre. Aluno: Alexandre Lima Orientadora: Arlene Reis
Florianpolis
2005
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Esta dissertao foi julgada adequada para a obteno do ttulo de Mestre em Filosofia e aprovada em sua forma final pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina. __________________________________
Prof. Dr. Marco Antnio Franciotti Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da UFSC
Banca Examinadora: ____________________________ Prof. Dr. Arlene Reis Presidente UFSC
____________________________ Prof. Dr. Lus Felipe Ribeiro Membro UFSC ____________________________ Prof. Dr. Selvino Jos Assmann Membro UFSC
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Agradeo muitssimo Professora Arlene Reis por ter me encaminhado na difcil
misso que o estudo do clebre Estagirita.
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Professora Arlene Reis por sua substancial dedicao, pacincia e sabedoria.
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RESUMO
Com o propsito de analisar a relao entre ser e movimento a partir dos conceitos
de ato e potncia, elaboramos um mapeamento do livro da Metafsica, capaz de orientar
o entendimento de sua estrutura central. Visto como um dos modos de se dizer o ser, o ser
em ato e em potncia parte integrante e fundamental da investigao metafsica. A
distino entre ser em ato e em potncia pretende resolver o clssico problema do no-ser
que vem a ser, mostrando como o no-ser apenas no-ser ainda em ato, mas j ser em
potncia e este guarda as condies para sua necessria atualizao. A reconstruo
argumentativa de procurou ressaltar trs aspectos principais: (1) Ato e potncia
funcionam como um elemento de conexo entre as outras cincias prticas, produtivas e
tericas que so subordinadas Cincia do Ser enquanto Ser, a Metafsica. (2) H uma
forte relao entre o par conceitual ato/potncia e os outros conceitos fundamentais da
filosofia aristotlica, tais como: substncia, forma, matria, ao, bem, natureza e fim.
Desse modo, ato e potncia somente sero plenamente compreendidos se tambm forem
considerados esses outros conceitos. (3) H uma relao direta entre os dois sentidos em
que ato e potncia podem ser entendidos - o cintico e o metafsico - e a seguinte diviso
interna de : de 1 a 5 a investigao est centrada sob o ngulo do movimento, o
momento cintico, em que Aristteles dedica-se mais anlise da potncia caracterizada
como um princpio de movimento. A idia central ressaltar que se todas as coisas
estivessem j em ato no haveria possibilidade de movimento. De 6 a 10 a investigao
est centrada sob a perspectiva da substncia, o momento metafsico, com maior destaque
anlise do ato e suas relaes com a forma e, portanto, com a substncia. Por serem
conceitos originrios, ato e potncia s podem ser pensados de modo imediato, no
cabendo uma definio no sentido estrito, devendo ser compreendidos somente por meio da
analogia de proporo. Aristteles defende ainda a anterioridade do ato perante a potncia,
pois necessrio que exista algo j em ato para que um outro, em potncia, venha a ser. O
livro est inserido num plano maior de investigao, a Metafsica, cujo objeto central a
substncia, e desse modo, ato e potncia so conceitos que somente se esclarecem e tm
sentido a partir da substncia.
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ABSTRACT
Actuality and Potency: a study concerning the relation between being and motion in the book of the Metaphysics of Aristotle
In order to analyze the relation between being and motion, we drew a map of the book of Metaphysics, based on concepts of actuality and potency, which is able to explain the central structure of that book. Understood as one way of to say the being, the being in actuality and in potency take a fundamental role in the metaphysical inquiry. The distinction between actuality and potency intend to solve the classic problem of not-being, that is to say, although the not-being is not being only in actuality, it is already being in potency, and this carry the conditions for your necessary realization. The reconstruction of the argument of the book of Metaphysics aim to emphasizes three main aspects: (1) Actuality and potency work as a connection element between the others practical, productive and theoretical - sciences, which are subordinated to science of being such as being, Metaphysics. (2) There is a strong relation between the concepts actuality and potency and others fundamental concepts of Aristotelian philosophy, such as: substance, form, matter, action, good, nature and end. Because of this, actuality and potency can be fully understood, only if we pay attention to these others concepts. (3) There is a direct relation between the two senses in what actuality and potency can be understood kinetics and metaphysical from the following internal distinction of book : from 1 to 5, the inquiry concentrate on perspective of the kinetics move; in this part of the book, Aristotle deals with, in the most part of, the analyze of potency characterized as a source of motion. The main idea is to emphasize that, if all things were already in act, there is no possibility of motion. From 6 to 10, the inquiry concentrate on perspective of substance, the metaphysical move, that pay more attention to analyze of the actuality and his relations to form, and, therefore, with substance. Because these concepts are original ones, actuality and potency can be thought of only immediately. There is no definition for these terms in the strict sense; they need to be understood only by means of proportion analogy. Aristotle defends still the priority of actuality over potency, because it need there to be something already in act in order to another thing, in potency, become real. The book is included in a broader level of inquiry, the Metaphysics, of which central object are the substance, and so, actuality and potency are concepts that only can become clearer and make sense after substance discussion.
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SUMRIO
Introduo ........................................................................................................................... 9 Captulo I O Ser e o Movimento...........................................................................................................15 1 A soluo de Aristteles .................................................................................................. 17 1.1 O Movimento em Aristteles ....................................................................................... 18 1.2 Os modos de se dizer o Ser ........................................................................................... 21 2 Potncia princpio de movimento ................................................................................. 24 2.1 Os tipos de Potncia ......................................................................................................32 2.2 Quando as potncias ativa e passiva coincidem ou diferem ......................................... 35 2.3 A impotncia enquanto Privao ...................................................................................37 3 Potncias Racionais e No-racionais ............................................................................... 39 3.1 Potncia para os contrrios ........................................................................................... 43 3.2 - Potncia para agir ou padecer bem ............................................................................. 47 4 Sobre as condies e os limites para a atualizao da Potncia ....................................... 49 4.1 As condies para o potente se atualizar ...................................................................... 51 4.2 O Desejo e a Escolha como princpios dos contrrios ................................................. 54 Captulo II Em defesa do Movimento ................................................................................................... 60 1 A polmica com os Megricos ......................................................................................... 63 1.1 Sobre a circularidade na definio do Possvel ............................................................. 69 1.2 Ato e Movimento .......................................................................................................... 72 2 Possibilidade e Realizao ............................................................................................... 75 3 O Possvel e o Necessrio ................................................................................................ 78 Captulo III Ato e Potncia relativos Substncia ................................................................................. 81 1 Definio por Analogia .................................................................................................... 83 1.1 Ato e Potncia por meio da Analogia ........................................................................... 87 1.2 Analogia: a unidade para os sentidos cintico e metafsico............................................89 2 O Infinito, o Vazio e o Movimento ................................................................................. 90 3 A distino entre Ato e Movimento ................................................................................ 93 3.1 O Movimento imperfeito ........................................................................................... 97 3.2 Ato e Ao .................................................................................................................. 100 4 Atualizao da Potncia enquanto Matria......................................................................104 4.1 Matria prxima e Matria primeira.............................................................................108 4.2 Matria e Sujeito...........................................................................................................110
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Captulo IV A anterioridade do Ato........................................................................................................114 1 Modos da anterioridade do Ato........................................................................................115 1.1 Ato Fim na ao e na produo..................................................................................122 1.2 Anterioridade nas Substncias Eternas.........................................................................123 1.3 Movimento dos Seres Eternos......................................................................................126 2 Contra os Platnicos........................................................................................................127 3 Anterioridade do Ato no Bem..........................................................................................129 4 Anterioridade do Ato na Matemtica...............................................................................131 5 Ser, Verdade e Ato...........................................................................................................134 Consideraes finais.........................................................................................................138 Referncias........................................................................................................................148
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Introduo
Este trabalho tem como propsito estudar a relao entre ser e movimento a partir
dos conceitos de ato e potncia definidos no livro da Metafsica. Ato e potncia so
indicados por Aristteles, na Metafsica, como um dos modos de se dizer o ser, sendo, por
isso, fundamentais para se compreender sua filosofia.
Visando a elaborar um caminho que favorea a compreenso do tema, optou-se pelo
mapeamento de , ou seja, uma reconstruo de seus principais argumentos capaz de
orientar o entendimento de sua estrutura central. Apesar da complexidade e de todas as
dificuldades que o envolvem, procurou-se elaborar uma linha de argumentao que
possibilitasse explicitar melhor os objetivos centrais que Aristteles pretendia destacar em
, especialmente, a conceituao de ato e potncia, pressupondo-o no tanto como
aportico mas como um texto capaz de proporcionar respostas sistemticas ao tradicional
problema da relao entre ser e movimento.
Esta reconstruo argumentativa pretendeu tambm ressaltar que a grande
importncia de est em sua apresentao e anlise do ser em ato (e)ne/rgeia/e)ntele/xeia)
e em potncia (dunato/n/du/namij), mostrando como estes conceitos so fundamentais para
compreender no s a ontologia aristotlica como tambm as outras reas do conhecimento.
Com base nessa constatao, o mapeamento de destacar os seguintes aspectos: primeiro,
o par conceitual ato/potncia um elemento de conexo entre as outras cincias prticas,
produtivas e tericas subordinadas Cincia do Ser enquanto Ser. Ato e potncia so um
amlgama que permite compreender outros mbitos do conhecimento, especialmente a
Fsica, a tica, a Poltica e a Teologia.
O segundo aspecto importante, e intrinsecamente relacionado ao primeiro, refere-se
s relaes existentes entre ato/potncia e os outros conceitos fundamentais da filosofia
aristotlica. Ato e potncia no so conceitos isolados, eles pertencem a uma estrutura
conceitual que pretende expressar o ser em geral. Nesse sentido, as principais relaes,
diretas e indiretas, verificadas ao longo de so, por um lado, entre: ato e forma; ato e
substncia; ato, ao e fim. Por outro, entre: potncia e matria; potncia e movimento;
movimento e produo; potncia, matria e indeterminao.
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O terceiro aspecto remete relao entre os dois sentidos em que ato e potncia
podem ser entendidos, o cintico e o metafsico, e a diviso interna de , elaborada com o
propsito de evidenciar essas perspectivas diferentes, de acordo com a complexidade do
real. De 1 a 5 Aristteles centra a investigao sob o ngulo do movimento, dedicando-
se mais anlise da potncia caracterizada como um princpio de movimento. Nesses
captulos o objetivo principal provar a existncia do movimento a partir da noo de que o
ser em potncia uma face do ser em ato e que j guarda em si as condies necessrias
para se atualizar. A idia central ressaltar que se todas as coisas estivessem j em ato,
fossem desde sempre completas, no haveria possibilidade alguma de movimento.
Aristteles apresenta os tipos de potncia e como estas se refletem em vrias reas do
conhecimento. Conseqentemente, analisa tambm as condies necessrias e os limites
para a atualizao da potncia, especificando quando um ser ou no potencialmente
outro ser.
De 6 a 10 Aristteles enfoca a investigao sob a perspectiva da substncia
dedicando-se mais anlise do ato e suas relaes com a forma e, portanto, com a
substncia. Nesses captulos Aristteles destaca a conexo intrnseca existente entre ato e
potncia, uma necessria reciprocidade, de tal modo que o conceito de um condiciona a
compreenso do outro. So conceitos originrios e, sendo assim, s podem ser pensados de
modo imediato, no cabendo uma definio no sentido estrito. Aristteles defende ainda a
anterioridade do ato perante a potncia, pois necessrio que exista algo j em ato para que
um outro, em potncia, venha a ser. Essa anterioridade verificada tanto nos seres
sublunares quanto nos supralunares. sob esse aspecto que fica mais explcita a associao
promovida, por um lado, entre ato, forma e substncia; por outro, entre potncia, matria e
movimento.
Tal diviso interna, que tem como base o plano geral elaborado por Aristteles, no
tem como objetivo sustentar uma separao estanque entre as duas perspectivas, cintica e
metafsica, pelo contrrio. A primeira parte, 1 a 5, s pode ser plenamente
compreendida tendo como pressuposto a noo de substncia, que aparece em destaque na
segunda parte. Isso se deve ao fato de que o livro est inserido num plano maior de
investigao, a Metafsica, cujo objeto central a substncia, e desse modo, ato e potncia
so conceitos que somente se esclarecem e tm sentido a partir da substncia.
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Este trabalho pretende mostrar que no livro Aristteles direciona sua ateno para
um dos principais modos de se dizer o ser: em ato e em potncia. Entre as principais
perspectivas mais gerais de apreenso da realidade, o par conceitual ato/potncia
apresentado como uma evidente tentativa de Aristteles para explicar a relao entre
movimento e estabilidade, entre mudana e identidade. O ser em ato e em potncia pretende
dar conta das dificuldades indicadas por alguns pr-socrticos, sofistas e por Plato sobre a
relao entre o movimento e o ser, sendo que nenhum deles teria conseguido se
desvencilhar do impasse implicado numa possvel passagem do no-ser para o ser.
Aristteles elabora uma teoria que confirma uma passagem do ser em potncia ao ser em
ato, mais prxima ao senso comum, eliminando a qualidade ontolgica do no-ser e
evitando cair em contradies, visto que essa passagem ocorre sempre do ser para o ser.
Com isso, ele responde ao clssico problema do no-ser que vem a ser, mostrando como o
no-ser apenas no-ser ainda em ato, mas j ser em potncia e este guarda as condies
para sua necessria atualizao.
especialmente no livro que Aristteles condensa boa parte de seus pressupostos
tericos tais como substncia e acidentes, matria e forma, as quatro causas, primeiro
motor imvel, princpio de no-contradio que ele expe em outros lugares de sua obra e
os une ao par conceitual ato/potncia para dar conta da relao entre ser e movimento, entre
o que e o que no-, entre aquilo que est sempre imvel permitindo assim o
conhecimento e o que est sempre em mudana possibilitando o devir, ou ainda, entre o
uno e o mltiplo. Desse modo, ato e potncia devem ser entendidos sempre luz de toda
concepo ontolgica de Aristteles. Assim como ato e potncia so termos correlatos, ou
seja, um no pode ser entendido sem o outro, eles mesmos somente sero plenamente
compreendidos se tambm forem considerados os outros conceitos fundamentais, tais
como: substncia, forma, matria, bem e fim. Algumas dessas relaes podem ser
verificadas inclusive em outras reas do conhecimento.
A anlise de permite confirmar ainda uma caracterstica marcante do pensamento
aristotlico, a teleologia, que por sua vez est atrelada idia de que, para Aristteles, todas
as coisas tendem realizao do bem.
Procurando reconstruir o que h de fundamental na argumentao de , este
trabalho, com base no prprio plano geral elaborado por Aristteles, apresenta a seguinte
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estrutura: o primeiro captulo rene 1, 2 e 5. Apresenta uma breve exposio sobre o
tradicional problema do movimento na filosofia anterior a Aristteles e um resumo da
concepo aristotlica de movimento. Destaca o par conceitual ato/potncia como um dos
modos de se dizer o ser e sua relao com os outros conceitos fundamentais na filosofia de
Aristteles. Mostra o plano geral desenvolvido em 1 com o propsito de tratar dos
sentidos em que ato e potncia podem ser entendidos: cintico e metafsico. Examina os
cinco tipos de potncia destacando a definio de potncia como um princpio de
movimento. Mostra-se que Aristteles termina 1 com um esclarecimento acerca da
impotncia e privao. Quanto a 2, os pontos principais so: a introduo de novas
distines que envolvem tanto a sua teoria sobre a alma, como sua concepo tica e
poltica. A distino entre potncia racional e no-racional. A anlise da potncia para
produzir contrrios e sua implicao com as funes da alma. Aristteles termina 2 com
uma breve avaliao da potncia para agir ou padecer bem. Em 5, os tpicos centrais so:
a distino entre potncias congnitas e adquiridas. A avaliao das condies e
implicaes do potente enfatizando o desejo e a escolha como princpios dos contrrios. O
Estagirita encerra 5 tratando dos limites da potncia mostrando a incoerncia e
inconsistncia de um desejo de fazer duas coisas contrrias ao mesmo tempo.
O segundo captulo deste trabalho rene 3 e 4. Em 3, Aristteles promove uma
polmica com os megricos, defensores da total imobilidade do ser. em 3 que se
apresenta ainda um dos caractersticos mtodos de Aristteles para a definio de pares
conceituais originrios e tambm retoma a explicao sobre o possvel/impossvel, desta
vez, incluindo a noo de ato. A finalizao de 3 proporciona a apresentao de uma
primeira caracterizao do ato a partir da comparao com o movimento. Em 4, primeiro
Aristteles explica a relao entre possvel/impossvel e o realizvel. A partir da, apresenta
a diferena entre o falso e o impossvel e encerra o captulo acentuando a relao entre o
possvel e o necessrio.
O terceiro captulo rene 6 e 7. Em 6, Aristteles trata especialmente de quatro
questes: primeiro expe a diferena ontolgica entre ato e potncia, mostrando que a
potncia quando tratada para alm do movimento inclui, necessariamente, o conceito de
ato. Em seguida, por serem conceitos originrios, ato/potncia so caracterizados por meio
da analogia. Mostra ainda como algumas coisas (infinito e vazio) s existem em ato no
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pensamento, ou somente existem em potncia. Termina 6 apresentando a diferena entre
movimento e ato a partir de um novo critrio, o da perfeio da ao. Em 7, Aristteles
empenha-se em mostrar a relao entre matria e potncia tratando das condies, internas
e externas, necessrias para a atualizao da potncia enquanto matria. Faz a diferenciao
entre matria apropriada, prxima e matria primeira. Discute brevemente a noo de
sujeito com o propsito de mostrar a semelhana entre matria e atributos.
O quarto e ltimo captulo rene 8, 9 e 10. As principais questes tratadas em
8 so: relao entre potncia e natureza enquanto ambos so princpio de movimento. Os
modos em que ato anterior potncia. Nesta parte Aristteles torna mais evidente a
relao direta entre o ato, a forma, a substncia e o fim. Encerra 8 com a anlise das
substncias eternas incorruptveis articulando cosmologia e metafsica. A anlise da
anterioridade do ato tem sua continuidade em 9. Neste momento, Aristteles faz a anlise
da anterioridade do ato relativo ao bem e s demonstraes da matemtica sempre
ressaltando a relao entre fim, forma e ato. Em 10, Aristteles trata especificamente do
verdadeiro e do falso, destoando um pouco do tema central do livro . Os pontos centrais
de 10 so: a tese de que verdade e falsidade pertencem ao juzo. Anlise do verdadeiro e
do falso referente s substncias simples e s compostas. A tese de que o critrio da
verdade a realidade e, finalmente, que o ser em ato mais verdadeiro do que o ser em
potncia porque a essncia se mostra em ato.
O desenrolar do livro deixa transparecer que, para Aristteles, a distino entre
ato e potncia fundamental, no s com o propsito de elucidar a relao entre ser e
movimento, mas, inerente a essa problemtica, est a percepo de que o ser em
ato/potncia auxilia no pleno entendimento da realidade. A anlise de , complementada
por outros textos, mostra que o ser em ato e em potncia enquanto um dos modos de se
dizer o ser, no um estudo isolado daquele que pretende responder o que o ser, pelo
contrrio, parte integrante e fundamental daquilo que a tradio filosfica passou a
denominar de investigao metafsica.
Geralmente, qualquer escolha tem como conseqncia inevitvel, no mnimo, uma
excluso, por isso, convm advertir que, ao preferir conservar o carter aparentemente
inconcluso e preponderantemente esquemtico de , muitos conceitos e problemas
importantes no sero analisados pormenorizadamente. A razo dessa opo que a nfase
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ser dada estrutura do texto que, por ser muito abrangente, guarda um aspecto
acentuadamente panormico em boa parte de suas anlises conceituais.
Nosso propsito neste trabalho no exaurir a problemtica analisada por
Aristteles em sobre a relao entre movimento e ser a partir do par conceitual
ato/potncia. Trata-se apenas de uma reconstruo das idias centrais estabelecidas em
inclusive para melhor compreenso do pensamento aristotlico. Queremos ressaltar ainda
que no se trata de uma adeso total e irrestrita s respostas elaboradas por Aristteles,
tanto quelas referentes especificamente ao ser em ato e em potncia, como sua teoria em
geral. A proposta de uma reconstruo sistemtica visando a encontrar um fio condutor
capaz de melhor esclarecer sua teoria, tambm no exclui a indicao e registro de alguns
problemas especficos que surgem ao longo do texto analisado.
Para a traduo da Metafsica o texto utilizado foi o de Valentn Garca Yebra, que
se baseia na edio de David Ross. Para a Fsica, a traduo a de Guillermo R. de
Echanda, e para o De anima foi a de Toms Calvo Martnez. As excees sero indicadas.
O texto grego foi extrado do Thesaurus Linguage Graecae, University of Califrnia,
Irvine, 3450 Berkeley Place. A traduo dos textos de lngua estrangeira espanhol,
francs, ingls e italiano de nossa autoria.
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CAPTULO I
O Ser e o Movimento
Um dos grandes temas da Filosofia desde seus primrdios a questo do
movimento (ki/nhsij). Qual filsofo no se perguntou sobre o que o movimento?
Certamente Tales, Anaxmenes, Anaximandro e tantos outros constataram a intensa
movimentao da realidade. Perceberam que todas as coisas esto sujeitas ao nascimento,
crescimento e perecimento e como na filosofia grega, de modo geral, predominava a
convico de que tudo no mundo converge para a imobilidade, cada filsofo elegeu um
princpio (a)rxh/) que estaria na origem de toda essa movimentao. necessrio um
princpio capaz de sustentar a perfeio da realidade plena, do ser (to\ o)/n), afinal, o
movimento constitui um fato transitrio e sinal de imperfeio, devendo cessar to logo
cessem os efeitos da causa que o determina. Assim, um grande problema para a filosofia
est colocado: preciso refletir sobre as implicaes do movimento para o ser a fim de se
fundamentar uma explicao convincente quanto realidade plena.
Coube a Herclito a tarefa de proclamar enfaticamente o movimento como
constituinte do ser, como algo inevitvel porque determinante da realidade. Por isso
sentiu-se vontade para afirmar: Nos mesmos rios entramos e no entramos, somos e no
somos.1 A realidade est em perene movimento, em tudo h transformao,
conseqentemente, possvel entender que, de algum modo, o ser (to\ o)/n) e o no-ser
(to\ mh\ o)/n) so ao mesmo tempo, atestando a intrnseca convivncia dos opostos na
mesma realidade.
Esta compreenso do ser em constante movimento talvez no tivesse causado tanto
assombro caso no surgisse um outro filsofo justamente para negar a possibilidade da
simultnea convivncia do ser e do no-ser. Desse modo, Parmnides, inconformado com
as contradies lgicas da advindas, entre o ser que sempre e o movimento que
1 potamoij toij au)toij e)mbainome/n te kai ou)k e)mbainomen, eime/n te kai ou)k eimen. Diels, Hermann & Kranz, Walther: Die Fragmente der Vorsokratiker. (Trad. Jos Cavalcante de Souza, in: Os pr-socrticos, fragmento 49a).
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sempre outro -, defende o imobilismo, classificando o movimento como simples aparncia2,
como irreal, chegando concluso seguinte: Necessrio dizer e pensar que o ser , pois
ser, e o no-ser no .3 Se somente o ser e o no-ser no , ento s o ser pode ser dito
e pode ser pensado, portanto, no h correlao de contrrios porque o ser no gerado
nem divisvel. O ser contnuo, inteiro, imvel. Em outras palavras, partindo da evidente
contradio entre ser e no-ser e da constatao de que s o ser , Parmnides concluiu que
o movimento mesmo no real, apenas aparente, caso contrrio, seria preciso admitir que
aquilo que se torna ser originado a partir do no-ser e que, posteriormente, em algum
momento o ser deixar de ser. Se o ser no pode ter origem, ento o ser o que agora.4
Enquanto Herclito afirmava o perene movimento e, contrariamente, Parmnides
afirmava a simples aparncia do movimento no ser, Plato resolveu o problema de outro
modo. Tudo na natureza est submetido ao movimento, isso inegvel. No entanto, esta
constatao inviabiliza a apreenso verdadeira do ser tal como necessrio ao
conhecimento cientfico, ento deve haver algo que permanea para alm desse movimento.
Na busca desse algo estvel, caracterstico da perfeio, Plato elabora uma complexa
teoria em que prope uma diviso das idias (i)de/ai), ou formas (ei)/dh), segundo dois
mundos, ou paradigmas, diferentes: um mundo sensvel submetido ao movimento e um
mundo das idias lugar do eterno imvel. Com isto, fica assegurada a possibilidade do
conhecimento cientfico num mundo no submetido a qualquer tipo de mudana, o mundo
das idias, e a questo do movimento deslocada para um segundo plano, para o mundo
sensvel. Portanto, o movimento - apesar de pertencer a um dos cinco gneros supremos5,
capazes de unificar todos os seres - tambm classificado por Plato como sendo apenas
aparncia, porque o devir reina apenas no mundo sensvel e torna indispensvel a referncia
ao mundo das idias, visto serem estas as medidas imutveis de todas as coisas submetidas
ao devir.
2 De acordo com John Burnet, a tese de que tudo no mundo converge para a imobilidade no era to evidente: Nos tempos antigos, no o movimento, mas o repouso que preciso explicar e improvvel que a origem do movimento fosse discutida antes de sua possibilidade ser negada. Burnet, J., O despertar da filosofia grega, p.23. 3 xrh\ to\ le/gein te noein t' e)o\n emmenai: esti ga\r einai, mhde\n d' ou)k estin: Diels, Hermann & Kranz, Walther: Die Fragmente der Vorsokratiker. (Trad. Remberto F. Kuhnen, in: Os pr-socrticos, fragmento 6). 4 O que nunca veio a ser, e no h nada que vir a ser no futuro. ou no ? Se , ento agora, imediatamente. Burnet, J., O despertar da filosofia grega, p. 151. 5 No dilogo Sofista, Plato elege cinco gneros supremos: o ser, o movimento, o repouso, o mesmo e o outro. Cf., Plato, Sofista, 254d 255a.
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A verdade que, apesar dos memorveis esforos para elaborar uma explicao
plausvel sobre a relao entre ser e movimento, praticamente todas as solues
apresentadas promovem grande aproximao entre movimento e no-ser, suscitando fortes
suspeitas quanto possibilidade de estabelecer, definitivamente, fundamentos tericos
satisfatrios para resolver esse problema.
1 A soluo de Aristteles
Aristteles reconhece o grande valor de toda tradio filosfica, porm, nenhum
pensador conseguiu apresentar uma resposta satisfatria s suas perspectivas quanto ao
problema da relao entre ser e movimento, que representa, de fato, os limites entre o real e
o irreal. Aps uma investigao das respostas de seus antecessores, o Estagirita recusa as
propostas unilaterais tanto de Herclito como de Parmnides, bem como a diviso em dois
mundos proposta por Plato. Todas so insuficientes para responder, por exemplo, de onde
vem o movimento e como algo que est em movimento pode ser conhecido. Enquanto os
fsicos (filsofos anteriores a Scrates que tinham como objeto principal de investigao o
mundo da fu/sij), por exemplo, acreditavam que o movimento das coisas se realizava
como passagem do ser que para outro que tambm , como se esse algo fosse completo
nos dois momentos, o Estagirita entendia que o ser no somente o que j existe, aquilo
que em ato (e)ne/rgeia ou e)ntele/xeia), mas o ser tambm o que pode ser, o que em
potncia (du/namij). Essa distino era ignorada pelos filsofos e, por isso, incorriam em
erro ao afirmarem a gerao do ser a partir do no-ser, ou mesmo, do ser ao no-ser.
Quando o no-ser entendido de modo absoluto, ento no possvel pensar que
algo possa ser gerado a partir dele, pois no h algo que possa ser gerado ou algo que possa
gerar a partir do nada, afinal, do nada, nada vem. Entretanto, quando se entende que o no-
ser nunca em ato, mas apenas em potncia, ento se pode admitir, de certo modo, um
sentido inteligvel para o no-ser: o ser que ainda no em ato, mas que j em potncia.
Com isto, no h risco de uma gerao ou de um movimento do no-ser ou a partir do no-
ser. A clara distino entre os conceitos de ato e potncia evita o paradoxo da existncia
de algo que no- e passa a ser, respeitando o princpio que rege: do nada, nada vem,
porque tudo o que , em ato, e a potncia guarda a possibilidade de ser ou de no ser.
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De acordo com Aristteles, a concepo e distino dos conceitos de ato e potncia
dariam conta da relao entre ser e movimento sem transgredir qualquer princpio lgico.
Inclusive h comentadores que afirmam que a distino ato/potncia foi elaborada com o
objetivo central de responder ao fenmeno do movimento6, pesadelo dos filsofos desde
que Parmnides o declarou no existente.
1.1 O Movimento em Aristteles
Para compreender toda a abrangncia dessa soluo, convm examinar a concepo
aristotlica de movimento que muito ampla, contemplando o processo geral de mudana,
crescimento e locomoo, englobando hoje o que chamaramos de alterao, transformao
ou mudana. No livro D da Metafsica7, por exemplo, Aristteles apresenta a seguinte
definio de movimento: tambm o movimento quantidade, e o tempo quantidade por
ser movimento.8 Quantidade algo divisvel em partes determinadas, assim, possvel
entender o movimento como quantidade enquanto passvel de ser mensurvel, considerando
o espao percorrido por um mvel.9 O movimento , portanto, um tipo de quantidade e
continuidade pelo fato de ser divisvel em partes ou elementos mensurveis.
Na Fsica - a cincia dos princpios mais gerais necessrios ao estudo profundo de
tudo o que est sujeito ao movimento - Aristteles apresenta algumas variaes na
definio de movimento:
6 Assim pensa Bonitz: A distino entre e)ne/rgeia e du/namij feita por Aristteles para explicar o movimento. In: Yepes Stork, R., La doctrina del acto en Aristteles, p. 114. Do mesmo modo Pierre Aubenque quando afirma: A distino do ser em ato e do ser em potncia jamais teria nascido sem as clssicas aporias sobre o movimento. Aubenque, P. Le problme de ltre chez Aristote, essai sur la problmatique aristotlicienne, p. 443. 7 Aristteles no utilizou o termo Metafsica (ta\ meta\ ta\ fusika/) que foi formulado, provavelmente, por Andrnico de Rodes (60 a.C.) para denominar os livros que tratavam dos temas prprios aos quais Aristteles atribua, por vezes, o nome de Filosofia Primeira, Teologia ou Sofa. Tambm no conheceu o termo Ontologia, formulado, provavelmente, por Rodolph Gckel (Goclnio) no sculo XVII. Cf., Berti, E. Aristteles no sculo XX, p. 89, nota 53. Utilizamos o termo Filosofia Primeira como sinnimo de Cincia do Ser enquanto Ser, ou seja, enquanto investigao metafsica. 8 kai h( kinhsij posh/, o( de\ xro/noj t% tau/thn. Metafsica, D13, 1020a 32. 9 Com efeito, uma grandeza espacial, diretamente mensurvel, uma quantidade por si; o movimento, que mensurvel pelo espao, uma quantidade por acidente. Tricot, J in: Aristote: La Mtaphysique, Tome I, p. 291.
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ki/nhsij = passagem de um contrrio (um sujeito) a outro (sua privao), ou de um
contrrio a um intermedirio10
ge/nesij = passagem do no ser ao ser e do ser ao no ser11
metabolh/ = mudana em geral12
fqora/ = destruio, corrupo ou morte de algo13
fora// = movimento local, como o deslocamento vertical (para cima ou para baixo) e
horizontal (para os lados)14
a)lloi/wsij = alterao qualitativa, como mudana de cor ou de temperatura de algo 15
Na Fsica, essas classes de movimento so analisadas enquanto fenmenos que
afetam os seres no divinos, pertencentes ao mundo sublunar.
Todavia, na Metafsica, Aristteles no segue rigidamente tais distines, mantendo
o termo ki/nhsij no sentido mais abrangente, englobando as demais classes. Isto se deve ao
fato de a Filosofia Primeira (filosofi/a prw/th), a Cincia do Ser enquanto Ser16, no se
limitar investigao do movimento, mas apenas de o incluir na qualidade de algo
pertencente realidade. Essa diferena de abordagem pode ser melhor entendida a partir da
classificao elaborada por Aristteles no livro E da Metafsica. Entre as cincias
teorticas, a Fsica se ocupa dos seres que tm matria e se movem, enquanto a Filosofia
Primeira se ocupa do que eterno, imvel e separado da matria, ou seja, do ser enquanto
ser, e no enquanto material, sensvel ou em movimento17. A Filosofia Primeira no se
10 Se segue ento que somente a mudana que seja de um sujeito a um sujeito pode ser um movimento. Enquanto aos sujeitos, ou so contrrios ou so intermedirios (pois se segue que a privao um contrrio).a)na/gkh th\n e)c u(pokeime/nou eij u(pokeimenon metabolh\n kinhsin einai monhn. ta\ d' u(pokeimenah e)nantia h metacu/ kai ga\r h( ste/rhsij keisqw e)nantion. Fsica, V1, 225b 2-6. 11 A mudana por contradio que vai de um no-sujeito a um sujeito uma gerao. h( me\n oun ou)k e)c u(pokeime/nou eij u(pokeimenon metabolh\ kat' a)ntifasin ge/nesij e)stin. Fsica, V, 225 a 15-18. 12 Pois toda mudana de algo at algo (como mostra a palavra , que indica algo depois de outro algo, isto , anterior e posterior). de\ pa=sa metabolh/ e)stin ek tinoj eij ti dhloi de\ kai tounoma: met' allo ga/r ti kai to\ me\n pro/teron dhloi, to\ d' usteron. Fsica V, 225 a 2-6 13 A mudana que vai de um sujeito a um no-sujeito uma destruio. h( d' e)c u(pokeime/nou eij ou)x u(pokeimenon fqora/. Fsica V1, 225a 20-21 14 E porque o movimento mais comum e principal, aquele que chamamos deslocamento, um movimento segundo o lugar. kai th=j kinh/sewj h( koinh\ ma/lista kai kuriwta/th kata\ to/pon e)stin, hn kalou=men fora/n. Fsica, IV1, 208a 33-35. 15 Alterao , estritamente, mudana relativa a uma qualidade tal. Charlton, W. In: Aristotle, Physics. Books I and II, p. 64. 16 H uma cincia que contempla o ser enquanto ser e o que lhe corresponde por si. Estin e)pisth/mh tij h qewrei to\ on v on kai ta\ tou/t% u(pa/rxonta kaq' au(to/. Metafsica, G1, 1003a 21-22. 17 Cf., Metafsica, E1, 1025b 181026a 23.
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ocupa deste ou daquele ser especfico e sim, das causas e dos princpios do ser.
Obviamente, o fenmeno do movimento merece ateno privilegiada para compreenso do
prprio ser, devido, inclusive, relao alegada por alguns filsofos entre o movimento e o
no-ser. O movimento tem o privilgio de marcar a tenso entre o que e o que no , bem
como, entre ser e devir. Seu estudo indispensvel, necessrio, embora no seja
suficiente para se compreender todo o real, caso contrrio, bastaria a Filosofia Segunda, a
Fsica. O fenmeno do movimento algo incontestvel, mas nem tudo est em movimento.
H algo que permanece a despeito de toda e qualquer mudana e que, por isso, determina e
define o ser enquanto tal. Esse algo a substncia (ou)si/a18) que, como sendo a primeira
entre as categorias do ser, ser imvel, anterior e, por isso, objeto de investigao da
Filosofia Primeira.
Apesar dessa distino, no se trata de querer isolar totalmente as duas cincias de
modo a classific-las como autnomas ou completamente incomunicveis. A delimitao
dos objetos prprios de cada cincia, da Fsica e da Filosofia Primeira, ressalta mais um
aspecto didtico, metodolgico e programtico de toda anlise proposta ao longo das obras
do Estagirita. Faz parte de sua exposio terica tanto a delimitao do objeto a ser
investigado, como a enumerao e delimitao dos vrios sentidos em que alguns termos
fundamentais podem ser entendidos. Sob muitos aspectos, as duas cincias so
complementares, e no concorrentes.19 Apesar de a Filosofia Primeira ser essencialmente a
cincia do ser enquanto ser, ela contempla tambm o horizonte de anlise a partir do qual se
concebe a realidade, ou seja, inclui entre seus propsitos o modo como o ser interpretado
pelo homem.
18 Pelo fato de ainda no haver um consenso entre os atuais tradutores e intrpretes de Aristteles, a traduo de alguns termos importantes seguir, por via de regra, a viso clssica (adotada, por exemplo, por Reale, Toms de Aquino, Tricot, Ross e Yebra). Desse modo, ou)si/a traduzido por substncia; ti/ e)sti por qididade ou o que ; to\ ti/ por o qu; to\ ti/ h)=n ei(=nai por essncia. 19 A fsica impregna toda a reflexo ontolgica de Aristteles. (...) No se trata da filosofia de Aristteles ser primeiramente uma ontologia fundamental do ser e da fsica, uma aplicao de seus conceitos. Guillermo R. de Echanda. In: Aristteles, Fsica, p.40.
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1.2 Os modos de se dizer o Ser
Uma das principais estratgias metodolgicas adotadas por Aristteles para evitar as
contradies em que caram seus antecessores na resoluo da complexa relao entre ser e
movimento, esclarecer sobre os diferentes sentidos em que o ser (to\ o)/n) e o no-ser
(to\ mh\ o)/n) podem ser entendidos. claro que os modos de se dizer o ser ultrapassam a
questo do movimento e o ser, referem-se tambm distino entre o Uno e o Mltiplo que
de certo modo est implicada na questo geral do ser. Entre as vrias passagens em que isto
ocorre, destacamos uma do livro E da Metafsica, na qual Aristteles indica quatro modos
de se dizer o ser:
Mas, visto que ser simplesmente dito de muitos modos, dos quais um o ser por acidente e outro o ser como verdade (e o no-ser como falso), e que alm desses, temos as figuras de predicao (por exemplo, o qu [to\ ti/], o qual, o quanto, o onde, o quando, e algum outro significado deste modo), e ainda, alm de todos esses, o ser em potncia e em ato. 20
Nessa passagem Aristteles confirma os quatro principais modos de se dizer o ser
tambm analisados, mais detalhadamente, no livro D da Metafsica (1017a 7-1017b 1-9) e
que podem ser assim entendidos:
(1) O ser por acidente (sumbebhko\j): aquele entendido sempre em funo de outro ser,
sua existncia derivada de outro. O ser por acidente no objeto de investigao
cientfica, pois a cincia trata do que ocorre sempre ou no mais das vezes, ou seja, se ocupa
das coisas que acontecem segundo uma regularidade, enquanto que o acidente a exceo
s regras, apenas uma relao casual entre os vrios atributos que pertencem a um sujeito.
(2) O ser por si (kaq )au(to/) ou segundo as categorias (kathgori/a): aquele indicado
pelas figuras de predicao, as categorias21, que so os significados mais gerais do ser, os
gneros supremos por meio das quais pode-se agrupar os demais seres. Nenhuma das
20 All' e)pei to\ on to\ a(plwj lego/menon le/getai pollaxwj, wn en me\n hn to\ kata\ sumbebhko/j, eteron de\ to\ wj a)lhqe/j, kai to\ mh\ on wj to\ yeu=doj, para \ tau=ta d' e)sti ta\ sxh/mata th=j kathgoriaj oion to\ me\n ti, to\ de\ poio/n, to\ de\ poso/n, to\ de\ pou/, to\ de\ pote/, kai ei ti allo shmainei to\n tro/pon tou=ton,
eti para\ tau=ta pa/nta to\ duna/mei kai e)nergei#: Metafsica 2, 1026a 33-1026b 2. 21 As categorias so: substncia (ou)si/a); qualidade (poi/on), quantidade (poso/n), relao (pro/j ti), lugar (pou/), tempo (pote/), posio (kei=stai), estado (e)/xein), ao (poiei=n) e paixo (pa/sxein). Metafsica D7, 1071a 22-29.
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categorias pode ser deduzida de qualquer outra, no entanto, a relao entre elas no
simplesmente de mtua reciprocidade, mas uma relao em que a substncia (ou)si/a)22 d
suporte e sustentao s demais categorias. Aristteles afirma que o ser se diz de muitos
modos, mas no deixa de acentuar a primazia ontolgica da substncia em relao s outras
categorias.23
(3) O ser como verdadeiro (a)lhqh/j) e o no-ser como falso (yeu=doj): neste predomina,
de modo geral, o aspecto lgico, constituindo-se numa afeco do pensamento, ou seja,
verdadeiro/falso no pertencem s coisas mesmas, mas s existem no juzo, portanto seu
estudo objeto mais da linguagem do que da Filosofia Primeira.24
(4) O ser em ato (e)ne/rgeia) e em potncia (du/namij)25.
Os modos de se dizer o ser so as vrias perspectivas mais gerais a partir das quais o
ser visto pelo homem, tendo o ato e a potncia importncia fundamental para essa
compreenso porque falar sobre o real pressupe a efetividade e a possibilidade.
A preocupao que permeia toda a Metafsica saber o que ser um ser26, isto , o
que pode ser entendido como a realidade ltima, considerando desde o totalmente mvel ao
completo ser imvel. Mas dizer o que o ser uma tarefa difcil e para isso, Aristteles
procura tom-lo em suas vrias perspectivas, entre as mais importantes esto as de ato e
potncia. Desse modo, o livro da Metafsica insere-se num conjunto de livros (, , ,
) cujo tema central a questo da substncia, aquilo que impede que a realidade seja
22 Em D7 1017a 25, Aristteles cita entre as categorias o ti/ e)sti, traduzido por qididade ou o que . J em 2, 1026a 36, aparece entre as categorias o qu (to\ ti/). Entretanto, neste ponto especfico, os dois termos podem ser tomados como sinnimos, tanto de substncia (ou)si/a) quanto de essncia (to\ ti/ h)=n ei(=nai). 23O ser se diz de muitos modos, ainda que relativo a uma s coisa e a certa natureza nica e no equivocamente. To\ de\ on le/getai me\n pollaxwj, a)lla\ pro\j en kai mian tina\ fu/sin kai ou)x o(mwnu/mwj. Metafsica, 2, 1003a 33-34. 24 Em regra, essa a afirmao de Aristteles, porm, a discusso sobre esse ponto muito extensa e riqussima, alimentando muitas controvrsias entre os especialistas. A relao entre ser e verdade tambm tema deste trabalho, especificamente no captulo IV, quando ser analisado o dcimo captulo do livro (1051b 1-1052a11). 25 Em alguns momentos de sua obra, Aristteles parece afirmar a primazia do ser em ato e em potncia, o que suscitou muita polmica. o que sugere a seguinte passagem do livro L da Metafsica: Assim, os primeiros princpios de todas as coisas so: o que primariamente isto em ato, e outra coisa que em potncia. pa/ntwn dh\ prwtai a)rxai to\ e)nergei# prwton todi kai allo o duna/mei. Metafsica, L5, 1071a 18-19. 26 Em seu artigo, Michael Frede afirma que: Na Metafsica, Aristteles est preocupado com a questo: O que ser um ser. Visto que ele pensa haver tambm, inevitavelmente, seres em potncia, naturalmente pensa que uma completa resposta questo, o que ser um ser, envolver tambm uma resposta questo o que um ser em potncia, como oposto a um ser em ato; portanto, sua teoria requer alguma elucidao das noes de potencialidade e atualidade. Frede, M. Aristotles notion of potentiality in metaphysics , in: Unity, identity, and explanation in Aristotles metaphysics, p. 174.
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simplesmente o incessante movimento universal, o que permite a unidade na pluralidade.
O movimento, por natureza ou por acidente, acontece sempre a partir da substncia porque
ela o sujeito de toda mudana. A substncia o que permite o movimento, mas tambm
aquilo que o impede, pois movimento ausncia de identidade, indeterminao. Enfim, a
ou)si/a o que determina o ponto de chegada, bem como o ponto de partida da ki/nhsij.
Visando dar seqncia ao estudo da substncia como meio de chegar ao melhor
esclarecimento sobre os modos de se dizer o ser27e, da mesma forma, solucionar o
problema da contradio que haveria numa passagem do no-ser para o ser, Aristteles, no
decorrer de todo o livro da Metafsica, tambm prope uma distino dos sentidos em
que ato e potncia podem ser entendidos. Seguindo este caminho, ele pretende resolver
muitas ambigidades e paradoxos constatados por alguns de seus antecessores, que se
perderam justamente por no terem percebido os diferentes matizes incorporados em
muitos conceitos. A importncia desse momento da anlise tal, que h at um livro inteiro
dedicado s distines e anlises dos vrios sentidos daqueles vocbulos fundamentais de
sua filosofia. Trata-se do livro D da Metafsica, lugar em que so explicados os seguintes
termos: princpio (a)rxh/), natureza (fu/sij), uno (e(/n), causa (ai)/tion), ser (to\ o)/n),
substncia (ou)si/a) entre outros.
No mbito de toda Metafsica a anlise dos significados no se limita ao campo
semntico, pelo contrrio, o foco est centrado no aspecto metafsico.28 A anlise
ontolgica precedida por uma anlise semntica que serve sempre de instrumento para
dirimir dvidas, evitar ambigidades na interpretao e assim facilitar o conhecimento da
estrutura da realidade.29 No simples questo de linguagem, visto que Aristteles afirma
que sempre nos remetemos s coisas, realidade ltima. A formulao dos conceitos serve
27 Este o caminho traado para a cincia do ser enquanto ser no livro Z da Metafsica, ou seja, estudar o ser a partir da elucidao do que a substncia: E assim, o que antigamente e agora e sempre foi procurado e sempre foi objeto de dvida: que o ser?, isto , o que a substncia? (pois h quem diga que esta una, e outros que so muitas; estes que seu nmero finito, e outros que infinito). Por isso tambm ns temos que estudar principalmente, primeiramente e, por assim dizer, exclusivamente, o que o ser assim entendido. kai dh\ kai to\ pa/lai te kai nu=n kai a)ei zhtou/menon kai a)ei a)porou/menon, ti to\ on, tou=to/ e)sti tij h( ou)sia tou=to ga\r oi me\n en einai fasin oi de\ pleiw h en, kai oi me\n peperasme/na oi de\ apeira, dio\ kai h(min kai ma/lista kai prwton kai mo/non wj eipein peri tou= outwj ontoj qewrhte/on ti e)stin. Metafsica, Z1, 1028b 2-7. 28 De acordo com Couloubaritsis: a investigao da multiplicidade de sentidos de um termo constitui um dos instrumentos da dialtica. Couloubaritsis, L., La notion dentelecheia dans la Mtaphysique, p. 132. 29 Por outro lado, a inteno ltima de Aristteles no era a de fornecer tais distines, mas de servir-se delas para obter uma clara concepo da estrutura do real. Berti, E. Aristteles no sculo XX, p.164.
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para expressar com verdade, o que a coisa . Desse modo, a anlise dos significados visa a
expressar, do melhor modo possvel, a verdade sobre a realidade. Como diz Aristteles:
Pois, tu no s branco porque ns pensamos verdadeiramente que s branco, mas que,
porque tu s branco, ns, que afirmamos, nos ajustamos verdade.30 Esta afirmao
deixa claro seu realismo ontolgico, qual seja, que na investigao metafsica toda anlise
da linguagem tem como ponto de referncia o prprio ser.31 Primeiro h a coisa, depois h a
remisso a esta coisa por meio da linguagem via proposies e conceitos. a partir desse
tipo de formulao que se pode perceber de que modo Aristteles se insere na tradio
grega, cuja idia central a correspondncia entre pensamento e ser32, entre linguagem e
realidade. Em vrios momentos de sua obra possvel constatar que Aristteles parece no
questionar a possibilidade de haver a correspondncia entre o que se diz e o que a coisa ,
embora isso no deva ser confundido com a possibilidade de errar ou de mentir quanto
realidade das coisas.
O processo de enumerao, delimitao e anlise dos principais significados
daqueles vocbulos primordiais na filosofia aristotlica tambm se impem no livro .
Nesse caso, a investigao conceitual tem como propsito, entre outros, resolver o seguinte
problema: como possvel conceituar o movimento sem que se incorra em contradies
tais como as que envolvem a passagem do no-ser ao ser, j indicadas por Parmnides e
Plato? Sabe-se que o movimento , em suma, a passagem de um estado a outro, de uma
situao a outra, de um momento a outro. Mas estes momentos pertencem ao ser ou so o
prprio ser? para solucionar estes problemas que Aristteles prope a distino de
significados dos termos envolvidos numa investigao acerca do ser enquanto ser.
2 Potncia princpio de movimento
O livro est inserido num plano maior de investigao filosfica cujo objeto
central a substncia, a ou)si/a. a partir disso que se pode compreender o modo como 30ou) ga\r dia\ to\ h(ma=j oiesqai a)lhqwj se leuko\n einai ei su\ leuko/j, a)lla\ dia\ to\ se\ einai leuko\n h(meij oi fa/ntej tou=to a)lhqeu/omen. Metafsica, Q 10, 1051b 6-9. 31 Porm, ainda que seja uma anlise da linguagem sobre os fenmenos, por fim tal anlise tem que ter como ponto de referncia os fenmenos mesmos. Guillermo R. de Echanda. In: Aristteles, Fsica, p.48. 32 De acordo com Echanda, pelo fato de Aristteles entender que o pensamento (a linguagem) que deve se ajustar realidade, esta tese: Seria a verso aristotlica da tese eletica da identidade entre pensamento e ser. Idem, p.48.
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Aristteles inicia 1: Temos tratado do ser primeiro ao qual se referem todas as demais
categorias do ser, isto , acerca da substncia (pois segundo o conceito de substncia se
enunciam os demais seres: o quanto, o qual e os demais que assim se enunciam, pois todos
implicam o conceito de substncia, segundo dissemos no incio da exposio).33A
substncia a principal categoria, o ser primeiro ao qual se referem as demais categorias
e o lugar em que o ser dito segundo a substncia tratado com mais mincias em toda
Metafsica o livro Z.
Aps ter investigado o ser por si e, especialmente, segundo a substncia, Aristteles
pretende, deste ponto em diante, investigar mais um dentre os principais modos de designar
o ser: Mas visto que o ser se diz no s no sentido de algo (to\ ti\), ou qual, ou quanto,
seno tambm segundo a potncia (du/namij) e o ato (e)ntele/xeia) e a obra (e)/rgon),
precisemos os limites da potncia e do ato (e)ntele/xeia).34 A proposta de Aristteles no
livro dar continuidade investigao ontolgica expandindo o universo dos modos de
se dizer o ser. Depois de referir-se ao ser segundo a ou)si/a e segundo as demais categorias
pelas quais o ser pode ser entendido, hora de examinar o ser entendido como ato e
potncia. Ao anunciar este novo caminho, Aristteles apresenta uma sentena que j deixa
antever uma imensa complexidade conceitual, especialmente quando um dos conceitos
fundamentais da investigao desmembrado em dois sentidos cujas diferenas so sempre
pouco evidentes. Trata-se dos diferentes termos utilizados para expressar dois aspectos
principais contidos na idia de efetividade: um deles e)ne/rgeia, que contm a idia de
fora, trabalho, atividade criadora, energia; o outro e)ntele/xeia, que encerra o
significado de acabamento, complementao, realizao de alguma coisa com perfeio. A
tradio filosfica normalmente utiliza apenas uma soluo de traduo para
e)ntele/xeia e e)ne/rgeia, ou seja, traduz-se por ato.35 Especialmente no livro esta
33 Peri me\n oun tou= prwtwj ontoj kai pro\j o pa=sai ai allai kathgoriai tou= ontoj a)nafe/rontai eirhtai, peri th=j ou)siaj kata\ ga\r to\n th=j ou)siaj lo/gon le/getai talla onta, to/ te poso\n kai to\ poio\n kai talla ta\ outw lego/mena: pa/nta ga\r ecei to\n th=j ou)siaj lo/gon, wsper eipomen e)n toij prwtoij lo/goij. Metafsica, 1, 1045 b 27-32. 34 e)pei de\ le/getai to\ on to\ me\n to\ ti h poio\n h poso/n, to\ de\ kata\ du/namin kai e)ntele/xeian kai kata\ to \ergon, dioriswmen kai peri duna/mewj kai e)ntelexeiaj. Metafsica, 1, 1045b 32-35. Colocamos, por vezes, alguns termos no grego - aqueles com implicao direta sobre o tema - entre parnteses inseridos no prprio texto quando estes suscitam algumas dvidas (alm das j tradicionais) quanto traduo, como nesta passagem em que to\ ti pode ser considerado aqui como sinnimo de substncia. 35 a partir de 6, analisado no Captulo III deste trabalho, que Aristteles comea a explicar melhor o ser em ato. Podemos, porm, antecipar a dificuldade de traduo para os termos e)ntele/xeia e e)ne/rgeia. Yebra,
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soluo no compromete o entendimento desses sentidos, porquanto Aristteles geralmente
utiliza os dois termos indiscriminadamente.
Como ficar evidente em seguida, comum encontrar nas obras de Aristteles uma
distino preliminar de sentidos e ao longo dos textos, sem que essa distino seja
completamente abandonada, esses mesmos termos so usados quase como sinnimos. Na
sentena acima, por exemplo, o termo e)/rgon alm de estar substituindo e)ne/rgeia, que o
mais freqente em todo livro , tambm pode ser perfeitamente entendido como sinnimo
de e)ntele/xeia.36 Tal atitude metodolgica deixa transparecer a recusa de Aristteles em
aceitar a tentativa de expressar o real a partir de uma relao unvoca entre as palavras e as
coisas, isso porque no possvel e nem mesmo vivel querer estabelecer uma relao
direta segundo a qual para cada coisa haveria uma nica palavra correspondente. A
realidade muito complexa e no se deixa apreender facilmente. Assim, quando, a seguir,
em , Aristteles prope uma delimitao e maior preciso dos conceitos de ato e potncia,
seu objetivo no se fixa apenas na perspectiva semntica, mas principalmente nas diferentes
abordagens sobre esses conceitos com vistas a abarcar o real a partir de um ponto de vista
mais amplo e mais aprimorado.
para se inserir nesta viso mais ampla que Aristteles prope um plano geral de
investigao, estabelecendo assim uma ordem voltada ao melhor esclarecimento acerca de
como o par conceitual ato/potncia pode solucionar o problema da relao entre ser e
movimento: Primeiro, da potncia propriamente dita, embora no a que mais interessa
para o que agora queremos; de fato, a potncia e o ato se estendem para alm das coisas
que s se enunciam segundo o movimento. Porm, depois de falar desta, nas delimitaes
sobre o ato explicaremos tambm as demais.37
Reale e Tricot traduzem e)ne/rgeia por ato e apenas transliteraram e)ntele/xeia. Ross traduz e)ne/rgeia por actuality e e)ntele/xeia por complete reality. Lus Felipe Ribeiro, em sua traduo do livro D da Metafsica (Aristteles: acerca dos vrios modos segundo os quais as coisas so ditas) traduz e)ntele/xeia por perfeio e e)ne/rgeia por ato. Para manter a coerncia com o restante da traduo do livro , preferimos adotar a soluo de Yebra. 36 As expresses kata\ e)ntele/xeian e kata\ to\ ergon, tm o mesmo sentido. Tricot, J. In: Aristote: La Mtaphysique, Tome II, p.482, nota 2. 37 kai prwton peri duna/mewj h le/getai me\n ma/lista kuriwj, ou) mh\n xrhsimwta/th ge/ e)sti pro\j o boulo/meqa nu=n: e)pi ple/on ga/r e)stin h( du/namij kai h( e)ne/rgeia twn mo/non legome/nwn kata\ kinhsin. a)ll' eipo/n tej peri tau/thj, e)n toij peri th=j e)nergeiaj diorismoij dh lwsomen kai peri twn allwn. Metafsica, 1, 1045b 35-1046a 4.
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Neste plano geral fica estabelecido que os conceitos de ato e potncia possuem dois
campos de abordagem ou dois grupos de significados especficos: o primeiro est
relacionado com o movimento, uma abordagem sobre o ser numa perspectiva das
transformaes de modo geral; o segundo relativo substncia, uma abordagem sob a
perspectiva imvel ou constante do ser. O plano geral expressa bem toda a estrutura do
livro , delimitando as perspectivas que orientam os conceitos de ato e potncia.
A exposio inicia com a anlise da potncia propriamente (kuri/wj) dita, entendida
em seu sentido mais estrito, o cintico38, referente ao movimento, estudado inclusive na
Fsica (livro III), bem como em 12 da Metafsica, cuja definio repetida e ampliada no
livro . Nessa primeira parte da anlise (de 1 a 5), a incluso do ato espordica e
secundria justamente porque a potncia que guarda uma relao mais prxima com o
movimento. Posteriormente (de 6 a 10), Aristteles pretende analisar esses conceitos
no mais no sentido restrito ao movimento, mas naquele que d continuidade investigao
sobre a substncia e que, por este motivo, guarda o aspecto metafsico propriamente dito.
essa parte da anlise que mais lhe interessa para constatar a relao com a substncia, sendo
o momento em que estabelece a relao entre potncia e matria por um lado, e ato e forma
por outro.
Convm registrar que, apesar de Aristteles estabelecer esse plano geral para o livro
, muitas dificuldades no lhe permitem manter a delimitao definitiva entre os sentidos
de ato e potncia. Tambm muito difcil compreender como ocorre a unificao entre os
dois grupos de significados de ato e potncia, o metafsico e o cintico.39 De qualquer
modo, preciso considerar os diferentes aspectos do ser em ato e em potncia para que seja
possvel, a partir destes conceitos, apresentar uma convincente defesa do movimento
proporcionando uma compreenso mais adequada da realidade.
Seguindo a orientao de Aristteles, a compreenso desses dois aspectos da
potncia pode ser facilitada a partir do uso dos seguintes vocbulos: dunato/n, uma fora
para promover o movimento ou mudana em outro, portanto, expressa preferencialmente o
38 Giovanni Reale denomina com o termo metafsico o aspecto referente substncia, com cintico aquele referente ao movimento. Cf., Reale, G., Aristteles Metafsica, vol. III, p.455. 39 De acordo com Reale: difcil ver sobre o qu se funda a distino do significado metafsico de potncia do seu significado cintico. A concepo metafsica funda-se e gira em torno da primeira categoria (a substncia), enquanto a concepo cintica da potncia funda-se sobre as outras categorias (sobre as categorias segundo as quais ocorre o movimento). Reale, G., Aristteles Metafsica, vol. III, p. 455.
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sentido cintico (1, 1046a 11); e du/namij, que a potencialidade para passar a um novo
estado, expressando preferencialmente o sentido metafsico e, portanto, uma relao
intrnseca com a matria (6, 1048 a 31). Todavia, como j foi assinalado, Aristteles
utiliza, ao longo da exposio, as duas palavras indiscriminadamente podendo suscitar
confuses e ambigidades na compreenso de sua teoria. exatamente esse modo de
exposio que tem alimentado a crtica de alguns intrpretes, entre eles, David Ross40 que
acusa Aristteles de no seguir as distines que ele prprio estabelece no incio,
confundindo-as constantemente durante todo o livro.
Pode-se alegar, porm, que essa mistura seja proposital e no simplesmente um
desleixo metodolgico. nessa linha de raciocnio que outros comentadores indicam uma
soluo. Michael Frede, por exemplo, afirma que tal confuso no ocorre, pelo contrrio,
a noo de potencialidade adotada por Ross que diferente daquela pretendida por
Aristteles, tratando dunato/n e du/namij como se fossem dois tipos diferentes de
possibilidade. De acordo com Michael Frede, h coerncia na exposio de Aristteles
verificada com a sustentao de uma noo fundamental de du/namij - enquanto princpio
de movimento - e suas vrias outras noes, mesmo aquelas que no interessam
diretamente a esta investigao, como no caso da matemtica, visto que todas elas remetem
sempre quela principal. Aristteles est ciente dos vrios usos de du/namij, mas entende
que eles formam uma famlia de usos com uma certa estrutura interna e que sempre esto
relacionados com o sentido principal que a potncia enquanto princpio de movimento.41
Pode-se concluir que ao restringir dunato/n ao sentido lgico, corre-se o risco de perder
40 Para David Ross h dois sentidos de du/namij que podem ser indicados pelas palavras fora (power) e potencialidade (potentiality): Fora ele explica como sendo primeiramente uma fora em A para produzir uma mudana em B, ou em A mesmo para produzir mudana nele mesmo enquanto outro. Potencialidade, por outro lado a potencialidade em A de passar a um novo estado ou ocupar-se em nova atividade. Esta pode ser a produo de mudana em B, mas a noo de um B ser submetido ao no est necessariamente implicada na noo de potencialidade, como, pelo contrrio, encontra-se na noo de fora. (...) Que Aristteles no preserva com xito a distino entre fora e potencialidade indicado, pelos fatos j observados por Bonitz que, na discusso de fora, introduz (1) uma definio de dunato\n que refere-se claramente potencialidade mais do que fora (1047a 24), e (2) uma outra extensa seo tambm refere-se potencialidade mais do que fora (1047 b 3-30). Ross, D. In: Aristotles Metaphysics, vol. II, p.240-241. 41 De acordo com Michael Frede, os especialistas no tratam com cuidado as distines efetuadas por Aristteles: eles pensam que quando Aristteles distingue dois ou mais usos ou sentidos do termo du/namij ele tambm est distinguindo dois ou mais tipos de du/namij, dois ou mais tipos de possibilidade, dois ou mais tipos de itens na ontologia. Bonitz e Ross, por exemplo, falam como se houvesse, por um lado, fora ativa e, por outro, potencialidades, como se houvesse dois diferentes tipos de possibilidade com os quais Aristteles estaria fazendo confuso. Frede, M., Aristotles notion of potentiality in metaphysics , in: Unity, identity, and explanation in Aristotles metaphysics, p. 179.
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uma das linhas centrais do pensamento de Aristteles, aquela segundo a qual no possvel
promover sempre uma relao direta a fim de estabelecer um nome para cada coisa.
Dada essa especificidade, pode-se compreender o andamento do plano geral
proposto para quando, em seguida, Aristteles inicia a investigao da potncia
remetendo, provavelmente, ao livro D da Metafsica que apresenta algumas definies de
du/namij e dunato/n com mais detalhes do que em : Que potncia (du/namij) e poder
(du/nasqai) se dizem de vrios modos, temos explicado em outro lugar.42 Sobre o
vocbulo du/nasqai (poder), ele aqui ocupa o lugar de dunato/n (potente), ento podem
ser entendidos como sinnimos.
Para que a anlise da potncia relativa ao movimento seja realizada coerentemente,
Aristteles tem que descartar alguns outros sentidos que no acrescentam contedo algum
ao seu projeto e, por isso, adverte: Prescindamos de todas as potncias que se dizem por
simples homonmia (pois algumas se dizem por certa semelhana; por exemplo, em
Geometria falamos de coisas que so ou no so potentes porque so ou no so de algum
modo).43 No h interesse algum em tratar dos homnimos, ou seja, aquelas coisas que
tm em comum apenas o nome,44 mas cujo significado no guarda uma relao direta com
o objeto investigado. Como mero homnimo (o(mw/numoj) Aristteles menciona o caso da
matemtica, em geral, e da geometria, em particular. prprio da matemtica tratar de
linhas, pontos e nmeros como se existissem independentes do material fsico,45 porm,
42 oti me\n oun le/getai pollaxwj h( du/namij kai to\ du/nasqai, diwristai h(min e)n alloij: 1, 1046a 4-6. 43 tou/twn d' osai me\n o(mwnu/mwj le/gontai duna/meij a)feisqwsan eniai ga\r o(moio/thti tini le/gontai, kaqa/per e)n gewmetri# kai dunata\ kai a)du/nata le/gomen t% einai pwj h mh\ einai. 1, 1046a 6-9. 44 Se chamam homnimas as coisas cujo nome o nico que h em comum, enquanto que o enunciado correspondente ao ser diferente. Omwnuma le/getai wn onoma mo/non koino/n, o( de\ kata\ tounoma lo/goj th=j ou)siaj eteroj. Aristteles, Categorias, 1a 1-3 (Trad., Miguel Candel Sanmartn). Sobre a Homonmia em Aristteles, confira o excelente artigo de Irwin, T.H. Homonymy in Aristotle. In: Review of Metaphysics, 34 (march 1981), 523-544. Para uma anlise pormenorizada acerca de como a homonmia do ser viabiliza uma unidade dos significados dada pela substncia, confira o artigo de Marco Zingano, Lhomonymie de ltre et le projet mtaphysique dAristote; in: Revue Internationale de Philosophie; La Mtaphysique dAristote, 3/1997, 333-356. 45 A respeito desses itens [lua, sol, terra, etc], pois, tambm o matemtico faz seu estudo, mas no enquanto cada um limite de corpo natural; nem contempla os acidentes enquanto ocorrem aos corpos naturais tomados nesta qualidade; por isso, inclusive, o matemtico separa: pois, pelo pensamento [as quantidades] so separveis do movimento, e isso no faz nenhuma diferena, nem surge algo falso, uma vez separadas. peri tou/twn me\n oun pragmateu/etai kai o( maqhmatiko/j, a)ll' ou)x v fusikou= swmatoj pe/raj ekaston: ou)de\ ta\ sumbebhko/ta qewrei v toiou/toij ousi sumbe/bhken: dio\ kai xwrizei: xwrista\ ga\r tv= noh/sei kinh/sewj e)sti, kai ou)de\n diafe/rei, ou)de\ gignetai yeu=doj xwrizo/ntwn. Fsica, II, 193b 31-35. (Trad., Lucas Angioni). Na Fsica, Aristteles mostra como a matemtica separa, por meio do pensamento, os corpos fsicos
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visto que a investigao tem incio com a potncia relativa ao movimento e como no h
movimento em si, mas somente movimento das coisas e dos corpos fsicos, no faz sentido
tratar de algo que consistiria justamente em abstrair aquilo que pressuposto pelo
movimento, as coisas sensveis. Assim, potncia relativa ao movimento s h na
matemtica por simples homonmia, mera semelhana, no de modo prprio.46 Quando o
foco est centrado sobre a du/namij , Aristteles dispensa a matemtica, mas quando versa
sobre o ato, especialmente quando se refere atividade estrita do pensamento (9, 1051
21-33) e quando investiga a verdade e falsidade (10, 1052a 4-11), prprios do juzo,
freqentemente ele cita os seres matemticos.
Descartados os homnimos, Aristteles restabelece o rumo da investigao
apontando para os tipos de potncia que interessam, apenas aquelas que guardam uma
relao direta com a espcie (ei)=doj), aquela propriedade constituinte da potncia que a
define como tal. O ei)=doj o que permite distinguir e reconhecer que algo isto e no
aquilo e no caso da potncia, ele representa suas propriedades especficas, identificado pelo
fato de ser um certo princpio e, ao mesmo tempo, guardar uma relao direta com a
potncia primeira cuja definio : um princpio de mudana em outro ou nele mesmo
enquanto outro.47 Potncia entendida como princpio de movimento e todas as potncias
que interessam para esta investigao so aquelas que remetem a esta primeira (prw=th)
potncia. Essa estreita relao entre du/namij, ki/nhsij e a)rxh/ fica mais clara quando se
tem em mente que princpio condio fundamental do ser, do devir e do prprio
conhecimento48. Princpio no simples comeo, mas algo fundamental para explicar o
que a coisa , como chegou a ser o que e como tal coisa pode ser conhecida. A definio
primeira da du/namij, qual todas as outras se remetem, que deixa transparecer sua
aos quais os entes matemticos pertencem. Isso possvel apenas metodologicamente, pois para Aristteles, as entidades matemticas no existem independentes de um sujeito material. 46 A potncia por mera homonmia no expressa o que h de mais caracterstico da potncia segundo o movimento, por isso, segundo Heidegger: excluda desta discusso, a saber, porque ela no kata\ ki/nhsin. No kata\ ki/nhsin porque ela no pode ser conforme sua essncia. Essncia aqui o movimento ausente na matemtica. Heidegger, M. Aristotles Metaphysics 1-3, p 50. 47 h e)stin a)rxh\ metabolh=j e)n all% h v allo. 1, 1046 a 11. 48 Em D1 da Metafsica (1012b 34 -1013a 23), Aristteles apresenta algumas definies de princpio (a)rxh/) tomadas em seus significados mais comuns, menos tcnicas, mas que guardam forte relao com aquele significado principal que, geralmente (segundo Ross, op.cit., p.291), coincide com o sentido de causa (ai)/tion) e que podem ser assim resumidas: De todos os princpios o comum ser o primeiro desde que ou a coisa ou vem a ser conhecida. paswn me\n oun koino\n twn a)rxwn to\ prwton einai oqen h estin h gignetai h gignwsketai. Metafsica, D1, 1013a 17-19. (Trad. Lus Felipe Ribeiro).
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relao intrnseca com o movimento, pois, se potncia princpio de movimento ento sem
potncia no h movimento; potncia a origem, a prpria possibilidade de algo estar ou
no em movimento. Entretanto, convm assinalar que o ser em potncia condio
necessria para o movimento, porm, no suficiente.
Cabe ainda um esclarecimento acerca da segunda parte da definio, o que est em
outro ou em si mesmo enquanto outro. Para tanto, preciso considerar inicialmente alguns
postulados bsicos da concepo aristotlica do movimento que so expostos na Fsica. O
primeiro postulado diz respeito necessidade de sempre haver um sujeito (u(pokei/menon)
a partir da qual ocorre a gerao (gi/gnomai) ou o movimento.49 Isso necessrio porque,
segundo Aristteles, no h movimento de movimento50, ou seja, o movimento sempre de
algo51, nunca pode ser considerado como autnomo. O segundo postulado estabelece que
todo ser que movido pressupe um outro que o move52 (que remete diretamente
distino entre ser em ato, o movente, e ser em potncia, o movido). Essa regra somente
no se aplica ao caso do primeiro motor imvel (terceiro postulado), que move mas no
movido.53 Disso se segue a hiptese que se tudo que se move movido por outro (exceto o
motor imvel), este outro (a)/lloj) o que d sustentao ao princpio de movimento, que
a prpria potncia. Assim, o movimento guarda certa alteridade porque sempre se remete
ao outro, afinal, no h qualquer tipo de autonomia do movimento, ele existe, mas no
sujeito de sua prpria realidade, depende sempre de um outro: num momento, do ser em
ato, em outro, do ser em potncia.
49 sempre necessrio algo subjacente no que chega a ser. oti dei ti a)ei u(pokeisqai to\ gigno/menon. Fsica, I, 190a 14-15. 50 Nem [h movimento] do agente nem do paciente, nem do movido nem do movente, visto que no h movimento de movimento, nem gerao de gerao, nem, em geral, mudana de mudana. ou)de\ dh\ poiou=ntoj kai pa/sxontoj, h kinoume/nou kai kinou=ntoj, oti ou)k esti kinh/sewj kinhsij ou)de\ gene/sewj ge/nesij, ou)d' olwj metabolh=j metabolh/. Fsica, V, 225b 13-16. 51 No h, pois, movimento fora das coisas. ou)k esti de\ kinhsij para\ ta\ pra/gmata: Fsica, III, 200b 32-33. 52 Todas as coisas em movimento so movidas por algo. apanta an ta\ kinou/mena u(po/ tinoj kinoito. Fsica, VIII, 256a 2-3. 53 Visto que preciso sempre que haja movimento e que no se interrompa jamais, necessrio haver algo eterno que mova primeiro, e que seja um ou mais, e ser imvel. Epei de\ dei kinhsin a)ei einai kai mh\ dialeipein, a)na/gkh einai ti a)i+dion o prwton kinei, eite en eite pleiw: kai to\ prwton kinou=n a)kinhton. Fsica, VIII, 258b 10-12.
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2.1 Os tipos de Potncia
Aps essa delimitao inicial Aristteles ocupa-se dos tipos de potncia que so
importantes para a pesquisa proposta em , aquelas relativas ao movimento54 e, portanto,
referentes a mesma espcie. A tipologia da potncia exposta em 1 (1046a 10-30)
praticamente a mesma exposta tambm no livro D da Metafsica (1019a 15-1020a 6), lugar
em que melhor explicada e, por esse motivo, servir tambm como base para a respectiva
anlise. Os tipos de du/namij relativas ao movimento so cinco, incluindo a potncia
primeira qual se referem todas as outras. So elas: potncia ativa; potncia passiva;
potncia como apatia; potncia para agir bem; e potncia para padecer bem.
(1) Potncia Ativa: o primeiro tipo de potncia relativa ao movimento e serve de
referncia s outras potncias, a potncia principal segundo a definio: se chama
potncia o princpio de movimento ou de mudana em outro ou nele mesmo enquanto
outro.55 No h movimento sem potncia porque se todas as coisas fossem sempre em ato,
tudo seria imvel, ento potncia princpio de movimento. Alm disso, como todo
movimento/mudana pressupe um movente e um movido, a du/namij primeira pode ainda
ser entendida segundo dois aspectos: a) enquanto potncia para produzir mudana em
outro: aquela propriedade explicitada na prpria definio da du/namij enquanto
princpio de movimento, pois todo e qualquer movimento pressupe um outro, por
exemplo, a arte da construo uma potncia que no est na construo56, mas est no
construtor. O agente do movimento o construtor, enquanto a construo - que inclui desde
a atividade at o material necessrio execuo da obra o outro que sofre o movimento.
b) Enquanto potncia para produzir mudana em si: a capacidade que a coisa tem de atuar
sobre si mesma, como se esta coisa se desdobrasse em duas: uma agindo, a outra sofrendo a
ao. O exemplo o da arte de curar, que uma potncia, pode estar no que curado,
54 No que se refere aos cinco tipos de potncia, seguiremos, em boa parte, a minuciosa explicao de Reale elaborada sobre D12 da Metafsica que trata exclusivamente destes tipos de potncia de modo mais detalhado em seu livro Il concetto di Filosofia prima e lunit della Metafisica di Aristotele, Reale, G., p. 345-360. (La dottrina aristotelica della potenza, dellatto e dellentelechia nella Metafsica). 55 Du/namij le/getai h( me\n a)rxh\ kinh/sewj h metabolh=j h( e)n e(te/r% h v eteron. D12, 1019 a 15-16. 56 oion h( oikodomikh\ du/namij e)stin h ou)x u(pa/rxei e)n t% oikodomoume/n%. Metafsica, D12, 1019a 16-17.
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porm no enquanto curado.57 Um mdico que est doente, eventualmente, pode curar a
si prprio, atuando (enquanto mdico) sobre si mesmo como se fosse um outro58 (o doente).
A singularidade dessa situao a coincidncia entre aquele que promove e aquele que
sofre a mudana, mas a propriedade definidora da potncia ativa permanece: promover a
mudana em outro.
(2) Potncia passiva: esse segundo tipo , de fato, o primeiro daqueles referentes
du/namij fundamental, a potncia passiva, que no paciente mesmo um princpio para
ser mudado por outro ou enquanto outro.59 A potncia passiva (pa/qh) semelhante
potncia ativa, apenas tomada num sentido passivo, ou seja, referente ao ponto de vista do
paciente capaz de sofrer uma mudana proporcionada por um outro, ou considerado como
um outro. H no paciente um princpio para sofrer a mudana promovida por outro ou por
si mesmo, enquanto outro. Esta potncia para ser movida constatada no s ma medida
em que o paciente submetido mudana, como tambm quando no a sofre. o caso da
madeira que queima pela ao do fogo, mas mesmo que no esteja queimando, guarda essa
potncia para ser queimada. A potncia passiva no simplesmente um estado de pura
inrcia ou total indeterminao60, j que o paciente obedece a certas condies analisadas
em 5 (1047b 31-1048a 24) que o tornam receptivo ao movimento e conivente com o
agente, formando assim um conjunto conciso .
(3) Potncia como apatia: o terceiro tipo de potncia a capacidade de permanecer
imune quele movimento que no seja condizente com o paciente: a disposio (e(/cij)
de apatia mudana para pior e destruio por outro ou enquanto outro como princpio
de mudana.61 Esta impassibilidade ou apatia (a)pa/qeia) frente mudana para pior se
deve, no exatamente a uma potncia para sofrer mudana em geral, mas a uma ausncia de
57a)ll' h( iatrikh\ du/namij ousa u(pa/rxoi an e)n t% iatreuome/n%, a)ll' ou)x v iatreuo/menoj. D12, 1019a 17-18. 58 De acordo com Giovanni Reale, o atuar sobre si mesmo refere-se a todas as aes reflexivas que se expressam mediante os verbos reflexivos, ou seja, expressam qualquer ao do ser sobre si mesmo. Reale, G., Il concetto di Filosofia prima e lunit della Metafisica di Aristotele, p. 345. 59h( me\n ga\r tou= paqein e)sti du/namij, h( e)n au)t% t% pa/sxonti a)rxh\ metabolh=j paqhtikh=j u(p' allou h v allo. 1, 1046 a 11-12. 60 A passividade no o estado de inrcia e de indeterminao absoluta; o paciente est no estado de padecer, de responder a um tipo de conivncia s incitaes e aos movimentos do agente. Tricot, J. In: Aristote: La Mtaphysique, Tome I, p.284, nota 3. 61 h( d' ecij a)paqeiaj th=j e)pi to\ xeiron kai fqora=j th=j u(p' allou h v allo u(p' a)rxh=j metablhtikh=j. 1, 1046a 13-15.
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potncia passiva especfica62, por isso essa potncia se assemelha a um modo de resistncia,
promovendo um momento de conservao de seu estado positivo; apatia devido a uma
carncia especfica. Um tijolo cozido, por exemplo, no tem potncia para ser dobrado, e
quando forado a isto, ele se quebra, mas isto no significa ausncia de outras potncias.
(4) Potncia para agir bem: esse quarto tipo alm de ser uma especificao da
potncia enquanto princpio ativo de movimento, tambm salienta a necessidade, no
apenas de cumprir o movimento, mas de cumpri-lo bem: Alm disso, se chama potncia a
de executar uma coisa bem.63 O agir simplesmente no o mesmo que agir bem
(kalw=j); mesmo nas atividades mais corriqueiras fcil verificar essa diferena.
Distinguimos, por exemplo, o simples falar do falar bem e costumamos dizer deste que ele
possui a potncia para falar bem, e no simplesmente para falar.
(5) Potncia para padecer bem: assim como o quarto tipo uma especificao do
primeiro, esse quinto uma especificao do segundo, da potncia passiva. a capacidade
de sofrer mudana da maneira designada, de se deixar afetar do modo como deve ser, para
melhor e no de qualquer modo. No se trata de impassibilidade total, como, por exemplo,
no caso da pedra que no tem potncia alguma para ser dobrada. No carncia de potncia
para sofrer toda e qualquer mudana, mas uma suscetibilidade boa mudana, uma boa
passibilidade. Essa potncia expressa melhor o cumprimento de um desgnio, de algo que
prprio quele que sofre o movimento. Por exemplo, os cinco sentidos (tato, paladar, viso,
audio e olfato) so meios de que o organismo animal dispe para receber impresses dos
objetos exteriores, bem como da prpria posio e do estado do corpo. Porm, possvel
verificar uma variao nessa receptividade principalmente por causa da sade da pessoa.
Algum doente ainda tem a capacidade de sentir, mas no to bem quanto o saudvel, que
sofre as transformaes conforme o designado pelos sentidos.
Apresentados os tipos de potncia, Aristteles enfatiza que preciso considerar
sempre que todas essas potncias tm implicitamente o conceito principal, o da du/namij
enquanto princpio de movimento:Em todas estas definies (o(/roj) est contido o
62 As coisas, pois, que se quebram ou se esmagam ou se dobram e, em geral, se destroem, no por poder, mas por no poder e por carecer de algo. kla=tai me\n ga\r kai suntribetai kai ka/mptetai kai olwj fqeiretai ou) t% du/nasqai a)lla\ t% mh\ du/nasqai kai e)lleipein tino/j: Metafsica, D12, 1019a 28-30. 63 eti h( tou= kalwj tou=t' e)pitelein. D12, 1019a 15.
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conceito (lo/goj) de potncia primeira.64 Todas so caracterizadas como sendo um certo
princpio de movimento, em outro ou em si mesmo considerado como outro. Esses tipos de
potncia remetem sempre potncia primeira no por simples similitude, como no caso da
potncia na matemtica, mas porque todas so definidas por aquilo que lhes peculiar, elas
apresentam as propriedades constituintes da potncia que a define enquanto potncia e no
como outra coisa qualquer.
2.2 Quando as potncias ativa e passiva coincidem ou diferem
Tendo estabelecido os cinco tipos bsicos de potncia, Aristteles pretende mostrar
as diferenas e semelhanas entre potncia ativa e potncia passiva: Est claro, portanto,
que em certo sentido uma mesma a potncia de fazer (poie/w) e a de padecer (pa/sxw)
(...), porm em outro sentido so distintas.65 Elas coincidem ou diferem a partir da
presena ou no das duas potncias na mesma coisa.
Quando a potncia passiva e a ativa pertencem a uma mesma coisa, ento elas
coincidem. Uma coisa A tem potncia (ativa) para mover uma outra B e, ao mesmo tempo,
A tem potncia (passiva) para ser movida por uma terceira C. Assim, A tem tanto potncia
ativa (sobre B) quanto passiva (de C). Entretanto, no necessrio haver trs elementos
envolvidos, basta que A tenha uma potncia ativa sobre B, enquanto B tenha uma outra
potncia passiva sobre A. Em ambas situaes deve-se entender que potncia ativa e
passiva so apenas aspectos complementares de uma nica realidade66, porque a coisa que
pode mover e ser movida a mesma. No primeiro caso, A move B e movido por C; no
segundo caso A move B e B movido por A.
Quando a potncia passiva e a ativa pertencem a duas coisas diferentes, ento elas
diferem, ou seja, a potncia passiva est no paciente e a ativa est no agente. O sujeito da
ao possui uma potncia ativa, enquanto aquele que sofre a ao tem potncia passiva
porque possui um princpio passivo, a matria: pois, por ter certo princpio e tambm pela
64 e)n ga\r tou/toij enesti pa=si toij oroij o( th=j prwthj duna/mewj lo/goj. 1, 1049 a 15-16. 65 fanero\n oun oti esti me\n wj mia du/namij tou= poiein kai pa/sxein ... esti de\ wj allh. 1, 1046 a 19-22. 66 A unidade da du/namij ativa e passiva est baseada no simples fato de que A pode mudar B; isto nos leva a atribuir uma potncia ativa para A e uma potncia passiva para B. Assim, a potncia ativa e passiva so aspectos complementares de um nico fato. Ross, D. In: Aristotles Metaphysics, vol. II, , p.241.
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matria (u(/lh) ser certo princpio que o paciente padece, cada um por um outro.67 Pelo
fato de o objeto passvel de sofrer ao ser a matria apropriada para tal ao, esta matria
tem potnci