Sorá - Casa Grande e Senzala

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Revista Brasileira de Ciências Sociais Print ISSN 0102-6909 Rev. bras. Ci. Soc. vol. 13 n. 36 São Paulo Feb. 1998 doi: 10.1590/S0102-69091998000100008 How to cite this article A CONSTRUÇÃO SOCIOLÓGICA DE UMA POSIÇÃO REGIONALISTA. Reflexões sobre a edição e recepção de Casa Grande ε ε ε Senzala de Gilberto Freyre* Gustavo Sorá É notável a transformação e regulação de impulsos que requer tanto o fato de escrever os livros como o de lê-los. Não obstante, o livro não cumpre a mesma função na sociedade cortesã que na burguesa. (Norbert Elias, 1994, p. 486) Pensar os avatares na consagração de Gilberto Freyre e do livro nodal em sua história intelectual permite analisar momentos centrais na construção da autonomia do campo das ciências sociais no Brasil. Os significados de Casa-grande ε senzala são marcantes na trajetória intelectual de seu autor, do pensamento social brasileiro, e na história da edição no Brasil. Pensado por Freyre para transmitir uma novidade "científica" para interpretar o Brasil, este livro passou, ao longo de suas numerosas reedições em diversas línguas, por diferentes tamises de percepção e classificação que, condicionados pelas categorias de apreciação possíveis em cada momento (sobre os significados de autor, obra, universidade, universal, Brasil, Sociologia, literatura, livro, leitor, raça, cultura), provocaram sentidos da recepção que descrevem a construção das forças dominantes no campo da circulação da palavra escrita, especificamente nas disciplinas sociais. Desde o lançamento do livro no Rio de Janeiro, em 1933, até sua 14ª edição, em 1966, o autor

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Study of how Gilberto Freyre redefined the nature of Casa Grande e Senzala in response to criticism.

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  • Revista Brasileira de Cincias Sociais Print ISSN 0102-6909

    Rev. bras. Ci. Soc. vol. 13 n. 36 So Paulo Feb. 1998

    doi: 10.1590/S0102-69091998000100008

    How to cite this article

    A CONSTRUO SOCIOLGICA DE UMA POSIO REGIONALISTA. Reflexes sobre a edio e recepo de Casa Grande Senzala de Gilberto Freyre*

    Gustavo Sor

    notvel a transformao e regulao de impulsos que requer tanto o fato de escrever os livros como o de l-los. No obstante, o livro no cumpre a mesma funo na sociedade cortes que na

    burguesa. (Norbert Elias, 1994, p. 486)

    Pensar os avatares na consagrao de Gilberto Freyre e do livro nodal em sua histria intelectual permite analisar momentos centrais na construo da autonomia do campo das cincias sociais no Brasil. Os significados de Casa-grande senzala so marcantes na trajetria intelectual de seu autor, do pensamento social brasileiro, e na histria da edio no Brasil. Pensado por Freyre para transmitir uma novidade "cientfica" para interpretar o Brasil, este livro passou, ao longo de suas numerosas reedies em diversas lnguas, por diferentes tamises de percepo e classificao que, condicionados pelas categorias de apreciao possveis em cada momento (sobre os significados de autor, obra, universidade, universal, Brasil, Sociologia, literatura, livro, leitor, raa, cultura), provocaram sentidos da recepo que descrevem a construo das foras dominantes no campo da circulao da palavra escrita, especificamente nas disciplinas sociais.

    Desde o lanamento do livro no Rio de Janeiro, em 1933, at sua 14 edio, em 1966, o autor

  • escreveu prefcios recolocando Casa-grande senzala como aposta de valores diferentes em um mesmo jogo. So documentos carregados de representaes sobre os diferentes momentos na circulao do livro. Na srie escolhida, os prefcios enunciam indcios sobre um conjunto de transformaes nas matrizes de classificao do livro, bem como pistas sobre alteraes progressivas nos princpios de autoridade, nas comunidades de leitores e nas possibilidades de edio e circulao dos textos escritos transmissores das "mensagens sobre o Brasil".

    Nos primeiros prefcios, Freyre se define como um jovem principiante, querendo restringir seu trabalho imposio e demonstrao de um original ensaio de interpretao sociolgica sobre o Brasil e seu processo civilizatrio.1 Nos prefcios s 12, 13 e 14 edies, Freyre se julga como um velho em retiro, buscando lugar no panteo literrio nacional, ali onde a dvida censurada, onde reina a liberdade da palavra inspirada, j fora do rgido controle do discurso disciplinar de uma Sociologia plenamente universitria. Entre o primeiro prefcio e o da 14 edio, Freyre viveu intensamente as mudanas classificatrias s quais era arrastado seu livro luz dos renovados juzos crticos de novos leitores que se interpunham em seu caminho. Um testemunho explicativo dessas mudanas era a razo para amontoar prefcios, como uma estratigrafia que ia soterrando a valiosa obra. Estes funcionam em seu livro como tentativas de controlar o acaso, "conjurar os poderes e perigos" (Foucault, 1992, p. 11), as normas de compreenso de sua obra que, a cada edio, tornavam-se mais independentes de suas foras. As normas do conjunto de um campo intelectual em firme processo de autonomizao e que passava a julgar os ensaios como modalidade para pensar o Brasil e as atividades no centradas na universidade e nas disciplinas especializadas como algo do passado.

    Do ponto de vista do autor, a sucesso de prefcios a Casa-grande senzala pode ser descrita como uma batalha pelo universal. A consagrao do livro permite pensar os condicionantes que a literatura e as disciplinas histricas e sociais colocam umas s outras na competio pela definio da comunidade nacional e dos parmetros para imagin-la.2 Qual o papel especfico dos gneros acadmicos e literrios, as teses e osensaios, os estudos e osromances, para pensar a nao? Como se repelem e se complementam em diferentes estados do campo intelectual?

    O destino condicionado de Gilberto Freyre, desejando representar o Brasil como socilogo para o mundo e consagrado finalmente como escritor do Recife, explica-se tanto pela sua trajetria social como pelos condicionantes que se foram progressivamente impondo a partir dos anos 40 no campo intelectual, momento de consolidao da Sociologia em So Paulo. Esta ltima, representada por sua primeira gerao de socilogos profissionais e brasileiros, imps sua novidade por meio da proposio de uma rgida Sociologia cientfica, autnoma como disciplina e, por esse motivo, com uma estrutura universitria de treinamento sistemtico e transmisso de um novo saber. Para Florestan Fernandes, Antonio Candido, Fernando Henrique Cardoso e outros porta-vozes da nova "frmula de salvao nacional", somente em So Paulo se davam as condies para a superao do modo "ensastico" de interpretao do Brasil, cujo ltimo produto, "perigosamente" revalidado com um estrondoso sucesso internacional, era Casa-grande senzala. Somente nesta cidade estavam dadas as condies, por volta de meados dos anos 50, para se propor e divulgar esquemas padronizados de conhecimento sociolgico universitariamente controlados (teses, revistas especializadas, trabalho de campo, bancas examinadoras, seletividade escolar, ttulos e outras marcas de ideologia igualitarista):

    O drama que o Brasil compartilha com outras naes subdesenvolvidas consiste na disposio insuficiente de recursos racionais de pensamento e ao. Entretanto, se tomssemos como ponto de referncia uma cidade em processo adiantado de industrializao [...], como a cidade de So Paulo, poderamos constatar que uma nova mentalidade est em formao. Essa mentalidade modelada pelo concurso de diversos fatores, que tendem a expor tcnicas racionais de interveno

  • nos problemas da cidade [...], toda espcie de conhecimento racional e, especialmente, a investigao cientfica [...] a critrios novos de apreciao axiolgica (Fernandes, 1958, p. 184; grifos meus).3

    Para explicar o experimento de Freyre, estas foras rotularam Casa-grande senzala como obra difusa, no especializada, no moderna, regionalista. Na histria das cincias sociais no Brasil, pesam sobre a interpretao do insucesso de Freyre tanto idias sobre um autor trado pelos fantasmas de Apipucos (sua cidadezinha natal, sede da casa-grande de seus ancestrais), quanto um regionalismo inerente sua personalidade (cf. Freston, 1989; Castro Santos, 1990). Como se cristalizam os julgamentos do senso comum sociolgico sobre os livros, os autores e as obras que pensaram a nao? Que hierarquias e genealogias de autores, leituras, instituies, editoras se estruturam na definio dos critrios de legitimidade para classificar as obras, seus legados, e escrever sua histria disciplinar e nacional? Como a anlise dos lugares construdos e em construo no panteo de pensadores da nao pode contribuir para explicar as possibilidades e condicionantes da edio, circulao e leitura de livros no Brasil atual? Casa-grande senzala ainda integraria o patrimnio dos livros que devem ser lidos para se conhecer o Brasil ?

    Neste artigo, proponho-me a realizar uma interpretao densa das disputas classificatrias estabelecidas em torno da recepo de Casa-grande senzala entre a 1 e a 14 edies do livro em portugus, recuperando representaes do autor e julgamentos chaves na definio dos sentidos que pesaram sobre este livro. Na primeira parte do trabalho, busco destacar significados dos critrios de negociao da obra de Freyre a partir de afirmaes circunscritas nos seus prefcios, em momentos definidos da histria da edio, circulao e apropriao do livro.4 Em uma segunda parte so enfatizadas certas proposies de Florestan Fernandes, porta-voz da nova Sociologia paulista e em posio diametralmente oposta de Gilberto Freyre no campo das cincias sociais, relativas a um momento que sentenciou com julgamentos categricos um livro como Casa-grande senzala. Pretendo pensar, em torno deste livro, os dilemas interpostos entre escrever e tornar pblicas verdades sobre a nao.

    Centrado em uma reflexo sobre a histria da recepo de Casa-grande senzala, tentarei demonstrar como a representao regionalista que pesa sobre o livro e seu autor foi e um produto das relaes de dominao travadas no campo intelectual no Brasil a partir dos anos 30. Portanto, a fora dessa representao se deve tanto s posies e valorizaes progressivas que Freyre foi adquirindo em sua trajetria, quanto s posies dominantes na "Sociologia nacional", contrrias a ele e a outros projetos carismticos, e aos efeitos de uma violncia simblica peculiar para construir novos princpios de legitimao cultural para pensar o Brasil.5

    Histrias de um prefaciador

    "Era o discurso que, profetizando o porvir, no s anunciava o que aconteceria, como contribua para sua realizao, arrastava consigo a adeso dos homens e se engastava assim com o destino"

    (Foucault, 1992, p.16)

    Uma nova linguagem

    Rio de Janeiro, dezembro de 1933. Casa-grande senzala publicado pela Livraria Schmidt Editora. Esta empresa era a mais expressiva em um plo cultural do rudimentar espao editorial da capital brasileira de comeos da dcada e condensava em seu catlogo, em estado difuso, os gneros, autores

  • e movimentos intelectuais que se desdobrariam na histria cultural brasileira nos primrdios de uma "era do nacionalismo".

    O final do prefcio primeira edio, em sua assinatura, afirma a extenso da pretenso de Gilberto Freyre como intelectual: "Lisboa 1931, Pernambuco 1933". Entre seu estado natal e a Europa, poder-se-ia pr em relevo um estudo para compreender a extenso dessa pretenso, pensada originalmente em sua ps-graduao norte-americana e valendo-se das condies de atividade e promoo cultural do Rio de Janeiro, ento a capital do pas.6 Este prefcio quase uma introduo, na qual Freyre narra a experincia de revelao inspiradora que viveu no exterior: foi passeando pelo deep south norte-americano, antigamente escravocrata como o Nordeste de seus ancestrais, observando marinheiros negros conterrneos trabalhando em um porto daquele pas bem-sucedido, que passou a refletir sobre a realizao da dignidade de um povo. A uma revelao indita, um novo cdigo. Este irrompe no cenrio intelectual com a potncia de esquemas de interpretao apreendidos em centros de vanguarda internacional. No havia, nesses anos, juzes acadmicos com poder para dominar a crtica e mediar o possvel impacto pblico de um escrito sociolgico com essas caractersticas. Como assinala Edson Nery da Fonseca (1985, p.18), "a obra de Gilberto Freyre foi publicada em uma poca de grande efervescncia literria, a julgar pelo grande nmero de escritores que exerciam a crtica regularmente em revistas como o Boletim Ariel e nos grandes jornais cariocas".

    Este primeiro prefcio um grande esforo para classificar, inculcar, negociar um modo de apreenso do "estranho" produto. Limitado s categorias da poca, Freyre classifica seu texto como ensaio de sociologia gentica e de histria social e expe as razes de uma metodologia de investigao singular, baseada em fontes primrias de livros de viagem de estrangeiros, livros de etiqueta, cartas jesuticas, arquivos eclesisticos, lbuns, escritos de romancistas, folhetinistas ou escritores de teatro "que fixaram com maior ou menor realismo aspectos caractersticos da vida domstica e sexual do brasileiro".7 Negociando o valor e a publicidade de seu livro com os formadores de gosto da poca, o autor conquistou com grande fora a crtica literria, no sem exigir, em troca, uma refigurao sociolgica desta.

    Do Recife, Freyre escreve o prefcio segunda edio do livro, publicada j em 1934, apenas um ano depois da original. Neste, dedica-se a considerar erros de impresso, alteraes de linguagem, acrscimos tcnicos de ndices. Mas tambm refora os sentidos de sua contribuio sociolgica, enfrentando as crticas literrias e explicando que "se deve observar que este ensaio pretendeu ser menos uma obra convencionalmente literria que um esforo de investigao e tentativa de interpretao nova de determinado grupo de fatos da formao social brasileira" (p. LXV). O autor percebe seu trabalho como inovador e de principiante, dupla posio da qual se vale para no ceder s crticas que o atacavam por "no se submeter aos grandes mestres de nossa histria". Freyre assentava suas preocupaes no "contato direto com as fontes, [...] sobre material e trabalho de campo". A partir deste prefcio, comea a controlar os julgamentos provenientes de dois flancos: o literrio e o sociolgico. Diante de ambos, e nestes primeiros prefcios a partir de uma posio de socilogo, contradiz as crticas linguagem utilizada propondo, para um projeto inovador, uma nova linguagem que no faz eco dos ataques literrios pela "excesso do uso de citaes e o pedantismo de erudio cientfica", nem da "linguagem difcil e desumana de certos cientistas e alguns tcnicos": "[...] o ensaio de Sociologia, de Antropologia, de Histria Social, tem sua linguagem prpria, no est obrigado a limitar-se noo de terminologia exata de outras cincias despreocupadas dos valores humanos".

    Domnios de classificao

  • Este esforo de Freyre pode ser mais bem compreendido se se observa que, ainda por volta do fim da dcada, mesmo como o "maior xito" da Schmidt,8 Casa-grande senzala era o nico ttulo do catlogo classificado como Antropologia. Em bibliografias maiores, o livro era um diminuto ponto entre ttulos de Direito e Cincias Sociais e Polticas.9

    Talvez o debate intelectual que marcou a dcada tenha sido o da "unidade" dos estados da Federao, perceptvel a partir de dois movimentos: de um lado, o de porta-vozes de provncias menores visando fazer conhecida a histria cultural e a singularidade de seus territrios, s agora reconhecidos pelo sentimento de unidade pelos estados fortes; de outro, o crescimento da competio pelo monoplio regional da representatividade dos smbolos do bem comum. Neste quadro, uma clivagem maior era marcada pela disputa entre o Norte e o Sul.

    Para as categorias de percepo e apreciao crtica da poca, Gilberto Freyre aportava uma perspectiva singular (mais acadmica e especializada) entre os gneros literrios dominantes (romance, conto, crnica) que buscavam descrever de forma "real" o Nordeste. A consagrao brasileira de Freyre paralela a um movimento abrangente de imposio desta categoria. Por volta de meados dos anos 40, o Nordeste, a partir do romance, reconfirmado como o locus de "maior autenticidade" dentre os ncleos definidores do "carter nacional". Os romancistas eram, para a poca, o que foram os poetas para o primeiro quarto de sculo: profetas legitimados para revelar um destino que poucos conseguiam ver. Nas palavras de Henrique Pongetti, escritor reconhecido da poca: "revelar o que existe em nossa terra, mesmo no domnio das coisas materiais, ser por muito tempo ainda, uma funo de literatos" (ABL, 1938, p. 20). Da a solido e individualizao de Freyre para impor sua mensagem, que s se solidificar no quadro da Coleo Brasiliana. A partir das sistematizaes da crtica literria, Freyre decantaria, por volta de 1950, como parte do "Movimento do Nordeste" (Carpeaux, 1955, p. 275).10

    Reconhecimento universitrio e editorial

    Em 1935, a consagrao da proposta "scio-antropolgica" de Freyre o leva a concretizar sua escolha como um dos principais artfices das primeiras ctedras de Sociologia, Antropologia Social e Cultural e Pesquisa Social da nova Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro. Seu prestgio o leva, nesse mesmo ano, a um cargo central no campo editorial: diretor da Coleo Documentos Brasileiros da recente e rapidamente bem-sucedida Livraria Jos Olympio Editora. Nesta casa Freyre pensou um projeto editorial que marcou poca: a publicao, em 1936, de Razes do Brasil, livro de Srgio Buarque de Holanda, prefaciado pelo prprio Freyre.11

    Em 1936 publicado tambm o seu Sobrados e mucambos, pela Companhia Editora Nacional, editora paulista homloga Jos Olympio como lanadora de ttulos de literatura e pioneira na divulgao do pensamento social brasileiro, atravs da sua Coleo Brasiliana.12 Continuando as interpretaes de Casa-grande senzala, este livro libertava a opera prima da necessidade de completude investigativa e a inseria em um projeto cujo concepo s seria finalizada em comeos dos anos 40 e que inclua dois outros trabalhos: "Ordem e progresso" (1959) e "Jazigos e covas rasas" (que no foi escrito). Por volta de fins dos anos 30, Freyre julgava que Casa-grande senzala condensava todo o seu projeto intelectual: o "livro" se transformava em "obra" e se reforava o sentido da revalorizao como pea original de suas engrenagens intelectuais.

    O renome do autor se construa ao par da conquista para Casa-grande senzala de um pblico crescentemente numeroso, composto de bacharis, profissionais liberais e polticos (Miceli, 1989b, p. 108). Mas nos anos 30 tambm se "formaram" novas comunidades de leitores, novas camadas sociais que emergiam em funo de inditas oportunidades escolares. Longe das ctedras de

  • Sociologia, Antropologia e Cincias Sociais, sobre as quais voltarei a me referir depois, possivelmente o pblico destas leituras "ensasticas" tenha ganho novo impulso com a Reforma Campos de 1931, que incluiu a Sociologia como disciplina obrigatria no ensino secundrio (Almeida, 1989, p. 189). Por sua vez, numerosos institutos de investigao social eram ento fundados no Rio e em So Paulo (idem, p. 193).

    A interrupo autoritria do projeto internacional da Universidade do Distrito Federal, no entanto, deixou Freyre sem alternativas para cultivar pessoalmente sua "congregao" de educandos especializados. Contudo, ainda em 1935, o Ministrio da Educao o nomeou professor extraordinrio de Sociologia na tradicional Faculdade de Direito do Recife. Ali, em uma instituio smbolo da Repblica Velha, Freyre se cercou da ateno personalizada de jovens leitores.... de Advocacia.

    Controlar o acontecimento aleatrio

    Aproveitando o xito de Casa-grande senzala junto a variadas comunidades de leitores, a decadente Editora Schmidt lana, em 1938, uma terceira edio do livro, " revelia do autor".13 Por um canal erudito tradicional da poca, a Revista do Brasil, Freyre contesta o lanamento com um quase prefcio terceira edio e, indignado, irrompe com toda fora como controlador pessoal do destino de seu livro. Desde ento, at incios dos anos 80, todas a reedies do livro sairiam, como parte da coleo por ele fundada, pela Jos Olympio, editora que, sombra de Freyre e dos romances sociais, construiu um lugar central na vida cultural brasileira de meados de sculo.14

    Neste quase-prefcio, Freyre insiste, a partir de sua autoridade estritamente acadmica, na atitude cientfica que continuava sem ser compreendida pelos crticos literrios,

    ainda pouco familiarizados com a tcnica, o mtodo e a terminologia da sociologia gentica, da histria, da antropologia e da psicologia sociais [...] de esperar que com o progresso do ensino da sociologia e da antropologia em nosso pas, os crticos menos inteirados do sentido sociolgico de expresses como "cultura", "complexo", "mobilidade social", "sociologia gentica", adquiram um pouco de humildade cientfica em suas crticas.

    Como estratgia retrica desqualificante, Freyre unicamente nomeia, ou seja, d existncia,15 aos crticos "inteligentes", especialistas estrangeiros (Coornaert, da Sorbonne, e Martin, de Stanford) e "compatriotas estudiosos" (Almir de Andrade, Silvio Rabelo, Carlos de Oliveira).

    1942. Referncia obrigatria

    As marcas de uma pretenso de verdade cientfica e acadmica so constantes at 1942. Este ano assinala um pico na consagrao de Casa-grande senzala, uma dupla consagrao editorial: o selo Jos Olympio e a primeira edio em outra lngua. A primeira mudana ressaltada na meno redobrada da "herica" figura do editor;16 a edio em castelhano, lanada em Buenos Aires, no merece comentrios.17 A confirmao do xito editorial coloca Freyre, assentado culturalmente no Rio de Janeiro, de onde assina o prefcio, diante de um problema indito: como garantir uma edio definitiva (padronizada de modo a assegurar uma unidade entre edies consecutivas e visando sua traduo18) de um texto que o autor continua considerando cientfico e, por este motivo, obrigatoriamente passvel de reavaliao peridica em funo dos avanos nas vrias cincias e estudos nos quais se baseia? A partir deste momento se observa uma transferncia de poder carismtico do autor para o livro. A reedio acelerada do livro o insere em uma lgica de reproduo cultural no acadmica, mas literria.

  • Ainda em 1942 publicado A cultura brasileira, um texto central na obra de Fernando de Azevedo, que se tornava ento titular da ctedra de Sociologia II na nova carreira de cincias sociais fundada na USP. Neste livro, Freyre emerge como referncia obrigatria. Fernando de Azevedo era, nos anos 30 e comeo dos 40, a personagem brasileira central junto s misses cientficas estrangeiras que organizaram o ensino e a pesquisa na USP, em torno da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras. Gilberto Freyre, quase exclusivamente Casa-grande senzala, citado por Azevedo como marco interpretativo vlido para estudar a histria da educao e a cultura brasileiras em 62 ocasies.19

    Para a glria do autor, as crticas continuam sendo "contraditrias". Pela primeira vez Freyre rejeita as crticas sua proposta como sendo de teor regionalista, para confirmar que sua anlise extensvel totalidade da nao: "viagens de estudo e observaes do autor por reas brasileiras menos agrrias [...] somente fizeram confirmar nele as idias e interpretaes esboadas neste livro". Os crticos mencionados passam por Joo Ribeiro e incluem uma galeria de pesquisadores nacionais e estrangeiros.

    Edies de Casa-grande Senzala (1933-66)

    Ano CG&S no Brasil N

    ed

    CG&S no Estrangeiro Editor

    1923

    Tese de doutorado Columbia University

    1933 Maia & Schmidt 1

    1936 Schmidt Editora 2

    1938 Schmidt Editora. 3

    1942

    Buenos Aires Min. Instr. P.

    1943 Jos Olympio

    (Col.Documentos Brasileiros) 4 Buenos Aires 2a, Emec

    1946 J.O. 5 Nova York Knopf

    1947

    Londres Knopf

    1950 J.O. 6

    1952 J.O.

    (Obras Reunidas de G.Freyre) 7

    1953

    Paris Gallimard

    1954 J.O. 8

    1956

    Nova York, Londres Knopf

    1957

    9 Lisboa Livros do Brasil

    1958 J.O. 10

    1961 J.O. 11

  • 1963 Ed. da UnB 12

    1964

    Paris, Toronto, Nova York Gallimard(8va), Random

    House, Knopf

    1966 J.O. 13

    Finalmente, com o selo da Jos Olympio, o crculo de leitores de Casa-grande senzala, de setores restritos do Rio e So Paulo, amplifica-se pelo interior do pas. Especialmente no Nordeste, surgem novas leituras de um pblico j grande para os padres da poca (Fonseca, 1985, p. 22).

    (E)leitores: dvida cientfica e reconverso de foras

    A quinta edio do livro a segunda pela Jos Olympio s sai em 1946. Em seu prefcio, Freyre se representa ainda como socilogo-pesquisador, preocupado com a atualizao do material, retocando a bibliografia e procurando uma "nova safra de documentao" atravs da coordenao de um extensa equipe de trabalho composta por uma dezena de investigadores nacionais, conduzidos a se especializarem em diferentes subreas geogrficas e econmicas e em diferentes perodos histricos. A marca distintiva deste conjunto de intelectuais a sua no filiao a alguma universidade ou curso acadmico. Trata-se de pessoas assentadas em museus, arquivos, bibliotecas, institutos estaduais, nacionais e estrangeiros.20

    No lapso de quatro anos, Freyre passa a escrever de sua casa em Santo Antnio de Apipucos, sua cidade natal, onde a polcia poltica "da ditadura tudo fez para reduzi-la a pedaos". O "Estado forte" e os anos de "ditadura" o retraram em seu estado,21 onde se casou e comprou a casa-grande familiar. As dificuldades na concretizao de projetos universitrios duradouros, excetuando o caso da USP, bem-sucedido em sua "oposio independentista ao getulismo", apontam para um projeto "universalista".

    Em 1946, Freyre reacumula sua herana social e reverte o fracaso acadmico na capital se expondo como vtima poltica. Esta postura se consolida na fabricao de uma candidatura "de esquerda", a partir do prestgio intelectual que gozava entre seus alunos da Faculdade de Direito do Recife. eleito constituinte e depois deputado federal pela UDN. At 1949, do Congresso, Freyre fez cultura atravs da poltica. Por ele destacadas so sua participao na "questo do livro didtico" e na fundao de um instituto de pesquisas para o Recife. Por volta do final deste ano, reinstalado na capital e coroando o trmino de seu "mandato", v sair a sexta edio de Casa-grande senzala. Na antessala poltica, Jorge Amado e outros literatos-polticos haviam postulado o seu nome como candidato do Brasil ao Prmio Nobel.

    No prefcio a esta sexta edio convergem, pela primeira vez, os esboos da mais dura batalha simblica que se travaria em torno da recepo de Casa-grande durante os anos 50: a exploso do reconhecimento internacional e da crtica "sistemtica" da Sociologia uspiana em processo de consolidao, com seus "elementos nacionais", que passa a ser o novo locus para pensar o Brasil.

    Internacional-nacional: disputas pelo universal

    Freyre se regozija com as edies publicadas em 1946 e 1947 pela prestigiosa Editora Knopf em

  • Nova York e em Londres. Em ingls, "latim sociolgico" para Freyre, sua obra confirmada finalmente como universal. O livro j independe do autor: atravs deste "ttulo", que circula por foras relativamente independentes, o autor nominado, na arena internacional, como representante nacional. Freyre se refere, daqui em diante, ao "livro brasileiro". Para o autor, Casa-grande senzala muda de estado "depois do choque mais forte do trabalho brasileiro com a crtica estrangeira, menos especializada no estudo da substncia particularmente histrica e regional do ensaio que voltada para o possvel interesse humano do mesmo".

    Alm das crticas negativas, Freyre enfrenta, em sentido oposto, os julgamentos "mais especializados" no nvel nacional, localizados em So Paulo. De um lado, discute as leituras que adjudicavam a Caio Prado Jr. (intelectual, editor de alta origem social e poltico da esquerda "independente", estreitamente vinculado USP) "a caracterizao sociolgica da economia brasileira como monocultora, latifundiria e escravocrata". De outro, enfrenta, desta vez mencionando-o, uma das cabeas estrangeiras da Escola Livre de Sociologia e Poltica (ELSP),22 Donald Pierson, que teria lido em Casa-grande senzala uma contribuio unicamente de validade regional. A posio consolidada da Sociologia paulista j no podia ser ignorada. Devia ser mencionada como contribuio autorizada para dialogar com as afirmaes contidas no livro. Alm de investigadores estrangeiros, Freyre discute a contribuio dos recentes trabalhos de Fernando de Azevedo, Emlio Willems e Florestan Fernandes.

    Entre ambas as percepes, nacional e estrangeira, regional e universal, Freyre distingue seu livro pela contribuio original em nvel metodolgico, na "combinao de vrias tcnicas de vrias cincias (das chamadas sociais). O que faz 15 anos era visto como heresia".

    Jos Olympio continua reeditando Casa-grande senzala em 1952, em 1954, e a voz prefaciadora do autor no se expressa. S reaparece na nona edio, de 1957. Durante esses anos, Gilberto Freyre deslocado pela primeira gerao de socilogos brasileiros, herdeiros dos "missionrios" estrangeiros da USP e j situados como titulares de ctedra das nodais Sociologia I e II, focos centrais em um processo de substituio de importaes acadmicas para a construo de uma Sociologia cientfica e nacional.

    Pr e ps-Sociologias

    Como demonstra Wanderley Guilherme dos Santos (1967, p. 190), na dcada de 50 so escritos trabalhos sociolgicos pioneiros a seu modo. Destinados a interpretar a "memria nacional", autores como Fernando de Azevedo e Florestan Fernandes em So Paulo, e Djacir Menezes, Costa Pinto e Guerreiro Ramos no Rio de Janeiro inauguraram um gnero de interpretao sobre o estado do pensamento social brasileiro no qual se configuravam, como ferramenta cognitiva comum, classificaes por geraes e etapas do conhecimento, dispostas para reificar uma diviso entre intelectuais cientficos e pr-cientficos. Nelas Gilberto Freyre, em que pese ser obrigatoriamente reconhecido como precursor, era caracterizado, inclusive pelo prprio Santos, como carente do "rigor da anlise moderna" (Santos, 1967, p. 186).

    Analisando mais detidamente os textos "da poca" de Fernandes, possvel recuperar suas representaes sobre Freyre e a definio da nova Sociologia que concorreu, pela redistribuio dos critrios de autoridade no campo intelectual, para deslocar valores para a apropriao de Casa-grande senzalapor novos leitores.

  • Modernismo radical: substituir o velho e o estrangeiro

    Para Florestan Fernandes, a Sociologia cientfica-universitria arraigada na USP aportava ferramentas fundamentais na substituio das perspectivas "sociogeogrficas e historiogrficas" que impregnavam autores "j clssicos". Essas perspectivas para pensar a nao eram prprias dos "ensastas, precursores e fundadores dos estudos sociolgicos no Brasil": "De Tavares Bastos e Anibal Falco a Euclides da Cunha e Alberto Torres, ou a Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, sempre prevaleceram, nas tentativas de interpretao da realidade brasileira, intuitos cognitivos que punham nfase na importncia lgica da perspectiva histrica" (Fernandes, 1958, p. 219).23 Estes autores teriam trabalhado um padro de anlise histrico sociogrfica que provocava, at os anos 50, uma "fascinao" sobre a maioria dos socilogos brasileiros, "inclinados a pensar que a explicao sociolgica deve ser, por natureza, histrica [...] Essa convico se funda teoricamente no aproveitamento superficial dos ensinamentos de alguns autores clssicos nas cincias sociais" (Fernandes, 1958, p. 218).24

    Para Florestan Fernandes (1958, pp. 201-202), Gilberto Freyre contribuiu principalmente para a primeira das "trs etapas" na histria do conhecimento social sobre o Brasil, transformando a anlise histrico-sociolgica em "investigao positiva". Em compensao, no teve peso, seno relativo, na segunda fase, de introduo por influncia dos pesquisadores estrangeiros da pesquisa de campo, que "dependia, naturalmente, do adestramento sistemtico". Menos ainda os aportes de Freyre contribuiriam para "o progresso da teoria sociolgica". Para Florestan Fernandes, essas trs etapas podiam ser sintetizadas, por volta de fins dos anos 50, em uma nica instituio no Brasil: a Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP:

    Em pouco mais de duas dcadas se alcanou grande progresso em ambas as direes, o ensino e a investigao, de tal forma que se pode afirmar que as cincias sociais encontram, atualmente, possibilidades de desenvolvimento autnomo nessa instituio. Nela j se pode dispensar a colaborao de professores ou de especialistas estrangeiros, fora de setores especializados de ensino e de investigao. (Fernandes, 1958, pp. 204-205)

    Para Fernandes, o padro de trabalho cientfico dos socilogos brasileiros somente era possvel naquela "ilha de vanguarda", com as ferramentas que Freyre, antes do tempo, no pde conquistar para transmitir sua verdade:

    O treinamento sistemtico do investigador a primeira condio e a mais importante de todas para a constituio e o contnuo aperfeioamento dos padres intelectuais definidos de investigao cientfica [...] Com isso, o ensino universitrio se torna pedra de toque da formao cientfica do etnlogo e o eixo fundamental da cadeia de influncias, que possam dar menor ou maior relevncia aos brancos tericos da investigao. (Fernandes, 1958, p. 26).25

    Finalmente, para entender esta nova proposta, por oposio Sociologia difusa de Freyre, deve-se considerar que, para Fernandes, s a universidade era o mbito capaz de assegurar uma condio de igualdade e liberdade de pensamento. Falando de uma sociologia do conhecimento, Fernandes pensava os condicionantes sociais ao pensamento sociolgico, concluindo pela inevitvel continuidade de idias entre a sociedade que Freyre pensava e a prpria trajetria social deste investigador, considerado inevitavelmente como "do passado":

    [...] claro que a sociologia [...] dificilmente poderia encontrar condies acessveis de integrao a uma sociedade escravocrata e senhorial [...] Em tais condies, apresentava a maior importncia para a ordem social os critrios de seleo de personalidades aptas para desempenhar papis intelectuais ativos na construo do sistema de concepo do mundo. O tamizamento se fazia de maneira a garantir a fidelidade manifesta ordem patrimonial: aos interesses sociais, polticos, econmicos das famlias grandes e de dominao senhorial [...] Uma situao dessa espcie conduzia, naturalmente, a uma relativa indiferenciao dos papis sociais inerentes s atividades intelectuais. Na mesma posio social se encontravam papis sociais discrepantes, que iam das atividades de liderana no grupo domstico e na

  • propriedade rural s atividades profissionais no mbito das profisses liberais e da burocracia onde se introduziam as atividades intelectuais. (Fernandes, 1958, pp. 191-192)

    A interpretao destas imagens sobre a relao Sociologia/sociedade ganha relevo se se esboa o contraste entre alguns pontos chaves nas trajetrias sociais e intelectuais de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes.

    Esboo de posies polares no campo da Sociologia

    O imigrante e o profissional.

    Na ocasio da conjugao desses enunciados, Florestan Fernandes acabava de incorporar em sua pessoa uma configurao de condies sociais muito singulares, que o posicionavam em oposio a Freyre no campo intelectual de fins dos anos 50. Em 1955 havia conquistado, como primeiro brasileiro, a titularidade da ctedra de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP.26 Esta era a ctedra "nobre", "profissional", "internacional", "de investigao" na mencionada instituio. Fora inaugurada por Lvi-Strauss em 1934, ano de fundao da USP, e trs anos depois assumida por Roger Bastide, que a depositou nas mos de Fernandes antes de seu regresso Frana. A outra ctedra sociolgica era, por oposio, mais "tradicional", dedicada a uma sociologia de gabinete, especializada em sociologia da educao e sociologia geral. Desde a sua fundao foi ocupada por Pierre Arbousse-Bastide, a quem sucedeu, em 1943, Fernando de Azevedo. Como vimos, este "educador profissional", que teve um papel decisivo na fundao da USP, exercia, em comeos dos anos 40, uma atividade acadmica paralelamente a seu engajamento em "questes pblicas".27

    Florestan Fernandes graduou-se na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP e fez mestrado em Sociologia na pioneira Escola Livre de Sociologia e Poltica. Se na primeira fase de estudante foi formado pelos "missionrios" franceses, nesta ltima instituio foi aluno de Donald Pierson (representante da Sociologia de Chicago) e dos "missionrios" americanos. Se sua grande tese inaugural foi etnolgica, seu labor progressivo foi sociolgico. A fora com que Floretan irrompeu no cenrio intelectual s se compreende se se observam as enormes "rupturas" de fronteiras culturais e sociais por ele experimentadas. O sentimento de excepcionalidade de sua vida universitria ressaltado ao conjugar a forma de sua seleo, "por uma prova em que s seis passaram", com sua convivncia ntima com professores que davam aulas em outras lnguas, tendo em vista sua origem social e os efeitos de suas trajetrias.

    Fernandes era filho nico de me de origem portuguesa, viva e lavadeira. Trabalhando como vendedor durante a infncia e a juventude para ajudar na casa, situada em um bairro pobre de So Paulo, sua escolarizao bsica foi acidentada, tendo que completar a escola em curso supletivo e trabalhando como garom em um caf prximo a instituies culturais. Entre a bomia e um ambiente "cultural", incorporou desde jovem posies polticas de esquerda. Em comeos dos anos 40, seu ingresso na universidade teria ocorrido pela seduo da carreira com o nome mais parecido a "socialismo" (Fernandes, 1995, p. 3). Sua formao era atpica comparada experincia comum de outros intelectuais renomados da poca, nutridos por viagens e formaes no estrangeiro. Sua conquista da ctedra de Sociologia na USP representava a ascenso de novas camadas sociais cena cultural: descendentes de imigrantes, classes mdias. Florestan era um representante "puro" do intelectual brasileiro.

    O padre e o bacharel.

  • Gilberto Freyre nasceu com o sculo, em uma casa-grande da periferia do Recife. Herdeiro de uma famlia tradicional ligada ao mundo do acar, foi formado por instrutores particulares ingleses, franceses e por seu pai no aprendizagem do portugus e do latim. Seus estudos secundrios foram realizados no Colgio Americano, onde se formou com 17 anos. Dali partiu para completar seus estudos nos Estados Unidos, onde se graduou em Artes Liberais, com especializao em Cincias Polticas e Sociais, pela Universidade de Baylor. Posteriormente, fez estudos de ps-graduao na Universidade de Columbia, onde foi discpulo, entre outros, de Franz Boas e obteve ttulo em Cincias Polticas, Jurdicas e Sociais.

    Como vimos, suas tentativas de construo de uma posio universitria sociolgica foi abortada pelos "dilemas da institucionalizao nas cincias sociais no Rio de Janeiro" (cf. Almeida, 1989). Nos anos 40, lecionou Sociologia na Faculdade de Direito do Recife e, desde comeos dos anos 50, sua atuao intelectual-institucional passou a girar em torno do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, na mesma cidade (cf. Freston, 1989). Freyre pretendeu criar um modernismo reconvertendo posies sociais "tradicionais". Sua acidentada trajetria intelectual no Brasil redirecionou sua ateno para o reconhecimento pela via internacional, trabalhada desde seus primeiros estudos universitrios.

    Financiar e publicar: a realizao de um movimento de vanguarda

    Como o incisivo discurso de Fernandes deixa entrever, no estavam definitivamente reunidas "todas as condies" para a imposio da nova Sociologia, da qual surgia como porta-voz. Este autor sistematizou o passado e a herana cultural no pensamento social, diagnosticou seu presente institucional e, como um profeta tico, visualizou os dilemas de sua comunidade para, a seguir, postular possveis solues.

    Como ele, em seu crculo universitrio e em nvel nacional, havia "poucos". Em seus escritos da segunda metade dos anos 50, Fernandes ressalta dois problemas que suas indagaes sobre "o impacto das cincias sociais no meio social ambiente" tentaram resolver: recursos financeiros e pblico dois problemas de leigos:

    O desenvolvimento das investigaes cientficas depende, mais extensamente e profundamente do que se imagina, do modo pelo qual os leigos representam a natureza e importncia do saber cientfico. Em ltima instncia, as decises que afetam a posio das cincias sociais na educao, na vida prtica e na poltica de uma nao so tomadas por leigos. (Fernandes, 1958, p. 213)

    Numerosas vezes Fernandes menciona as dificuldades que sua equipe de trabalho teve para conseguir financiamento (indispensvel para fechar o crculo da autonomizao e legitimao disciplinar) para os novos objetos de investigao que sua gerao de colegas brasileiros pretendia estudar nessa dcada: organizao ecolgica de So Paulo; aculturao dos italianos; industrializao e urbanizao de So Paulo. Pensar So Paulo era uma palavra de ordem.

    Por outro lado, ele, sua gerao, uniformemente educados pela universidade paulista, j estavam especializados, eram socilogos profissionais. No entanto, a rapidez da especializao cientfica e a publicidade de suas propostas no contava, segundo sua percepo (e, como se ver, de acordo com a configurao das populaes de leitores potenciais da poca), com um pblico leitor especializado e muito menos com um pblico leigo consumidor. Este fator marca uma decisiva diferena e explica no s o pequeno alcance da circulao dos textos destes socilogos, como tambm o lugar de um livro como Casa-grande senzala, sua grande fora "pblica" na poca, e a antessala para seu deslocamento do jogo da disciplina sociolgica. Para Fernandes (1958, p. 220), "as expectativas

  • intelectuais dominantes nos crculos letrados brasileiros operam no mesmo sentido". Por oposio, "as contribuies sociolgicas que no possuam teor histrico-sociogrfico dificilmente conseguem ser assimiladas e entendidas como obras de `valor' pelo pblico a que elas se destinam". A formao de um pblico orgnico era possvel somente em So Paulo, por sua experincia universitria consolidada. Este tipo de pblico, segundo ele, devia crescer como resultado da comunicao prolongada dos especialistas entre si e com as "novas geraes" de estudantes. Se este processo no estava completo, muito menos avanado estavam os esforos de cativao de um pblico laico. Este "no sofreu modificaes que comportem relaes construtivas contnuas com os crculos brasileiros de produo" cientfica. S esta comunidade de leitores (especializados e laicos) representaria a concretizao da verso brasileira de seu horizonte de expectativas culturais: uma civilizao cientfica, capaz de "formar uma nova concepo de dignidade e do valor da pessoa humana" (Fernandes, 1958, p. 185).

    Leitores e editoras

    Profecias e sacerdcio so os dois fatores da sistematizao e racionalizao da tica religiosa. Mas temos um terceiro fator, o "laico", sobre o qual recai a influncia tica de sacerdotes e

    profetas. (Max Weber, 1992, p. 355)

    A experincia universitria paulista no foi experimentada com igual sucesso em outras regies do Brasil durante os anos 50. Segundo Simon Schwartzman (1987, p. 60), somente So Paulo, "cidade provinciana apesar de sua importncia econmica crescente, teve condies de criar um meio universitrio bastante significativo; o Rio de Janeiro, em comparao, era a capital do pas, foco de ateno nacional, porm jamais [...] pde desenvolver uma cincia social acadmica comparvel de So Paulo". O ISEB no Rio de Janeiro, a Fundao Joaquim Nabuco (1949) no Recife e a Faculdade de Cincias Sociais (1949) em Belo Horizonte marcavam experincias hbridas, no meio do caminho entre a poltica e a cultura.

    Em 1964, ano do golpe militar e da 13 edio de Casa-grande senzala, havia em todo o Brasil 1.944 alunos de cincias sociais, frao singular dentro das subcategorias de cursos que abarcava a classificao filosofia, cincias e letras (cincias humanas) (Werneck Viana et al., 1994, p. 409). Este nmero no equivale sequer aos leitores potenciais absolutos de uma tiragem mdia, para a poca, de 2 mil exemplares. Nas Cincias Sociais da USP, nicho produtor dos leitores orgnicos de Fernandes, se haviam graduado entre 1936 e 1955 150 alunos (7,5 por ano); na Escola Livre de Sociologia e Poltica foram 130 (6,8 por ano). Ou seja, em fins dos anos 50 era possvel reunir uma congregao potencial de trezentos leitores orgnicos (duradouros, "feitos em So Paulo"), ou em vias de "organizao" e aptos para decifrarem sua mensagem.

    Para novos especialistas e novas mensagens, novos pblicos e novos meios de edio. Diferentemente dos ensastas, que publicavam nas editoras dominantes no mercado, "casas" que marcaram poca combinando em seus catlogos ensaios, literatura "nacional" e livros para o grande pblico (Jos Olympio no Rio de Janeiro, Martins e Cia. Editora Nacional em So Paulo, Globo em Porto Alegre), os "socilogos profissionais", munidos de textos de estilo monogrfico, publicavam suas pesquisas parciais nas pioneiras revistas especializadas e suas snteses, j julgadas pela comunidade acadmica, em livros editados por editoras novas, surgidas nos anos 40 concomitantemente ao desenvolvimento destas revistas. Publicavam tambm em outro apndice bsico na construo de sua autonomia intelectual e institucional: as revistas estritamente acadmicas de cincias sociais lanadas por instituies de ensino: Sociologia, da ELSP, apareceu em 1939, e a Revista de Antropologia, em 1954. Muitos, ainda, tornavam pblicas as suas idias publicando seus

  • trabalhos por duas inovadoras editoras comerciais: Anhembi (Paulo Duarte) e Brasiliense (Caio Prado Jr.). Ambas possuam revistas homnimas "de cultura" onde o debate cultural especializado tambm ganhava cores polticas (cf. Miceli, 1989b, pp. 104-109).28 Segundo Miceli (1989b, p. 106):

    Ambas as revistas estavam lidando com a agenda de temas e preocupaes de um pblico cultivado e composto de profissionais liberais, altos funcionrios e empresrios bem-sucedidos, com uma presena significativa de judeus de segunda gerao cujas famlias haviam vivido experincias dramticas de perseguio racial ou de militncia poltica aqui e na Europa. Anhembi e a Revista Brasiliense representavam as vertentes culturalistas de direita e esquerda em vigncia no campo intelectual paulista. Eram veculos que se enquadravam em uma espcie de diviso do trabalho de aconselhamento cultural qualificado.

    Por oposio a esse quadro de correlaes entre intelectuais, editoras e pblicos, Fernando de Azevedo, por exemplo, era publicado com apoio oficial ou por antigas editoras que, considerando a moda de estudos sociais e sua possvel repercusso didtica (talvez, espreita desta), haviam aberto espao para eles entre os seus j estratificados catlogos (por exemplo, a Companhia Melhoramentos de So Paulo). Florestan Fernandes e outras "figuras de transio" da poca (Roquete Pinto, Ansio Teixeira, Artur Ramos, Djacir Menezes, Roberto Simonsen, Carneiro Leo) eram publicados, predominantemente, pelos selos brasilianos concebidos por Gilberto Freyre e outros lderes j consagrados que predominavam no "pouco diferenciado" campo intelectual e editorial do Rio de Janeiro. Estas publicaes se somavam em catlogos centrados "em torno das grandes obras literrias, dos ensaios dos publicistas, juristas e pensadores autoritrios, da fornada considervel de trabalhos histricos e apologticos" (Miceli, 1989b, p. 108).

    deste mesmo campo de tenses que extraem seus sentidos tanto as tomadas de posio de autores como Florestan Fernandes, pretendendo marcar livros como Casa-grande senzala como algo do passado, como as apostas ameaadas de Gilberto Freyre, buscando a salvao para as dimenses mais sagradas e menos discutveis do patrimnio e panteo literrio da nao: em uma "guerra do tempo", os autores, com suas publicaes, disputam a juventude, escrevendo, ambos, em nome de jovens leitores.

    Juventude eterna e juventude de um homem novo

    Para a resposta de fins de 1957, Freyre, como sempre, utiliza o melhor escudo possvel: o prefcio, gnero escrito colado a um texto j consagrado, uma introduo renovadora. Para combater, encontra-se em uma fortaleza incomparvel, resguardada com outra reedio norte-americana (1956), a recente edio francesa, rapidamente devorada e reeditada por Gallimard (1953), uma edio em Portugal (1957) e a marca de 50 mil exemplares vendidos em lngua portuguesa. Em 1956, o livro foi objeto de um seminrio de estudos no Castelo de Cerisy, na Frana, organizado pela Universidade de Sorbonne, ao qual assistiram os papas internacionais da Sociologia e da Histria como Braudel, Gurvitch, Sombart. No mesmo ano Freyre foi nomeado um dos quatro conferencistas da reunio mundial de socilogos em Amsterd. Ainda em 1956 Freyre foi convidado a participar, como representante da Sociologia mundial, de um Radio-Symposium em Washington e, em 1957, recebeu por Casa-grande senzala o prmio Anisfeld Wolf para o melhor trabalho mundial sobre relaes raciais. Durante os anos 50, tambm recebeu ttulos honorficos em numerosas universidades na Europa, Estados Unidos e Amrica Latina.

    O tom do prefcio volta a ser meramente metodolgico.29 incompreenso local de uma "metodologia complexa" Freyre contrape "a melhor das compreenses por parte dos crticos europeus mais autorizados", que certificam que as generalizaes que o livro contm so de validade universal e no apenas latino-americanas. A desqualificao "metodolgica" local associada sua liberdade de expresso "um tanto fora das convenes acadmicas ento dominantes. Ensaio

  • sociolgico ao mesmo tempo que antropossociolgico e ecolgico-social, histrico-cultural, cientfico sem deixar de ser humanstico. s vezes at apoiado no folclore [...] em uma linguagem livre do jargo acadmico" (Freyre, 1966, p. CV).30

    Fugindo do campo de disputas do qual estava definitivamente deslocado, ali onde os autores "acadmicos" detinham a ordem disciplinar do discurso, Freyre, escrevendo de agora em diante de Apipucos, move-se simbolicamente em direo ao nico refgio do universal capaz de manter e reproduzir sua verdade no universitria: a literatura, reino da palavra "liberada" e da linguagem sensvel do gosto e do amor arte (cf. Bourdieu, 1992).

    O outro universal. Sada literria do jogo sociolgico

    Sua prpria "complexidade metodolgica" , para Freyre, "transregional, transcontinental e supranacional", onde convergem a cincia e o humanismo, uma unidade de tendncias como Picasso e Linsday experimentam com sua arte unitria de base antropolgica, assimilando o primitivo ao civilizado, servindo-se da literatura tanto quanto do folclore, uma "empatia s vezes potica", para realizar snteses interpretativas, ali onde "um Goncourt, um Proust, um Henry James, em sua literatura de fico", se fazem "s vezes quase equivalentes de uma histria social que fosse tambm uma histria psicolgica".31

    Como fecho deste prefcio, Freyre condensa o nome da sntese terica que a experincia histrica brasileira d humanidade: a lusotropicologia, programaticamente lanada em nvel internacional na ndia em fins da dcada.

    O estado difuso deste combate de idias se aclara dois anos depois, no prefcio 10 edio da Jos Olympio. Para Freyre, o pioneirismo imanente de Casa-grande senzala era compreendido somente pela arguta crtica estrangeira e pelo pblico brasileiro. O dilema de deixar a arena do debate acadmico local para tornar-se clssico, algum fora do tempo (ou seja, do jogo), passa a ser permanente. Freyre passa a perceber o seu livro como contendo uma eterna juventude, o que explicaria a multiplicao de edies e de leitores da obra, criada por um "autor jovem": um consolo para um homem j no declnio da existncia sentir-se assim contemporneo de seus compatriotas mais jovens, mais por escolha deles que por empenho de sua parte; e, atravs de pginas lidas e discutidas por esses jovens quase como se tivessem sido escritas por um deles, e no por um indivduo j remoto.

    Agora Freyre compreende "homens j gloriosos e at olmpicos do Brasil, como Joaquim Nabuco, Graa Aranha, Farias Brito, Assis Brasil, que, se no receberam homenagens entusisticas de seus compatriotas igualmente provectos, as receberam sinceras e at vibrantes dos moos do Rio, So Paulo e Recife". No prefcio 13 edio de 1964, Freyre intensifica uma luta contra o tempo e "contra os ortodoxos e sectrios", com seus ismos. Como em uma cruzada, exclama:

    [...] o autor no se surpreende com exploses mais ou menos violentas desses sectrios contra seu livro, cujo envelhecimento reclamam com a maior das nfases, pretendendo que seja substitudo, na preferncia das novas geraes, por obras por eles, sectrios, consideradas primas, de historiadores ou de socilogos ou de antroplogos ou de filsofos de orientao new horizons agradveis a seus preconceitos ideolgicos: obras anticolonialistas e antibricas principalmente.

    Do outro lado do Atlntico, "a confirmao" tambm muda de estado. Como marcas de ingresso em um patrimnio, de j haver sido discutido e valorado, Freyre escreve que Braudel considera Maitres et esclaves "como j clssico". Gallimard em dez anos tirou oito edies, vendendo quase tantos livros quanto em portugus. O mesmo ocorreu em Nova York, onde The masters and the slaves saiu

  • em paper back e formato popular com tiragem de 50 mil exemplares, quantidade que reclamaria um ingls para a Gr Bretanha. Tambm nos Estados Unidos Aldous Huxley teria tido a idia de rodar um filme "dramtico" e Arthur Rabin projetava uma produo para a televiso. A materialidade do livro e dos produtos culturais dispostos em um mercado independe da vontade do seu autor, que deve objetivar sua posio perante a lgica particular destes bens culturais, perdendo e ganhando, mas sempre usando-os como marca suprema de consagrao. Refletindo sobre estes condicionantes, Freyre vale-se deles para representar-se como pode e tirar o maior proveito possvel dessa lgica cultural que o arrasta ao difuso mundo do clssico:

    Um livro no se comporta seno de acordo com sua prpria vitalidade. revelia do Autor e revelia de quantos, por isto ou por aquilo, pretendem destruir ou desacreditar ou desatualizar ao Autor [...] Casa-grande e senzala continua a desmentir tranqilamente, no Brasil e no estrangeiro, seus detratores, e a atrair a confirmao de mestres para os quais continua, segundo eles, vivo e vlido [...] Continua sendo um livro, segundo mestres da Sorbonne e de Harvard, modernssimo, e no tardar em aparecer em Israel em lngua hebraica: edio anunciada para este ano que revela novo aspecto no s da modernidade como da universalidade do livro brasileiro.

    O tom do prefcio edio de 1966 mais desesperado ainda e enuncia os mesmos terrenos de disputas: a juventude e o tempo.32 Segundo Freyre, outras duas novas edies em portugus confirmam, no nvel nacional, a "sede de saber e a ansiedade de conhecimento de jovens difceis de serem desviados de seus desgnios, por quantos supostos mentores de novas geraes vm pretendendo preveni-los contra o autor e o livro do particular desprezo desses mesmos mentores, tachando os livros de antiquados, e ao autor de superado".

    Freyre sente que lhe lanaram "decretos radicais de extermnio, sentenas de morte". S lhe cabe refugiar-se no comando de seu projeto institucional, no Recife, e auto-estimar-se entre outros "clebres ameaados, como Gilberto Amado, Ortega y Gasset, Malraux". Para ele, no h mais sossego que considerar perdida a batalha e tomar Casa-grande senzala como "inclassificvel".

    Concluso

    A fama de Freyre, ascendente, descendente e finalmente estabilizada no atual panteo, decantou sobre sua pessoa, seu livro maior, sua obra uma malha de afirmaes impensadas. Desta maneira se cria um efeito de continuidade ou consenso entre as representaes dos crticos, editores e "estudiosos" naturalizadas pelo prprio autor. Ao final de sua carreira, j marcado como clssico, tudo se passa como se nenhuma disputa houvesse forjado o caminho do mundo intelectual. As anlises textuais e os gneros biogrficos contribuem para isso ao perseguirem origens e essncias, como exemplifica a "nota do editor" que, pela poca final de nossa indagao, afirmava: "eis aqui em breves linhas a Gilberto Freyre que, como `intelectual independente', se considerava principalmente escritor com treinamento sistematicamente sociolgico e antropolgico, e no professor dessa ou daquela especialidade, com compromissos com qualquer instituio [...]. que prefere o ttulo de escritor a qualquer outro".

    No entanto, recuperando as representaes do mundo intelectual do autor e lhes dando sentido ali onde Freyre se "encontra englobado e compreendido como um ponto" (Bourdieu, 1992: 14; Foucault, 1971), diante de seu livro e das leituras, possvel passar do mundo das essncias compreenso do impressionante esforo que foi preciso mobilizar para fazer Freyre e Casa-grande senzala existirem at nossos dias, intensificando, longe de querer destruir, a experincia literria e sociolgica.

  • A mesma perspectiva pode recair sobre Florestan Fernandes, para se compreender como, hoje, talvez j seja o autor mais significativo nas cincias sociais no Brasil desta metade de sculo.33 J longe do claustro, Florestan, como Freyre com sua Fundao Joaquim Nabuco, tambm possui seu culto, enquanto "ningum duvida" que j um clssico.

    Hoje possvel observar a ambos os autores em uma posio homloga. Esta condio permite compreender melhor que o deslizamento para o passado no algo mecnico e no se d sem disputas para impor as categorias de percepo e apreciao legtimas que temporalizam este campo cultural, como uma configurao histrica entre outras possveis, ao fazer sua prpria histria balizando o tempo com os autores que marcaram poca.34

    As relaes atuais entre cincias sociais e literatura se aclaram com a anlise de certas "vidas" de outros "tempos" que do forma produo do presente. Colegas e discpulos de Florestan Fernandes e outras linhagens intelectuais brasileiras chegaram ao consenso, desde meados dos anos 80, em sintonia com paradigmas "internacionais", da boa convivncia de umas cincias sociais com inspirao literria. Uma marca indelvel deste processo "na longa durao" talvez esteja dada pela reapario da linguagem "ensastica", o novo boom das biografias e a fundao de novas Colees Brasilianas, aquelas que Florestan com tanto esforo buscou erradicar. No entanto, as linhas de fora derivadas de disputas classificatrias como a analisada se multiplicam por trs de lgicos interesses de herana intelectual. Discpulos e mestres se encontram em mitos unificadores reinventados periodicamente. Fernandes apropriado com toda fora pelos ritos que remetem tudo ao modernismo de 1922. Aqueles nos quais a hagiografia intelectual no admite Freyre, ao qual reservam um mito fundador menor, originrio de uma genealogia "menor" ancorada no Congresso Regionalista de 1926.

    Como num prisma, outra configurao de filtros cognitivos reorienta, na atualidade, os critrios para a apropriao de um livro como Casa-grande senzala. A rigidez tcnica dos escritos da poca de Florestan e sua gerao posta em dvida pela habilitao disciplinar da "empatia potica" para interpretar a sociedade, que Freyre reclamava. As teorias da globalizao exaltam o hibridismo cultural, que com termos aparentados Freyre sugeria como uma imagem de blurred genres do social. No estudo dos "processos de civilizao" (e de um ponto de vista "sociogentico e histrico social", como Freyre rotulava), ganha fora o paradigma eliasiano que, a seu modo, tambm se valeu de receitas de cozinha, modos de levar o corpo, manuais de etiqueta e outras sutilezas da distino social que marcaram os pontos de fuga para transformar a violncia direta em vias de monopolizao em violncia incorporada, silenciosa, simblica, que atua como autocensura na "sociedade dos indivduos".35

    Mas Freyre e Casa-grande senzala esto muito marcados e entranhados pelas camadas de idias que os fizeram clssicos, rotulando-os, entre outras coisas, como autor e livro regionalistas. A idia de regio muito poderosa na histria cultural brasileira. Nada impede pensar que Florestan e os da "sua gerao" estavam pensando mais So Paulo que Freyre Recife. Ambos disputando representar o Brasil com projetos civilizadores e em um mundo de naes. Ambos buscando a glria da universalidade e criando a arbitrariedade sobre seu pas.

    NOTAS

    1 Como enuncia seu subttulo, Casa-grande e senzala um ensaio sobre a "formao da famlia brasileira sob o regime de economia patriarcal". Dentre suas contribuies marcantes se pode assinalar o deslocamento das perspectivas de raa

  • para as de cultura nos esquemas de compreenso da histria das relaes entre ndios, escravos e portugueses, e a apresentao da formao histrica do Brasil como uma sociedade hbrida, capaz de oferecer uma experincia de relaes humanas original, "lusotropical", para a histria universal.

    2 Para Benedict Anderson (1933, p. 24), "as comunidades no devem se distinguir por sua falsidade ou por sua legitimidade, mas sim pelo estilo com que so imaginadas". Este autor sugere que as comunidades nacionais, como algumas entre outras variantes histricas possveis, no podem realizar-se sem o capitalismo editorial. Assim, as lnguas nacionais so, antes de mais nada, lnguas nacionais impressas e identificadas por lnguas literrias.

    3 Para completar este quadro, pode-se dizer que, para estes autores, So Paulo era uma sociedade em transio, industrialmente crescente, com estrutura social estratificada e possibilidades de mobilidade social. Condio objetivada no destaque de novos estratos mdios, como o dos novos socilogos, conformados majoritariamente pelos descendentes de imigrantes europeus (Miceli, 1989b).

    4 Com base nas propostas de Miceli em Imagens negociadas (1996), possvel afirmar que, assim como os retratos na produo pictrica de Portinari, os prefcios de Freyre talvez sejam os objetos ideais que, sistematicamente recorrentes na trajetria do ensasta, permitam interpretar de maneira estratgica as energias, de variadas espcies rentveis para se fazer reconhecer, condensadas nos textos do criador. A partir dos prefcios, o socilogo da cultura pode extrair indcios e marcas sem igual sobre todas as relaes e condies de possibilidade da escritura, por detrs dos textos. S assim possvel explicar o sofrimento, no menos que a glria, de uma pessoa situada em redes de relaes mutuantes que o aprisionaram ao longo do tempo. Neste sentido, o perfil da anlise usa proposies de Bourdieu, quando este considera que "a anlise das verses sucessivas de um texto no obter sua plena fora explicativa mas visa reconstruir a lgica do trabalho de escritura, entendido como busca realizada sob a presso estrutural do campo e do espao dos possveis que ele prope. Se compreendero melhor as dvidas, os arrependimentos, os retornos, se se sabe que a escritura, navegao dificultosa em um universo de ameaas e perigos, tambm guiada, na sua dimenso negativa, por um conhecimento antecipado da recepo provvel, inscrita em estado de potencialidade no campo [...] O escritor, tal como o concebia Flaubert, aquele que se aventura fora das rotas balizadas do uso ordinrio e que experto na arte de encontrar a passagem entre os perigos que representam os lugares comuns, as idias recebidas, as formas convencionais." (Bourdieu, 1992, pp. 277-278).

    5 Finalmente, as concluses pretendem tirar proveito no tanto do que Casa-grande e senzala foi, mas sim de como chegou a ser o que hoje em dia. Os esboos interpretativos deste texto so pensados como disparadores de perguntas e ordenadores de relaes para pensar meu objeto de pesquisa, que busca aprofundar a comparao entre diferentes estados do campo editorial no Brasil. Os avanos alcanados nos estudos sobre a histria de editoras como a Jos Olympio, sobre o mundo intelectual entre 1930 e 1940 e sobre a primeira recepo internacional de Casa-grande e senzala (em Buenos Aires) permitiro, em breve, acrescentar um novo captulo a este texto e adensar suas propostas e intenes.

    6 A dinmica de "nacionalizao" na apropriao do autor e sua obra dilui progressivamente as referncias genticas de Social life in Brazil in the middle of the 19th century (1923), monografia orientada por Franz Boas na Universidade de Columbia. O enfoque da origem internacional dos projetos nacionalistas ofereceria uma perspectiva pouco explorada para a interpretao da consagrao desta obra.

    7 As citaes de Casa-grande e senzala foram extradas da 14a edio em lngua portuguesa (Jos Olympio, 1966).

    8 Em 1937, a Schmidt era uma editora grande para a poca. Nesse ano, publicou 20 ttulos e 100 mil exemplares, o que significa uma tiragem mdia de 5 mil por ttulo. No seria errado arriscar que pelo menos 20 mil exemplares de Casa-grande e senzala circularam at o fim da dcada nas cinco principais capitais do pas. Este um nmero expressivo, segundo os padres da poca, para um ttulo "cultural" e cujo preo de venda do exemplar de capa mole duplicava a mdia de 10$000. As observaes sobre o campo intelectual entre 1936 e 1944 foram extradas de um estudo dos Anurios Brasileiros de Literatura (daqui em diante ABL).

    9 Ainda em 1939, segundo a bibliografia dos ABL (organizada por ureo Ottoni, responsvel pela bibliografia da Biblioteca Nacional), dos 206 ttulos includos nesta "categoria" (76 de Direito; 31 sobre legislao do Estado Novo; 20 de Poltica; 16 de Economia; 16 libelos nacionalistas; 10 ttulos de comrcio, 10 sobre o Estado Novo; 9 de Educao e 4 de Estatstica e Psicologia), somente 9 apareciam como de Sociologia.

    10 Atrelada a este movimento, a obra de Freyre somente compreensvel luz do princpio de autoridade que o une a Jos Lins do Rego, Graciliano Ramos e os "autores da Casa" Jos Olympio, razo unificadora subjacente imposio e

  • consagrao destes valores j clssicos da histria cultural nacional. A impossibilidade de abarcar esta questo neste artigo obriga a um outro "captulo", j em vias de confeco.

    11 Nasce um estilo. Segundo Edson Nery da Fonseca, Gilberto Freyre era, em 1958, o "escritor" que, depois do espanhol Gregorio Maran (219), mais prefcios escreveu no mundo: 150. De longe o seguiriam Paul Valry (50), Andr Gide (47) e J.L.Borges (38) (Freyre, 1978). Este prefcio desaparece a partir da segunda edio, quando introduzido um estudo de Antonio Candido, figura central na evoluo da Sociologia e da Literatura uspianas. Pode-se ver neste deslocamento uma questo de frico intelectual relativa s consideraes tecidas na segunda parte deste artigo, e que tem a ver com uma apropriao "paulista" de Razes do Brasil e seu autor.

    12 Esta coleo, dirigida desde seu incio, em 1931, por Fernando de Azevedo, marcou um estilo de edio. A Brasiliana de Jos Olympio, dirigida por Freyre, confirmou o papel dominante deste estilo de publicao das mensagens sobre o Brasil e a brasilidade, uma vez que a coleo tambm foi um pilar para que Jos Olympio se transformasse no selo cultural mais importante do Rio pelas dcadas seguintes, ocupando e cumprindo, assim, uma posio e um papel homlogos aos da Companhia Editora Nacional de So Paulo. A direo das colees afirma, correlativamente, o peso de Azevedo e de Freyre como intelectuais dominantes nos ambientes culturais de suas respectivas cidades (ver Pontes, 1988).

    13 Em 1937 o autor era de tal forma consagrado que a crtica falava da escola sociolgica de Gilberto Freyre (ABL, 1937, p. 24) e Agripino Grieco, talvez o mais renomado crtico literrio da poca, dispensava analisar a obra de Freyre, j que, em 1936, junto a Jos Lins do Rego, Jorge Amado e rico Verssimo, a ela j se haviam dedicado inmeros trabalhos analticos (ABL, 1937, p. 11).

    14 Em 1984 a obra de Freyre vendida Editora Record. Este evento, a ser analisado em um prximo texto, prenhe de significados sobre as transformaes estruturais nos modos de organizao das relaes e modos de dominao culturais no Brasil e pode ser simbolizado como uma passagem "da casa empresa", da cultura ao mercado, do nacional ao internacional.

    15 "Vertu magique de la nomination" (Bourdieu, 1992, p. 13).

    16 Freyre confirmado como "autor da Casa". Isto significa a insero em um meio de produo cultural "patriarcal", onde Jos Olympio gerava uma comunidade enlaada por estreitos vnculos de parentesco. As relaes de Jos Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Gilberto Freyre, principalmente, com "Jotaoh" e sua famlia eram de "compadrio", formando um sistema de trabalho impossvel de ignorar no estudo de suas obras.

    17 Com bastante antecedncia em relao a outras praas, Buenos Aires foi o primeiro lugar de reconhecimento internacional tanto da obra de Freyre como de Os Sertes, de Euclides da Cunha, dois monumentos do pensamento social brasileiro. Os Sertes foi publicado em 1933 em uma coleo especializada em textos sobre o pensamento brasileiro. J Casa-grande e senzala foi publicada pelo Ministrio de Instruo Pblica e reeditada no ano seguinte por uma casa comercial que posteriormente dominaria o plo literrio do campo editorial na Argentina, a Emec. Como se produziram, historicamente, esquemas intelectuais fora do Brasil para perceber quo interessante publicar os "problemas brasileiros"? A indagao sistemtica de colees e experincias em outros pases sobre o Brasil confluiria originalmente para compreender a gnese dos mecanismos seletivos que criaram e legitimaram as sistematizaes nacionalistas brasileiras e seus autores no Brasil. Inversamente, um estudo sobre as colees ou editoras que no Brasil se preocuparam seletivamente com o o "outro" nacional seria fundamental para a compreenso do poder simblico das mensagens nacionalistas brasileiras e seus estilos para pensar a comunidade nacional. Assim se daria relevo a processos silenciados na construo das imagens do pas na competncia, nas alianas e distanciamentos diante de outras culturas nacionais.

    18 Para resolver este dilema, e como indcio da posio ascendente que gozava Gilberto Freyre em comeos da dcada, Casa-grande e senzala ganhou a reviso literria de Aurlio Buarque de Holanda, autor do "mais completo" dicionrio de portugus brasileiro. Isto evidencia o status de Freyre entre agentes encarregados de produzir a "lngua nacional standard" e "a unificao do mercado de dominao simblica" (Bourdieu, 1982, pp. 28 e 34).

    19 A importncia de Freyre como fonte autorizada se amplifica se se considera que depois dele figuram nomes como Euclides da Cunha, citado 40 vezes, e Afrnio Peixoto, outra das figuras do truncado experimento da UDF, citado em 23 oportunidades.

    20 Um colaborador ntimo foi Diogo de Melo Meneses. A julgar pelo tom apologtico da precoce biografia que Meneses

  • lhe dedica Gilberto Freyre (Casa do Estudante do Brasil, 1944; prefcio de Monteiro Lobato) , esta comunidade deve ter funcionado como squito de consagrao do mestre (cf. Weber, 1992).

    21 As relaes de Freyre com o Estado Novo foram extremamente ambguas. Se em 1937 Casa-grande foi confiscado pela Comisso Nacional para a Represso ao Comunismo e seu autor se salvou da priso por relaes pessoais com o governador de Pernambuco, Sobrados e mucambos foi consagrado entre os 40 ttulos que o Instituto Nacional do Livro considerava bsicos para formar as bibliotecas pblicas do pas. Finalmente, em 1942, Freyre foi preso por ordem de Agamenn Magalhes, acusado de atacar o escotismo.

    22 Esta instituio privada foi criada um ano antes da USP. Como veremos, a ELSP foi um complemento indispensvel para a afirmao da Sociologia como disciplina suporte central para tornar So Paulo um centro nacional de lideranas polticas e intelectuais.

    23 As referncias a Fernandes correspondem a vrios textos publicados entre 1956 e 1958 na revista Anhembi, posteriormente compilados em A Etnologia e a Sociologia no Brasil, livro do qual extraio as citaes.

    24 Suas fortes apreciaes vo mais longe ainda: "os resultados obtidos pelo padro histrico-sociogrfico de anlise da realidade raramente possuem alguma significao para a teoria sociolgica propriamente dita, ainda que os autores das pesquisas pensem e sustentem o contrrio. Se trata de um tipo de conhecimento que precisa ser elaborado mediante tcnicas de induo circunstancial" (Fernandes, 1958, p. 221). Valendo-se do mesmo recurso da nominao seletiva (que d existncia e reconhece) de que se valia Freyre, as referncias contra este autor passam tanto ou mais por formas de aluso silenciosa e implcita que por um dilogo direto. Este se aplica para enquadrar Freyre entre os autores "destinados" a formar parte do passado, tornando-os clssicos.

    25 Por essa poca a Etnologia e a Sociologia j eram categorias englobadas pela classificao local de cincias sociais. Para Fernandes, Curt Nimuendaj ocupava em Etnologia um lugar homlogo ao de Freyre na Sociologia, ou seja, o de principal figura da "primeira metade do sculo".

    26 A proibio poltica imposta a Florestan Fernandes de assumir sua ctedra, o que somente se efetivou em 1964, provocou, alm da violncia e da angstia recorrentes com as quais se realizam as carreiras intelectuais na Amrica Latina, um efeito de "confirmao" da novidade por ele transmitida, que pode ter reforado no somente a adeso entre agentes homologamente jovens (sprit de corps) como tambm a radicalizao do discurso vanguardista.

    27 Um dos discpulos posteriormente destacados nesta ctedra foi Antonio Candido, que, depois de sua tese de doutorado sociolgica (Os parceiros do Rio Bonito), se foi destacando como crtico literrio dos mais renomados nas ltimas dcadas. Sua posio de broker com a outra ctedra lhe valeria um lugar estratgico, do qual emerge como a personalidade mais bem-sucedida nos projetos culturais paulistas na atualidade.

    28 A estas se somava a revista Clima (Antonio Candido, Dcio de Almeida Prado, Paulo Emlio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvo de Andrada Coelho).

    29 "Metodolgica" tambm a distncia que primeiramente escolhe Florestan Fernandes para diferenciar-se de autores como Freyre. Fernandes enuncia precocemente, em "Resultado de um balano crtico sobre a contribuio etnogrfica dos cronistas" (1949), uma nova concepo de anlise dos documentos primrios sobre os quais se baseava sua tese sobre a "organizao social dos Tupinamb" (1947). Considernado que as crnicas e documentos coloniais eram tambm a base de Casa-grande e senzala, notria a omisso de Freyre na lista de Fernandes sobre os poucos autores que se ocuparam, no Brasil, da "determinao da autenticidade dos documentos e da apreciao crtica de seus contedos" (Fernandes, 1958, p. 96).

    30 Este tipo de identificao mltipla fere o esforo dos socilogos profissionais da poca para diferenciar as disciplinas e definir estritamente as competncias cientficas de cada uma.

    31 No Brasil, aos 25 anos da publicao de Casa-grande e senzala, "sua" comunidade (digamos, os 40 romancistas, poetas, historiadores e crticos de maior consagrao), congregada pela famlia Pereira (JO), publicou um livro-monumento (cf. Foucault, 1971) para imortalizar Freyre como escritor: Gilberto Freyre, sua cincia, sua filosofia, sua arte (1962).

  • 32 Com a finalidade de legitimar a dupla condio de socilogo e de escritor, "arte bivalente", Freyre lana nessa poca Como e por que sou e no sou socilogo (1968).

    33 Este julgamento se baseia nas concluses estatsticas de uma pesquisa recente sobre "cientistas sociais e vida pblica" (Werneck Vianna et al., 1994, p. 485). Segundo esta pesquisa, Florestan Fernandes foi o autor proporcionalmente mais lido entre os alunos de cincias sociais de todo o pas, e mais espontaneamente mencionado como referncia da disciplina.

    34 Foi fundamental para pensar este objeto o texto La production de la croyance, de Bourdieu. Especialmente suas apreciaes sobre o tempo: "Marcar poca impor sua marca, fazer reconhecer (em duplo sentido) sua diferena em relao aos outros produtores e sobretudo aos mais consagrados deles; inseparavelmente fazer existir uma nova posio mais alm das posices ocupadas, adiante dessas posies, na vanguarda. Introduzir a diferena introduzir o tempo." (Bourdieu, 1979, p. 39).

    35 Talvez pesem sobre Freyre dilemas similares aos vividos por um Mozart, ou mesmo um Elias, buscando interessar o pblico para um projeto cultural para o qual seu meio social ainda no estava estruturado, mental e institucionalmente, o bastante para valoriz-lo do modo como pretendia o criador. Porm, ao mesmo tempo, a "longo prazo", talvez Freyre pague mais caro por sua pulso por fazer-se querer, aceitando os cnones literrios e sociolgicos do tempo, duvidando sobre a classificao de sua obra.

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    RESUMOS / ABSTRACTS /RSUMS Palavras-chave: Gilberto Freyre; Florestan Fernandes; Processos de civilizao; Regionalismo; Sociologia da produo intelectual Este artigo analisa disputas e momentos de inflexo no processo de autonomizao das cincias sociais e das estruturas de produo e circulao de mensagens escritas sobre o Brasil, a partir da anlise da edio e recepo de Casa-grande senzala, de Gilberto Freyre. Entre os sucessivos prefcios do livro, da 1 14 edies, e a consagrao de autores como Florestan Fernandes, desenvolve-se uma prolongada e violenta batalha simblica para universalizar as formas legtimas (estilos narrativos, projetos institucionais, frmulas editoriais, inveno e representao de comunidades de leitores) para pensar o Brasil. Seguindo este percurso, o artigo mostra como as representaes que pesam sobre Freyre e seu livro de estria, como regionalista, derivam tanto das posies e concepes que Freyre foi assumindo em sua trajetria, quanto das posies que foram se impondo no campo intelectual a partir dos anos 40 em So Paulo, com o objetivo de consolidar a "Sociologia cientfica e nacional". Somando interpretao dos discursos os princpios de sua disperso, como a edio e a institucionalizao dos saberes universitrios, o artigo busca compreender como livro e autor chegaram a ser o que so hoje em dia luz de mudanas nos mecanismos de seleo do panteo dos intrpretes do Brasil.

    Key words: Gilberto Freyre; Florestan Fernandes; Civilization process; Regionalism; Sociology of intellectual production The article analyses intellectual struggles and changes in the independence process of Brazilian social sciences and of the production and circulation of written messages about Brazil, by focusing on the publishing and reception of The masters and the slaves by Gilberto Freyre. Between the first and the 14th edition of the book and the consecration of authors such as Florestan Fernandes, a symbolic battle took place to universalize the genuine forms (narrative styles, institutional projects, editorial formulas, invention and representation of readers' communities) to think about Brazil. The article shows how the judgement over Freyre and his first book to be regionalist, is originated in the positions and conceptions that Freyre himself adopted on his trajectory as well as in the dominant positions on the intellectual field during the forties in So Paulo, which aimed to consolidate the "national and scientific Sociology". Altogether with the speeches' interpretation, the principles of its dispersion, the edition and the establishment of academic knowledge, the article seeks the understanding of how the book, the work and the author have become what they are at the present moment, enlightened by the changes in the selection means of Brazilian interpreters' pantheon.

  • Mots-cl: Gilberto Freyre; Florestan Fernandes; Procs de la civilisation; Rgionalisme; Sociologie de la production intellectuelle Centr en l'histoire de l'dition et la rception de Matres et esclaves de Gilberto Freyre, ce travail constitue une analyse des disputes et moments d'inflexion dans le processus d'autonomisation des sciences sociales et des structures de production et circulation de messages crits sur le Brsil. Entre les prfaces qui se sont succdes de la 1re la 14me ditions de ce livre et la conscration d'auteurs tels que Florestan Fernandes, se droule une bataille symbolique violente qui vise l'universalisation des formes lgitimes (style narratif, projets institutionnels, formules ditoriales, invention et reprsentation de communauts de lecteurs) de penser sur le Brsil. Par ce parcours l'article montre comment les jugements faits sur Freyre et sur son uvre, dits alors "rgionalistes", drivent des positions et conceptions qu'il a acquises au long de sa trajectoire, aussi bien que des positions dominantes depuis les annes 40, destines consolider la "Sociologie scientifique et nationale". L'article cherche comprendre comment l'ouvrage et l'auteur sont parvenus ce qu'ils sont aujourd'hui dans le scnario de la Sociologie, la lumire des transformations soumises par les moyens de slection du panthon des interprtes du Brsil. Ceci est fait par l'interprtation des discours et par l'analyse des principes de leur dispersion, de l'dition et de l'institutionnalisation des savoirs universitaires.

    * Este texto foi originalmente escrito como trabalho final da disciplina Estrutura Social no Brasil, ministrada por Afrnio Garcia Jr. e Jos Srgio Leite Lopes no PPGAS do Museu Nacional em 1995. Agradeo os comentrios crticos de ambos os professores, assim como os de Luiz de Castro Faria e do avaliador do artigo, mesmo no podendo responder a todas as suas instigantes sugestes. Em 1996 o trabalho foi apresentado no GT Histria do Pensamento Social, no XX Encontro Anual da Anpocs. Desejo registrar, finalmente, o meu agradecimento aos colegas do grupo e ao seu coordenador, Ricardo Benzaquen de Arajo, pelos comentrios.

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