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Maria Elizabeth Bueno de Godoy Rumor(Φήμη) e Razão(Λόγος) em Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Orientadora: Profª. Flávia Maria Schlee Eyler Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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Maria Elizabeth Bueno de Godoy

Rumor(Φήµη) e Razão(Λόγος) em Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.

Orientadora: Profª. Flávia Maria Schlee Eyler

Rio de Janeiro Dezembro de 2008

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Maria Elizabeth Bueno de Godoy

Rumor(Φήµη) e Razão(Λόγος) em Jean-Pierre Vernant

e Marcel Detienne

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª Flávia Maria Schlee Eyler

Orientadora Departamento de História

PUC-Rio

Profª Miriam Sutter Medeiros

Departamento de Letras PUC-Rio

Profª Carolina de Melo Bomfim Araújo

Departamento de Filosofia UERJ

Profº Nizar Messari

Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais PUC-Rio

Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 2008.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Maria Elizabeth Bueno de Godoy

Graduou-se em História na PUC-Rio em 2006. Pesquisadora do Projeto “150 anos do Patrimônio da Saúde do Rio de Janeiro (1808-1958)” da FIOCRUZ em 2007. Foi monitora dos cursos de História Antiga I e II da PUC-Rio em 2008. Atualmente é doutoranda do Programa de Pós Graduação em História Social da USP.

Ficha Catalográfica

CDD: 900

Godoy, Maria Elizabeth Bueno de Rumor (Φήµη) e razão (Λόγος) em Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne / Maria Elizabeth Bueno de Godoy; orientadora: Flávia Maria Schlee Eyler. – 2008. 92 f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Inclui bibliografia 1. História – Teses. 2. História social da cultura. 3. Vernant, Jean-Pierre. 4. Detienne, Marcel 5. Alteridade. 6. Sacrifício. 7. Política. 8. Tragédia. 9. Eurípides. I. Eyler, Flávia Maria Schlee. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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“Dizem o labirinto como se fosse o

avesso, quando ele já se apaga, quando ele

já se desfaz, quando se dissipa com o

Minotauro morto”.

(Marcel Detienne, O grou e o labirinto)

Aos meus pais, por terem me preparado para enfrentá-lo.

Mau, por ter segurado o ‘fino fio de Ariadne’, para que eu

não me perdesse. E Antonio, pelo simples

sorrir.

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Agradecimentos

Inicio com o princípio de tudo: meus pais queridos, Antonio Ernani

Wanderley Filho e Lucy Maria Lopes Wanderley (in memorian). Referenciais de conduta, caráter, retidão, determinação e coragem, cujos valores e lições trago sempre comigo. Obrigada.

Ao meu filho Antonio, por dar um sentido a tudo isto. Agradeço à Professora Flavia Maria Schlee Eyler pela dedicação e orientação

que não raro, ultrapassaram a troca de referências bibliográficas tornando este percurso ‘grego’ um caminho precioso. Por suas demonstrações de amizade quando o mundo exigia uma postura ética e justa, e pelo diálogo incansável. Obrigada.

Na busca de um caminho para os estudos sobre a Grécia, agradeço ao Professor Ricardo Benzaquen de Araújo cujas orientações, sempre na justa medida, deixaram marcas pontuais neste trabalho. Obrigada.

Pela generosidade e erudição nos raros contatos, porém valiosos, pela leitura dos esboços e, sobretudo, do trabalho final, agradeço à Professora Carolina de Melo Bomfim Araújo. Obrigada.

À Professora Miriam Sutter Medeiros, por aceitar participar desta defesa e trazer sua preciosa contribuição ao trabalho. Obrigada.

Para aqueles que, muitas vezes, me tiraram de uma ‘quase’ clausura e enriqueceram meus dias nesses últimos dois anos de pesquisa: Vovó, tio Taby, Cris, Luiza “Zuca” (irmã querida), ‘Big’ (in memorian); Natália ‘Bina’ Emery e Priscila Santos, amigas separadas pelo ‘Tenebroso’, mas sempre ao alcance do afeto; Isis e a “tropa espartana”: Argos, Mukeka, Cecília, Zeca, Rosa, Lolô, Fija, Nicolau, Mel, ‘onça’, Liz, Chicão e Nona. Obrigada!

Aos amigos, Sussu, Victor, Baltasar, Tânia, Kel Lopes, Luciana Varanda (IRI) e minha inseparável ‘euripideana’ Paloma. Obrigada.

Ao Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica, seu corpo docente e funcionários, que acreditou e incentivou este projeto desde o início do Mestrado. Um especial agradecimento à Anair, pessoa de singular dedicação e extrema generosidade. Obrigada.

Ao meu querido Mau, pelas incansáveis dicas, notas, críticas, ajustes e trocas, pela erudição e a Ilíada ‘do Haroldo’ (tesouro!), obrigada! Este trabalho tem muito do seu λο/γος e da nossa φιλι/α.

Por fim, é preciso ressaltar que este projeto não poderia ter sido realizado sem o auxílio da CAPES, e explicito aqui meu sincero agradecimento.

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Resumo

Godoy, Maria Elizabeth Bueno de; Eyler, Flavia Maria Schlee. Rumor

(Φήµη) e Razão (Λόγος) em Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne. Rio de Janeiro, 2008. 92 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O que queremos dizer quando falamos do homem grego? O singular cria um

impasse diante da diversidade de situações, modos de vida e dos regimes políticos da

história grega antiga. Este grego seria aquele dos tempos arcaicos, o herói homérico,

o polites, ou o homem trágico do século V a.C.? Através das reflexões e pesquisas

dos helenistas Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne, o ανήρ (homem grego) é

apresentado em sua multiplicidade de facetas, fruto de suas relações com o divino,

com a natureza, com os outros e consigo mesmo. Ao longo dos séculos VI e V a.C.

os gregos desenvolveram práticas e reflexões acerca de sua identidade, práticas essas,

pertinentes à construção do ideal figurado pelo que os autores definem como o

Mesmo. Seu par diametralmente oposto, o Outro, traduz os excessos. Em busca do

ideal de conduta e virtude, o homem grego olha para este “outro” em si; aquele que

precisa ser olhado de frente. Da leitura de Vernant e Detienne, numa construção

reflexiva que parte do modelo de homem da epopéia de Homero àquele

problematizado na tragédia Ática, delineia-se neste estudo, não o grego como foi em

si, mas o grego tal como aparece para estes helenistas, neste incessante ir e vir da

alteridade.

Palavras-Chave Jean-Pierre Vernant; Marcel Detienne; Alteridade; Sacrifício; Política; Tragédia; Eurípides.

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Abstract

Godoy, Maria Elizabeth Bueno de; Eyler, Flavia Maria Schlee (Advisor); Rumor (Φήµη) and Reason (Λόγος) in Jean-Pierre Vernant and Marcel

Detienne. Rio de Janeiro, 2008. 92 p. MSc. Dissertation – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica.

What does one mean when speaking of the Greek man? Singularity brings an

obstacle due to the diversity of situations, ways of life and the politics along Greek

ancient history. Would that be the man from archaic times, the Homer hero, the

polites, or the tragic man of the fifth century B.C? Trough the reflexions and

researches of both Hellenists, Jean-Pierre Vernant and Marcel Detienne, the

ανήρ (Greek man) is presented in its multiplicity of facets, result of its relations with

the divine, the nature, with others and with itself. Along the sixth and fifth centuries

before our Era, Greeks developed practices and reflexions about their identity,

practices concerned to the construction of an ideal, figured at what authors define as

the Equal. Its opposite, the Other, figures the excess. In search for the ideal of

behavior and virtue, the Greek man looks for this “other” within itself; the one who

needs to be faced. In both authors’ readings trough a constructive reflexion, from the

man presented in Homer’s epic poems to the one subject of the Attic tragedy, we

figure out in this study, not the Greek like he used to be, but the one how it appears

to be to both Hellenists, in this constant come and go of alterity.

KeyWords Jean-Pierre Vernant; Marcel Detienne; Alterity; Sacrifice; Politics; Tragedy; Euripides.

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Sumário Introdução 9 1. Rumor (Φήµη) e Razão (Λόγος) em Jean-Pierre Vernant

1.1 Quando λόγος se sobressai à φήµη 13 1.2 O outro naquilo que é o excesso: a ύβρις 23 2. Rumor (Φήµη) e Razão (Λόγος) em Marcel Detienne

2.1 Quando φήµη se sobressai ao λόγος 32 2.2 Rumor e Partilha 40 2.3 Autóctone & Arquegeta: os modos de fundar territórios 55

3. Sob as bênçãos de Lýsios

3.1 A µανία que liberta 64

3.2 “Eu o vi me vendo”. Φήµη e Λόγος nas βακξαι de Eurípides 73

4. Considerações finais 87 5. Referências Bibliográficas 89 5.1 Fontes Primárias 5.2 Fontes Secundárias 90 5.3 Obras de Referência 92

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Introdução

“Ao língua-solta, à insensatez do antilei, o fim é a má fortuna. A

placidez vital de Bios, a lucidez, sustêm, mantêm imperturbada a

morada. Residentes no Éter, longínquos, os Uranidas vêem o afã

humano.” (As Bacantes, 388 – 394

O presente estudo é o resultado do diálogo entre duas reflexões: as dos

helenistas Jean-Pierre Vernant1 e Marcel Detienne.2 Mesmo com diferentes

abordagens no seu campo de estudos, fizeram, no entanto, uma escolha comum ao

elegerem a Grécia antiga como “território”. Neste trabalho, nos propomos a

investigar a trajetória do homem grego antigo, que se esforça para construir um

ideal de conduta, conformado pela justa medida, sobretudo nos séculos VI e V

a.C..

O Rumor (fh/mh) e a razão (lo/gov) são as chaves pelas quais optamos

trabalhar. O Rumor é para os gregos, como uma “paisagem onde as palavras

agourentas faziam eco a sons, a sopros oraculares”3, surgindo em meio ao

burburinho sonoro das criaturas humanas: homens, mulheres, velhos e poetas. O

lo/gov, marca do pensamento racional, expressa em suas instituições e nas

práticas cívicas, a ordenação do próprio espaço da cidade. Na esfera do

pensamento grego entre fh/mh e lo/gov, estabelece-se uma tensão; a qual o

homem esforça-se para equilibrar.

Toda a questão gira em torno do homem grego e dos seus limites,

colocados na pauta das discussões e reflexões dos autores. Entre o ideal de

1 Jean-Pierre Vernant nasceu em Provins, na França, em 1914. Formou-se em Filosofia. Foi dirigente da Resistência durante a II Guerra Mundial e membro do Partido Comunista até 1970. Em 1958, tornou-se professor da École des Hautes Études em Sciences Sociales. 2 Marcel Detienne, nascido na Bélgica em 1935, dirigiu um grupo de pesquisa em história e antropologia no CNRS até 1996. Atualmente, é professor no Departamento de Estudos Clássicos da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore (EUA), e co-dirige o Centro Louis-Marins de estudos comparativos. É diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales. 3 DETIENNE, M., “O Rumor também é um deus”. In: A Escrita de Orfeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991, p.109.

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conduta deste homem, cujos registros lhe diferenciam ao longo do período

referido – cidadão, soldado, sacerdote, herói trágico – a tradição é a mesma e ela

repousa nas narrativas míticas.

No capítulo I, é Vernant quem apresenta este ideal, figurado no que ele

denomina o mesmo. Partindo de uma ‘admiração’ pela literatura clássica grega,

vindo da história da filosofia, o autor acabou derivando seus estudos para uma

antropologia religiosa da Grécia. Segundo afirma Felipe Brandi em sua

dissertação, “o helenismo de Jean-Pierre Vernant não se confunde, mas perpassa

de tal forma o território do historiador que, não raro, esta ressalva, já ecoara em

seus escritos nos últimos vinte anos”4.O próprio helenista proclama ser inevitável

a convergência dos interesses próprios tanto à psicologia quanto à história, numa

direta menção à sua filiação com o psicólogo Ignace Meyerson.5Assim, sem o

aporte das disciplinas clássicas tradicionais, como a filologia, a arqueologia,

epigrafia, a papirologia entre outras, a abordagem antropológica de sua pesquisa

não teria sido possível.

É a partir da fili/a (philía) que Vernant estabelece os laços para esta

‘construção de si’. Ela consiste em tornar um grupo homogêneo, mas nem por isso

exclui a idéia da competição, ou da rivalidade, pelo mérito. Através da associação

que ele faz entre éris e philía, percebemos como os gregos estabeleceram - a partir

do século VI - práticas nas quais tentaram equilibrá-las, expressas nas regras e

formas das instituições da pólis.6 No que concerne a este estudo, a relevância de

sua abordagem repousa no tratamento que ele dá ao homem grego antigo,

buscando refletir sobre ele e sobre sua relação com o outro. Deste modo, adotadas

para a ordenação do espaço comum a todos os homens, essas práticas são

permeadas pelos valores cujo registro vem da tradição, e na rejeição de outros,

não mais tolerados. No entanto, a toda igualdade, pressupõe-se a diferença, e o

4 BRANDI, Felipe de Souza Dias. Entre o Mito e a História. Sobre o Estruturalismo de Jean-Pierre Vernant. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PUC/Rio, 2001. 5 “Entra-se na pesquisa como se entra na religião”, frase de Meyerson citada pelo autor em Entre Mito e Política, um dos dois mestres de Vernant. Outro seria Louis Gernet. (VERNANT, J-P. Mito e Pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990). 6 Para J-P Vernant, o modo de existência da idade do Ferro é a Luta, (conforme sua referência ao mito hesiódico das raças), ou mais exatamente, as duas lutas, boa e má. Segundo ele, também a Justiça, Díke, a do rei e a do lavrador, deve ser exercida sempre por uma Éris. O argumento será abordado neste estudo, a seguir. Ver: VERNANT, J-P. Entre Mito e Política. São Paulo: EDUSP, 2002.

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autor trabalha a questão, indicando como a discussão sobre o outro é vivenciada

pelos gregos.

Mesmo distanciado do mythos, o pensamento racional não rompe com ele.

O capítulo II opera numa dinâmica semelhante a do anterior. Nele, a reflexão de

Marcel Detienne mergulha nas práticas religiosas e problematiza questões

importantes para a sociedade grega. Acerca da expressão religiosa na construção

do espaço político da cidade, apresenta o quadro da religião cívica grega,

interroga-se sobre o estatuto da crença, sobre a relação do homem com os deuses,

o reconhecimento dos limites e dos excessos que marcam toda a expressão do

sagrado, onde a relação entre o excesso e a medida é central. Face ao mesmo, está

o outro que lhe complementa. A abordagem proposta - que sugere uma

antropologia comparativa da Grécia antiga - compreende o período que vai desde

a formação das primeiras póleis até o final do século V a.C.

Detienne inicia sua narrativa fragmentando a própria expressão

“antropologia comparada”. Analisa primeiramente a palavra “antropologia”, que

apesar de vinda do grego, “não significa que houvesse na Antiguidade um ‘saber’

ou um discurso, um lo/gov, sobre o ser humano em geral”.7 E relembra que no

século IV a.C. Aristóteles atesta que “antropólogo” é o nome dado ao tagarela, ao

sujeito linguarudo.8 Em seguida, parte para a palavra “comparada”, aplicada tanto

à antropologia quanto ao seu objeto, a Grécia antiga. Para ele, a antropologia

nasce comparativa;9 com isso, seu estudo propõe um comparatismo construtivo

entre etnólogos e historiadores.10

Ao longo de seu desenvolvimento, notamos como o Rumor se sobressai às

narrativas do discurso racional. O “crer” para os gregos não é separável do

conjunto das práticas sociais e da vida cotidiana dos homens, constituído nos ritos,

nas imagens dos deuses e nos mitos. O mythos nasce com fh/mh, e no capítulo

7 DETIENNE, M. Os Gregos e Nós. Uma Antropologia Comparada da Grécia Antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2008; p.10. 8 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco IV, 8, 1125a5. 9 O autor faz uma apresentação minuciosa acerca da utilização do método comparativo pela disciplina Antropologia, passeando pelos historiadores do XVI até o primeiro quarto do XVIII, até a história se constituir como “ciência” em fins do XIX, atribuindo-se um objetivo privilegiado: o “nacional”. Para esta discussão pormenorizada, ver: Detienne. op. cit., 2008; pp.11-15. 10 Segundo Detienne, há tempos o flerte entre etnólogos e historiadores existe. “O belo olhar distante da antropologia perturba e seduz a história”. Ele relembra que a instituição, o clero, as academias, tudo que há sob o céu desaconselha vivamente a história a “viver em concubinato com a etnologia!”. (Ibid., 20).

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referido abordaremos seu estatuto de existência com relação àquilo que o afasta,

mas não o nega; o lo/gov.

Sacrifício, rito e culto constituem a vida cívica grega, e nesta dissertação

trabalhamos seus aspectos pela via da partilha; do que é destinado aos homens e

aos deuses. Atravessada pelas guerras, as cidades gregas partilham entre iguais,

mas também segregam o que não reconhecem como tal. No estabelecimento do

território, cada cidade cria uma rede própria e chama para seus calendários os

registros da tradição que comprovem e garantam sua autonomia – além da

superioridade – sobre cada terra. Através da autoctonia, o autor delineia não só os

modos de fundar, mas associa-os ao estabelecimento das diferenças entre o que

atende à fixidez de uma ordem, e ao que escapa dela.

O capítulo III – que finaliza o estudo – realiza o esboço de uma análise das

Bacantes de Eurípides (406 a.C.). A tragédia Ática surge em um período – e ao

longo dele se desenvolve – de profundo questionamento acerca das questões

levantadas até aqui. A discussão se inicia com as origens do deus Dioniso; patrono

da tragédia, personagem central da obra em questão e deus do panteão helênico, é

também chamado de deus duplo, ambíguo, errante, mas grego – devido ao seu

nascimento de ventre tebano. Dioniso, ou Lýsios, é aquele que ilumina, liberta e

enlouquece; contém a medida do homem no que ele tem de melhor ou pior. É, ao

mesmo tempo, o mais doce e o mais terrível.11 Na Tebas retratada por Eurípides, a

desmedida dos homens atinge seu ápice, levando-os ao desfecho terrível da peça.

Os cidadãos de Atenas assistem à u3briv tebana. A tragédia – como uma

necessidade da democracia12 – amplia, neste sentido, o debate do pensamento

político e cívico. Confrontando suas origens naquilo que rejeitava e afastava, a

tragédia se constituía assim, no espaço do questionamento.

Lugar onde a problematização da ação humana e dos seus limites saía da

esfera dos sussurros e rumores inaudíveis para o centro da arena, ampliando o que

estava entre a razão absoluta na busca de um ideal fixado, imutável, e a cegueira

completa na fúria dos excessos.

11 VERNANT, J-P. “A longa vida dos deuses gregos” In: op. cit., 2002, p. 235. 12 MEIER, C. De la tragèdie grecque comme Art Politique. Paris : Les Belles Lèttres, 1991.

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1. Rumor (Φήμη) e Razão (Λόγος) em Jean-Pierre Vernant

“Não me é dado fugir. (...) Agora a Moira colhe-me.

Não quero vil e sem glória morrer. Algo de grande quero aos vindouros legar”

(Ilíada, XXII, 301 – 306) 1.1

Quando lo/goς se sobressai à fh/mh

Para quem sabe escutar, todo rumor faz sinal. O murmúrio passado de

boca em boca e de ouvido em ouvido, se transforma em narração já formal, com

cada pessoa acrescentando-lhe ou tirando qualquer coisa. O helenista Marcel

Detienne lembra que, com efeito, as sociedades subjugadas pelos prestígios da

boca e do ouvido, vivem sob a ameaça constante das informações incontroladas,

das maledicências infundadas e de tudo que pode cativar o ouvido.13 A proposta

deste capítulo inicial é discutir como na experiência social grega, lo/goς, que pode

ser traduzido como o pensamento racional, razão, palavra, discurso, se afasta dos

sussurros e das narrativas vindas da tradição, sem contudo, romper com elas.

Na construção de um ideal de conduta e comportamento o homem grego

recorre aos modelos da tradição, ancorada nas narrativas de Homero e Hesíodo.

Do mito à razão? Tal parece ser o quadro dos dois pólos entre os quais

supostamente, teria caminhado a discussão de Jean-Pierre Vernant em sua obra

Mito e Pensamento entre os Gregos.14 No que concerne ao presente estudo, a

fórmula mais adequada é: mito e razão. “Nos mitólogos, depositários do rumor

13 DETIENNE, M. “O Rumor também é um deus”. In: Detienne, op. cit., 1991, p.107; 109. 14 VERNANT, op. cit., 1990.

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fundador, encarnava-se a virtude da eufemia, o movimento imperceptível dos

lábios de quem retém sua voz quando o silêncio é domínio e plenitude do

sopro”15; o mito seria então um produto final, associado aos rumores como aquela

“lei não escrita”.

Nossa perspectiva neste primeiro momento é refletir sobre a construção do

espaço cívico - a partir do século VI a.C.- como expressão de uma atividade

mental organizada, fundamentada no lo/goς. Por meio desta, J-P Vernant busca

quem foi esse homem grego antigo que não está separado do quadro social e

cultural do qual é ao mesmo tempo, criador e produto. Neste sentido,

acompanharemos como que no esforço da construção de um espaço cívico, lo/goς

se sobressai à fh/mh, sem, contudo, deixar de lado a tradição.

A construção do ideal da medida perpassa pelo que Vernant nomeia como

o mesmo, e as marcas deste ideal são notórias tanto na construção do espaço

cívico, quanto nas relações sociais dos homens. Ao realizar sua pesquisa, o autor

percorre uma trajetória identificando desde a epopéia os traços que conformam o

modelo fundador dessas práticas sociais, doravante expressas na ordenação do

espaço da cidade. Desde o áristos16 – homem por excelência dos registros da

poesia épica – ao cidadão do VI e V séculos. Neste caminho, adota a

fili/a (amizade), como ponto de partida para sua reflexão.

No que concerne ao surgimento da cidade, o autor argumenta no capítulo

intitulado “O Universo Espiritual da Polis”17 que o que implica este sistema é

primeiramente uma preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos

do poder. A palavra, segundo ele, “torna-se o instrumento político por excelência,

a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre

outrem”.18 Deste modo, dois aspectos são assinalados para caracterizar este

universo espiritual: o prestígio da palavra e o desenvolvimento das práticas

públicas; aos quais J-P Vernant acrescenta um terceiro aspecto: a fili/a.

15 DETIENNE, op. cit., 1991, p.114. 16 Segundo Jaeger, “a areté é o atributo próprio da nobreza. Os Gregos sempre consideraram a destreza e a força incomuns como base indiscutível de qualquer posição dominante. Senhorio e areté estavam inseparavelmente unidos. A raiz da palavra é a mesma: a1ristov, superlativo de distinto e escolhido, que no plural era constantemente empregado para designar a nobreza”; Paidéia. A Formação do Homem Grego. (São Paulo: Martins Fontes, 2003), p.26. 17 VERNANT, J-P. As Origens do Pensamento Grego. 11ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000; pp. 41-54. 18 Ibid., 41.

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Deste modo, “os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam por

sua origem, classe e função, aparecem de certa maneira, semelhantes aos

outros”19. Para os gregos, só os semelhantes encontram-se mutuamente unidos

pela philía. Deste modo, no esquema da cidade, o vínculo do homem com o

homem toma a forma de uma relação recíproca. Na cidade vive-se sob os olhos

dos outros e o valor de um homem implica que ele seja reconhecido pelos seus

pares. Como afirma o autor, “todos os que participam do Estado” – isto é, da vida

política da cidade – “vão definir-se como Hómoioi, semelhantes”20. Notemos que

Vernant associa a timé (o valor), ao reconhecimento do homem como parte desta

comunidade de pares, o que nos remete ao argumento anterior de que a construção

de si passa pelo contato com o outro.

A palavra grega timé, é definida como o valor que deve ser reconhecido a

um indivíduo. Dela fazem parte sua excelência pessoal e o conjunto de suas

qualidades e méritos; beleza, vigor, coragem, nobreza de comportamento e,

sobretudo, o domínio sobre si: “Aqueles que manifestam aos olhos de todos, seu

pertencimento à elite dos áristoi, os excelentes”21. No entanto, a concepção de

união dos áristoi pela fili/a foi herdada do registro da poesia épica, dos poemas

da Ilíada e da Odisséia de Homero, sobre os quais Vernant também debruça seus

estudos e pesquisas. Alguns aspectos desta abordagem realizada pelo autor devem

ser destacados para o encaminhamento da discussão.22

Em grego, fili/a designa a amizade entre iguais. Na epopéia homérica une

heróis como Aquiles, Pátroclo e Ajax; Sárpedon e Glauco. Segundo as pesquisas

realizadas pelo professor de Literatura Clássica David Konstan, na emanação

épica, a palavra phílos é usada, basicamente, como um adjetivo. Este preserva o

sentido de “caro” no grego clássico e a posteriori.23 Entretanto, Pátroclo é descrito

como o therápon de Aquiles, uma palavra que pode ser traduzida – conforme

Konstan – como “escudeiro” ou “homem de confiança”, embora não

19 Ibid., 49. 20 Ibid., 49. 21 Cf. “O Homem Grego” In: Vernant, op. cit., 2002, p. 184. 22 Para um estudo mais aprofundado do conceito de timé na epopéia, ver: “A Bela Morte de Aquiles” In: Vernant, op.cit., 2002, capítulo 42, pp. 407-415. 23 Segundo Konstan, na literatura arcaica, phílos é também aplicado a partes do corpo, como joelhos e mãos. Para o argumento, ver: KONSTAN, David. A Amizade no mundo clássico. São Paulo: Odysseus Editora, 2005.

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necessariamente indique um status social mais baixo.24 Glauco ocuparia um papel

semelhante em relação à Sárpedon.25

Para aqueles que a Ilíada chama ándres, “os homens de coragem na

plenitude de sua natureza viril”26, existe apenas um modo de se morrer em

combate: na flor da idade, o qual confere ao guerreiro aquele conjunto de

qualidades, prestígios e valores pelos quais os áristoi entram em competição.

Vernant abre o artigo intitulado A Bela Morte e o Cadáver Ultrajado27, com uma

passagem da obra de Homero na qual descreve a perseguição de Aquiles a Heitor:

Ao pé das muralhas de Tróia que o viram, desvairado, fugir de Aquiles, Heitor está agora parado. Ele sabe que vai morrer. Atena o enganou; todos os deuses o abandonaram. O destino de morte (moîra) já se apoderou dele. Mas, se já não pode vencer e sobreviver, depende dele cumprir o que exige, a seus olhos como aos de seus pares, sua condição de guerreiro: transformar sua morte em glória imperecível, fazer do lote comum a todas as criaturas sujeitas ao traspasso um bem que lhe seja próprio e cujo brilho seja eternamente seu. 28

À morte heróica e gloriosa do herói, Vernant associa o ideal de conduta

deste homem, baseado na timé. O helenista afirma que numa sociedade de

confronto como a grega, onde cada indivíduo está colocado sob o olhar do outro,

qualquer ofensa à honra e à dignidade exige uma retratação pública. “A identidade

de um indivíduo coincide com sua avaliação social: da derrisão ao louvor, do

desprezo à admiração”.29 É válido lembrar que a Ilíada começa no instante em

que Aquiles, colérico, retira-se da luta contra os troianos, devido à contenda com

o rei Agamêmnon. Para o autor, Aquiles não avalia a timé pelo crivo do poder

real;30 o que explica que qualquer ofensa, venha de onde vier, é igualmente

insuportável e inexpiável. Toda desculpa permanece vã e ineficaz.

24 Ibid., 57-58. 25 Segundo afirma Konstan, na epopéia arcaica a amizade é concebida por um laço formal em vez de emocional, baseado na obrigação e não no amor. Para o conceito de fili/a (philía) no mundo homérico, ver pp.35-6. 26 VERNANT, J-P. “A Bela Morte e o Cadáver Ultrajado”. Revista Discurso nº9. São Paulo, 1979. 27 Este artigo de Jean-Pierre Vernant retoma parte de suas conferências, realizadas no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo no ano de 1977, publicados dois anos depois. Ver nota 14. 28 Ibid., 31. 29 VERNANT, “A ‘Bela Morte’ de Aquiles”. In: op. cit., 2002, p.407. 30 Ibid, 408-9, para o argumento sobre as duas referências à palavra timé: a do rei e a do herói.

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O próprio Vernant coloca a questão: Seria Aquiles avesso ao aidós,31

instrumento de reserva e moderação? Referindo-o, “a timidez respeitosa que

mantém o mais fraco à distância do mais forte”, indica-o como prerrogativa para

que a fili/a se estabeleça. Desta maneira, Pátroclo estaria unido a Aquiles,

Glauco a Sárpedon e assim por diante. À fili/a está associado o conjunto de

práticas e condutas que conforma o ideal do homem grego figurado no herói.32 A

competição faz parte deste conjunto, formando o que ele estabelece como o

vínculo entre poder de conflito, e poder de união.

Poder de conflito – poder de união, Éris – Philía; associação que o autor

utiliza para marcar os dois pólos da vida social no mundo aristocrático que sucede

às antigas realezas.33 “A metalurgia do ferro sucede à do bronze”, diz,

sublinhando o alcance das transformações sociais que repercutem com o

desaparecimento do a1nac (ánax). Neste sentido, uma breve digressão acerca do

título usado pelo rei no período micênico se faz necessária.

Segundo Vernant, no capítulo “A Realeza Micênica”,34 a decifração das

plaquetas na escrita linear B resolveu certas questões propostas pela arqueologia,

sem deixar de levantar novas. A vida social do período aparece centralizada em

torno do palácio que possui, ao mesmo tempo, um papel religioso, político,

militar, administrativo e econômico.35 Neste sistema, a figura do rei unifica em si

todos os elementos do poder. O autor afirma que o testemunho das plaquetas

permite precisar este quadro da corte palaciana micênica, na qual a autoridade do

a1nac é exercida não só em todos os níveis da vida militar, como também da vida

religiosa, onde “ordena com precisão seu calendário, vela pela observância do

ritual, pela celebração das festas em honra aos diversos deuses, determina

sacrifícios (...)”.36

31 O aidós é o sentimento de indignidade que se sente quando uma falta no código de honra expõe um homem ao opróbrio público. Segundo Isidro Pereira, significa temor reverencial; o que causa vergonha. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. (8ª Edição, Livraria Apostolado da Imprensa, 1988). 32 A exaltação da “bela morte” em Esparta e Atenas, em plena época clássica, mostra o prestígio que o ideal heróico manteve e seu impacto sobre os costumes até em contextos históricos mais distanciados do chamado mundo homérico. Cf. Vernant, op. cit., 1979, p..42. 33 VERNANT, J-P. “A Crise da Soberania” In: As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000; p. 38. 34 VERNANT, “A Realeza Micênica” In: op. cit., 2000, p. 21. 35 Ibid. p.21. 36 Ibid. p.25.

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No período arcaico, os homens teriam realizado através da fili/a e da

exaltação dos valores da luta e da concorrência, aos quais se associa o sentimento

para com uma só comunidade, a reordenação das estruturas do pensamento, rumo

à pólis grega do século VI, com as transformações que nela se operam em

diversos níveis. Nessa passagem, todo o domínio do período ao qual Vernant se

refere como “pré-jurídico”37, constitui em si uma espécie de agón, um combate

codificado e sujeito a regras, em que se defrontam grupos. Ele ressalta que é a

política que toma por sua vez a forma de um combate; os que medem pela

palavra, que opõem discurso a discurso, formam nesta sociedade hierarquizada

um grupo de iguais.

Através da personagem de Clístenes, o Ateniense38 – tal é o título da obra

de P. Lévêque e P. Vidal-Naquet referida por Vernant – notamos um esforço para

demonstrar como as reformas de Clístenes situam-se no plano das instituições,

fixando assim, o quadro no qual se desenvolveu a vida política da Atenas clássica.

O autor afirma que mais do que uma transformação, deve-se falar “de uma

instauração do político, do advento do plano político, no sentido próprio, na

existência social dos gregos”.39 Destarte, de Sólon a Clístenes, os conflitos que

dividem a cidade exprimem-se em outros termos; deslocam-se. O jogo das forças

antagonistas se desenrola em outro contexto, no que Vernant faz ressaltar a

passagem do domínio do oi]kov para o da pólis; do domínio da economia da casa

ao das instituições.40

Na criação de um sistema institucional que permitisse unificar grupos

ainda separados por estatutos sociais, familiares, territoriais e religiosos

diferentes, nota-se na constituição clisteniana, o esforço para constituí-los em uma

cidade homogênea, feita de cidadãos semelhantes e, doravante iguais, tendo os

mesmos direitos de participação na gestão do que é comum, dos negócios

públicos. E é este espírito igualitário, apontado pelo autor no próprio seio de uma

concepção agonística da vida social, que marca a mentalidade da aristocracia

guerreira, neste caso de Esparta: os Hómoioi.

37 Período das cidades arcaicas na Grécia; séculos VIII e VII a.C. 38 LÉVÊQUE, P. VIDAL-NAQUET, P. Clisthène l’Athénien. Annales Littéraires de l’Université de Besançon, V. 65. Paris: Les Belles Lettres, 1964. 39 VERNANT, “Espaço e Organização Política na Grécia antiga”. In: op. cit., 1990, p.286. 40 Ibid., 286.

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Da epopéia homérica à obra de Hesíodo41, o helenista afirma que aos

semelhantes, Hómoioi, impor-se-ão os iguais, os Ísoi. A participação na vida

política estende-se no VI século a todos os cidadãos, não mais como prerrogativa

da aristocracia – representada pela elite militar - mas por um corpo mais alargado

da sociedade que inclui também o dêmos. “É, com efeito, essa nobreza militar que

estabelece pela primeira vez, entre a qualificação guerreira e o direito de participar

nos negócios públicos, uma equivalência que não será mais discutida”42.

O que na pólis faz coincidir o soldado com o cidadão, que tem seu lugar na

formação militar da cidade do mesmo modo que em sua participação política. O

aparecimento do hoplita - soldado pesadamente armado - que combate em linha

no princípio da falange sinaliza esta mudança no quadro mental da cidade. O autor

lembra que todos os que podem arcar com as despesas do equipamento dos

hoplitas – o que inclui os pequenos proprietários do dêmos, conforme citamos –

encontram-se colocados no mesmo plano que a elite aristocrática militar.

Assistimos deste modo, à passagem do conceito grego de excelência e virtude, a

areté - que caracterizavam os melhores guerreiros, os áristoi - para uma nova

excelência: a virtude coletiva do soldado cidadão, o polítes.

Colocando o homem essencialmente como cidadão, Clístenes delineia o

quadro político no qual os gregos da idade clássica situaram e exerceram sua

atividade social. E se suas reformas traduzem uma profunda transformação neste

espaço cívico, elas também colocam em jogo a preeminência de um pensamento

racional, incluindo categorias como a organização geométrica do koino/n (espaço

público) e dos territórios da casa e da cidade. O autor afirma que em face das

antigas representações espaciais, temporais, numéricas, carregadas de valores

religiosos, elaboram-se novos quadros da experiência, que correspondem às

necessidades de ordenação do mundo da cidade.43

Contudo, isto não significa uma ruptura com as práticas antigas no que

concerne à vida religiosa grega. O sagrado está no político, na casa e nas relações

do homem na sociedade numa esfera que remete aos sacrifícios, às libações e às

crenças. Mas, acerca desta discussão falaremos no capítulo II. Nestes novos

41 Vernant refere-se à observação de Hesíodo, na qual toda rivalidade, toda eris supõe relações de igualdade: a concorrência não existe senão entre iguais. Para o argumento, ver: “A Crise da Soberania”. op.cit., 2000, p. 39. 42 VERNANT, op. cit., 2000, p. 50. 43 VERNANT, op. cit., 1990, p.288.

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quadros, nota-se a preeminência do espaço sobre o gentílico44; de uma ordem fixa

sobre o movimento; do homogêneo sobre o heterogêneo; do lo/gov sobre fh/mh.

Preeminência, e não ruptura. O que marca a construção de um ideal permeado

pela medida, oposto às condutas que figuram os excessos e a desordem.

J-P Vernant indica que alargada neste novo campo de práticas, a

transformação se dá na própria conduta do guerreiro no que concerne ao

entendimento acerca da formação deste Mesmo. O que antes contava para o herói

homérico como a glória das façanhas individuais aonde o valor militar se afirmava

sob a forma da aristeía, de uma superioridade pessoal45, não tem mais valor para

o soldado da falange. Pelo contrário, é recusado por ele. Ele diz que o hoplita é o

homem do combate ombro a ombro, treinado para manter sua posição, marchar

em ordem, cuidar para que a coesão da fileira não seja comprometida. “A virtude

guerreira (...) é feita de sophrosýne: um domínio completo de si, um constante

controle para submeter-se a disciplina comum”46. A falange faz do hoplita, como

a cidade faz do cidadão, uma unidade permutável, um elemento semelhante a

todos os outros. E mesmo na guerra, “a Éris, desejo de triunfar sobre o adversário,

de afirmar sua superioridade e seu valor de guerreiro, deve se submeter à fili/a,

ao espírito da comunidade”47.

No capítulo intitulado “A organização do cosmos humano”, Vernant

apresenta a palavra grega sophrosýne associada tanto ao homem religioso, quanto

ao homem político.48 O qei~ov a0nh/r49, neste caso, é o Sábio, que tal como o

adivinho e o aedo, e ainda confundido com eles, define-se originalmente como o

ser excepcional que tem o poder de ver e de fazer ver o invisível.50 No conjunto,

entretanto, lembra que é fora das seitas que a sophrosýne adquire uma significação

moral e política precisa, confirmando o anteriormente referido acerca da virtude

44 Ibid., 288. 45 VERNANT, “O Universo Espiritual da Polis” In: op. cit., 2000, pp.50-51. 46 No entanto, o próprio autor argumenta que até mesmo na Atenas democrática do século V a.C., os valores aristocráticos de competição pela glória continuam dominantes. A rivalidade se exerce entre cidadãos considerados, no plano político, como iguais. “Cada um é igual, semelhante a todos os outros, por sua plena participação nas questões comuns ao grupo”. Op. cit., 2002, p.185. 47 Ibid, 185. 48 Vernant se refere à noção religiosa da sophrosýne como aquela já elaborada em certos meios religiosos, antes de ser reinterpretada pelos Sábios num contexto político. (op. cit., 2000, p. 71) 49 Vernant traduz o qei~ov a0nh/r como um eleito que se beneficia da graça divina; um Sábio. Cf. “Do Mito à Razão”, op. cit., 1990, p. 457. 50 Ibid., 456.

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coletiva. O autor opta pela análise do modelo espartano de conduta para

caracterizá-la:

Já numa instituição como a agogé espartana, a sophrosýne aparece com um caráter essencialmente social. É um comportamento imposto, regulamentado, marcado pelo ‘comedimento’ que o jovem deve observar em todas as circunstâncias: comedimento em seu andar, em seu olhar, em suas expressões, comedimento diante das mulheres, em face aos mais velhos, na ágora, comedimento com respeito aos prazeres, à bebida. 51

A sophrosýne submete deste modo, cada indivíduo em suas relações com

outros a um modelo comum que a cidade constrói para o “homem político”. Para

compreendermos que realidades sociais recobrem o ideal da sophrosýne, o autor

nos remete às reformas constitucionais como as de Sólon, no VI século. Segundo

a sua reflexão, elas criam um espaço para a igualdade, a isotes, que aparece como

um dos fundamentos para a nova concepção da ordem. “Sem isotes, não há

philía.”52 E Vernant reforça, referindo às palavras de Sólon, que o igual não pode

engendrar a guerra. Mas, se esta igualdade é hierárquica – e política – excluindo

de sua esfera os estrangeiros, as mulheres e os bárbaros, onde ela se encontra? A

pergunta é colocada pelo próprio autor, que conclui: “Ela reside no fato de que a

lei, agora fixada, é a mesma para todos os cidadãos e que todos podem fazer parte

dos tribunais como da assembléia”.53

Deste modo, projetando-se conforme o esquema espacial, a cidade

constitui o centro deste espaço onde cada tribo é representada. No centro da pólis,

a ágora, - sede da Boulé -reorganizada e remodelada, forma um espaço público

delimitado por marcos específicos.54 O centro possui um significado religioso,

vindo de um registro que pertence à ordenação do espaço doméstico, do oi]kov.

Deste território, fronteira marcada pela presença de hestia, fogo do lar, território

da deusa Hestia, a lareira comum da cidade, acesa a cada assembléia dos

cidadãos, torna-se símbolo político, Hestia koiné.55. Em sua arquitetura

doméstica, expressa na localização da lareira no centro da casa, Hestia enraíza a

51 Ibid., 456. 52 Ibid; 72. 53 Ibid; 73. 54 VERNANT, op.cit., 1990, p.288. 55 Sobre o significado religioso do centro e da fixidez na edificação das lareiras nas casas e na ágora, Vernant desenvolve uma rica discussão, que será tema da abordagem desta dissertação no capítulo II. Para o argumento em sua íntegra, ver: “Sobre a expressão religiosa do espaço e do movimento entre os gregos” In: op. cit., 1990, pp. 189-243.

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casa humana e conecta as famílias com seus deuses, naquilo que Vernant define

como a “qualidade religiosa particular de cada oîkos”56, isolando-o em redor de si

mesmo.

Hestia-koiné, neste sentido, edificada em um espaço comum, estendida ao

alcance dos cidadãos, exprime para o autor o centro enquanto denominador

comum de todas as casas57, fixando-lhes numa mesma ordem, ou em um ideal. Do

mesmo modo, por seu comedimento, o comportamento do polítes afasta-se tanto

da negligência quanto da arrogância altiva dos aristocratas.58 O autor argumenta

que o novo estilo das relações humanas obedece às mesmas normas de controle,

de equilíbrio, de moderação que traduzem as sentenças como “conhece-te a ti

mesmo”, “nada em excesso” e “a justa medida é o melhor”.59

Na transcrição de uma citação de Plutarco referida a Sólon, Vernant

esclarece essa mudança operada pelo lógos e pelo nómos (regra):

u(πo lo/gou kai\ no/mou metabolh/60. O helenista afirma que para os gregos o

Mesmo é a própria identidade social, aparecendo para eles como um modelo. Ele

esta figurado no cidadão do sexo masculino, ponto de referência para se pensar os

outros seres vivos: os animais – que se devoram entre si e comem cru – e os

bárbaros - definidos pelas diferenças que os lançam para fora deste ideal. Ao

longo deste trabalho veremos, no entanto, que as mesmas categorias apreendidas e

aplicadas para estabelecer uma fixidez do ideal, sofrem alterações ao longo do V

século que criam fronteiras, lançando para fora delas os próprios gregos. O outro,

tema abordado na segunda parte do capítulo, integra a construção deste si mesmo,

como uma sombra que lhe acompanha e complementa, operando à sua margem,

controlado – ou não – por este ideal.

56 Ibid., 288. 57 Ibid., 289. 58 Vernant ressalta que o desenvolvimento do pensamento moral e da reflexão política prosseguirá também nesta linha; às relações de força tentar-se-á substituir por relações “racionais”, estabelecendo em todos os domínios uma regra baseada na medida, visando o equilíbrio dos intercâmbios que formam este tecido social. Cf. “A Organização do Cosmos humano”, In: op. cit., 2000, pp.65-79. 59 Ibid., 72. 60 PLUTARCO, Vida de Sólon, 14, 5. Apud Vernant, op. cit., 2000, p. 73.

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1.2 O outro naquilo que é o excesso: a u3briv

“A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles, o irado desvario, que aos

Aqueus tantas penas trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades

de valentes, de heróis” (Ilíada, I – 4)

J-P Vernant lembra que na Grécia, a evolução intelectual que vai de

Hesíodo a Aristóteles pareceu seguir duas orientações: “em primeiro lugar,

estabelece-se uma distinção clara entre o mundo da natureza, o mundo humano e

o das forças sagradas”.61 Em segundo lugar, o lo/gov se afasta de todo modo de

raciocínio que proceda do ambíguo, ou seja, de fh/mh, em nome do ideal e do

ordenado.

Partimos então da afirmação do autor para reforçar o argumento inicial

desta dissertação: ao longo dos séculos VI e V a.C. os gregos desenvolveram

práticas e reflexões que operam neste par distanciamento/aproximação,

“pertinentes à construção do ideal figurado pelo Mesmo”. Seu par diametralmente

oposto, o Outro, traduz o excesso, a u3briv (hýbris). Em busca do ideal

anteriormente referido, o homem grego olha para este “outro” em si; “aquele que

precisa ser olhado de frente”.62 Cair em u3briv faz parte desta humanidade

estudada por Vernant e a questão do Outro é abordada no presente estudo a partir

da experiência religiosa do homem.

Denominamos as grandes divindades do panteão grego de “deuses pessoais”. Esta fórmula não parece ter suscitado objeção. Ela implica, entretanto, que os gregos conheceram a pessoa no sentido que entendemos hoje e que eles organizaram em torno dela toda ou parte da sua experiência religiosa. Um dos traços característicos da religião grega é dar às forças do além uma figura individual e bem delineada e um aspecto plenamente humano. (...) Em suma, é preciso que

61 Ibid.,17. 62 VERNANT, “Visto de Frente” In: op. cit., 2002, pp. 337-341.

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nos interroguemos, (...) quais aspectos do “eu”, do homem interior, a religião grega contribuiu para definir e formar (...).63

Entre o mundo dos homens e o dos deuses, como se estabeleceria a relação

do homem com a divindade, também formadora, a qual se refere o autor? O

próprio Vernant a apresenta afirmando que para os gregos, “como os homens, mas

acima deles, os deuses são parte integrante do cosmos”.64 Assim, todos fazem

parte de uma mesma ordem e a ela tudo implica. Frente aos bens preciosos, o mal

que lhe corresponde, seu contrário e seu par; não há vida sem morte, juventude

sem velhice, esforço sem cansaço. O autor reforça o argumento lembrando que

neste mundo, para o grego, “toda luz tem sua sombra, todo brilho tem seu reverso

feito de escuridão”65, o que nos leva à fronteira que separa o ideal permeado pela

medida, do excesso, acompanhado de impurezas e violência. A fronteira que

separa o homem dos deuses, esta que denomina “intransponível”, estabelece uma

das regras principais da sabedoria grega relativa à sua relação com os deuses: “que

o homem não pode pretender, de forma alguma, igualar-se a eles”66.

É através do esboço de análise do Mito das Raças de Hesíodo67, que J-P

Vernant identifica a fronteira entre homens e deuses, reforçando o quadro mental

que estabelece os modelos da virtude e dos excessos nessa relação, originados do

mito. É válido notar que o autor mergulha nos estudos das narrativas míticas para

“perceber como esta cultura particular contou histórias”.68 Os mýthoi, narrativas

contadas pela tradição familiar - sobretudo através das mulheres - e pelos aedos

(poetas), contribuem, segundo Vernant, para moldar o quadro mental em que os

gregos são muito naturalmente levados a imaginar o divino, a situá-lo e a pensá-

lo.

“Todo rumor, então, encontrava sua fonte no deus soberano do céu

chamado Senhor das vozes, o Zeus dos presságios conhecido também pelo nome

de Phêmios”.69 E o rumor, quando vem dos deuses, lembra Detienne, exigia um

cerimonial adequado. Sobre a tradição religiosa grega, Vernant lembra que ela não

63 VERNANT, “Aspectos da pessoa na religião grega”, In: op. cit., 1990, p 417. 64 VERNANT, op.cit., 2002, p.173. 65 Ibid., 174. 66 Ibid., 174. 67 HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. 106 -201. Utilizamos neste trabalho a tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. Os Trabalhos e os Dias. (São Paulo: Iluminuras, 1991). Demais referencias à obra serão citadas apenas como “Trabalhos”. 68 Idem., “Do Outro ao Mesmo” In: op. cit., 2002, p.59. 69 DETIENNE, “O Rumor também é um deus”, In: op. cit., 1991, p.112.

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é uniforme, nem estritamente determinada; para quem cumpre os ritos, basta dar

crédito a um vasto repertório de narrativas conhecidas.70 É neste quadro mental

que a crença em relação aos deuses ganha corpo, e que se produz também em

relação a eles, as exigências impostas. Segundo o autor, “rejeitar esse fundo de

crenças comuns seria, da mesma maneira que deixar de falar grego e deixar de

viver ao modo grego, deixar de ser si mesmo”.71

Acompanhando a análise do autor no capítulo intitulado “Formas de

Crença e de Racionalidade na Grécia”72, percebemos deste modo que o “crer”

para os gregos não é separável do conjunto das relações e das práticas sociais.

Para ele a questão da crença constitui-se basicamente de três elementos: os rituais,

as imagens, ou ídolos,73 e os mitos. Crer, neste caso, é cumprir certo número de

atos durante o dia ou durante o ano, com festas que são fixadas pelo calendário;

atos da vida cotidiana. Enfim, tudo aquilo que passa a ser regrado e ordenado.

Assim, o não cumprimento das libações, é interpretado como uma falta: “falta que

faz parte não só do campo civil, político e jurídico, mas que é também

religiosa”.74

Vernant diz que é a tradição poética que constitui o “breviário” das

crenças; o saber coletivo desse grupo, pois a paidéia consiste justamente na

repetição dessas narrativas. Da Justiça, no mito em questão, indica que Hesíodo

tira um ensinamento que dirige mais especialmente ao seu irmão Perses, que havia

lhe roubado. O poeta resume-o na seguinte fórmula: “Tu, ó Perses, escuta a

Justiça e o Excesso não amplies!”.75 Com efeito, o mito conta a sucessão das

diversas raças de homens que apareceram e depois desapareceram alternadamente.

Da Raça de Ouro, passando à de Prata e de Bronze – a qual, segundo Vernant,

Hesíodo intercala com a dos Heróis – finalmente chegamos à Raça de Ferro, que

representaria o homem no próprio tempo do poeta – o século VII a.C.- suplicando

aos deuses pela díke (justiça) contra os excessos da u3briv (desmedida).

70 Essa massa de “saberes” tradicionais se conserva e transmite (no que concerne a linguagem), basicamente de duas maneiras: primeiro, mediante uma tradição oral, passada pelas mulheres; segundo pela narrativa dos poetas, ou aedos, cujos maiores expoentes foram Homero e Hesíodo. Cf. VERNANT, J-P. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 71 Ibid.,14. 72 VERNANT, op. cit., 2002, p.198. 73 Para a análise do elemento exterior aos ritos (ídolos), ver o capítulo 17, “Formas de crença e racionalidade na Grécia” In: op. cit., 2002, p. 198. 74 VERNANT, op.cit., 2002, p.198. 75 Trabalhos, 213.

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O que distingue o plano das duas primeiras raças e o das raças seguintes,

conforme a análise do autor é o fato de se relacionarem a funções diferentes, de

representarem tipos de agentes humanos, formas de ação, estados sociais e

“psicológicos” opostos76. No que concerne ao nosso estudo, importa referenciar a

análise que Vernant faz das raças de Bronze e da dos Heróis; raças que remetem

ao segundo plano, no qual o aspecto da u3briv se sobrepõe ao da Díke (justiça).

Para ele, a Raça de Bronze introduz-nos em uma esfera de ação específica:

a ação guerreira. “Nascida dos freixos, terrível e vigorosa, esta raça não se

assemelha em nada à Raça de Prata; ela só pensa nos trabalhos de Ares77 e na

Hýbris”.78 Destarte, Vernant explicita a desmedida dos homens de bronze,

caracterizados pelo seu aspecto militar, puramente guerreiro. Passamos assim ao

plano das manifestações da força brutal, do vigor físico e do terror que a

personagem do guerreiro inspira. A palavra grega para vigor, ardor, espírito de

violência – sobretudo nas batalhas – é me/nov79. Os homens de bronze só se

dedicam à guerra, e no mito referido não há alusão ao exercício da justiça, nem ao

culto em honra dos deuses - piedade ou impiedade. Acerca do metal em questão,

complementa:

O bronze aparece intimamente ligado, no pensamento religioso dos gregos, à força com que se revestem as armas defensivas do guerreiro. O brilho metálico do bronze ofuscante, este clarão do metal, que faz resplandecer a planície e que sobe até o céu, 80 lança o terror na alma do inimigo. 81

Os freixos, dos quais nasceram os homens de bronze, têm função

importante em outras narrativas sobre este homem primordial. Entre essas,

Vernant ressalta a da origem mítica dos tebanos que, nascidos da terra,

conformariam o homem em sua condição de guerreiro. Estes seriam descendentes

dos chamados “Semeados”, ou Espartos.82 Assim, fundamentada na lança,

76 VERNANT, “O mito hesiódico das raças” In: op. cit., 1990, p. 30. 77 Deus da guerra. 78 Trabalhos, 144-6. 79 me/nov, que significa: alma; princípio vital; princípio da vontade; princípio das paixões, espírito; valor; ardor; violência. Cf. Isidro Pereira S.J. 80 Ilíada, II, 578; Ilíada, XX, 156. Apud Vernant, op. cit. 1991, p.41. A menção ao bronze também aparece em outra passagem no canto XIX. Ver: Ilíada, XIX, 360. In: VIEIRA, T. (org.) Ilíada de Homero. Vol. II. Tradução Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002, p. 287. 81 Ilíada, XIX, 362. Apud Vernant, op. cit., 1990, p. 41. 82 Cf. Vernant, fundamentada no mito de Tebas, a estória têm início com a chegada de Cadmo ao local onde deveria fundar a dita cidade. Ao enviar seus companheiros em busca de água na fonte de Ares, descobre-os todos mortos, aniquilados pela serpente do deus que guardava a fonte. O

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dedicada a Ares, inteiramente estranha ao plano jurídico e religioso – que

conforma o limite da ação humana – a Raça de Bronze projeta no passado a figura

do guerreiro votado ao excesso, à u3briv, na medida em que desconhece tudo o

que ultrapassa sua própria natureza. 83

Já a Raça dos Heróis é definida pelo autor, em relação à de bronze, como

sua “contrapartida na mesma esfera funcional”. Importa-nos compreender neste

ponto da análise do autor, como os heróis, cantados na Ilíada de Homero,

conformam o ‘outro’ em sua relação com os deuses. Vernant menciona acerca dos

heróis que: “são guerreiros; lutam na guerra, morrem na guerra.” A u3briv dos

homens de bronze afastava-os da Raça de Prata. Inversamente, a Díke dos heróis

une-os aos homens de bronze, contrapondo-os. Ele faz uma aproximação dos

opostos Díke-Hýbris, afirmando que a Díke do herói situa-se no mesmo plano

militar que a u3briv dos homens de bronze. Ao guerreiro votado aos excessos,

opõe-se o guerreiro justo, que reconhece seus limites e aceita submeter-se à ordem

superior da justiça.

Mas ao herói é atribuída a ação por interferência divina. O herói em

u3briv é aquele que sofreu uma cegueira momentânea, Ate, ou seja, que agiu por

influência dos deuses. O que nos leva ao argumento anterior de Vernant acerca da

desmedida de Aquiles, “que não avalia a timé pelo crivo real para quem qualquer

ofensa, venha de onde vier, é igualmente insuportável e inexpiável” - mesmo que

o rei de Micenas justifique seu erro devido a ate que os deuses lhe impuseram.84

Deste modo, Aquiles seria avesso ao aidós; indignado em sua fúria, afundado na

u3briv. Já Heitor é para ele – sobretudo no início da Ilíada – o herói da lealdade,

definido por suas relações com toda a rede dos seus. A serviço da comunidade

combate por respeito ao aidós, aquilo que Aquiles desconhece.85 Mas também

herói, então, mata a serpente, e, a conselho da deusa Atena, semeia os dentes do monstro por toda a planície. Nesse campo, germinam e surgem no mesmo instante homens adultos, completamente armados. São os “Semeados”; guerreiros que, perecendo sob seus próprios golpes, com exceção de cinco sobreviventes, dão origem à aristocracia tebana. (Ibid., 43). 83 Ibid., 39. 84 Para o argumento acerca da Ate, cegueira, de Agamêmnon – rei de Micenas – ver o capítulo “A Apologia de Agamêmnon” de E.R. Dodds, In: DODDS, E.R. Os Gregos e o Irracional. São Paulo: Escuta 2002. 85 Esta afirmação é controversa, pois cf. Bruno Snell, Aquiles demonstra-o quando Atena lhe interpela para mitigar sua ira. “O sentimento peculiar com que os homens homéricos recebem a divindade, quando esta lhes vem ao encontro, expressa-se na cena de Aquiles: Atena pôs-se atrás dele, agarrou-o pelos cabelos e apenas lhe apareceu a ele. Aquiles espantou-se e, ao virar-se, imediatamente reconheceu Palas Atena – cujos olhos cintilavam de um modo assombroso.”

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Heitor é tomado pelo me/nov86 ao matar Pátroclo, ‘estado’ também atribuído à

influência divina que levaria o herói às ações mais violentas durante o combate.

Vernant lembra que sem preencher a intransponível distância que separa os

humanos dos deuses, o estatuto heróico, deste modo, parece abrir a perspectiva da

promoção de um mortal a um estatuto próximo ao divino. Esta é contrariada,

segundo o próprio autor, pelo sistema religioso – sobretudo no período clássico -

que alerta para o fato da sabedoria ordenar a guarda dos próprios limites humanos

em relação aos deuses.

Retornando à epopéia, o autor aponta que o retrato da Ilíada, em sua

progressão, ilustra o movimento de desorganização e reorganização; o ir e vir

entre a ordem aparente da vida e a desordem que nela se dissimula, e entre a

desordem assim revelada e uma ordem nova. No decorrer da intriga, o autor atenta

para uma espécie de esfacelamento deste mundo heróico, indicando o ultraje ao

cadáver de Heitor como uma “perversão do mundo da guerra”87. Ele chama este

estado violento e selvagem de ‘estado de impureza’. Em outro momento associa a

mácula à ordem, e não ao temor.88

No que concerne ao estudo aqui desenvolvido, a impureza – remetida aos

excessos – torna-se suja na medida em que, nos quadros de uma organização

social e intelectual definida, ocupa um lugar que contradiz o sistema de

classificação próprio de uma cultura. “É sujo o que só pode ser pensado como

anomalia, aquilo cujo estatuto aparece ambíguo, marginal, e que questiona, por

não poder ser integrado a ordem da qual o grupo social é solidário e cuja

perpetuação deseja garantir”.89 Deste modo, Vernant indica os elementos que

conformam este Outro: a sujeira, a loucura, enfim, tudo o que é com relação à

ordem, o negativo e o outro que deve ser enfrentado e integrado àquilo que o

exclui90.

Quando voltamos nosso olhar para o período posterior, uma das primeiras

coisas que nos chama a atenção é a percepção aguda da insegurança e do

(SNELL, B. “A Fé nos deuses Olímpicos” In: A Descoberta do Espírito. Lisboa: Edições 70, 1975, p.56). 86 Para o conceito de me/nov, ver a análise de Isaias Pessotti acerca do descontrole da vontade, como impulsos irracionais, agressivos ou heróicos em: PESSOTTI, I. A Loucura e as Épocas. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 87 VERNANT “A Tragédia de Heitor” In:op. cit., 2002, p. 386. 88 Idem, “Perigo e Virtude do Maculado” In: op. cit., 2002; p. 281. 89 Ibid., 283. 90 Ibid., 283.

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desamparo humanos; percepção que encontra seu correlato religioso na

‘hostilidade divina’.91 Em sua releitura do poema de Hesíodo, Vernant apresenta o

quadro humano na Idade do Ferro contemplado com as doenças, a velhice e a

morte; a ignorância do amanhã e a angústia do futuro.92 Desaparecido o

a1nac que, pela virtude de um poder mais que humano, unificava e ordenava os

diversos elementos do reino,93 novos problemas surgem. Como uma vida comum

pode apoiar-se em elementos discordantes? A resposta à questão colocada pelo

autor retoma o argumento apresentado no início deste capítulo, na fórmula “poder

de conflito-poder de união, Éris-Philía”.

Em a “Crise da Soberania”, afirma que todo o domínio do período pré-

jurídico, que governa as relações entre as famílias, os gene, constitui-se numa

espécie de agón, um combate codificado e sujeito a regras. “Este espírito de

a0gw/n ((agón) que anima os gene nobiliários se manifesta em todos os

domínios”.94 Deste modo, também a política toma a forma de combate: uma

disputa oratória, cujo teatro é a ágora, praça pública. Toda a rivalidade, toda a

éris, supõe relações de igualdade - estabelecidas pela fili/a, conforme o início

deste estudo. Vernant ressalta que acima de todos os iguais, a Díke, encarna-se no

plano humano, realizada na lei, mas nem por isso deixando de exprimir uma

ordem concebida como sagrada.95

Notemos que os antigos sacerdócios pertenciam como propriedade

particular a certos gene, e marcavam seu parentesco especial com um poder

divino; sua arché (poder), é definida nesta esfera. O advento da pólis, “quando ela

é constituída, confisca-os em seu proveito e os transforma em cultos oficiais da

cidade.”96 A relação entre a esfera divina e a humana passa a ser também

ordenada; quem diz culto da cidade, diz culto público. A proteção que a divindade

reservava outrora a seus favoritos - o quê a epopéia marca bem na relação entre

heróis e deuses - vai ser exercida em benefício da comunidade toda.

91 DODDS, “Da cultura da vergonha à cultura da culpa” In: op. cit., 2002, p 36. 92 Vernant, op. cit., 1990; p.41. 93 A repartição dos poderes, recorremos às lendas reais citas, narradas por Heródoto, mostrando um Soberano que se situa fora e acima das diversas classes funcionais. As três classes estariam representadas pelos três tipos de objetos de ouro: a taça das libações, a acha das armas e a charrua. Símbolos das três categorias sociais (sacerdotes, guerreiros e agricultores). Cf. Vernant, “A Crise da Soberania” In: op. cit., 2000, p.38. 94 VERNANT, op. cit., 1990; 38. 95 Ibid., 44. 96 Ibid., 45.

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Deste modo, a administração da cidade se dá sempre nesses dois planos: o

sagrado e o humano. Vernant lembra que mesmo no plano político, as práticas

secretas de governo mantêm, no próprio período clássico, uma forma de poder que

opera por vias misteriosas e meios sobrenaturais. A utilização de santuários

secretos, de oráculos privados, reservados exclusivamente a certos magistrados

são exemplos disso.97 Não obstante o racionalismo político que preside às

instituições da pólis se oponha aos antigos processos religiosos do governo, ele

não os exclui de maneira radical.98

As atitudes tradicionais da aristocracia, até então tendentes a exaltar o

prestígio e a reforçar a arché dos indivíduos e dos gene, são rejeitadas pela cidade

e condenadas como descomedimento, como u3briv. “Do mesmo modo que o furor

guerreiro e a busca no combate de uma glória puramente particular”.99 Para

exemplificá-lo, relembra uma passagem de Heródoto, que ao mencionar, após

cada narrativa de batalha, os nomes das cidades e dos indivíduos que se

mostraram bravos em Platéia,100 dá a palma, entre os espartanos, a Aristodamo:

um dos trezentos lacedemônios que tinham defendido as Termópilas.

(...) só ele tinha voltado são e salvo; preocupado em lavar o opróbrio que os espartanos ligavam a essa sobrevivência, procurou e encontrou a morte em Platéia ao realizar façanhas admiráveis. Mas não foi a ele que os espartanos concederam, como o prêmio da bravura, as honras fúnebres devidas aos melhores; recusaram-lhe a aristeia porque, combatendo furiosamente, como um homem alucinado pela lýssa, tinha abandonado seu posto. 101

Em contraste com a u3briv, delineia-se o ideal do equilíbrio, da justa

medida, da sophrosýne. Relembramos que todo o esforço do homem grego, até

aqui apresentado através da reflexão do autor, parte em busca da construção de

um equilíbrio na tentativa de contenção de todos os aspectos que configurem os

excessos. Deste modo, a u3briv traduz-se no furor, na violência, nas façanhas

individuais, na riqueza, no fausto, na ostentação. Vernant indica que antes de ser

reinterpretada pelos Sábios para o contexto político, a sophrosýne parece ter sido

97 “Muitas cidades colocam sua salvação na posse de relíquias secretas: ossadas de heróis, cujo túmulo (...) não deve ser conhecido sob pena de arruinar o Estado” In: VERNANT, op. cit., 2000, pp. 45, 46. Para o complemento do argumento, ver também: Vernant, “Racionalidade e Política: Sobre Clístenes” In: op. cit., 2002, p. 219. 98 VERNANT, op. cit., 2000, p. 46. 99 Ibid., 52. 100 Uma das batalhas das Guerras Pérsicas, vencida pelos gregos. 101 HERÓDOTO, IX, 71. Apud. Vernant, “O Universo espiritual da pólis” In: op. cit., p.51.

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elaborada em certos meios religiosos.102 O domínio de si, de que é feita, parece

implicar para o autor, senão um dualismo, pelo menos uma tensão no homem

entre dois elementos opostos: o que é da ordem do thymós, a afetividade e as

emoções, e o que é a ordem de uma “prudência refletida, de um cálculo

raciocinado”, do lo/gov.103

Neste sentido, retomamos o argumento inicial no qual questiona em que

medida a individualização e a humanização das forças sobrenaturais concernem à

categoria da pessoa, quais aspectos deste “eu”, do homem interior que a religião

grega contribuiu para formar. Ao nível do culto público e da religião da cidade, a

resposta é clara: neste plano a vida religiosa aparece integrada à vida social e

política, da qual constitui um aspecto. Destarte, a impiedade, falta em relação aos

deuses, é também atentado ao grupo social. Neste contexto o autor afirma que o

indivíduo estabelece sua relação com o divino pela sua participação em uma

comunidade.

Do mesmo modo, se expulso dos altares domésticos, excluído dos templos

de sua cidade, o homem acha-se desligado do mundo divino. Ele perde ao mesmo

tempo seu ser social e sua essência religiosa. Para voltar a ser o homem - neste

sentido, o homem político, o cidadão, que pertence a uma comunidade - deverá

apresentar-se como suplicante em outros altares, restabelecendo seus cultos,

sentando-se diante de outras lareiras. A integração social de um culto cívico tem

como função a sacralização da ordem, tanto humana quanto natural. Permite ao

homem reintegrar-se, ajustando-se ao ideal da ordem. A este aspecto Vernant

contrapõe um outro, complementar: aquele aspecto religioso que não se

‘enquadra’ inteiramente na organização institucional da pólis, inverso a ela; o

dionisismo.

Mas, para entendermos o dionisismo é preciso um mergulho mais

profundo na relação do homem grego com o divino. E é Marcel Detienne, o outro

autor selecionado para compor este estudo, quem mapeia este solo de saberes que

é a Grécia arcaica, dentro de uma perspectiva estrutural da vida social e espiritual

dos gregos. Sua reflexão é o tema do segundo capítulo desta dissertação.

102 Ele indica no capítulo “A Organização do Cosmos Humano”, uma série de referências às curas de heróis como Héracles e Orestes, dos estados de fúria, ira e loucuras (ménos, lýssa, maníai). Para o argumento, ver: Vernant, op.cit., 2000,.p 69. 103Ibid., 70.

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2. Rumor (Φήμη) e Razão (Λόγος) em Marcel Detienne

“Assim, na torre, assentes, os chefes troianos. Ao ver Helena ao topo dirigir seus

passos, uns aos outros Disseram palavras aladas: “Ninguém de nós

se indigne se Tróicos e Dânaos, belas-cmênides, tantos males sofram por uma tal

mulher! Diva imortal assemelha, terrível de beleza!”

Ilíada, III, 153 – 159

2.1 Quando fh/mh se sobressai ao lo/goς

Na organização do espaço comum, koinón (koino/n) ou daquele que é

comum a todos os iguais, os gregos organizam seus ritos, suas cerimônias e

estabelecem calendários. As hierá1, coisas sagradas, são levadas ao centro das

discussões na ágora. Héstia é a deusa do fogo comum; presente nos debates e na

lareira das casas. Mas a toda ordem, impõe-se a desordem; ao espaço fixado,

impõe-se o movimento. E deste modo, a obra de Marcel Detienne nos apresenta

como a contra face desta ordem cívica os deuses que se movimentam à sua

margem: Hermes e, sobretudo, Dioniso.

Para Detienne, o espírito humano ‘mitologiza’ de maneira espontânea,

“nada parece mais grego do que a mitologia, a palavra e a coisa”2, e, neste

sentido, a Grécia é o lugar da exceção, onde se opera o que os helenistas

denominam “a passagem do pensamento mítico ao pensamento positivo

abstrato”3, ou do mito ao lo/gov.

1 Hierá: coisas sagradas; da ordem do sagrado. 2 DETIENNE, op. cit., 2008, p. 25. 3 Ibid., 31.

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Conforme vimos anteriormente em relação às duas orientações que a

evolução do pensamento grego pareceu seguir, retomamos que primeiramente,

estabelece-se uma distinção entre natureza, o mundo humano e o divino; e em

segundo lugar, afasta-se todo modo de raciocínio que proceda do ambíguo do

lo/gov, em nome do ideal e do ordenado. É válido recuperar também que o “crer”

para os gregos não é separável do conjunto das práticas sociais e da vida cotidiana

dos homens, constituído nos ritos, nas imagens dos deuses e nos mitos. Vernant

menciona que, “para o helenista que é Marcel Detienne, a análise precisa da

cultura grega, entre os séculos VI e IV antes de nossa era, quando mythos passa

lentamente a opor-se ao lo/gov, impõe um quadro muito diferente da imagem que

temos de mito”.4 Assim, partindo da afirmação de Detienne na qual o mito se

aplica às realidades mais diversas – teogonias, cosmogonias, gestas de heróis –

este estudo agora propõe uma reflexão acerca do o estatuto de existência do mito

com relação àquilo que o afasta, mas não nega.

O mythos nasce do rumor. Desenvolve-se, segundo Detienne, com os

relatos enganosos, com as palavras desviadoras que seduzem e violentam a

verdade.5 Sua realidade é inseparável, no entanto, do movimento que o rejeita; ele

é a sombra projetada pelo discurso, pelo lo/gov.6 Argumento que reforça, citando

Xenófanes7 e também Heródoto, autores cujo afastamento das narrativas míticas é

marca desta passagem. Deste modo, relaciona os elementos fantásticos do mito ao

escândalo. A ruptura derradeira é para ele produzida com a atividade historiadora

de Tucídides, cuja obra História da Guerra do Peloponeso, delimita o domínio do

saber histórico e recorta seu território conceitual, “enclausurando o fabuloso”.8

Contudo, é importante ressaltarmos que a tradição está presente em sua obra,

relembrando que a epopéia homérica faz parte da paidéia grega, constando

destarte, na obra do ateniense. 9

4 VERNANT, “O mito na voz reflexiva” In: Vernant, op. cit., 2002, pp. 290-291. 5 DETIENNE, op. cit., 2008; p. 41. 6 VERNANT, op. cit., 2002, p.291. 7 Cf. Detienne, por volta de 530 a.C., Xenófanes, em nome da filosofia primeira, condena brutalmente o conjunto dos relatos sobre os Titãs,os gigantes, os centauros, aí compreendidos os de Homero e Hesíodo. Seriam, no duplo estatuto atribuído, invenções, plasmata, e relatos bárbaros. Para o argumento completo, ver: Ibid., pp. 40-41. 8 Idem., pp. 42-43. 9 Refiro-me à passagem do Livro I: “Quem melhor comprova isso é Homero: ele que viveu já muito tempo depois da guerra de Tróia, em nenhuma passagem deu esse nome à totalidade, nem a outro, senão aos companheiros de Aquiles, originários da Ftiótida, que justamente foram os primeiros helenos, mas no seu poema, emprega os nomes de dânaos, argivos e aqueus.”

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Através dos dois aspectos - o mito e a autoctonia - apresentar-se-ão o

“mesmo” e o “outro”. Não nos termos de J-P Vernant, segundo sua própria

reflexão abordada no capítulo I. Mas sim, constituídos naquilo que representa o

pensamento grego organizado e representado na “origem e no desenvolvimento da

idéia do divino” entre os gregos.

“Que os deuses sejam bons objetos não é uma descoberta da Antropologia

contemporânea”.10 No campo da reflexão sobre a religião grega Detienne reforça

sua escolha afirmando que, “é no espelho de Homero que o Olimpo se descobre”,

pois ele é aquele que dá a medida dos afastamentos e das distâncias

perceptíveis.11

Em sua obra escrita com Giulia Sissa, inaugura o primeiro capítulo com

Homero. O poeta é a referência para abordar a vida cotidiana dos deuses; as fontes

são a Ilíada e a Odisséia. O helenista denota que nas cidades da Grécia clássica

quando as obras referidas são cantadas todos os anos, para todos, “é uma idéia

deste cotidiano que se oferece aos ouvidos”12, como uma larga porção dos tempos

habitados pelos deuses que se revela aos homens em “récitas e imagens

literárias”.13

Em sua obra Comparar o Incomparável, Detienne oferece uma ampla rede

de possibilidades para o trabalho com o politeísmo grego. Este é lido na Grécia,

sobre o chão, sobre os altares, nos templos, nos regulamentos sacrificiais e nas

representações figuradas. Os gregos vivem o religioso como parte integrante de

sua experiência política e social. Para o autor, os panteões gregos são cheios de

agrupamentos de deuses, cada qual com suas funções e territórios, os quais – para

ele – Homero já explicitava. Detienne nos propõe uma perspectiva comparativa

entre as potências; um estudo que reflita sobre as relações (complementares ou

não, entre dois ou mais deuses), estabelecendo, desta maneira, as relações de

complementaridade que permeiam a própria ordenação da comunidade dos

homens traduzida na pólis.

TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Livro I, III, 3. (Texto grego estabelecido por Jacqueline de Romilly; tradução de Ana Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2008). 10 DETIENNE, M. Comparar o Incomparável. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2004; p. 94. 11 DETIENNE, M. ; SISSA, G. « Une Littérature ? Une Anthropologie » In: La vie quotidienne des dieux grecs. Paris : Hachette, 1989, I, pp. 25-40 12 Ibid., 27. 13 Ibid., 27.

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O fazer cívico não se separa do fazer religioso, do qual fazem parte os

sacrifícios, as libações e os calendários. À margem da ordenação na qual o

sagrado repousa na pólis, os rumores, os boatos, os cultos “de fora” da cidade

compõem o “outro” deste ideal. Detienne apresenta assim a deusa Héstia, em sua

função nas lareiras das casas, e o deus Hermes, como a fixidez da ordem e o

movimento que lhe complementa; e Dioniso, como aquele vem de fora, alterando

as fronteiras da autoctonia.

A partir da preeminência de fh/mη sobre o logo/v - e da partilha - notemos

o que o autor define como a marca do mito: o avesso; o outro do discurso. Tudo o

que faz parte da esfera do que “se ouviu dizer”, dos sussurros, da oralidade.14 Ou

seja, o que se inscreve numa tradição oral que atribui à memória coletiva a tarefa

de conservá-los, transmitindo-os de geração em geração; àquilo que Platão chama,

para o melhor e o pior, de Phéme, boato. O deus dos sussurros é Hermes (também

mensageiro); é aquele que vaga entre os dois mundos – o humano e o dos deuses;

é o deus do movimento. “Phêmios”, o aedo, “traz em seu nome, como um

presságio seguro, a potência da voz, una e múltipla que dá o renome e a glória.”15

Detienne vai à Odisséia de Homero buscar as origens desta tensão na qual o

rumor remete tanto os sussurros e burburinhos sonoros entre os homens, quanto à

kléos, a glória cantada pelo poeta.

A idéia é referir-se ao rumor como uma potência, “brisa que sopra de

regiões salubres; eflúvio, hálito da terra e das águas, que penetra nos seres vivos

pelos olhos e pelos ouvidos”16, na qual se aloja o segredo da unanimidade

profunda e das crenças mudas partilhadas em comum. A esta adesão unânime de

uma cidade às narrativas fundadoras, relembra Detienne, Platão chamou de

“mitologia”.17

Sua contra face é o lo/gov. Os mestres da verdade, dos quais fala Marcel

Detienne, são três os personagens18 que detém o privilégio que não está separado

de seu papel institucional: dizer a verdade, palavra grega, alh/qeia (alétheia).19

Alétheia, assim como Phéme, define-se como potência, segundo Detienne,

14 DETIENNE, “O rumor também é um deus” In: op. cit., 1991, pp. 107-114 15 Ibid.,110. 16 Ibid., 113. 17 Ibid., 113. 18 Cf. Detienne, o rei, o aedo e o adivinho. 19 Alh/qeia, vem da palavra lh/qw (esquecer) adicionada a partícula de negação a (não). Alétheia também pode ser definida como ‘aquilo que não podemos esquecer’.

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solidária de todo um sistema de entidades religiosas que lhe são ao mesmo tempo

associadas e opostas. Deste modo, aproxima-se da Díke (Justiça), articulada à

Memória; opondo-se a Léthe (Esquecimento).20

Neste ponto a proposta do estudo consiste em acompanhar a pesquisa do

autor examinando como à palavra mágico-religiosa, dotada de eficácia, sucedeu

outro tipo de palavra, de caráter racional, engajada no diálogo e na argumentação

contraditória. Ao conduzir sua pesquisa para a análise do grupo dos guerreiros,

nos quadros de uma instituição bem definida (a assembléia militar), o autor aponta

para a ‘partilha’ da palavra: a isegoria, o direito igual à palavra reconhecido a

todos os áristoi, na discussão das questões comuns.

À partilha da palavra, complementa-se a partilha dos limites da própria

cidade. A autonomia da pólis é associada por Marcel Detienne à figura da deusa

Héstia; deusa das lareiras; do fogo comum. O autor, adotando uma visão

panorâmica do mundo grego, estabelece para a identificação de “formas

elementares” desta partilha, os gestos de consumir a carne – o que trataremos

como a partilha do alimento – e os de oferecer em sacrifício. Importa, em ambos,

compreender e situar a paisagem institucional no meio da qual a partilha surge,

mas, sobretudo, compreender o que excede a partilha: seu horizonte político,

prolongamento exato da idéia de comunitário, do koinón.

Para tal, acompanhamos a reflexão de Detienne acerca do grupo social

mais saliente, este formado pelos guerreiros. O autor refere-se esquematicamente

ao grupo dos guerreiros, a sociedade dos Hómoioi - dos Semelhantes – situada

entre aquela das armas na epopéia e a dos cidadãos de Esparta. As práticas desta

comunidade de iguais incluem a partilha dos despojos do inimigo (o butim) e a

partilha dos víveres. Para ambas, Detienne apresenta o modelo especial ao qual

estavam submetidas. O dever igualitário do ambiente guerreiro considerava o fato

de comer em partes iguais os sacrifícios, um domínio de exercícios que remetiam

ao seu lugar específico na própria esfera do pensamento, além das práticas sociais

e institucionais: “isomoiria, isokratia, isonomia, partilha igual das terras, partilha

igual dos direitos, já políticos.”21 O que nos remete à fixidez da ordem e do seu

necessário movimento.

20 Ver nota anterior. 21 DETIENNE, “Héstia misógina. A cidade em sua autonomia” In: op. cit., 1991, pp.66-79.

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“É precisamente a ordem do dia da assembléia, as ‘coisas sagradas’, as

hierá: no coração do político”.22 Já determinadas as fronteiras entre ordem e

movimento na koiné, a reflexão do autor nos leva ao tema da autoctonia. Sua

afirmação exprime a direção que o estudo opta por tomar neste ponto da

argumentação. Quando no século VI os gregos, (com Sólon) decidem colocar aos

olhos de todos as regras fundamentais da cidade, fazem-no na forma escrita.

Regras que prescrevem sacrifícios e estabelecem calendários, além de atores e

beneficiários das cerimônias sacrificiais. A legislação de Sólon engloba as hierá, e

os hósioi, assuntos civis, apontando para o fato de que todo o esforço do homem

grego até aqui apresentado indica a busca da construção de um ideal. O ideal é a

medida; o conhecimento dos limites, que no que concerne ao presente estudo, são

os limites da própria fronteira que separa o homem dos deuses, fronteira esta

denominada “intransponível” por Jean-Pierre Vernant, à qual se estabelece uma

das regras principais da sabedoria grega relativa à sua relação com os deuses: o

homem não pode pretender, de forma alguma, igualar-se a eles.

Ao nível do culto público e da religião da cidade a vida religiosa aparece

integrada à vida social e política, da qual constitui um aspecto. Destarte, a

impiedade, falta em relação aos deuses, é também atentado ao grupo social. Neste

contexto, Detienne afirma que o indivíduo estabelece sua relação com o divino

pela sua participação em uma comunidade. “Achar seu lugar”, diz Detienne,

“possui suas virtudes para quem pretende comparar e pôr em perspectiva aquilo

que identifica o ateniense, que se autoproclama autóctone”. 23

O objetivo é trabalhar o pertencimento e o não pertencimento no sentido

grego. O autor afirma que no grego de Atenas, a palavra “autóctone” surge

tardiamente, por volta de 460 a.C..24 Ser athenaîos, ateniense, assim como

spartiátes, espartano, implica em uma série de compromissos cívicos. Assim, ser

cidadão de uma pólis significa participar não só das discussões da ágora, mas,

sobretudo, participar da partilha do alimento nos banquetes, e dos sacrifícios

determinados pelo calendário cívico de cada comunidade. Detienne lembra que

em torno de um primogênito na mitologia exangue, os atenienses assumem a

22 C´est exactement l´ordre du jour de l´assemblée des ‘choses sacrées’, des hierá : au coeur du politique In: Detienne, op. cit., 1989, p. 226. 23 DETIENNE, “Achar seu lugar, entre o Édipo de Tebas e nossas identidades nacionais” In: op. cit., 2008, pp. 99-125. 24 Ibid., 99.

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postura de autóctones puros, certos de nunca terem mesclado o seu sangue com o

de um ksénos, estrangeiro.25 É válido lembrar que o período em questão se refere

ao das Guerras Médicas (490 a 448 a.C.), no qual ao sentido de grego conforma-

se seu par antônimo, o não-grego. Neste caso, o bárbaro, mas ao longo do referido

século também o estrangeiro.

Neste ponto, acompanhamos a digressão realizada pelo autor em direção à

mitologia. “Fundação e autoctonia se entrelaçam em uma poça de sangue, sob os

pés de Cadmo, e no sítio de Tebas”26, narrativa que remete ao homem primordial;

ao primogênito que funda a cidade de Tebas.27 Na cidade de Cadmo e Édipo, diz

Detienne, autoctonia e fundação misturam-se para originar uma história cheia de

mortes, de mácula e de dívida insaciável. À mácula, associa-se a ordem; ordem

esta que os homens buscam estabelecer no espaço reservado ao político.

Assim, se expulso dos altares domésticos, excluído dos templos de sua

cidade, o homem acha-se desligado do mundo divino. Perde ao mesmo tempo seu

ser social e sua essência religiosa. Para voltar a ser o homem (neste sentido, o

homem político, o cidadão, que pertence a uma comunidade), deverá apresentar-se

como suplicante em outros altares, restabelecendo seus cultos. A integração social

de um culto cívico tem como função a sacralização da ordem, tanto humana

quanto natural. Permite ao homem reintegrar-se, ajustando-se ao ideal da ordem.

Sua contra face complementar é apresentada por Detienne como aquele

aspecto inverso a pólis, mas necessário: o dionisismo. Através do estudo realizado

pelo autor acerca da figura do “deus estrangeiro”, esta dissertação acompanha

aquilo que Detienne chama de “pulsão epidêmica de Dioniso”, o que o afasta dos

outros deuses de epifanias regulares.28 Divindade sempre em movimento, forma

em perpétua mudança, Dioniso nunca sabe se será reconhecido. O helenista o

define, “o divino diferente do que é próprio dos deuses helênicos”; diferente na

medida em que subsiste em sua face algo estranho e algo estrangeiro. 29 Se a

25Ibid., 103. 26Ibid., 104. 27 Cf. a análise do Mito das Raças de Hesíodo realizada por Jean-Pierre Vernant, os freixos, dos quais nasceram os homens de bronze, têm função importante em outras narrativas sobre este homem primordial. Entre essas, Vernant ressalta a da origem mítica dos tebanos que, nascidos da terra, conformariam o homem em sua condição de guerreiro. Segundo afirma, os tebanos seriam descendentes dos chamados “Semeados”, ou Espartos. Ver capítulo I, nota 70. 28 DETIENNE, M. “Esse deus epidêmico” In: Dioniso a Céu Aberto. Tradução Carmem Cavalcanti. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, pp. 11-49. 29 Ibid., 21.

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impiedade - falta em relação aos deuses - é também um atentado ao grupo social,

Dioniso, por suas virtudes epifânicas, conhece intimamente as afinidades da

presença e da ausência. Para o autor, o deus se apresenta sempre sob a máscara do

estrangeiro. “É o deus que vem de fora; ele vem de Outro lugar”.30

30 Ibid., 18-19.

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2.2 Rumor e Partilha

“Deusa, diriges a palavra a um deus. Não poderia ocultar-te a verdade. Exponho-te

palavras sem véus.” Odisséia, V, 96 – 98

A religião grega arcaica e clássica apresenta, entre os séculos VIII e IV

a.C., traços característicos que devem ser apontados. Mergulha suas raízes numa

tradição que engloba todos os elementos constitutivos da civilização helênica: a

língua, as gestas, a maneira de viver, a esfera do pensamento e os sistemas de

valores e regras da vida coletiva. 31

É dentro de um quadro composto por um vasto repertório de narrativas

conhecidas, em versões suficientemente diversas e em variantes numerosas, que

as crenças em relação aos deuses ganham corpo, e que se produz quanto ao seu

papel, sua natureza e suas exigências o consenso de opiniões seguras. Desde a

rejeição, a denegação pura e simples, até as múltiplas formas de interpretação que

permitem ‘salvar’ o mito32 - por detrás da fábula, daquilo que Marcel Detienne

aponta como fh/mh, privilégio do sábio - abre-se a única via de acesso ao divino.33

Segundo J-P Vernant, os gregos têm uma palavra para designar a reação

afetiva imediata e irracional diante do sagrado: thámbos.34 Além do temor

reverencial e do sentimento difuso do divino, a religião grega apresenta-se como

uma vasta construção simbólica, complexa e coerente, que abre para o

pensamento em todos os seus aspectos, inclusive o culto. O mito faz parte deste

conjunto do mesmo modo que as práticas rituais e os outros modos de figuração

do divino. Mito, rito e representação figurada; três formas de expressão pelas

quais a experiência religiosa grega se manifesta. No que concerne a este estudo, o

mito e os rituais são aspectos pertinentes, apresentados a seguir na reflexão de

Detienne.

31 VERNANT, op. cit., 2006; p.14. 32 Ibid.,19. 33 Ibid., 20. 34 Temor reverencial. A tradução é de J-P Vernant. Ibid., 22.

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Na obra intitulada A Invenção da Mitologia, o autor apresenta um

profundo estudo acerca do objeto – o mito – inventado pela mitologia, saber

rigoroso desde o século XIX. Construída no mesmo passo que seu objeto, a

mitologia tem uma história, cujo primeiro capítulo, segundo Detienne, foi escrito

pelos gregos, território este sempre aberto e mutante; fronteira da memória e do

esquecimento, da tradição e da invenção:

(...) nas civilizações mais adiantadas, os mitos acabaram se fossilizando sob a forma da superstição – resquícios que tanto podem ser rejeitados como absurdas mentiras quanto aceitos pela história. 35

Em referência ao Dicionário Filosófico de Voltaire, o autor define a

mitologia: “Ciência do escandaloso, a nova mitologia entrega-se a certo conjunto

de atitudes cuja dinâmica é determinada pela idéia do escândalo, termo da Sagrada

Escritura – relembra Voltaire”.36 Segundo afirma o helenista na obra referida, o

lugar do escândalo é assim constituído por um duplo movimento: repulsa e

atração. Para afastá-lo, distanciando-o de si e dos outros – de si sob o olhar dos

outros – fica-se indignado e escandalizado.37 O ato é o de apontar com o dedo;

negar o outro, pois se corre o risco de ser seduzido ou ludibriado por ele. Ao se

propor como objeto do infame, monstruoso e do que causa o horror, a nova

mitologia oferece o espetáculo onde aquilo que a repugna é também o que a

seduz.38

Mas Detienne alerta que é preciso fazer urgentemente uma nova distinção

entre a mitologia e a religião. Para ele os deuses gregos são um produto da

inteligência39, contrapondo o argumento ao vocabulário que figura o escândalo:

indecente, grosseiro, abominável, infame e absurdo; o que, “convoca todos os

fantasmas da alteridade”.40 Compondo essas figurações da exclusão, Detienne

argumenta que a mitologia se desloca, passando a ser o incrível que a religião tem

35 DETIENNE, M. A Invenção da Mitologia. 2ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, D.F.: UnB, 1998, p.35. 36 VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Apud. Detienne, Ibid., op. cit., 1998, p.36. 37 Ibid., 36. 38 Ibid., 36. 39 Ibid., 37. 40Ibid., 46.

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diante de si; o irracional com que a razão se defronta.41 O mito, deste modo, é o

ausente, o silêncio consumado; aquilo que Detienne traduz como o Rumor.

Na tradição grega, o Rumor vivia numa paisagem onde as palavras

agourentas faziam eco aos sons e aos sopros oraculares. Surgiam em meio ao

burburinho sonoro das criaturas humanas tais como os velhos, os aedos e as

criadas tagarelas.42 Detienne realiza um estudo minucioso acerca do Rumor como

uma potência sob o título “O Rumor também é um Deus”, no qual recorre à

tradição para compor a atmosfera dos cochichos malévolos e dos rostos que se

desviam ao som dos boatos:

No topo das muralhas de Tróia, um ruído e vozes. Príamo e os velhos sentam-se no Conselho dos Anciãos. Uma assembléia de bons faladores. (...) Eles vêem Helena subir em sua direção, e, em voz baixa, trocam palavras aladas: “Ela tem marcadamente o ar das deusas imortais quando está diante de nós”.43 Murmúrios dos troianos que não vêm perturbar evocação alguma do presságio funesto ligado ao nome de Helena: a mulher fatal, a destruidora de naus (helenas), a matadora de guerreiros (helândros), a ruína das cidades (helêptolis).44

Para o autor esta era a voz da cidade – representada pelo seu conselho –

que clamava pela partida de Helena, mas que reconhecia em sua beleza a presença

irrefutável do divino. Nos murmúrios e nos rumores era a glória de Helena que se

dizia e ouvia.45 E recorda a querela entre Ulisses e Ajax pelas armas de Aquiles,

destinadas ao melhor dos gregos, durante a qual os rumores que corriam pelo

acampamento e pela cidadela de Tróia ‘diziam’ da predileção por Ulisses. O duplo

rumor troiano anunciado no poema épico, segundo o autor, conduz aos caminhos

seguidos pelas palavras do aedo homérico, quando ele punha na boca dos heróis o

elogio da palavra memorável.46 Assim, o rumor é acompanhado tanto do ruído

abafado daquilo que não deve ser pronunciado, como também da potência que dá

voz, una e múltipla; que dá o renome e a glória. Uma glória que os gregos

chamavam de kléos, “o rumor que corre”. 47

Detienne diz que aí reside uma atividade de memória na qual a reputação

de quem é bem afamado está tão próxima do alarde elogioso que o poeta leva o

41 Ibid., 47. 42 DETIENNE, op. cit., 1991; p 109. 43 Ilíada, III, 150-160. Apud. Ibid.,109. 44 ÉSQUILO, Agamêmnon, 687. Apud. Ibid., 109. 45Ibid., 109. 46 Ibid., 109 47 Ibid., 110.

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nome de Phêmios, “o homem do rumor”;48 segundo o autor, um dos aedos da

Odisséia que canta a morte de Ulisses, a viagem impossível, diante dos

pretendentes no banquete, mas também o retorno do herói quando a mesa e as

lajes sonoras se cobrem do sangue dos participantes dos jantares. 49

Para quem sabe escutar, todo rumor faz sinal. Conforme afirma o autor em

obra publicada recentemente, “o mythos nasce com o rumor”50. Desenvolve-se

com relatos enganosos e com palavras desviadoras que seduzem; possui a

aparência daquilo que falseia o confiável; “é sempre o relato dos outros, daqueles

que usurparam em nome de Ulisses, o renome merecido por Ajax; aqueles que

vão repetindo a versão escandalosa do festim de Tântalo, onde os deuses teriam

comido a carne de Pélops, seu filho”.51 E para consultar esse oráculo de rumores,

o autor afirma que se procedia como era usual em Fara, perto de Patras, no espaço

consagrado ao deus Hermes e à deusa Héstia.52 Hermes é o deus dos sussurros,

das palavras cochichadas. Sua relação com Héstia reforça o argumento

anteriormente referido, no qual a toda ordem – essencialmente cívica – se impõe

também um movimento, tema que será abordado à frente quando falarmos da

importância da partilha do que é comum na pólis.

Para que o mito venha a designar um discurso autônomo é preciso esperar

o fim do século V, quando segundo Detienne, se misturam a ele os relatos dos

antigos poetas e os escritos dos logógrafos. Heródoto opera nesta mesma partilha,

atestando para seus relatos o estatuto de “discursos”, logói. Quando invoca

tradições e estabelece uma distância entre gregos, citas e amazonas, por exemplo,

fala somente de logói sagrados (hierói), estabelecendo, sobretudo, um olhar do

outro – o que não é grego – para o mesmo, ou o próprio grego. 53 E afirma, que

em suas investigações, não menos que nos poemas de Píndaro, o ‘mito’ não é um

objeto, traduzindo-se apenas como “o rumor excitado, palavra de ilusão, sedução

enganadora, às vezes narrativa incrível, opinião sem fundamento”. 54

48 Ibid., 110. 49 J. SVEMBRO, La Parole et le marbre. Lund, 1976, 36 e 65. Apud. Detienne, op. cit., 1991; p. 110. 50 DETIENNE, op. cit., 2008, p.41. 51 Ibid., 41. 52 DETIENNE, “O Rumor também é um deus” In: op. cit., 1991, p.111. 53 Para o argumento acerca da autoria de Heródoto sobre o seu lo/gov, ver EYLER, F. M. S. Limites da Violência em Heródoto. Comunicação na Semana de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008. (mimeo.) 54 DETIENNE, “A Ilusão mítica” In: op. cit., 1998; p.35.

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Conforme o anteriormente referido, na atividade historiadora de Tucídides

se produz um afastamento entre mythos e lo/gov. O strategós 55 ateniense “recorta

seu território conceitual, enclausurando o fabuloso, o mithôdes, que por sua vez,

recebe um domínio que assume outra maneira de narrar”.56 Ele afirma que o autor

da Guerra do Peloponeso estava convencido de que tudo que se trama da boca e

do ouvido desvia-se para o fabuloso, impedindo a eficácia do discurso, cuja

escrita abstrata deveria reforçar a ação na ordem do político. Sobre o pedestal de

uma realidade humana estável, Tucídides edifica uma teoria de ação centrada nos

conceitos da arché e da guerra, para a qual, “o ouvido é infiel e a boca sua

cúmplice”.57 Detienne demonstra-o, recorrendo à passagem a qual o historiador

atribui aos atenienses que foram se explicar diante da assembléia espartana sobre

as diferenças que tinham com o povo de Corinto.

Por que devo vos falar de acontecimentos muito antigos quando estes são atestados antes por boatos que circulam (akoaí) do que pelo que se viu com seus olhos (ópsis) aqueles que nos ouvem.58

Foi em 413 a.C., ano em que o poderio militar ateniense ia conhecer o

desastre da campanha na Sicília, que um boato correria por toda a Atenas, dando a

funesta notícia. Detienne descreve a passagem, contada por Plutarco, na qual teria

sido um barbeiro o primeiro a saber da notícia no Pireu; soube-a de um escravo,

sobrevivente do desastre: “a frota destruída, os generais decapitados, o exército

dizimado e os sobreviventes acorrentados na Latomias”.59 Os cidadãos reunidos

em assembléia se esforçaram por remontar a origem de fh/mh;60 o barbeiro seria

preso e torturado até que a notícia oficial de que a guerra havia sido perdida

chegasse.

Ele afirma que quando Platão, no começo do século IV, na República,

incrimina a poesia em geral e Homero, em particular investe não contra uma obra

fixada num livro ou em um texto escrito por filólogos, mas contra o fundador de

uma paidéia, de um sistema cultural mais ou menos concebido – como define o

55 General; comandante. 56 DETIENNE, op. cit., 2008, p.42. Ver também capítulo I do nosso trabalho. 57 DETIENNE, “A Ilusão mítica” In: op. cit., 1998; p.105. 58 TUCÍDIDES, I, 73,2. Apud. Detienne, “A Ilusão mítica” In: op. cit., 1998; p.107. 59 DETIENNE “O Rumor também é um deus” In: op. cit., 1991, p.108. 60 PLUTARCO, Nícias, 30,1; Do falatório, 13, 508 A-C. Apud. Detienne, Ibid., 108.

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helenista – na forma de enciclopédia do saber coletivo, transmitido pela boca e

pelo ouvido. 61

Para o autor, Platão foi o único a compreender que o Rumor não era um

deus como outro qualquer.62 E denota que o rumor é como uma voz pública que

seria o elemento mais sutil do ar ambiente, e do qual o essencial está no quase

silêncio daquilo que o filósofo chama de “uma palavra muito pequena”.63 Em

cada pessoa, afirma Detienne, o rumor é uma lei não escrita e que não tem

necessidade alguma de falar. É no rumor, e somente nele, que se aloja o segredo

da unanimidade profunda das crenças mudas partilhadas em comum; da adesão

inteira da pólis a princípios e narrativas fundadoras. Àquilo que Platão chama de

mitologia.64

Destarte, no coração da palavra pronunciada pelos mesmos três

personagens (o aedo, o adivinho e o rei), onde se instala Alétheia-Verdade,

potência solidária de um grupo de entidades religiosas que lhe são associadas e

opostas,65 sucederá a palavra diálogo, que rejeita o fantástico atribuindo-lhe um

outro lugar. Logo, “próxima da Justiça, Díke, Alétheia faz par com a palavra

cantada, Moûsa, com Luz e Louvor, contrastando com Esquecimento, Léthe,

cúmplice do silêncio, da censura e da obscuridade”.66 Nesta ordem de

pensamento, Detienne apresenta a complementaridade entre as potências, cujos

pólos não se excluem, mas conformam a tensão e a ambigüidade presentes na

construção de todo o espaço político e religioso da cidade.

O que se desenha é o quadro de uma religião que é essencialmente cívica.

Assim, crenças e cultos remodelados satisfazem uma exigência dupla e

complementar, conforme o anteriormente referido acerca da palavra. Com a

mudança da palavra mágico-religiosa para a palavra diálogo, que supõe relações

de igualdade e disputa,67 o próprio sistema religioso é profundamente reordenado

em estreita conexão com as novas formas de vida social representadas pela pólis.

Detienne expõe que suas pesquisas paralelas sobre o ambiente pitagórico fizeram-

no entrever o que parecia preparar o que ele chama de processo de laicização da 61 DETIENNE, “Pela boca e pelo ouvido” In: op. cit., 1988; p.48. 62 DETIENNE, “O Rumor também é um deus” In: op. cit., 1991, p.112. 63 Ibid., 113. 64 Ibid., 113. 65 DETIENNE, op. cit., 2008, p.77. 66 Ibid., 77. 67 Cf. apresentado no capítulo I desta dissertação, na reflexão sobre a argumentação acerca do par Éris-Philía de J-P Vernant.

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palavra.68 Este ambiente seria o meio guerreiro do mundo homérico (tradição),

que praticava o direito à palavra, estendido ao conjunto dos convidados na

discussão dos assuntos comuns.69 Mais do que nunca as práticas da assembléia e

as representações do espaço de atuação do meio guerreiro parecem essenciais ao

autor para sua compreensão do surgimento da ágora nas primeiras poleis do

século VIII, assim como o modelo isonômico no mundo político dos séculos VII e

VI.

Quando a “reforma hoplítica”70 entra nos usos da cidade, por volta de 650

a.C., com a imposição de novas práticas e do novo tipo de armamento e

comportamento próprio à coesão da falange, a palavra-diálogo – que Detienne

chama também de palavra profana – aquela que age sobre o outro, persuadindo,

referindo-se aos negócios do grupo, ganha terreno e torna obsoleta a palavra

eficaz, detentora da verdade.71

No mesmo período em que se implantam as mudanças técnicas,

econômicas e demográficas, as cidades apresentam sua fisionomia religiosa

singular. J-P Vernant afirma que toda pólis tem suas divindades políades cuja

função é cimentar o corpo dos cidadãos para fazer dele uma comunidade

autêntica, velando assim pela integridade do espaço comum.72 No estudo

realizado com a helenista Giulia Sissa, Detienne aponta para um “Homero

antropólogo”73, o que atesta o desenvolvimento de uma literatura épica desligada

de raízes locais, pela edificação de grandes santuários comuns, pela instituição

dos Jogos, pelo ciclo das festas e de um panteão igualmente reconhecido por toda

a Hélade. Para o autor, na epopéia, a sociedade dos imortais convida à história e à

etnografia. Ele afirma que a grande partilha cultural que divide o mundo da Ilíada

em dois não é aquele que separa gregos de troianos: “a semelhança entre os

homens mortais é quase total”.74 Estes homens falam a mesma língua; sacrificam

aos mesmos deuses. Em face deles, são os imortais que figuram a “nação

heterogênea”.75

68 Para a pesquisa mais detalhada acerca deste estudo, ver Detienne, op. cit. 1991, III, pp. 91-107. 69 Para o argumento ver: DETIENNE, M. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. (1995). 70 DETIENNE. op.cit., 2008, p.78. 71 Ibid., 78. 72 VERNANT. op. cit., 2006, p. 41. 73 DETIENNE,“Homère Anthropologue” (Première Partie) In : op. cit., 1989, pp. 25-40. 74 Ibid., 30. 75 Ibid., 30.

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Obra da tradição, a Ilíada mostra, segundo Detienne, os imortais nesta

dupla dimensão: seres elevados, que se metamorfoseiam, de poderes inomináveis;

e os habitantes do Olimpo, comedores de néctar e ambrosía, amantes da música

apolínea.76 Deste modo, o autor define o aedo, literalmente antropólogo, no senso

moderno do termo, “quando ele faz viver os imortais”.77

Mito, rito e figuração. Segundo as particularidades de cada cidade,

santuário e as tradições do oi]kov, cada deus compõe uma trama variada de

combinações com outros deuses estabelecendo o quadro da ordem e daquilo que

ela exclui como “de fora”. Neste sentido, rito e sacrifício representam figuras

centrais da religião e da sociedade solidária grega. Eles levam à compreensão da

partilha. Partilha do alimento, que passa também pela partilha da palavra no

universo do político, seguindo regras que delineiam o Mesmo grego e também as

fronteiras que o separam do selvagem, do que não pode ser permitido; o Outro

deste Mesmo.

Para J-P Vernant, os deuses são tornados presentes neste mundo em

espaços que lhes pertencem. Primeiramente os templos onde residem, mas

também locais e objetos que lhes são consagrados. 78 Entre esses hierá, locais

sagrados, estão os bosques, riachos, montes encruzilhadas, que segundo Vernant

não servem de local de culto. Esta função é preenchida pelo bomós, o altar

exterior, em torno do qual – e sobre o qual – cumpre-se o rito, ou mais

precisamente, o sacrifício (thysía).

Na obra, A cozinha do sacrifício em terra grega79, Marcel Detienne diz

que a thysía trata-se de um sacrifício cruento, de tipo alimentar. Esta pode servir a

duas funções: uma que determina a partilha entre homens e deuses (bomós), e

outra que se destina a um tipo de apaziguamento do deus, chamada eschára -

geralmente dedicada aos deuses ctônios; deuses da terra, ou primordiais. Toda

essa estrutura está ligada à narrativa órfica da morte de Dioniso que lhe atribui o

estatuto de mito sacrifical de referência.80

Conforme o relato do autor, a intriga é simples. Um deus com aparência de

menino é devorado pelos Titãs, régios do tempo antigo. Cobertos com máscaras 76 Ibid., 30. 77 Ibid., 40. 78 VERNANT. op. cit., 2006, p. 53. 79 Os escritos órficos datam do VI século a.C. Cf. DETIENNE, M.; VERNANT, J-P. La Cuisine du sacrifice em pays grec. Paris : Gallimard, 1979. 80 Ibid.,7.

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de gesso, atraem o menino com jogos que o fascinam: um pião, marionetes, um

espelho.81 E quando Dioniso menino se vê refletido no metal polido, os Titãs o

despedaçam, partindo seus membros, jogando-os em um caldeirão, no qual irão

cozinhá-lo ao fogo. As partes da vítima, uma vez acomodadas, intencionam

devorar; e têm tempo de tudo engolir – exceto o coração, salvo à parte, em partes

iguais – até que a ira de Zeus venha castigar seu crime, reduzindo os Titãs

convivas em fumaça e cinzas, de onde surgirá a espécie humana de hoje.82

Destarte, alimentar-se de carne, para os gregos, coincide com a prática

sacrifical, e o exercício do sacrifício é social, diretamente ligado a todos os níveis

do político, no interior do sistema que os gregos chamam de cidade.83 Deste

modo, nenhum poder político pode ser exercido sem o sacrifício: entrar em

campanha, guerrear contra o inimigo, abrir a assembléia, etc.

Dois exemplos atestam para esta relação intrínseca: o primeiro está

reservado ao espaço do cárcere, que convoca os cidadãos a atenderem ao tribunal

ou à execução de uma pena. Todos os prisioneiros nesta ocasião, diz o autor,

partilham o fogo e a mesa. Somente está excluído da celebração dos sacrifícios o

indivíduo tipicamente “de fora”84, rejeitado pelo grupo.85 O segundo exemplo

concerne à extensão do espaço político na fundação de uma nova colônia, ou de

uma nova cidade: “para fundar uma nova colônia, é preciso levar consigo um

espeto e um recipiente que contenha o fogo para o sacrifício”.86

O espeto e o caldeirão constituem, com a faca, os instrumentos solidários do ato de comer que, nas descrições do Egito, Heródoto inscreve no coração da diferença, da alteridade que permitem aos gregos se pensar em relação ao outro.87

Colofonte, na Ásia Menor, entre Smyrna e Éfeso,88 no final do século IV

a.C., figura o quadro do segundo exemplo supracitado. A antiga cidade do filósofo

Xenófanes seria o palco de reformas urbanísticas, aonde uma comissão de dez

81 Ibid.,7. 82 A tradução é minha. Ibid., 8. 83 Ibid., 10. 84 O autor utiliza o termo em francês asocial, que é traduzido como anti-social, ‘de fora’. (Dicionário Larousse. São Paulo: Larousse do Brasil, 2005). 85 Ibid., 10. 86ARISTOPHANE, Oiseaux, 43-45, 356-360, 387-391. Apud. Detienne, « Pratiques culinaires et esprit de sacrifice » In : op. cit., 1979, p.11. 87 DETIENNE. Op. cit., 1979, p.09. 88 DETIENNE « De l’ autel au terroir: L’ habitat des puissances divines » In :op. cit., 1989, Cap. XII, p. 202.

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membros que conduzia os trabalhos, estabelecia com o arquiteto o local reservado

à ágora. Mas, a assembléia, precavidamente, decide perfazer o caminho de todos

os altares elevados pelos ancestrais e cumprir os sacrifícios tradicionais à pólis em

questão. “Sob a liderança do sacerdote de Apolo, os demais sacerdotes, as

sacerdotisas, o pritaneu, o magistrado supremo, representando o Conselho e

seguido pelos dez responsáveis pelo novo projeto se rendem para a oferenda dos

sacrifícios na ágora”.89 Detienne afirma que deste modo, o território e a cidade

antiga de Cólofon são rendidos aos heróis, às possessões do lugar, às forças do

terror, restabelecidas após um período de latência.90 A fundação de novo altares,

santuários e templos – parte da organização das cidades e de novas colônias – está

intimamente ligada à questão da autoctonia, outro aspecto trabalhado pelo autor

em suas reflexões, e tema da terceira parte do presente capítulo.

Retornando ao aspecto do sacrifício e sua centralidade, apresenta na obra

conjunta com J-P Vernant – anteriormente referida – seu modo de pesquisa acerca

do tema. Ele expõe como o Centre de recherches comparées sur les sociétés

anciennes optou por uma estratégia para analisar o sistema sacrifical desta

sociedade, que coloca ao centro as práticas alimentares e seu pensamento político

religioso,91 o que no presente estudo está sendo utilizado como forma para

abordar a constituição de uma ordem nos esquemas do pensamento grego.

Daquilo que Vernant estabeleceu como o Mesmo.

Destarte, o sacrifício figura o ato que consagrou a segregação dos estatutos

divino e humano.92 Honrar aos deuses é crer na prática na qual são englobados na

conduta e no cerimonial, mais civilizado do que piedoso. “Crer nos deuses: uma

prática social”.93 Não crê-los, neste sentido, significa estar excluído do koino/n, ou

abandonar-se à violência desmedida e aos excessos. A impiedade, portanto, é um

delito público.

O ato de comer, em toda a tradição grega, envolve partilha e divisão igual. 94 Segundo Detienne, “os banquetes em partes iguais (dais éise) são os festins dos

89 Ibid., 202. 90 Ibid., 203. 91 Para uma análise mais detalhada acerca do objeto, ver: Detienne, « Pratiques culinaires et esprit de sacrifice » In : op. cit., 1989, pp. 12-13. 92 VERNANT. op. cit., 2006, p. 62. 93 DETIENNE. Op. cit., 1989, Cap. XII, p. 191. 94 DETIENNE, “La commerce des dieux” In : op. cit., 1989, Cap. XII, p. 193.

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deuses”.95 Ele lembra que na sociedade aristocrática da epopéia, a igualdade

geométrica supera a aritmética, com as partes de honra, reservadas aos deuses ou

às pessoas que celebram o sacrifício. A thysía assim se revela indispensável para

assegurar às práticas sociais sua validade; o fogo sacrificial, ao fazer subir para o

céu a fumaça dos perfumes, da gordura e dos ossos, abre, entre deuses e

participantes do rito uma via de comunicação.96 É J-P Vernant quem conta acerca

do primeiro sacrifício, instituído pelo Titã Prometeu filho de Jápeto.

O episódio, passado em um tempo em que deuses e homens ainda não

viviam separados, festejando e partilhando da mesma mesa, se dá justamente no

momento da partilha das honras e funções de cada um. Prometeu foi encarregado

de cumprir o sacrifício. Diante de homens e deuses ele abate e retalha um boi,

fazendo de todos os pedaços cortados, duas partes. Segundo a narrativa de

Vernant, “a fronteira que deve separar homens e deuses segue a linha de partilha

entre aquilo que, no animal imolado, cabe a uns e outros”.97 Mas o Titã quer

enganar Zeus, rei dos deuses. Cada uma das duas partes é um ardil. A primeira,

sob a camuflagem da gordura apetitosa, contém somente ossos descarnados; a

segunda esconde, sob o couro e o estômago, de aspecto repulsivo aos olhos, tudo

que há de comestível no animal. Cabe a Zeus a escolha. Ele sabe dos ardis de

Prometeu, mas deixa sua vingança para mais adiante, escolhendo a porção

tentadora, dissimuladamente.

Essa é a razão pela qual, nos altares sacrificiais, os homens queimam aos

deuses os ossos brancos da vítima cujas carnes irão partilhar. Guardam para si a

porção que Zeus não reteve: a da vianda.98 Dominados pela lei do ventre e pela

constante fome, os homens irão doravante se comportar como os animais que

povoam a terra; sua fome é a marca de sua natureza perecível e de sua condenação

à fadiga, ao envelhecimento e à morte. Destino diferente dos deuses, cuja raça se

contenta e satisfaz com os odores e o perfume. No mito prometéico, conforme a

descrição de Vernant, o sacrifício consagra a distância que os separa, aonde o ato

de cozinhar a carne ao fogo demonstra que é este elemento que ambos

95 Ibid., 193. 96 VERNANT. op. cit., 2006, pp. 60-61. 97 Ibid., 62. 98 Ibid., 62.

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compartilham. O fogo sacrifical liga a fronteira entre esses dois mundos,

instituindo a comunicação com o divino num cerimonial. 99

É válido lembrar, no entanto, que para Vernant, os deuses helênicos são

forças e não pessoas. Deste modo, o pensamento religioso corresponde aos

problemas de organização e de classificação dessas forças, distinguindo diversos

poderes sobrenaturais, com sua dinâmica própria e sua complementaridade.100

Vernant concorda com Detienne quando afirma que o indivíduo estabelece sua

relação com o divino pela sua participação na comunidade, ou no koino/n, e um

dos lugares de autonomia do político se edificava em torno daquilo que os gregos

chamavam de Héstia. Como nome comum, ela era o fogo: fogo da lareira, fogo do

altar, que participava do alimentar e do sacrifício. No capítulo de A Escrita de

Orfeu, intitulado “Hestia Misógina, a cidade em sua autonomia”, o autor alerta

sobre a importância se determinar, para a compreensão dos limites excedidos da

partilha rumo à idéia do koino/n, a paisagem institucional no meio da qual ela

surge.101

É no meio mais afastado da cidade grega, que se destaca o grupo social

formado pelos guerreiros. O autor lembra que, ligados entre si por laços

contratuais, para além dos gene, aos quais nos referimos no capítulo I desta

dissertação, e moldados por técnicas de educação e comportamento, eles se

reconhecem em práticas fortemente institucionalizadas.102 Entre a sociedade de

armas cantada na epopéia (na Ilíada, sobretudo), e os primeiros cidadãos de

Esparta, Detienne afirma que o grupo dos guerreiros que se afirmava como a

sociedade dos Semelhantes, constituía a comunidade dos iguais.103 Esta similitude

com o que o autor se refere “sua sombra igualitária” pode ser lida em essência nas

práticas mais significativas do grupo: a partilha dos despojos do inimigo - ou o

butim de guerra - a partilha dos víveres, enfim, a partilha em sua acepção plena.104

Da mesma forma em que a partilha se fazia no meio (méson), a repartição

das carnes do grupo era realizada de maneira igualitária durante os banquetes; o

que Detienne indica ser um dado fundamental que veiculava o modelo econômico

99 Ibid., 66. 100 VERNANT. op. cit., 1990, p. 420. 101 DETIENNE, “Héstia Misógina, a cidade em sua autonomia” In: op. cit., 1991, pp.66-67. 102 Ibid., 66-67. 103 Ibid, p.67. Assim como Vernant em sua obra As Origens do Pensamento Grego (2000), Detienne também os refere como os Hómoioi. 104 Ibid., 67.

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e político das póleis onde a comensalidade se impunha mediante um sistema de

divisão não só do alimento, mas da vez à palavra e à participação política dos

cidadãos em partes, tamanho e pesos iguais.105 Assim, o dever-ser igualitário do

ambiente guerreiro considerava o ato de comer em partes iguais a carne do

sacrifício um domínio que se estendia para outros níveis da vida social. Ali, para

Marcel Detienne se inventava um projeto de mundo onde “aqueles que

participavam da vida pública o faziam a título de iguais”.106

Como emblema da similitude na Grécia, a Esparta arcaica dos hómoioi,

oferecia no meio do campo repartido a comensalidade absoluta em suas refeições

iguais, chamadas sissitias lembra Detienne, aonde o comer em conjunto, lado a

lado, o mesmo caldo uniformemente, dia após dia, figurava o espírito da

isomoiria107 na koinή (comunidade). O autor destaca que os espartanos comiam e

consumiam juntos nas sissitias o que havia sido produzido em cada lote de terra,

ou seja, as contribuições mensais de cada um - cevada, vinhos, queijos, carne de

porco.108 E conclui que Esparta oferecia o exemplo de uma cidade habitada por

uma redistribuição permanente, onde a partilha era finalizada em si mesma. A

partilha figura assim nos moldes estabelecidos na reflexão de Detienne, o Mesmo

que fixa no koino/n seu ideal.

Neste sentido, o culto à deusa Héstia designa o lugar do culto fixo,

enraizado na terra, mais especificamente na lareira da casa. Para que o altar se

transformasse no Fogo Comum, Hestia-Koiné, Detienne diz que era necessário

que para ele convergissem os valores do centro.109 Todas essas práticas

enunciadoras dos privilégios de Héstia estão ligadas à sua própria origem

enquanto divindade, que o autor define na breve sentença:

Ela era a primeira entre as filhas de Cronos, mas também a última, porque seu pai que a engoliu em primeiro lugar, iria devolvê-la sob o efeito da droga.110 E em

105 Ibid., 68. 106 G. BERTHIAUME, Les roles du Magueiros. Études sur la boucherie, la cuisine et le sacrifice dans la Grèce ancienne, Leide-Montréal, 1982, 62-64. Apud. Detienne, “Héstia Misógina, a cidade em sua autonomia” In: op. cit., 1991, p.68. 107 Detienne o traduz como “partilha igual”; das terras, dos direitos. Ibid., 68. 108 Cf. Sobre os testemunhos de Plutarco, Licurgo, 12,3. Apud. Detienne, “Héstia Misógina, a cidade em sua autonomia” In: op. cit., 1991, p.68. 109 Ibid., 69. 110 HOMERO. Hino Homérico a Hestia, (I), 5-6; Hino Homérico a Afrodite (I), 21-23. Apud. Detienne, M. “Héstia Misógina, a cidade em sua autonomia” In: op. cit., 1991, p.69.

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vez do casamento que lhe ofereciam Apolo e Poseidon,111 (...) Hestia escolheu a virgindade plena e inalterável, a unicidade de si mesma que a punha afastada do desejo dos seus pretendentes. De então em diante, seu quinhão seria tomar posse das gorduras oferecidas à hestia, à lareira situada no centro da casa e, pelo mesmo privilégio, receber o culto nos templos de todos os deuses, em toda a parte onde ardesse um fogo sacrificial.112

Hestia era o começo e o fim; para quem ia as primeiras e últimas libações;

conhecedora, da ubiqüidade mediante o centro fixo e ordenadora do espaço

inteiro. Para o homem comum, ela representava o próprio viver (o ato de viver),

mas para o governo era a potência, a du/namiv (dýnamis); sua arché.113 J-P

Vernant dedicou um cuidadoso estudo acerca da complementaridade de funções

entre Hestia e o deus Hermes em sua obra Mito e Pensamento entre os Gregos,

intitulado “A organização do espaço”,114 cujas reflexões são bastante pertinentes

para o encaminhamento da discussão.

Para Vernant, Hestia e Hermes se aproximam pela fili/a.115 Esta, não se

baseia nos laços de sangue, nem do casamento, nem tampouco de uma

dependência pessoal, mas corresponde conforme afirma o autor, a uma afinidade

de funções: “as duas forças divinas, presentes nos mesmos lugares, desenvolvem

lado a lado, atividades complementares”.116 Tanto um quanto o outro se referem à

extensão terrestre; ao habitat do homem. Hestia senta-se no trono no centro da

casa (me/sw oi]ko)117. Ela é a fixidez, a permanência, a imutabilidade. Hermes, por

sua vez, é aquele que ‘freqüenta’ o mundo. Habita a casa dos mortais à maneira do

mensageiro, como um viajante que vem de longe. Ao contrário da deusa, nele

nada é fixo. Seu lugar é junto à porta.118

111 HOMERO. Hino Homérico a Afrodite (I), 24. Apud. Detienne, “Héstia Misógina, a cidade em sua autonomia” In: op. cit., 1991, p.69. 112 Detienne recorre para esta passagem a inúmeras fontes: Hino Homérico a Afrodite (I), 30-32; Cp. Píndaro, Neméias XI, 6-7; Sófocles, Fr. 726 Radt; Platão, Crátilo, 401 a; Pausânias, V,14,5. Apud. Detienne, M. “Hestia Misógina, a cidade em sua autonomia” In: op. cit., 1991, p.69. 113O autor descreve que ver a deusa Hestia em si mesma e em suas estátuas significava para os que participavam das atividades públicas (o Conselho, a Boulé), o Tesouro Público. Para o argumento, ver a referência na nota anterior. Ibid., 70. 114 VERNANT, “A organização do espaço. Hestia-Hermes. Sobre a expressão religiosa do espaço e do movimento entre os gregos” In: op. cit., 1990, pp.187-243. 115 O helenista ilustra sua argumentação remetendo à representação da deusa conforme Fídias a esculpiu, ao lado de Hermes, na base da grande estátua de Zeus, em Olímpia. Para o argumento completo, ver referência anterior. Ibid., 190. 116 Ibid., 191. 117 HOMERO. Hino Homérico a Afrodite, 30. Apud. Vernant, “A organização do espaço. Hestia-Hermes. Sobre a expressão religiosa do espaço e do movimento entre os gregos” In: op. cit., 1990, p.191. 118 Ibid., 192.

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Presente diante das portas, ele também reside nas fronteiras, nas entradas

das cidades, nas encruzilhadas e nos túmulos. Hermes é o deus que testemunha os

acordos, os tratados, as tréguas e os juramentos. É também embaixador no

estrangeiro; deus errante é o elo e o mediador entre deuses e homens.119 Vernant

afirma que o par formado por Hestia e Hermes conforma, na consciência religiosa

dos gregos, sua ação no domínio do real, em funções conexas. Assim, Hestia

implica na solidariedade, no espaço da ordem, em contraste com o deus veloz que

reina sobre o território do viajante.120 A Hestia, o interior, a intimidade do grupo

no que o iguala; a Hermes, o exterior, a mobilidade; o contato com o outro.

O casal Hestia-Hermes exprime, em sua polaridade, a tensão que se observa na representação arcaica do espaço: o espaço exige um centro, um ponto fixo, a partir do qual se possam orientar e definir direções (...); o espaço, porém se apresenta, ao mesmo tempo, como lugar do movimento, o que implica uma possibilidade de transição e de passagem de qualquer ponto a um outro.121

Detienne reforça, no entanto, que a autonomia de Hestia em sua vontade

de ser a cidade ideal, reforçava-se por um interdito: nenhuma mulher podia entrar

no Pritaneu, à exceção das tocadoras de “flauta dupla”, indispensáveis às festas de

Dioniso e Apolo.122 E a exclusão do feminino acentua a distância entre o Fogo

público e a divindade feminina que residia no coração da casa.123 Para ser mais

seguramente política, Hestia negava qualquer conluio com o universo feminino,

relegado aos cultos marginais. O que a tragédia Ática iria tornar tema para o

horror e a compaixão, em plena democracia ateniense do V século.

Como outras potências divinas, as figuras simbólicas do político portam a

marca do pensamento em exercício na cidade. Mas, para a delimitação mais

pontual deste território, que se estende da casa ao espaço público da ágora, este

estudo se debruça sobre a questão da autoctonia, tema recorrente nas pesquisas

contemporâneas de Marcel Detienne e objeto do qual trataremos a seguir.

119 Ibid., 193. 120 Ibid., 194. 121 Ibid., 194. 122 DETIENNE, “Hestia Misógina, a cidade em sua autonomia” In: op. cit., 1991, p. 76. 123 Ibid., 76.

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2.3 Autóctone & Arquegeta: os modos de fundar territórios

“L’on nâit grec mais l’on devient citoyen »

Marcel Detienne

A questão da autoctonia passa obrigatoriamente, tanto pelo pertencimento

do indivíduo a um território e seu reconhecimento pela comunidade, quanto pelos

modos de fundar este território. Para o helenista Marcel Detienne a idéia de

“fundar” no âmbito de “territorializar” coloca perguntas que merecem uma maior

atenção, como: O que é um lugar? O que é um limite? Ao propor um estudo

comparativo que se debruce sobre semelhanças e contrastes entre os ‘traçados de

fundação’124, Detienne escolhe a Grécia como seu objeto para refletir sobre o

tema; e apresenta dois caminhos para esclarecê-lo, logo de início: o do arquegeta,

e o da autoctonia. O primeiro, na época arcaica, entre uma série de pequenas

cidades, desvela uma figura inaugural, aquele que vem de fora. O segundo, filho

da terra, configuração a qual o autor intitula ‘arrogante’, alardeada pelos

atenienses diante de todos os outros gregos, configura o mesmo.125

Acerca do fundador-arquegeta - o que vem de fora – Detienne descreve

suas relações com os caminhos traçados. Como ele separa uma porção da terra

declarada vazia e desenha o espaço do altar sobre o qual irá sacrificar a vítima

com o cutelo. Sacrificar, para depois cortar e partilhar, cujos pedaços de pesos

iguais serão reservados aos membros da nova comunidade. Segundo afirma, “o

fundador-arquegeta anda com o passo firme na direção de um modelo político da

territorialização”.126 Entre o altar, o santuário, o templo, primeira marca do

território a ser fundado, estabelecer-se-á o laço fundamental entre o humano e o

divino, inaugurado no primeiro sacrifício, doravante perpetuado pela koiné.

124 DETIENNE, M., “Construir Comparáveis” In: Comparar o Incomparável. 2004, II, p.45. 125 Ibid, 60. 126 Ibid, 59.

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Nesta atividade grega de criação repetida de cidades, Detienne lembra que

os deuses não são esquecidos. “Eles possuem seu lugar”,127 recuperando da

epopéia homérica o rumor que corria entre os feácios. Entre o porto e a ágora a

história do fundador emblemático da cidade é repetida entre eles: “a cidade de

Alcínoos, rei dos Feácios, anfitrião de Ulisses, por ocasião de seu retorno à

Ítaca”.128 Detienne descreve que o fundador se chamava Nausítoo, e que para

fundar a vila dos feácios cumpriu quatro etapas: traçou uma muralha; edificou

templos aos deuses; construiu casas; e partilhou a terra entre os cidadãos.129

O autor afirma que entre os altares mais antigos edificados, o de Samos, no

santuário de Hera, seria contemporâneo aos descritos na Ilíada e na Odisséia. O

altar grego, desde o século VIII a.C., se define assim por um marco inaugural; é

sobre ele que o fogo é aceso, que o sangue das vítimas da thysía corre, que a parte

dos deuses é consumida pelas chamas. Com o altar inicia-se o processo de

territorialização, fabricação e construção de um espaço,130 que ele indica na obra

com Giulia Sissa, ser objeto, primordialmente, da partilha divina.131 Recuperando

um episódio referido por Heródoto nas Histórias, ilustra-o:

Por um dia de grande vento,132 o deus Bóreo tornou-se cidadão da vila de Túrio, nova Sibaris. (...) Mais especificamente, em 379 a.C., Denis de Siracusa em guerra contra os cartagineses, lança uma expedição naval contra Túrio. Trezentos navios carregados de homens armados, de hoplitas, de homens de bronze. O Vento do norte soprou, Bóreo fez quebrarem as embarcações. Desastre para Denis. Ao passo que os cidadãos de Túrio, salvos pelo deus Bóreo, votaram um decreto concedendo a cidadania ao Vento: atribuíram-lhe uma casa como a um novo cidadão, concederam-lhe um lote de terra, e, todo ano, celebravam uma festa em sua honra.133 (...) Os atenienses, por sua vez, que haviam tido um papel central na fundação da nova Sibaris, decidiram tomar Bóreo por um parente aliado. Tinham doravante, na fronteira de Ilissos um santuário reservado ao Vento do norte que lhes havia dado a mão anteriormente contra a armada persa, próximo ao cabo de Artemísio.134

127 DETIENNE, « Faire du territoire, créer des dieux pour chaque cité » In : op.cit., 1989, IX, pp. 167-169. 128 Ibid., 167. 129 Odisséia, VI, 10. Cf. Claude MOSSÉ, « Ithaque ou la naissance de la cité » Annali dell’ Instituto Universiatrio Orientale. Archeologia e storia antica, II, Naples, 1980, pp. 7-19. Apud Detienne, op.cit., 1989, IX, p.167. 130 DETIENNE, “De l’ autel au terroir: l’ habitat des puissances divines” In: op.cit., 1989, p.207. 131 DETIENNE, “Quand les Olympiens prennent l’ habit du citoyen” In: op.cit., 1989, IX, p.159. 132 A tradução é minha. 133 ELIEN, Histoires variées, XII, 61. Apud Detienne, op.cit., 1989, IX, p.159. 134 HERÓDOTO, VII, 188-189. Apud. Ibid, p.159.

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Deste modo, quando chega o momento da decisão sobre a partilha das

cidades nas quais cada um irá receber honras particulares, somente uma palavra de

ordem se instaura: querela, éris. Detienne conota que como nos Bons tempos da

guerra de Tróia, os deuses se enfrentam, se desafiam se combatem e envolvem os

mortais e as gerações porvir, “cidadãos de Atenas ou Argos”,135 nessas disputas.

O mito de disputa pelas terras da Ática, descrito a seguir, figura um bom exemplo

quanto à questão do fazer território e da autoctonia.

É na Ática, terra chamada de Aktê, (costa escarpada),136 que se ergue o

Erechtéion, entre todos os nichos sagrados, de altares aglomerados, com muitos

deuses, reis ancestrais, heróis veneráveis, signos de altas epifanias. De um lado,

Posêidon, fincando seu tridente na rocha, fazendo brotar a fonte de água salgada

no próprio seio da Acrópole; de outro, Atena, que planta a primeira oliveira nesta

terra contestada. Cada um produz, assim, suas marcas de poder sobre o território

em questão.

Entre Erecteu, nascido das sementes lançadas por Hefesto (deus das forjas)

diretamente na Terra, e Cécrops, o primeiro angüípede, há para o autor ‘leves

deslocamentos’. O ponto importante, no entanto, é a revanche de Posêidon, que

após perder para Atena na unanimidade do júri, em pleno século de ouro, vem à

frente da cavalaria trácia, socorrer seu filho Eumolpo contra o rei Erecteu. Entre o

clã de Posêidon e de Atena, uma guerra começa. O rumor de um oráculo diz que

para que a cidade fosse salva, o sangue de Erecteu deveria ser derramado. Uma de

suas filhas é então degolada no altar da “lúgubre Perséfone”137 e o próprio Erecteu

é derrotado pelo deus na Acrópole, aonde se ergue doravante o santuário que leva

o nome de ambos: Posêidon-Erecteu.138

Detienne afirma que a oliveira aparece como um presente dos deuses no

mito das origens de Atenas139 e no curso da disputa que a opunha a Posêidon pela

posse da Ática, Atena faz surgir do solo a primeira oliveira. Em face às

manifestações da soberania de Posêidon, que tomavam a dupla forma de um lago

salgado e de um cavalo indômito, a oliveira de Atena significava o advento da 135 DETIENNE, “Choisir une cité” In: op.cit., 1989, p.162. 136 Ibid, 163. 137 DETIENNE, op.cit., 2004, II, p.62. 138 Segundo afirma Detienne, “o santuário dito de Posêidon-Erecteu, ou aquele de Apolo em Delfos, é um templo paisagem”. Para o argumento, ver: “Singularité du temple grec”, In: op. cit., 1989, p.211. 139 DETIENNE, “Um Efebo, uma Oliveira”, In Marcel Detienne, A Escrita de Orfeu. 1991, 2, p.55.

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vida cultivada e da instauração do grupo social na terra.140 E da disputa em

questão, da qual a deusa sai vitoriosa, o sacrifício de Erecteu figura a própria

relação de complementaridade entre as duas potências, cicatrizes de uma história;

aquela da autoctonia.

No que concerne ao presente estudo, os inventores da cidade irão fabricar

os deuses cidadãos e as divindades ditas políades que regem o panteão de uma

pólis. “Deuses”, afirma Detienne, “estreitamente implicados no cotidiano social e

político”.141 Assim, o templo grego não é um microcosmo; ele faz parte da cidade,

pertence ao universo espiritual, à sua ordem social ou ao cosmos. Ao que

Detienne conclui terem seu papel no espaço da publicidade, assim como a ágora

ou o pritaneu, centro de decisão aonde se reúnem os magistrados responsáveis

pelos negócios comuns, e onde as leis escritas estão expostas às vistas de todos os

cidadãos.142

No entanto, isso não impede que os deuses tenham vínculos estreitos com

os territórios de uma cidade. Divindades essas, mais profundamente ligadas a terra

e sensíveis aos tipos de sacrifício e oferendas feitas em seu nome: os cereais, as

ervas de cada santuário, provenientes das terras vizinhas aos seus templos, cujas

formas e sabores lhes são únicos, e que atestam para a territorialização à qual

Detienne se refere.143 O autor lembra que se é verdadeiro que os gregos se

reconhecem entre si em um tipo de sacrifício que os distingue dos não-gregos, dos

bárbaros, eles também são atentos aos particularismos culturais que recuperam as

formas originais de suas condutas alimentares. Secretamente, territórios inteiros

parecem ser confiados às possessões divinas ou aos heróis, cujos locais

cuidadosamente escondidos recebem os sacrifícios devidos. O que nos leva, de

certa maneira, à questão da construção da autoctonia ateniense.

Detienne inicia o quinto capítulo de Os Gregos e nós com a afirmação:

“Achar seu lugar (son trou); isso não parece grego”,144 no qual aborda o tema em

questão. Há em autóctone um peso e uma força telúrica: “nascido da própria terra

140 Para o argumento acerca da longevidade da oliveira e das virtudes que lhe são atribuídas, ver o capítulo supracitado. 141 DETIENNE, “Choisir une cité” In: op.cit., 1989, p.168. 142 Ibid, 211. 143 DETIENNE, “Questions de terroir” In: op.cit., 1989, p.216. 144 DETIENNE, “Achar seu lugar, entre o Édipo de Tebas e nossas identidades nacionais” In: op.cit. 2008, 5, p.99.

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onde estou.”145 Conforme o anteriormente citado, a proposta do autor passa pelo

que indica a primeira expressão, no sentido em que faire son trou permite pôr a

autoctonia em perspectiva, intrinsecamente ligada à fundação e aos modos de

fundar. Ora, em torno de um primogênito e da própria mitologia exangue os

atenienses assumem no século V a postura de autóctones puros, certos de nunca

terem mesclado seu sangue com o de um estrangeiro.146 Detienne, então, propõe

um olhar em perspectiva sobre o tema, que passa diretamente pelo que vem sendo

discutido até aqui, no diz respeito a este ‘fazer território’ entre o divino e o

humano, e o que é da pólis e marginal a ela.

À autoctonia, impõe-se seu ‘outro’, a exclusão. Nicole Loraux atesta que

na Grécia do período em questão, a exclusão envolvia mulheres, escravos e

metecos de maneiras diferentes.147 Às mulheres a exclusão era política e não

social, afinal elas participavam de alguns cultos;148 aos escravos, era estrutural.

Para o meteco, condição do estrangeiro declarado como tal, desde que residente

em território ático por longo tempo, a exclusão era deste modo figurada: se

assassinado, seria por homicídio involuntário; o imposto lhe era compulsório,

assim como ter um patrono ateniense. Loraux aponta, no entanto, que “a pólis dos

cidadãos não pode existir sem a presença dos estrangeiros”,149 afirmando que

quanto à democracia ateniense, esta tinha a necessidade dos metecos para os

múltiplos serviços que prestavam à coletividade da koiné.

E ainda acerca da exclusão, Catherine D. Peschanski vai além, lembrando

que os bárbaros fazem parte desta imbricada trama. Em seu artigo “Os bárbaros

em confronto com o tempo”, afirma que tanto em Heródoto quanto em Tucídides,

o tempo dos povos não gregos não é nem homogêneo aos dos gregos, nem

intrinsecamente homogêneo, e que, na organização desses desequilíbrios, o par

145 Ibid., 100. 146 Ibid., 103. 147 Nicole Loraux, “A democracia em confronto com o estrangeiro” In: CASSIN, B., LORAUX, N., PESCHANSKI, C. Gregos, Bárbaros e estrangeiros. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993, p.11. 148 E. R. Dodds afirma que os festivais das Tíades existiam em Tebas, Opus, Melos, Pérgamo, Priene e Rodes, atestadas por inscrições em Aléia na Arcádia, feita por Pausânias, em Mitilene por Aeliano, e em Creta por Firmicus Matrenus. Cf. Paus. 8.23 1; Ael., Var. Hist. 13.2 ; Firm. Mat., Err. Prof. Rel. 6.5 trietηrideς também surge entre os budini semi helenizados da Trácia (Heródoto 4. 108). Apud Dodds, « Apêndice I . Menadismo » In : op. cit., 2002, pp. 271-285. 149 Citação de M. Austin e P. Vidal-Naquet, Economies et sociétés em Grèce ancienne. A. Colin, Paris, 1972, p.118. Apud. Nicole Loraux, op.cit., 1993, p.16.

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antônimo grego/bárbaro150 é apenas uma maneira de por face a face os gregos:

tais como desejamos ou lastimamos que sejam, e os gregos que censuramos ou

acusamos.151

Acoplado ao nome próprio, Héllenes, uma designação genérica, bárbaroi.

As Guerras pérsicas (480-448 a.C.) desempenharam um papel catalisador neste

sentido. A clivagem entre o excesso, representado pelos persas, e a medida,

figurada nos gregos, é fundamentalmente política, pois discerne os que conhecem

a pólis dos que, ignorando-a viveriam submetidos a um rei. Segundo a autora,

também Heródoto instaura entre os bárbaros e os gregos do passado, uma

dissimetria temporal. Tratando, desta vez, da origem dos atenienses e dos

espartanos, ele chega igualmente a colocar em cena o povo pelásgico e o helênico,

referindo-se ao que seria o povo ateniense – membro do génos jônico – ser de

origem pelásgica. Já os espartanos, seriam dóricos relacionados ao éthos helênico. 152 Assim ou se nasce grego, ou se torna um, e o tempo serve à helenidade.

Detienne afirma que, nasce-se grego, mas torna-se cidadão,

progressivamente, indicando serem três os níveis cumulativos de participação em

uma comunidade: o reconhecimento por uma fratria, a inscrição num dêmos e a

atividade (função) em uma cidade.153 Uma fratria (unidade territorial menor que o

dêmos) engloba ricos e pobres, aristocratas e pessoas de menor nascimento. Sem

hierarquia, ela funciona como uma estrutura de acolhimento. Entra-se numa fratria

sob a presença do grupo familiar, primeiramente pelo nascimento. Reconhecido

pelo pai, integrado à lareira e ao fogo da casa, o indivíduo recebe um nome,

doravante sua primeira identidade pelos deuses da família e do génos.154 À idade

de dezesseis anos, momento da puberdade legal, dois anos antes da maioridade

civil, o futuro frére (irmão), é introduzido diante da assembléia dos Iguais.155

150 François Hartog aponta que é entre o sexto e o quinto século a.C. que “bárbaro”, no sentido de não-grego, forma, associado a “grego”, um conceito antônimo e assimétrico. Para o argumento ver, HARTOG, F., “Invenção do Bárbaro, inventário do mundo” In: Memória de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga. Belo Horizonte: UFMG, 2004, III, p.93. 151 PESCHANSKI, C.D. “Os bárbaros em confronto com o tempo” In: op. cit., 1993, p.58. 152 Ibid, pp.61-62. 153 DETIENNE, “Affaires des dieux, affaires des hommes” In: op. cit., 1989, XIII, p.218. 154 Ibid, 219. 155 A unidade territorial do demos dispõe de uma assembléia, de magistrados e de um chefe. Ao contrário das fratrias, que não possuem calendários e santuários próprios (autônomos), o demos redige seus calendários e organiza seus sacrifícios e festas muitas vezes desconhecidos alhures. Detienne lembra que é na pólis, no entanto, que se impõe a fórmula “negócios dos deuses e negócios dos homens”. Cf. Detienne, op. cit., 1989, XIII, p. 222.

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Em uma perspectiva antropológica, J-P Vernant atesta que sobre a

invenção de uma autoctonia ateniense, os cidadãos de Atenas, construíram para si

modelos de um pai fundador, fiador de sua vida pública. E lembra que em sua

descrição da Ática, Pausânias assinala para a presença de um afresco – obra de

Eufranor – datado do século IV a.C. A pintura representava três personagens.

Teseu e duas figuras alegóricas ligadas a ele, as quais figuravam: Demokratía e

Dêmos.156 Quando Isócrates faz o elogio ao herói Teseu, as virtudes cívicas que

evoca (espírito de justiça, preocupação com a igualdade) são tratadas no mesmo

modo de celebração que as lutas e gestas do herói ao combater os monstros, o

Minotauro, o touro de Maratona, ao fazer a guerra contra as Amazonas e ao descer

ao Hades com Pirítoo.157 Vernant refere-se aqui à defesa de uma identidade que

exclui não só o selvagem, o monstruoso e o bestial, mas também aquele que não é

ateniense puro.

Complementando o argumento, Detienne afirma que, em contraste com os

puros atenienses, nascidos da terra historial da Ática, com uma identidade tão

pura, levam “Isócrates, Platão158 e Eurípides (com qual ironia, atenção!) a apontar

o dedo para os elementos impuros”,159 referindo-se aos metecos e toda a sorte de

excluídos da ordem estabelecida. É válido notar, no entanto, que é Tucídides

quem levanta um problema, colocando a pureza desse ideal grego em debate. A

guerra civil, stásis, serve como pano de fundo para o argumento em questão.

Peschanski se pergunta como não aproximar, com efeito, o massacre perpetrado

em Mycalessos pelos trácios de outro massacre da Guerra do Peloponeso, no qual

os corcirenses infligem a si mesmos?160 “Pois os trácios matam homens,

mulheres, velhos e crianças, mas entre os corcirenses, o pai mata seu filho”.161

Conclui-se destarte, que o historiador da Guerra parece convocar os bárbaros para

dizer aos gregos não que aqueles estão misturados a eles, mas neles mesmos.

Recuperando a discussão proposta no início deste capítulo acerca dos

‘modos de fundação’ e dos dois caminhos atribuídos para tal – o do arquegeta e o

156 VERNANT, “Racionalidade e Política” In, Entre Mito e Política. SP: Edusp, 2002, 19, p.220. 157 Ibid, 221. 158 Refiro-me ao diálogo com Sócrates no Menexeno. Para o argumento ver a discussão proposta sobre a autoctonia por Saxonhouse em: SAXONHOUSE, A., “Authoctony and Unity in the Menexenus and the Statesman” In: Fear of Diversity. The birth of Political Science in Ancient Greek thought. University of Chicago Press, 1992, 5, p. 111-131. 159 DETIENNE, op. cit., 2004, II, p. 60. 160 PESCHANSKI, C.D.,op. cit., 1993, p.73. 161 TUCÍDIDES III, 81 sqq. Apud Peschanski, op. cit., 1993, p.73.

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da autoctonia - acompanhamos a narrativa de Detienne sobre a fundação de Tebas.

Sob suas origens os dois aspectos se confundem, originando uma história cheia de

mortes, máculas do sangue vertido e de dívida insaciável, as quais a tragédia Ática

vai explorar. O autor lembra que Tebas foi fundada por Cadmo, então sem

Harmonia (filha de Ares e Afrodite, que viria a ser sua esposa e mãe do clã

tebano). Conforme descrito no capítulo I dessa dissertação, Cadmo, como o

menos afortunado dos arquegetas, seguiu o caminho designado pelo oráculo de

Apolo e traçado pela novilha cujo manto é marcado por manchas brancas em

forma de lua cheia.162 No lugar em que a vaca caísse, Cadmo deveria sacrificá-la

para então, fundar uma cidade.

O autor então aponta para o que considera ser a primeira singularidade da

futura Tebas: quem guarda a fonte onde o herói iria buscar a água para a thysía era

uma serpente, nascida de Ares e da Erínia Tilfoussa, divindade da vingança de

sangue, e por isso, filha da Terra. Para cumprir as libações devidas, Cadmo mata a

serpente, ofendendo Ares, o que o obriga a semear os dentes do monstro sobre o

pedíon, ou planície. Desta semeadura, surgem os Spartói, nascidos da própria

terra, já guerreiros, totalmente armados e belicosos. De seu total extermínio, após

a interferência do próprio Cadmo, apenas cinco Espartos sobrevivem, dando

origem assim, à aristocracia tebana. Detienne acredita que o modelo tebano,

entrevisto com dificuldade, entrelaça uma série de entradas com orientações

divergentes, passando pelos caminhos já referidos da refundação (de uma cidade

ou colônia, por exemplo).163 Em Tebas, marcadamente, sim. Pois esta é uma porta

condenada, no que remetemos ao dito pelo próprio autor, “os primogênitos de

Tebas”, referindo-se aos autóctones Spartói, “armados e que se matam ferozmente

entre si como o farão os filhos de Édipo, Polinice e Etéocle. Os sobreviventes dos

primogênitos ficam para transmitir a nódoa”.164 Tebas deste modo torna-se o

espaço onde a autoctonia se origina com o horror. Para Detienne, é na

configuração ateniense, ao voltar de Tebas, do outro ao mesmo, que se encontra o

mais prometedor.

Para ele a autoctonia não singulariza o espaço, não parecendo inquietar-se

com um começo no tempo. O primogênito de Atenas não se confunde com a idéia

162 DETIENNE, op.cit., 2004, II, p. 61. 163 Ibid, 62. 164 DETIENNE, op.cit., 2008, 5, p.105.

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de nascer da própria terra. O essencial para a autoctonia está no que Detienne diz

ser o “próprio”, ou o mesmo, mas com o gesto decisivo e constitutivo da exclusão:

“a exclusão dos outros, que a configuração de “fundar” não parece implicar

imediatamente”.165 Nessa paradoxal e quase complementar relação entre puros e

impuros, autóctones e estrangeiros, mesmo e outro, as festas religiosas são

verdadeiras catalisadoras. É Vernant quem lembra,

que quando o sujeito não se inscreve diretamente na ordem social sacralizada, quando ele se evade, não é para afirmar-se como valor singular; é para voltar à ordem por um outro caminho, identificando-se, tanto quanto possível, com o divino.166

Neste sentido, a forma de religião política abordada até aqui não esgota,

porém, a experiência religiosa dos gregos. E no que nos concerne expõe, face ao

aspecto da integração social e do pertencimento, um aspecto inverso, outro,

complementar do primeiro, no entanto. O outro é Dioniso. Para ambos, um deus à

parte. Filho de Zeus e da mortal Sêmele, princesa tebana, ocupa até mesmo no

panteão o lugar do “estranho estrangeiro”.167

Ambíguo em sua relação com os mortais, ora os lança na loucura, na

mácula e no crime, ora lhes oferta a fuga do cotidiano e a alegria. Detienne o

define, “o divino diferente do que é próprio dos deuses helênicos”; diferente na

medida em que subsiste em sua face algo estranho e algo estrangeiro.168 Se a

impiedade, falta em relação aos deuses, é também atentado ao grupo social,

Dioniso por suas virtudes epifânicas, conhece intimamente as afinidades da

presença e da ausência. Para o autor, o deus se apresenta sempre sob a máscara do

estrangeiro. “É o deus que vem de fora; ele vem de Outro lugar”.169

Para o presente estudo, Dioniso é o Outro que precisa ser visto de frente.

Eleito como tema do III capítulo conclusivo desta dissertação, ele figura o ponto

de encontro das reflexões dos dois autores acerca daquele que já não mais

representa o herói homérico ou o polítes, mas sim, o que os condensa, interroga e

que, sobretudo, escolhe. Este, o herói trágico.

165 Ibid, p.107. 166 VERNANT, “A pessoa na religião” In: Mito e Pensamento entre os Gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, 6, p. 437. 167 VERNANT, « Longa vida aos deuses gregos » In : op.cit., 2002, 21,p. 235. 168 Ibid., 21. 169 Ibid., 18-19.

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3. Sob as bênçãos de Lýsios

ta\ mέγista tw~n a0γaθw~n h9mi~n γi/γnεtai dia\ mani/aς

“Nossas maiores bênçãos

vêm a nós através da loucura”

Platão, Fedro, 244A

3.1 A mani/a que liberta

No ponto de encontro das reflexões de Jean-Pierre Vernant e Marcel

Detienne apresenta-se o homem grego partido em dois registros: o do herói

homérico, títere dos deuses; e o do modelo cívico, homem do direito grego, cuja

responsabilidade é discutida e medida pela lei da pólis. Para exprimi-lo,

contraditório e enigmático, a tragédia Ática surge. “O teatro é, no mundo grego,

uma forma de se tornar o outro”, diz Vernant.1 Conforme o anteriormente citado,

este outro é Dioniso. O presente capítulo, assim aborda as manifestações desta

consciência no pensamento grego, especificamente no ateniense. Para tal, opta por

dois caminhos, ambos privilegiados pelos autores em suas obras: num primeiro

momento, aquele que leva ao deus Dioniso, patrono da tragédia, representado em

suas epifanias no dionisismo; no segundo, ao que apresenta o Dionysos da dupla

origem – humana e divina – manifestada em seu modo de ação paradoxal na

tragédia de Eurípides, As Bacantes.

As tragédias têm relações complexas com muitas outras manifestações da

cultura grega, como a filosofia, a ciência, os cultos e, sobretudo, a política. Tanto

para Vernant quanto para Detienne (assim como para outros helenistas)2, o

1 VERNANT, “Um Teatro da cidade” In: op. cit., 2002, 36, p.354. 2 Refiro-me a helenista Ruth Padel e à obra, PADEL, R. In and Out of the Mind. Greek images of the tragic self. (1992), e a Christian Meier e sua, MEIER, C. De la Tragédie Grecque comme Art Politique. Paris : Les Belles Lettres, 1991.

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material das tragédias deve interagir com a antropologia, a psicologia e a história,

e para aquele que penetra em um sistema mental como o dos gregos, com suas

coerências e tensões, ambigüidades, dissonâncias e interrogações, “a tragédia

Ática oferece um terreno de pesquisa cuja virtude heurística não tem igual”.3 No

entanto, é válido notar que não se pretende aqui, realizar um estudo literário da

tragédia euripidiana referida. Pautados nas considerações e pesquisas de Vernant e

Detienne, inquirindo, sobretudo, acerca da interferência e das relações entre o

humano e o divino, a tragédia em questão funciona como uma espécie de lente,

através da qual os autores vêem o homem grego do período.

Cada aspecto da existência humana corresponde a um sagrado particular.

Assim, para os gregos do V século conforme constatamos no capítulo anterior, o

sagrado se fazia presente em seus corpos, mentes, casas e cidades. 4 É J-P Vernant

quem afirma que no limite deste limiar, o conhecimento de si e do outro, no

contexto cultural referido, opera segundo uma dupla reação.

Em primeiro lugar, de reciprocidade: eu me vejo nos olhos do outro que está na minha frente, assim como ele se vê no espelho dos meus; em segundo, de reflexividade: do espelho em que olho para mim, vejo a mim mesmo como rosto e olho que me vê.5

De forma semelhante, Ruth Padel argumenta em sua tese que as

divindades deste limiar sugerem que o pensamento grego via algo de ‘divino’ no

movimento de entrada e saída, “do dentro para fora e do fora para dentro”6,

atestando destarte, para o que ocorre segundo Vernant, nesta dupla reação. Nessa

relação, a religião grega, além do thámbos e do sentimento difuso do divino, abre-

se em um aspecto que lhe é essencial: o culto.

Na transcrição de seu diálogo com Michèle Raoul Davis e Bernard Sobel

intitulado “O teatro na cidade”,7 J-P Vernant refere-se ao dionisismo como um

elemento central à Grécia, mas que caminha numa direção diferente. De fato,

tanto ele quanto Detienne tratam o fenômeno religioso do dionisismo como

‘contra face complementar’ dos demais cultos cívicos, sendo ele próprio parte dos

3 VERNANT, “A Identidade Trágica” In op. cit., 2002, 41, p.397. 4 PADEL, R. “the Divinity of inside and outside” In op.cit. 1992, I, p. 3. 5 VERNANT. op.cit., 2002, p.337. 6 PADEL. op. cit., p.4. 7 VERNANT, “O Teatro na Cidade” In op.cit., 2002, p.347.

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calendários religiosos das cidades. Para compreendê-lo, no entanto, é necessário

que façamos uma breve digressão sobre os demais cultos.

No que concerne ao período clássico são três os tipos de fenômenos

indicados por Vernant: os Mistérios de Elêusis, o Orfismo e o Dionisismo. Os

mistérios de Elêusis constituem na Ática um conjunto cultual bem delimitado; o

que significa dizer, que são oficialmente reconhecidos pela pólis, organizados sob

sua tutela, mas que operam, no entanto, à margem do Estado, devido ao seu

caráter iniciático estar baseado na escolha pessoal do seguidor.8 Vernant lembra

que um mistério constitui uma comunidade, não mais social, mas espiritual, da

qual participa cada um pela virtude de sua livre adesão e independentemente do

seu status cívico.9 Os de Elêusis eram patrocinados pelas deusas Deméter e Kore-

Perséfone e não contradiziam a religião cívica.

Já o orfismo é para o autor uma “nebulosa” composta de um lado, de livros

sagrados atribuídos a Orfeu e Museu,10 e por outro, de personagens, sacerdotes

itinerantes que pregam uma existência contrária à norma: um regime alimentar

vegetariano, técnicas de cura e de utilização de phármaka (medicamentos), para a

purificação da vida. O surgimento do orfismo se dá numa atmosfera na qual a

universalização da condenação do crime e o horror inspirado doravante por toda a

espécie de assassínio, implicam na exigência da expiação e da purificação da

cidade, atitudes ligadas ao despertar religioso e ao movimento das seitas ditas

Órficas.11 O autor destaca como exemplo a figura de Epimênedes, da classe

desses magos purificadores, definido por Plutarco como um Sábio em matéria

divina, dotado de uma sophía “entusiasta e iniciática”.12

Em “Orfeu reescrevendo os deuses da cidade”, Marcel Detienne alerta seu

leitor para o quiasma que faz entrecruzarem-se a morte e a vida de Orfeu, e os

pares contrastados de Dioniso e Apolo. Para o autor, pela ‘janela de Orfeu’, seria

possível se conceber de outro modo as relações internas entre as divindades e sua

conexão com a espécie humana.13 Assim como Vernant, ele lembra que os

renunciantes surgidos no século VI a.C., justamente no período referido

8 VERNANT, « O misticismo grego » In: op. cit., 2006, p.70. 9 VERNANT, “A pessoa na religião” In: op. cit., 1990, 6, p. 423. 10VERNANT, op. cit., 2006, p. 71. 11VERNANT, “A Crise da Cidade. Os primeiros Sábios.” In: op. cit., 2000, V, p.60. 12PLUTARCO, Vida de Sólon, XII, 7-12, apud Vernant, op.cit. 2000, p.60. 13DETIENNE, “Orfeu reescrevendo os deuses da cidade” In; op. cit., 1991, III, 2, p.91.

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anteriormente, tinham um grande empenho em refazer o politeísmo, repensando o

sistema de ação atado ao conjunto das conexões sociais e políticas da pólis.

Com efeito, há no orfismo, segundo Detienne, três planos relativamente

autônomos. Primeiro o da tradição referente ao próprio Orfeu: “nascimento, vida,

descida aos infernos”, lembremos, para resgatar Eurídice; “as encantações entre os

trácios, o fim trágico quando a malta de mulheres o despedaçou”.14 Em seguida,

há a escrita de Orfeu produzindo uma biblioteca, à qual Vernant também enuncia.

Parte dela conta o nascimento do mundo e a gênese divina; outros livros

prescrevem um regime alimentar, convidando a sacrifícios puros de fumaças

aromáticas, que Detienne afirma estarem relacionados na obra intitulada

Thyepôlikon, à qual Platão alude um trecho na República.15 O terceiro postigo

para o autor é o das práticas dos seguidores de Orfeu. Abster-se de carne, não

provar boi, oferecer aos deuses somente bolos ou frutos umedecidos com mel,

reforçando a idéia da impureza em se sujar o altar dos deuses de sangue, ou comer

alimentos encarnados.16 Para os seguidores do orfismo que escolheram a escrita e

o livro como sinal eficaz de alteridade, renunciar à mundanidade da cidade não

era só uma questão de purificação, mas de acordo com Detienne, era refazer a

gênese do mundo, reescrevendo a história inteira dos deuses. Para o autor os

sacrifícios oferecem a perspectiva onde o social, o político e o religioso estão

perfeitamente ajustados.17

A corrente dionisíaca por sua vez, a despeito de fazer parte do calendário

religioso, oferecia um quadro de acolhimento aos que se achavam à margem da

ordem social reconhecida. Para Vernant, o dionisismo é por predileção, uma

religião de mulheres, como tais, excluídas da vida política. Como Bacantes, são

qualificadas com a virtude de representarem um papel na religião dionisíaca.

Enfim, os termos thíasoi e orgéones, que Vernant define como os colégios de fiéis

associados nas orgias, retêm a lembrança de grupos campesinos relacionados ao

dêmos primitivo, que tiveram que aderir a certas fratrias quando a religião cívica

instaurou uma ordem para os cultos. Alguns dos epítetos do deus, Eleuthérios,

14 Ibid., 93. 15 PLATÃO. A República, 364e. 16 DETIENNE. op. cit., 1991, III, 2, p. 94. 17 Ibid., 95.

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Lýsios,18 conotam a mistura entre o social e o religioso em uma aspiração à

liberdade.19 Ele descreve que em Atenas as festas invernais de Dioniso,

Oscofórias, Dionísias rurais, Leneanas, Anestérias e Dionísias urbanas não

formam como em Elêusis, um circuito fechado, mas uma série descontínua,

distribuída pelo calendário ao lado das festas e cultos de outros deuses.20 Sobre

sua originalidade, complementar ao caráter oficial, repousa o fato de que seu culto

escapa à cidade, contradizendo-a e ultrapassando-a.

Como o Mesmo, o culto cívico, permeado pelo ideal da swfrosu/nh, feita

de autocontrole, de domínio de si mesmo, situa cada ser em seu lugar nos limites

que lhe são consignados. Seu Outro é o dionisismo. Contrário, aparece como uma

cultura do delírio e da loucura; a mani/a divina; pela qual o homem se libera da

ordem que constituía, do ponto de vista da religião oficial e do domínio do próprio

hierón.21 O autor afirma que mesmo controlado pelo Estado, como no período

clássico, o dionisismo é uma experiência religiosa oposta ao culto oficial:

Não mais a sacralização de uma ordem à qual precisa integrar-se, mas a libertação dessa ordem, das opressões que faz pressupor em certos casos. Busca de uma expatriação radical, (...) esforço para abolir todos os limites, para derrubar todas as barreiras pelas quais se define um mundo organizado: entre o homem e o deus; o natural e o sobrenatural; entre o humano, o animal, o vegetal; barreiras sociais, fronteiras do eu.22

Deste modo, Dioniso questiona a ordem, fazendo-a despedaçar-se ao

revelar o outro aspecto do sagrado, já não regular, estável e definido, mas

estranho, inapreensível e desconcertante. Vernant refere-o como ubiqüitário;

aquele que nunca está ali onde está sempre presente; ao mesmo tempo aqui,

alhures, em lugar algum.23

18 Dioniso pertence tanto ao mundo do deus olímpico por excelência (onde aparece do lado do Parnaso, das grutas “corícias” e das fontes de “Castália”) como também às profundezas insondáveis dos mistérios de Elêusis. Ele parece realmente ser irmão de Apolo, mas também fruto da terra “onde brotou a semente do dragão”. A tensão é bastante nítida entre as imagens enaltecedoras e aviltantes, entre o crescimento e a destruição. Cf. Kathrin H. Rosenfield, Antígona. De Sófocles a Hölderlin: por uma filosofia trágica da literatura. Porto Alegre: L&PM, 2000, p.316. 19 VERNANT, “Aspectos da pessoa na religião grega” In: op. cit., 1990, 6, pp. 419-421. 20 VERNANT. op.cit., 2006, pp. 76-77. 21 Ibid., 422. 22 Ibid., 422. 23 VERNANT. op. cit., 2006, p.77.

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Em sua pesquisa E.R.Dodds afirma que a função social do ritual dionisíaco

era essencialmente catártica, em sentido psicológico.24 O ritual proporcionava

uma descarga e alívio, no que o autor conclui: Dioniso representava uma

necessidade social tão grande quanto Apolo para o período arcaico. Apolo

prometia segurança; Dioniso, liberdade.25 Para Vernant, a fusão com o deus – no

caso dos bákchoi, seguidores de Dioniso – não é comunhão, mas possessão. Ele

acredita que a comunhão se dê pelos mistérios, como os de Elêusis e os ritos

Órficos. Como Lýsios, Dioniso é o deus que confere ao homem o poder de deixar

de ser ele mesmo por um curto período de tempo, tornando-o assim livre.

Já Marcel Detienne refere-se a ele como um deus epidêmico. Para o autor,

o dionisismo se apresenta na forma de uma epidemia, a qual justifica recorrendo à

estória do rei Preto da Argólida:

O rei Preto, da Argólida, tinha três filhas. Ao crescerem, são vitimadas pela loucura; recusam-se a prestar culto a Dioniso. Abandonando o palácio paterno, começam a errar pela terra de Argo. Preto convoca Melampo, renomado adivinho e purificador: seus sortilégios, suas ervas medicinais, lhes devolveriam a calma e purificariam. Em retribuição, Melampo pede um terço do reino. O rei não aceita, a doença piora. Suas filhas se tornam cada vez mais agitadas e a loucura toma conta da população feminina. Por toda a parte as esposas saem de casa, desaparecem nos bosques, matam os filhos. Melampo acabará obtendo dois terços do reino.26

O autor lembra que epidemia é um termo técnico quando se trata dos

deuses. São sacrifícios oferecidos às potências divinas que respondem às

apodemias (thysías de despedida).27 Isto se deve ao fato de que entre os deuses há

movimento, como, diante da hospitalidade oferecida por uma cidade a uma ou

mais divindades, por exemplo. São os deuses migrantes, diz Detienne, que tem

direito às epidemias; possuem suas estações e são evocados por hinos.28 Estes são

os chamados Dioscuros, como Ártemis e Apolo.29

24 O autor cita em sua referência a ligação do argumento em questão com o culto de Dionisoς iatroς que diz ter sido recomendado aos atenienses por Delfos (Athen. 22E, cf. 36B), apud Dodds, op. cit., 2002, III, p. 82. 25 O autor argumenta no capítulo supracitado, que Apolo circulava em meio à alta sociedade, “dos dias em que ele era patrono de Heitor até quando passou a canonizar atletas aristocráticos”. Ibid., 82. 26 DETIENNE, “Esse deus epidêmico” In: op. cit., 1988, p.11. 27 Ibid., 13. 28 Os chamados Hinos Homéricos constituem uma coletânea de 33 poemas de variadas dimensões, dirigidos a um deus e escritos em hexâmetros. A maioria provém do século VIII a.C.; seus autores denominam-se aedos, continuadores da atividade lírica dos aedos mencionados por Homero. Para o Hino Homérico a Apolo, ver a edição bilíngüe de Luiz Alberto Machado Cabral (Campinas:

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Para o autor as epifanias de Dioniso são marcadas por confrontos, conflitos

e hostilidades que vão desde o desdém, o desconhecimento e a negação declarada

até à perseguição. À essência de sua natureza divina ele atribui três categorias: a

primeira, por suas chegadas indiretas, através de missões interpostas; a segunda,

como o deus da vinha,30 pelo poder do jorro e das manifestações mais brutais;31 a

terceira, pela sua chegada às terras aonde reclama seu reconhecimento: à terra de

Licurgo, 32 no palácio das Miníades, 33 e a grande parousía, na cidade de Tebas. 34 Três grandes exemplos da “rude loucura”, da mani/a que leva ao assassinato e à

infâmia. Das três categorias abordadas pelo autor, optamos pela terceira,

especificamente no que concerne à parúsia de Tebas, a qual será trabalhada neste

estudo concomitantemente à tragédia de Eurípides na segunda parte do presente

capítulo.

Detienne afirma que assim, Dioniso segue em suas caminhadas um roteiro

traçado por sua condição de estrangeiro portador da estranheza, difundida pelo

não reconhecimento, o qual define como o “duplo sentido de ksénos”35: àquele

que não se refere ao não grego, ou bárbaro de fala ininteligível, mas ao cidadão de

uma comunidade vizinha. O termo deriva da distância que separa duas cidades,

marcada pelas suas assembléias, seus tribunais e seus sacrifícios. Para ser

chamado como tal, o estrangeiro deve, pois, pertencer ao mundo helênico,

idealmente constituído pelo conjunto de homens que “têm o mesmo sangue,

mesma língua, santuários e sacrifícios comuns”.36

Sobre a origem grega de Dioniso, Detienne afirma que em lugar algum o

deus é qualificado de deus bárbaro, mesmo quando as violências parecem exilá-lo

na barbárie. Neste sentido, contrasta-o com a potência de quem se aproxima em Editora da UNICAMP, 2004); para o Hino Homérico a Hermes, ver a de Ordep Serra (São Paulo: Odysseus Editora, 2006). 29 Na obra anteriormente referida Marcel Detienne descreve as viagens de Apolo, de um santuário para outro, entre Delos, Mileto e Delfos, referindo-o como um deus com epifanias ordenadas. (Detienne. op.cit, 1988, p.14). 30 O Dioniso que caminha pela Ática se apresenta, segundo Detienne, como o antípoda de seu personagem tebano; é o deus das vinhas cuja verdade o profeta Tirésias enuncia nas Bacantes. É o deus que inventou e introduziu entre os homens o alimento líquido, a bebida extraída da uva. Cf. Marcel Detienne, “Inventar o vinho e parúsias longínquas” In: op. cit. 1988, pp.50-51. 31 Para o argumento do autor, ver o capítulo “O poder do Jorro. Em torno dos campos Flegreus” In: op. cit., 1991, II, 1, pp. 47-55. 32 Ibid., 28. 33 Ibid., 30. 34 Ibid., 35. 35 A palavra que Detienne utiliza (ksénos) designa o estrangeiro, o não-grego, outrora transliterado como xénos. Na tradução, ξέnoς é estrangeiro (Isidro Pereira, S.J., 8ª Edição). 36 DETIENNE, op. cit. 1988, p. 21.

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mais de um aspecto: Ártemis, divindade essa que o autor nomeia bárbara,

segundo sua origem táurica.37 Já Vernant, quando analisa o estatuto e as funções

de Ártemis, de Dioniso e da Gorgó, na qual afirma estar fazendo uma pesquisa

sobre a cidade grega, seus modos de funcionamento e seus quadros mentais,

sugere serem estas as divindades que representam a maneira dos gregos de

abordarem a questão do Outro.38 A discussão sobre o estatuto bárbaro ou

estrangeiro do deus, será discutida quando nos debruçarmos mais detidamente

sobre o mito fundador de Tebas (outrora mencionado nos capítulos I e II), origem

do ciclo tebano das tragédias.39

Recorrendo à pesquisa realizada por Kathrin H. Rosenfield na qual

interpreta a Antígona de Sófocles por lentes Hölderlinianas,40 encontramos

referências da dupla natureza de Dioniso, que aparece ora como protetor de Tebas,

ora como terrível vingador que exige horríveis compensações. Na breve análise

que faz do hino ao deus, a autora afirma que o que chama a atenção é sua figura

estar intimamente ligada a de Apolo. Ora, Detienne também atesta sobre esta

proximidade quando se refere ao adivinho Tirésias, “bacante encanecido que

pertence a Apolo, o outro grande deus de Tebas”41, lembrando que só ele não

conheceria o ressentimento de Dioniso. Rosenfield afirma que o louvor é como

um antídoto contra a fatal tendência tebana, onde há reis que negam o

engendramento divino do filho de Sêmele. No estudo da tradução do poeta

Hölderlin da Antígona, a autora conclui que, nascido do ventre mortal de Sêmele,

porém da coxa de Zeus, “sendo o eterno estranho-estrangeiro”42, Diosiso precisa

se revelar na sua forma mais temível – com a força que subjuga os homens.

Dos quatro tipos de loucura divina descritas por Sócrates no Fedro,

segundo descreve Dodds, a loucura ritual é aquela cujo deus responsável é

Dioniso. Produzida “por uma mudança em nossas costumeiras normais sociais,

37Ibid., 22. 38 Para o argumento ver: VERNANT, J-P. A Morte nos Olhos. Figurações do Outro na Grécia Antiga. Ártemis, Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. 39 A Tragédia Ática aborda basicamente duas correntes dos mythói, as quais os três tragediógrafos (Ésquilo, Sófocles e Eurípides) compõem como pano de fundo de suas tramas: uma que se refere à maldição do genos Atrida, dos ancestrais de Agamêmnon e Menelau, dando origem ao ciclo Troiano; a outra se refere à maldição dos Labdácidas, descendentes de Cadmo, fundador lendário de Tebas, dando origem ao ciclo Tebano. 40 ROSENFIELD, K.H. Antígona – de Sófocles a Hölderlin. Por uma filosofia “trágica” da literatura. Porto Alegre: L&PM, 2000. 41 DETIENNE. op. cit., 1988, p.51. 42 ROSENFIELD. op. cit., 321.

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forjada de maneira divina”43, a segunda mani/a divina não impõe nenhum limite

de idade, estatuto social ou de gênero. Como o deus que confunde as fronteiras,

ele é justamente aquele que embaralha todas as categorias que a religião e as

instituições sociais e políticas estabelecem rigorosamente como a ordem. Para

Vernant, Dioniso instaura na religião grega uma dimensão que a ultrapassa

escapando-lhe;44 para Detienne, é o deus louco, “trazendo consigo em suas

aparições a força eminentemente vulcânica do delírio, da manía, da demência,

irrompendo subitamente, jorrando da maneira mais imprevisível”.45 Resistir a

Dioniso seria reprimir o que há de elementar na nossa própria natureza, e o castigo

é o repentino colapso das represas internas, quando o elementar rompe a

compulsão fazendo desaparecer a ordem e o mesmo.46

Esta consciência de uma ameaça animada, não humana, inscrita no próprio

ser e pronta para penetrá-lo, é abertamente mostrada como espetáculo pela

tragédia, na figura do personagem atravessado por emoções, presentes nele ao

mesmo tempo na forma de animais selvagens e de potências divinas. É a

expressão de um daemon que age através dele.47 Como homem duplo, dilacerado

e problemático, lembra Vernant, “entregue dentro de si e no mais íntimo de si

àquilo que, diferente de si, o move e limita, o herói, como estranho ao que é e ao

que faz, torna-se sua própria negação durante o drama”.48 Assim é Penteu, filho

de Agave na tragédia de Eurípides. Trama que se desvela na segunda parte deste

capítulo no desfecho conclusivo desta dissertação.

43 PLATÃO, Fedro, 265A, apud Dodds, op. cit., 2002, III, p. 71. 44 VERNANT, “Do Outro ao Mesmo”, In: op. cit., 2002, 5, p.60. 45 DETIENNE, “O Poder do Jorro” In: op. cit., 1991, II, 1, p.53. 46 DODDS, “Menadismo” (Apêndice I) In: op. cit., 2002, p.274. 47 VERNANT, J-P; VIDAL-NAQUET, P. “Tensões e ambigüidades na tragédia grega” In: Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1977, 2, p. 23. 48 VERNANT, “A identidade trágica” In: op. cit., 2002, 41, p.402.

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3.2 “Eu o vi me vendo”. Fήμη e Λόγος nas βakxai de Eurípides

“O mais alto a que o homem pode chegar é o assombro”.

Goethe Retomando nossa narrativa inicial, o mythos nasce com φήμη (o rumor). O

λόγος, complementa-o. Correspondem, respectivamente, ao mundo lendário, que

para a cidade constitui seu passado longínquo, mas guardado – lembremos que

Marcel Detienne alude ao rumor o silêncio consumado – e seu presente político,

jurídico, o qual Jean-Pierre Vernant associa ao modelo psicológico do homo

politicus, tal como o concebem os gregos do V século.49 Neste segmento

conclusivo do presente estudo acompanhamos as reflexões dos autores sobre o

“momento da tragédia” em que se abre, no coração da experiência social grega,

(sobretudo a ateniense) uma distância entre o pensamento jurídico e social de um

lado, e as tradições míticas e heróicas de outro. Ambos estão impregnados do

sagrado. A pergunta que J-P Vernant coloca, resume-o bem:

Que ser é esse que a tragédia qualifica de deinós, monstro incompreensível e desnorteante, agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente, lúcido e cego, senhor de toda a natureza através seu espírito industrioso, mas incapaz de governar-se a si mesmo?50

As relações deste homem (o ator, herói trágico) com os atos que delibera

na cena trágica, a tomada para si da responsabilidade sobre as ações, o peso e a

medida das escolhas pelas quais responde e cujo sentido lhe escapa, enfim, o seu

lugar nesse universo social, natural, divino e ambíguo onde nenhuma regra parece

como definitiva, onde deuses disputam entre si, onde a justiça, no decorrer da

ação, “gira sobre si mesma e se transforma em seu contrário”51, são elementos

levantados na arena do teatro grego. No que concerne à reflexão desenvolvida ao

49 VERNANT, “Tensões e ambigüidades na tragédia grega” In: op. cit., 1977, I 2, 22. 50 Ibid., 19. 51 Ibid., 19.

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longo deste estudo, o Mesmo e o Outro, figurados nas personagens de Eurípides,

Penteu e Dioniso, em sua obra As Bacantes.

No entanto, para compreendermos a ‘mola’ trágica é preciso considerar o

seu momento, o contexto no qual surge; aquilo que Vernant e Pierre Vidal-Naquet

interrogaram em sua obra Mito e Tragédia na Grécia Antiga: as origens da

tragédia. Projeto este, que devido a sua grandiosidade, foi publicado em dois

volumes, com um intervalo de catorze anos entre os tomos I e II. O esforço para

produzi-lo denota que a tragédia lhes significava “um terreno comum”,52 apesar

do campo de suas pesquisas pessoais não necessariamente, ter coincidido com o

do vizinho e amigo. Em sua origem, o nascimento da tragédia está emaranhado

com o culto de Dioniso, do qual voltaremos a tratar seguidamente; o que Junito de

Souza Brandão define como sua associação ao elemento satírico.53

Quanto ao termo “mola trágica”, ele está ligado ao que referimos ser o

momento da tragédia. Vernant utiliza o termo em questão para se referir àquilo

que o trágico provocava na platéia terror e piedade, resultado de uma engrenagem

que funcionava assim: um homem, simples mortal, ultrapassava o μέτρον, a

medida de cada um; esta desmedida é uma violência feita a si próprio e,

consequentemente, uma ofensa aos deuses, a u3briv, o que provoca o castigo

divino, a νέμεσις; contra o herói é lançada a áte, cegueira da razão que o leva a

cumprir a moira (destino).54 Tal efeito estaria rompido no seu entendimento

quando o ‘momento’ da tragédia chegasse ao seu termo. O autor fixa sua

florescência entre duas datas que definem duas atitudes em relação ao espetáculo

trágico: a cólera de Sólon, que abandona indignado uma das primeiras

apresentações teatrais, e a indicação de Aristóteles relativa ao tragediógrafo

Agatão. Quanto à primeira data, encontramos seu registro em Plutarco:

Téspis começava nesse tempo a movimentar o teatro trágico; a novidade do espetáculo atraía a massa popular, embora ainda não se tivessem criado as competições dos concursos. Sólon, inclinado por natureza a ouvir e aprender, na velhice mais dado ainda a lazeres e diversões e, por Zeus! a bebidas e cantares, foi ver Téspis representar em pessoa, como era habitual antigamente. Depois do espetáculo, dirigindo-lhe a palavra, perguntou se não tinha vergonha de mentir tanto na frente de tanta gente. Téspis respondeu que não havia mal em dizer e fazer aquilo como divertimento; Sólon, então, bateu violentamente seu bastão no

52 Idem, Prefácio à Mito e Tragédia na Grécia Antiga. II, 1986, p.8. 53 BRANDÃO, J.S. “Teatro Grego” In: Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Rio de Janeiro, 1978, p.7. 54 Ibid., 10-11.

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chão e disse: “Se isso é divertimento que se aplauda e preze dessa maneira, logo o havemos de encontrar em nossos contratos.”55

Segundo o que nos revela a fonte, para apontar os ardis utilizados por

Pisístrato, que tentava convocar a multidão a seu favor, Sólon o teria comparado

àquele que representa, que engana, dizendo-o: “Filho de Hipócrates, estás

representando mal o papel de Ulisses em Homero; usas para enganar concidadãos

o ardil com que ele iludiu inimigos, infligindo maus tratos a si mesmo.”56 Quanto

à segunda data, Vernant indica que a crítica de Aristóteles ao tragediógrafo

mencionado se devia ao fato de que ele criava suas próprias tramas, sem o liame

da tradição; isto para Vernant é o indicativo de uma ruptura com aspectos

específicos deste gênero.57

A tragédia Ática comporta dois aspectos para Vernant. Primeiramente, ela

toma como objeto o homem, que em si mesmo vive um conflito, coagido a fazer

uma escolha definitiva.58 Este homem é uma representação; o herói trágico. Em

segundo lugar, seu enraizamento na tradição, nas narrativas míticas, explica que,

sob muitos aspectos se encontre mais arcaísmo nos trágicos do que em Homero. A

tragédia, no entanto, assume uma distância em relação aos mitos de heróis:

questiona-os. Para o helenista,

o domínio próprio da tragédia situa-se nessa zona fronteiriça onde os atos humanos vêm articular-se com as potências divinas, onde revelam seu verdadeiro sentido, ignorado até por aqueles que os praticaram e por eles são responsáveis, inserindo-se numa ordem que ultrapassa o homem e a ele escapa.59

Isto porque a tragédia põe em cena um confronto entre os valores heróicos

e representações religiosas antigas com os novos modos de pensamento que

marcam o advento do direito no quadro da cidade. É válido lembrar que os planos

humano e divino não estão separados, mas são colocados em planos distintos no

qual podem se opor diante do que é problematizado pela tragédia de imediato: a

responsabilidade deste elemento humano, no caso do herói, em relação às suas

escolhas. Responsabilidades essas, medidas pelas suas ações. Neste sentido, o

enfrentamento das diferenças, a aproximação das semelhanças, enfim, todo o jogo

que implica na alteridade, é posto em evidência na trama. 55 PLUTARCO, “Sólon”, 29. (trad. J. Bruna. Vidas. São Paulo: Editora Cultrix, p.68). 56 Ibid., 30, 69. 57 VERNANT, “O Momento histórico da tragédia na Grécia” In op. cit., 1977, p. 15. 58 VERNANT. op. cit., 1977, I, p.13. 59 Ibid., 14.

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Neste sentido, o contexto é fundamental para Vernant. Este é

especificamente o contexto mental, de um universo humano de significações,

homólogo ao próprio texto. Ou seja, o conjunto de instrumentos verbais e

intelectuais, as categorias de pensamento, o sistema de representações, de crenças,

de valores. Para o autor, poder-se-ia falar de um mundo espiritual próprio dos

gregos do século V, se a fórmula não comportasse um grave risco de erro.60 E

certamente comporta, já que na própria questão relativa às práticas sociais, nestas

o sacrifício, a participação na assembléia, a participação nos ritos do calendário

religioso, existiam diferenças e aproximações que nos permitem (ou não!)

identificar um ateniense, diferente de um espartano, mas aproximado à ele por

uma prática específica e assim por diante.

Destarte, salientemos que não há universo espiritual em si, mas – como

Vernant faz questão de alertar – em estreita conexão com as práticas que o homem

desenvolve e renova continuamente no campo da vida social. Ora, nesta chave

argumentativa seria válido notar que o universo espiritual da religião está

plenamente nos ritos, nos mitos nas representações figuradas do divino (quando

nos referimos à deusa Héstia e ao deus Hermes, por exemplo), e no político. A

tragédia não é diferente. Para Vernant ela não poderia refletir uma realidade que

lhe fosse estranha. O autor aconselha assim, uma leitura da tragédia que tente

decifrar na própria espessura da obra “um duplo movimento, uma caminhada de

idas e vindas”.61

Como uma instituição social e uma necessidade da democracia, a tragédia

é colocada ao lado de seus órgãos políticos e judiciários.62 Foi no governo do

tirano Pisístrato - a quem o povo de Atenas havia investido de poderes para tal -

que o rústico festival dionisíaco foi trazido para a cidade no concurso de peças em

535 a.C.. Dioniso tornara-se o protagonista de diversas funções da mente

primitiva, reconhecido sob diversos epítetos como o Espírito da Primavera, o

Deus do Renascimento, “O Divino Rapaz” e “Brômio”. Como deus do vinho,

título ao qual nos referimos no capítulo anterior, seu rito - conhecido como

ditirambo - era uma dança de saltos, ou dança de abandono, acompanhada por

movimentos dramáticos e hinos.

60 Ibid., 18. 61 Ibid., 19. 62 Ibid., 20.

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Foi o dramaturgo Téspis – diretor de ditirambos – o primeiro a receber um

prêmio neste mesmo ano. Para Junito Brandão a tragédia nasce do culto ao deus.

Para Vernant, quando se começa a olhar o mito com os olhos de cidadão. Em

relação a isso, Werner Jaeger atesta que desde que o Estado organizou as festas

dionisíacas, a tragédia se tornou cada vez mais popular, afirmando, no entanto,

que era escassa a ligação entre o conteúdo do drama e o culto do deus para cuja

glorificação se representava.63 Antes de iniciarmos a reflexão à qual nos

propomos e trabalharmos diretamente com a tragédia euripidiana, é necessário que

consideremos a Poética de Aristóteles (lembremos, não em sua totalidade!), no

que concerne sua definição da tragédia:

É, pois, a tragédia imitação de uma ação séria e completa, dotada de extensão, em linguagem condimentada para cada uma das partes, por meio de atores e não mediante narrativa e que opera, graças ao terror e a piedade, a purificação de tais emoções.64

Segundo afirma Junito Brandão, à catarse colocada por Aristóteles, uma

vasta rede de interpretações teria sido produzida a partir de 1928.65 Para

Aristóteles a imitação é um impulso natural ao homem. Na Poética o “não ser” do

real, ocupa-se da ficção na medida em que imita o real. Falar-se-á então da

mímesis que traz em seu bojo a comunicação de um discurso ou a imitação de

ações que vêm para informar, anunciando o que não é como possibilidade de sê-

lo. É válido notar, que segundo afirma Junito Brandão, a palavra mimese, recebeu-

a Aristóteles de seu mestre Platão, rejeitando, porém, a dialética platônica da

essência e da aparência.66 Vernant atenta que neste sentido, não deixa de ser

interessante que no período no qual a tragédia nasceu e floresceu, também surgem

na língua os termos aparentados a mimos: “mímema, mimeîsthai, mímesis”.67 O

objetivo é mostrar como é necessário ou extremamente verossímil que aconteça o

que aconteceu a um determinado personagem, a um determinado tipo de indivíduo

definido: o herói. E assim como os heróis do drama, conduzidos pela dinâmica

63 “Poucas vezes o mito de Dioniso entrou na Orquestra, o que sucedeu na Licurgia de Ésquilo e nas Bacantes de Eurípides. (JAEGER, W., “O drama de Ésquilo” in Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003, II, pp. 293-4). 64 ARISTÓTELES. Poética, 1449b. Porto Alegre: Edit. Globo, 1966. 65 BRANDÃO, J.S. op. cit., 1978, p. 13. 66 Para Platão, a arte, alimentando-se da imitação, vive nos domínio da aparência, afastando-se do alethés, verdadeiro. Para o argumento sobre a mímesis, ver também Luis Costa Lima, Mímesis e Modernidade. 67 VERNANT, “Atualidade da tragédia?” In op. cit., 2002, 40, p. 395.

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das forças que eles mesmos contribuem para deslanchar, não são homens maus ou

indignos até na hamartía68 que os perde; o erro que lhes é imputável e que os leva

a seu fim ganha, aos olhos dos espectadores, o valor de um exemplo daquilo que

de fato poderia acontecer com cada um deles.69

Como a composição das mais belas tragédias não é simples, mas complexa, e, além disso, deve imitar casos que suscitem terror e piedade, porque este é o fim próprio desta imitação, evidentemente se segue que não devem ser representados nem homens muito bons que passem da boa para a má fortuna, nem homens muito maus que passem da má para a boa fortuna”.70

Vernant conclui que na perspectiva trágica, portanto, agir tem um duplo

caráter: de um lado é deliberar consigo mesmo, prever o melhor possível a ordem

dos meios e dos fins; de outro é contar com o desconhecido e com o

incompreensível, aventurar num terreno que nos é inacessível, “entrar num jogo

de forças sobrenaturais”71 sobre as quais não se sabe. Destarte, toda tragédia

desenvolve-se em dois planos; duas ordens de realidades heterogêneas: a natureza

humana, tal qual Tucídides a define, e a potência religiosa que é a tu/xh. Em um

trecho do coro das mulheres lídias, como o que cito a seguir, podemos reconhecê-

lo:

CORO Ao língua solta, à insensatez do antilei, o fim é a má fortuna. A placidez vital de Bios, a lucidez, sustém, mantêm imperturbada a morada. Residentes no Éter, longínquos, os Uranidas vêem o afã humano.72

Trajano Vieira ‘abre’ sua recente tradução de As Bacantes (405 a.C.) com

uma breve introdução à trama. Nesta, refere-se ao exílio de Dioniso, aspecto que

define ser essencial de sua biografia. O exílio também foi uma marca no que se

68 A falha do herói. 69 VERNANT, “Atualidade da tragédia?” In op. cit., 2002, 40, p. 395. 70 ARISTÓTELES. Poética, 1452b. 71 VERNANT, op. cit., 1977, p. 28. 72 EURÍPIDES. As Bacantes, 386-95. Utilizou-se neste trabalho a tradução de Trajano Vieira. (São Paulo: Perspectiva, 2003).

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sabe acerca da produção da tragédia em questão. Não se sabe o que levou

Eurípides (485-406 a.C.) a se exilar, em 408, de Atenas para a Macedônia, onde

faleceu antes de ver a representação e sua peça. Uma hipótese para seu exílio

voluntário na corte do rei Arquelau – um político mencionado por Tucídides73 -

seria a recepção negativa de suas peças em Atenas. Incluída no anteriormente

mencionado ciclo tebano, a tragédia euripidiana “desce às ruas de Atenas”,

segundo Junito Brandão, fundindo a linguagem da ágora com a do Pireu.74

No que este estudo apreende, a tragédia toda é uma epifania do deus

Dioniso, que para os autores cuja abordagem foi eleita para este estudo, é central

nas Bacantes. Vernant arrisca dizer, que para Eurípides o único meio de entender

o que é Dioniso é fazendo-o passar pelo jogo cênico, permitindo o entendimento

do destino humano. Nem todos os helenistas estão de acordo sobre a questão;

muitos aludem à figura de Penteu a do sofista e ao longo do século XX, a peça foi

lida como obra de um racionalista, contrário às correntes religiosas de seu

tempo.75 No entanto, tanto Penteu quanto Dioniso são jovens, filhos de Tebas. O

que os diferencia na cena trágica é a máscara sorridente do deus, a qual

representada de frente, contrária às regras da pintura grega, olha e interpela aquele

que a contempla.76

Para Karl Reinhardt, o teatro euripideano é o melhor barômetro para a

crise de valores vivida em Atenas nos anos que marcam o final da guerra contra

Esparta.77 Segundo Trajano Vieira, num fragmento de Eurípides, lê-se: “Que eu

possa cantar e dizer algo de sophón (sábio), sem suscitar nada do que adoece a

cidade”.78 Como epifania do encontro e sobreposição dos opostos, a peça em

questão alerta para a alteridade, uma reflexão que está na pauta política grega.

Destarte, a barbárie não poderia ser inumana. Própria do homem, pois implica na

escolha pela ação, requer compreensão para que seja qualificada.

73 TUCÍDIDES, II, 100. (trad. M.G. Kury, História da Guerra do Peloponeso, 1982, p. 129). 74 BRANDÃO, J. op. cit., 1978, p. 77. 75 Cf. VERRAL, A.W., The Bacchants of Euripides and other Essays, Cambridge, 1910, pp.1-163. Apud Vieira. op. cit., 2003. 76 Vernant afirma que representar as pessoas de perfil, para os gregos, era como descrever uma cena objetiva. Quando um personagem como a Górgona ou Dioniso, é representado de frente, não se trata de uma simples imagem, mas sim de uma confrontação. (VERNANT, J-P., “Um teatro da cidade” In: op. cit., 2002, 36, p.349. 77 Cf. REINHARDT, K. Eschyle. Euripide. Paris: Gallimard, 1972; p.298. 78 Fragmento citado por Giuliana Lanata em Poética pre-platonica, La Nuova Itália, Floreça, 1963, p.180, apud Vieira. op. cit. , 2003, p. 43.

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80

Toda a trama remete ao mito fundador da cidade de Tebas, cujo lendário

arquegeta, Cadmo, teria dado origem à geração dos Labdácidas. Conforme o

descrito nos capítulos anteriores, tanto por Vernant quanto por Detienne, Cadmo –

ele próprio um estrangeiro – ao semear a terra tebana com os dentes da serpente

de Ares, faz com que dela nasçam os Semeados, primeiros representantes da

aristocracia da cidade. Enraizados no solo, representam o vínculo fundamental

com essa terra, inteiramente dedicados à função guerreira. Segundo Vernant,

todos têm nomes que marcam bem este sentido: Ctônio, Udeu, Peloro, Hiperenor

e Equíon, “nomes monstruosos, terrestres, noturnos, sombrios e guerreiros”.79 O

último deles, o Semeado Equíon, casa-se com Agave, uma das filhas de Cadmo e

Harmonia. Ela, irmã de Sêmele e mãe de Penteu, rei na ocasião da chegada de

Dioniso às terras tebanas.

Na tragédia, o Coro, conforme mencionado anteriormente, representa o

grupo de mulheres lídias que seguem o deus; são as Ba/kxai. Participam também

da trama Penteu (o jovem rei tebano), Agave, Cadmo (o velho rei da cidade e seu

fundador lendário), o sacerdote Tirésias, além do próprio Dioniso. À sua entrada

em Tebas o deus anuncia sua dupla origem,

DIONISO Deus, filho de Zeus, chego à Tebas ctônia, Dioniso. Deu-me à luz Sêmele cádmia. O raio – Zeus porta-fogo – fez-me o parto.80

Invocado como descendente de Zeus, Dioniso é uma parte do pai da terra,

na medida em que particulariza funções específicas do divino, cujo modo de

aparecer põe em evidência sua dupla origem (humana e divina), própria daquele

que nasceu na cidade materna. Portanto, há uma filha, Sêmele por quem Zeus se

apaixona. Segundo Junito Brandão, este é o segundo Dioniso, pois “de Zeus e

Perséfone nascera Zagreu, o primeiro Dioniso”.81 As versões variam, mas

basicamente o primeiro deus seria o deus-menino, aquele perseguido por Hera e

devorado pelos Titãs (conforme Detienne relata no capítulo II). O coração salvo

79 VERNANT, “Dioniso em Tebas” In op. cit., 2000, p.149. 80 As Bacantes, 1-3. 81 BRANDÃO, J. op. cit., 1978, p.7.

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81

deste Dioniso, Sêmele teria engolido, engravidando. Outra versão atesta que o

próprio Zeus o teria feito para depois engravidar Sêmele.82

Para falar da dupla origem do deus, o sacerdote Tirésias emprega a palavra

grega μετάστασις, metástasis ou deslocamento, composto de μετά, que marca a

mudança e afastamento, e στάσις, situação, atitude.83 Vejamos o trecho referido

no canto 290:

TIRÉSIAS Hera do urânio-céu queria arrojá-lo. Zeus contramaquinou qual faz um deus: um setor do céu seccionando, circum- -térreo, fez e deu a Hera, qual penhor da querela, uma cópia de Dioniso. Com o passar do tempo os homens dizem: “Ele é o Senhor-do-fêmur do Cronida!”, Mera metástase de nome. Um deus à deusa penhorado.84

Segundo Eurípides, Zeus imagina um ardil para acalmar Hera. Destarte,

corta uma parte (méros) do céu e a entrega a Hera como penhor (hómeros), em

lugar do primeiro Dioniso. Trajano Vieira indica que com o passar do tempo, os

homens, devido à semelhança entre mh/rov (parte; porção) e mero/v(coxa), aludem

ao nascimento de Dioniso da coxa do pai. O segundo deus é um símile do

primeiro e indica sua dupla aparição na cena trágica: ao coro, inicialmente, sem

disfarce, como um deus. Para Penteu, como autor de Phéme, o rumor, um outro

que é ele mesmo. Notemos primeiramente a cena na qual Dioniso se dirige ao

coro, após ter escapado e queimado o palácio de Penteu:

DIONISO Desanimaste quando me levaram, a fim de submeter-me à cela escura? CORO Quem olharia por mim, se te arruinasses? Mas como te livraste do homem ímpio? DIONISO A mim mesmo salvei, sem mais fadiga.85

82 Ibid., 8. 83 Dicionário Isidro Pereira. Grego-Português. Português-Grego, 1998. 84 As Bacantes, 290-298. 85 Ibid., 610-614.

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A manipulação de Penteu por Dioniso é uma indicação de que o rei tebano

não consegue perceber o que está à sua volta, mesmo alertado pelo velho Cadmo e

Tirésias. Penteu nega o que vê. Na verdade, em sua visão estreita não percebe, não

compreende. Só vê aquilo que nega: a fuga das mulheres para as montanhas, o

abandono dos filhos, da casa; o êxtase que julga ser uma demência e que não pode

tolerar. Por isso, persegue o sacerdote, que identifica como estranho vindo de fora,

arrastando as mulheres tebanas - inclusive sua mãe, Agave - para a desmedida.

Segundo a narrativa que Vernant faz do episódio, Dioniso chega

disfarçado a Tebas. Ele não se apresenta como o deus, mas como seu sacerdote.

Está vestido de mulher, usa os cabelos compridos batendo nas costas; “tem tudo

do meteco oriental, olhos escuros, ar sedutor, falante (...)”.86 Tem tudo o que pode

irritar Penteu, filho de um Semeado do solo tebano. Quando ele vê o bando de

lídias arrastando as demais (esposas e mães da cidade, cujo estatuto lhes difere),

quer expulsá-las e ao seu sacerdote para que a cidade volte à ordem anterior.

Assim, decide prender Dioniso. Como observamos no trecho anterior, o deus

escapa e explica que para enganar Penteu, mostrou-se outro ao jovem rei: o autor

da ação foi Bro/mioς, (ou Rumor), outro nome do próprio Dioniso. Em grego, a

passagem estaria assim descrita:

DI. Ka]q o9 bro/miov, w9v e1moige fai/netai, do/can le/gw DIONISO Opino que Rumor – assim parece87

Dioniso então, relata às mulheres como ‘Rumor’ teria posto abaixo o

palácio tebano. É interessante notar que Eurípides utiliza a palavra do/can le/gw

(dóksan légo), de “exprimo a opinião”, que o Trajano Vieira traduziu por “opino”.

Em sua forma mortal o deus dirige ao coro a palavra dotada, não de uma verdade

(alétheia), mas sim aquela que se refere à opinião. O tradutor considera que a

palavra sophós – recorrente nas Bacantes seja talvez a mais importante da peça,

pois refletiria o ambiente cultural da Atenas do século V a.C., marcado pela

atuação dos sofistas. Talvez devido a isto, tantas interpretações da obra tenham

caminhado na direção de uma identificação sofística aos personagens de Penteu e

86 VERNANT, “Dioniso em Tebas” In op. cit., 2000, p.152 87 As Bacantes, 629.

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do próprio Dioniso. Vernant mesmo considera esta possibilidade, mas acaba

optando por outras vias. No que nos concerne, esta observação aponta para a

utilização da palavra pelo sacerdote Tirésias como ponto de partida para o

discurso do sábio, e para indicar uma hábil peça de retórica no pronunciamento de

Penteu.88

TIRÉSIAS Se temas de beleza traz à fala o sábio, falar bem não lhe é problema. Tu moves, ágil, língua de sensato, mas sobra insensatez em tuas palavras. Homem audaz, loquaz e poderoso, se ajuíza mal, é um cidadão ruinoso. 89

J-P Vernant atesta que diante de Penteu, o jovem deus é de certo modo,

seu retrato e seu duplo: são primos, nascidos da mesma família; têm a mesma

idade.90 A surpresa do rei é notória ao encontrar o sacerdote – que, encarcerado

pelos soldados, havia conseguido escapar – e ele acusa-o de “renovar sua

linguagem” quando justifica tal proeza.91 Quando o mensageiro traz a notícia da

derrota de seus soldados no Monte Citeron, Penteu interroga-se, não só sobre o

que fazer para trazer as mulheres tebanas de volta à razão, de volta à cidade, mas,

sobretudo, acerca desse deus estranho que ele não concebe, nega, não vê.

No diálogo com Dioniso, que usa a máscara sorridente diante da platéia -

esta que o identifica como o deus - mas que está vestido como sacerdote para

Penteu, o rei acusa-o com impaciência e dá indícios de sua repulsa ao que nomeia

de “estrangeiro”.92 Dioniso, por sua vez, tenta persuadi-lo de não atentar contra o

deus; inevitável destino que o rei já cumpre sem o saber. Caído em hýbris, o herói

que já cometeu a hamartía, está cego pela áte. A ele agora só resta o cumprimento

da moîra.

88 Cf. Dodds. op. cit., p.103. 89 As Bacantes, 266-271. 90 VERNANT, “Dioniso em Tebas” In op. cit., 2000, p.156. 91 As Bacantes, 650. 92 Sobre o uso da máscara sorridente J-P Vernant fez um estudo, apresentado no segundo volume de sua obra Mito e Tragédia na Grécia Antiga, com Pierre Vidal-Naquet. Sobre as funções da divindade mascarada e o estudo em questão, o qual trabalha numa análise da tragédia euripidiana em questão, o artigo aborda questões bastante interessantes, as quais não foram objeto de nossas reflexões neste estudo (Vernant, “O Dioniso mascarado das ‘Bacantes’ de Eurípides” InN op. cit., p245).

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PENTEU É pior que a pira ardente o insulto báquico; Um mega riso os gregos nos reservam! (...) À frente marcharei, contra as dionísias: não suporto mais sofrer o que sofremos com as mulheres. DIONISO Persuade-te, Penteu, aprende, eu te Sugiro. Escuta o meu conselho. Mesmo Maltratado, direi: contra um deus não te armes! Calma! Rumor, o deus, rejeita que removas as bacantes das montanhas! (...) És homem e ele é deus. Um sacrifício deves fazer, e não descontrolar-se! (...)

PENTEU Esse estrangeiro só nos embaraça. Não cala quando sofre ou quando ataca! Convidando Penteu a vestir-se como uma mulher - na verdade, como ele

próprio - Dioniso vê aproximar-se o desfecho de sua vingança, não só contra

aquele que o negou, mas contra toda a cidade. O destino é tebano; o castigo cairá

sobre todos, com exceção de Tirésias. Neste sentido é Tebas a cidade que precisa

ser purificada, mesmo que através de seus cidadãos (rei e fundador) e das mães

desses cidadãos, arrastadas de roldão pela mani/a do deus. De repente, o

autóctone, filho da terra, veste-se como o estrangeiro asiático, o outro. “A certa

altura os dois estão cara a cara, parecem se olhar num espelho, um e outro, olhos

nos olhos”.93

Marcel Detienne afirma que em Tebas, entre Cadmo e Agave, a impureza

e o exílio se “escrevem com letras de sangue ainda mais vivas”.94 A terra que viu

nascer Dioniso pode renegá-lo em toda a sua soberania, pois ali ele ostenta a

máscara do Estrangeiro. Lembremos que no segmento anterior deste capítulo

afirmamos que o autor não considera Dioniso um bárbaro, comparando-o

inclusive com a táurica Ártemis. É curioso notar, no entanto, que durante o drama

Eurípides faz referências aos dois termos: ξένος (ksénos) e βάρβαρος (bárbaros),

identificando-os ao deus e às mulheres lídias que o acompanham.

93 Ibid., 157. 94 DETIENNE. op.cit., 1988, p.35.

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De fato, Dodds em sua pesquisa sobre o menadismo reconhece que o

fenômeno não era comum em terras Áticas, pelo menos no período

contemporâneo a Eurípides. Foi provavelmente na corte de Arquelau que o poeta

trágico teve algum contato com a atividade dessas mulheres seguidoras do ritual

báquico.95 “O que o parodoς (narrador) das Bacantes descreve é uma histeria

subjugada a serviço da religião”, afirmando que o ocorrido no Monte Citeron foi

“o perigoso Baquismo que desce com um castigo sobre os homens respeitáveis e

os devasta contra suas vontades”.96 A citação é indício claro das diferentes

apropriações que os helenistas fizeram do tema em questão, além das formas de se

conceber, refletir e perpetuar - ou não - as diferenças.

Ao identificar o bando que segue Dioniso em sua errância por terras

bárbaras, conforme ele mesmo anuncia ao apresentar-se diante do coro97,

Eurípides territorializa este ba/rbarov, sua terra, sua gesta e dança98. É para as

terras bárbaras que Dioniso lança Agave e Cadmo, representantes da linhagem

tebana. Para Detienne a parúsia dionisíaca atinge seu paroxismo quando o caráter

de Estrangeiro se verifica em sua terra natal,99 pois por trás da cena habitada pelo

deus ksénos, uma outra é evocada pelo seu duplo nascimento. A epifania tebana

mostra em toda a sua violência que Dioniso não pode esconder que é o

Estrangeiro do interior.100

No seu desfecho, Penteu desmembrado por Agave é a inversão trágica do

par dionisíaco, tão presente em Tebas, do filho e da mãe enlaçados. Em face da

loucura furiosa de Agave e seu tíaso, o coro das ba/kxai lídias na peça, ocupa o

lugar da barbárie. Como impura, a mãe de Penteu deve seguir para o exílio até

perder-se no meio dos bárbaros; assim como o velho Cadmo, semeador da

linhagem.101

Detienne atesta que há no delírio, na mani/a dionisíaca, uma parte de

impureza. “Como uma primeira infâmia provoca outra, tão presente na demência

negra, desde Licurgo até Agave”102, entre um assassino e um demente, a

95 DODDS. op. cit., 2002, p.271. 96 Ibid., 274. 97 As Bacantes, 13-19. 98 As Bacantes, 482; 1043-1035. 99 DETIENNE. op.cit., 1988, p.36. 100 Ibid., 37. 101 As Bacantes, 1350-1355. 102 DETIENNE. Op. cit., p. 41.

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homologia é possível. Para o autor, quanto mais se desencadeia a loucura, maior a

importância dada à catarse. Dioniso conhece a ambas intimamente.

DIONISO Da mãe Sêmele faço a apologia: mostro-me um deus-demônio, o sêmen nela de Zeus. Cadmo a Penteu, filho de uma outra filha, outorga o apanágio de tirano- rei. Contra mim, Penteu move uma teo- maquia: libações me nega e preces. Por isso eu lhe indigito minha origem divina, e a Tebas toda. Implanto aqui o rito, e os pés, alhures, logo movo em minha epifania. Mas se o furor de hoplita a pólis planejar tirá-las do pico, eu lutarei, chefiando as loucas. Por isso, num mortal me transfiguro, a forma mais antiga em natureza humana.103

O retorno de Dioniso para casa em Tebas esbarra na diferença, na maneira

como ela é percebida, concebida, negada e assimilada. Para Detienne e Vernant o

drama exposto na tragédia de Eurípides traz para a arena do teatro grego – lugar

onde a pólis toda se encontrava durante os concursos trágicos - um

questionamento que repousa na chave trágica do “poderia ser”, no tocante à

incapacidade da cidade tebana de estabelecer o vínculo entre autóctone e

estrangeiro, entre sedentário e viajante, entre, por um lado sua fixidez, sua

vontade de ser a mesma negando-se à mudança, e por outro, o do movimento, do

diferente, do outro. Enquanto não há possibilidade de uma combinação dos

contrários, produz-se o aterrador. Diante do imutável e da afirmação de valores

que atestem para a superioridade de uns em detrimento de outros, daquilo que se

lança na alteridade absoluta, no monstruoso e no terrível, as Bacantes projetam na

face daquele mesmo que não soube reconhecer o lugar deste outro, o horror.

KA. e0ma/nhte pa~sa/ t’ e0cebakxeu/qh po/liv. CADMO Loucura; a pólis toda dionisou-se.104

103 As Bacantes, 41-54. 104As Bacantes, 1295.

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4. Considerações finais

Ao longo deste estudo percebemos como os autores selecionados para a

sua reflexão e desenvolvimento, estabeleceram aproximações e distanciamentos

diante do mesmo objeto: a construção de um modelo, ou ideal de conduta, pelos

gregos dos séculos VI e V. Constatamos também que esta construção é permeada

por dois aspectos principais: fh/mh (rumor) e lo/gov (razão).

O primeiro, constituído do conjunto das narrativas e de toda uma tradição

que conforma a paidéia grega, dá origem aos mitos; o segundo, é formado por

aquilo que se denomina o pensamento racional, também traduzido como discurso,

ou palavra. Um não está separado do outro; hora afastando-se, hora, aproximando-

se, ambos expressam o movimento realizado pelo homem grego na formação das

cidades, das instituições, da ordenação dos espaços, nas práticas imbricadas no

universo social e político.

No distanciamento que o lo/gov estabelece em relação aos mitos,

observamos a preeminência do pensamento racional que, contudo, foi equilibrada

pela existência dos “rumores”, ainda arraigados às práticas do cotidiano dos

homens, sobretudo no que se referia às religiosas. As obras de homens como

Sólon, Clístenes, Tucídides, entre outros citados ao longo do estudo, mesmo

afastadas do mythos, traziam em seu bojo marcas desta tradição, constituídas dos

valores morais cujos modelos vinham da Ilíada, da Odisséia e dos mitos

hesiódicos. Entre essas, a fili/a, a areté, a isonomia e a sophrosýne. Assim

também como os modelos que não eram tolerados, para que houvesse uma

garantia da unidade da cidade: os excessos, a violência, o crime, o fausto, a u3briv.

Com o estudo das práticas religiosas vimos que a relação dos homens com

os deuses era também permeada por estes dois aspectos. Os cultos e ritos, nos

quais a thysía (sacrifício) tinha um papel central, marcavam não só a fronteira

entre o homem e o divino, mas também os limites dos excessos e da medida dos

homens, expressos na fundação dos territórios e da própria identidade dos gregos.

Para apontá-lo, destacou-se a autoctonia como aspecto determinante na alteridade

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grega; marcas da constituição de valores e regras que lançam para fora das

fronteiras do mesmo todos aqueles que não são reconhecidos como tais.

Neste sentido, constatamos que o dionisismo figurava nesta ordenação das

práticas religiosas da pólis, um fenômeno marginal à ordem fixada. Apesar de

fazer parte dos ritos cívicos, o dionisismo se movimentava à margem do

calendário religioso oficial. Nele, os autores se referiam ao deus Dioniso como o

outro; aquele que vem de fora, trazendo a marca do estrangeiro, mas também

grego e neste sentido, partido, ambíguo. No estudo traçado acerca de suas origens

– nos mitos e nas representações dos gregos – Vernant e Detienne referem-no

como patrono da tragédia Ática, personagem das βa/kxai de Eurípides e deus do

panteão helênico.

Na tragédia euripideana, o dionisismo mostra a tensão entre a razão e os

excessos na sua face mais violenta. Tensão esta, que resulta das motivações

conflitantes no homem que é cidadão, soldado e suplicante. Do conjunto das

casas, tribos, fratrias, o coração da pólis está simbolizado na lareira central no

Pritaneu (Hestia-koiné); mas também expresso nos fogos acesos nos altares mais

distantes, fora de seu alcance. As práticas sociais das quais se constituem os dois

exemplos, conformam o homem nos extremos deste universo agônico que é o

grego. Neste sentido, não teria Eurípides concluído sua obra questionando esta

tensão?

Na Tebas trágica, sítio onde a desmedida humana figura sua face mais

aterradora, a infâmia leva à impureza, à morte e ao exílio na barbárie. Atenas

assiste à Tebas das βa/kxai no teatro, que é o lugar onde todos os cidadãos,

mulheres, velhos e estrangeiros da pólis se reúnem. Ali, amplificados na voz do

herói trágico, os sussurros e rumores do que poderia acontecer, caso as escolhas se

afastassem do justo meio, são ouvidos por todos. Rumores daquilo que está entre

a razão absoluta e imutável, e a cegueira completa da fúria desmedida dos

impulsos e da loucura.

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5. Referências Bibliográficas

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