Download - Pseudo-Dionisio Areopagita. Teologia Mis

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  • ASSINATURA ANUAL (1996)Prtugal: 4.000$00Estrangeiro: 5.500$00

    PREO DESTE NMERO:Portugal: 2.200$00Estrangeiro: 3.000$00

    DISTRIBUIO E ASSINATURAS:Fundao Eng. Antnio de Almeida Rua Tenente Valadim, 231 / 3254100 Porto Portugal

    Tel.: 606 74 18 Fax 600 43 14

    DVUALITEXTOS E ESTUDOS

    10 (1996

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    PSEUDO-DIONSIO AREOPAGITA

    TEOLOGIA MSTICA

    Verso do grego e estudo complementard e

    Mrio Santiago de Carvalho

    FUNDAO ENG. NTNIO DE ALMEIDA

  • MEDIffUALIATEXTOS E ESTUDOS

    D I R E C T O R A :

    Maria Cndida Monteiro Pacheco

    CONSELHO CIENTFICO:

    Agostinho Figueiredo Frias n g e l o A l v e sAr n a l d o P i n h o

    Carlos Moreira de AzevedoJos Accio Aguiar de CastroJos Francisco Meirinhos

    Jos Maria Costa MacedoM a r i a I s a b e l P a c h e c oMrio Santiago de Carvalho

    UNIVERSIDADE CATLICAPORTUGUESA

    G A B I N E T EDE FILOSOFIA MEDIEVAL

    PROPRIEDADE, REDACO, ADMINISTRAO E DISTRIBUIO:

    Publicao da responsabilidade do Gabinete de Filosofia Medieval da Faculdade de Letrasdo Porto e, da Faculdade de Teologia da Universidade Catlica Portuguesa Porto

    FUND ENG. ANTNIO DE ALMEIDARua Tenente Valadim, 231/343 4100 Porto - PORTUGALTelef. 606.74.18 Fax 600.43.14 Telex 27155 CULTUS P

  • NDICE GERAL

    O detentor dos direitos de edio do texto grego e o autor dos estudos insertos neste nmero autorizam a respectiva publicao.Coordenao editorial: J. F. MeirinhosDigitao do texto grego: Paula Pechincha

    Depsito Legal 52780 / 92 Registo D.G.C.S. 116.014 ISSN 0872 - 0991

    Prefcio .................................................................................... 7

    - Pseudo-Donsio Areopagita - Teologia Mstica (texto bilingue) 10I - A Treva Divina................................................................... 11II - Va para alcanar a Treva ................................................... 17III - 0 mtodo afirmativo e o mtodo negativo......................... 19IV - A Causa no sensvel........................................................ 23V - A Causa no inteligvel.................................................... 25

    - Estudo Complementar.............................................................. 271. 0 `caso' dionisfaco............................................................... 272. Significado histrico-teolgico da obra dionisfaca ............. 303. A `situao' dionisfaca.......................................................... 30

    3.1. As metamorfoses da philosophia.................................. 353.2. A matriz neoplatnica ...................................................... 393.3. A matriz eclesistica................................................... 453.4. A filosofia perfeita ..................................................... 50

    4. 0 Corpus Dionysiacum........................................................... 525. 0 sistema dionisaco............................................................ 546. 0 enigma do Arepago.......................................................... 707. Cartas..................................................................................... 75

    7.1. A Gaio, monge............................................................ 757.2. Ao mesmo, Gaio ........................................................ 767.3. Ao mesmo................................................................... 767.4. Ao dicono Doroteu................................................... 77

    8. A Gramtica arque-teolgica dionisfaca ............................... 778.1. Teologia Mstica: uma introduo.............................. 788.2. A Filosofa e o seu Outro?.......................................... 848.3. A no-metafsica ' ....................................................... 91

    9. 0 legado do Pseudo-Dionsio ............................................ 9810. Bibliografia............................................................................ 105

    10.1. Edies e Tradues das Obras do Pseudo-Donsio 10510.2. Obras sobre Pseudo-Dionsio....................................... 10610.3. Edies de Autores antigos ......................................... 11110.4. Outras Obras ................................................................ 112

    - ndice Onomstico e Temtico...................................... ......... 119

  • Prefcio

    Neste volume de Medicevalia. Textos e estudos apresenta--se a verso do grego e um amplo estudo complementar do pequeno tratado intitulado Teologia Mstica que, na actualidade e juntamente com a Hierarquia Celeste ou Anglica, a Hierarquia Eclesistica, os Nomes Divinos e um conjunto de dez Cartas (quatro das quais tambm se podem ler aqui em traduo, nas pp. 73-75), constituem o chamado Corpus Areopagiticum ou Dionysiacum. A sua atribuio tradicional a Dionsio Pseudo--areopagita continua a suscitar dvidas e problemas, j que a identificao do autor permanece envolta numa atmosfera lendria cuja leitura rigorosa no parece possvel fazer-se.

    A anlise da obra do Pseudo-Donso no seu conjunto e o estudo das fontes e influncias sofridas, afastam hoje a hiptese primitiva de o autor se situar no I sculo da nossa era, parecendo dever deslocar-se antes para os finais do sculo V ou incios do sculo VI.

    As dvidas em relao ao autor e sua insero cronolgica num tempo exacto no invalidam, no entanto, nem atenuam o significado da sua obra, de influncia mpar, que percorre toda a Idade Mdia, sobretudo a partir da chamada Renascena Carolingia, e permanece,t`crnp referncia, ainda na modernidade.

    Ligando profundamente a tradio neoplatnica e a via de inspirao crist, a obra do Pseudo-Dionsio, sobretudo esta aqui representada, traa um plano de sabedoria englobante em que razo e mstica se tocam.

    Mrio Santiago de Carvalho, que nos apresenta a traduo7,-

    7

  • Pseudo-Dionsio Areopagita

    do grego e um aprofundado estudo complementar sobre a obra, integrou desde o inicio o Conselho Cientifico desta revista e inaugurou-a com a sua traduo de A natureza do Bem de Santo Agostinho, sendo, igualmente, colaborador assduo nos volumes at agora publicados. Professor Associado de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o seu curriculum cientfico bem conhecido e dispensa apresentaes. No pode, no entanto, deixar de realar-se a sua actividade de tradutor de textos medievais, dispersa tambm por outras coleces e que tem cumprido exemplarmente um dos fins que propnhamos para Medicevalia. Textos e estudos, desde seu primeiro nmero: acolher tradues, seguindo os critrios de fidelidade e rigor semntico, contribuindo para a fixao de terminologia filosfica em lngua portuguesa.

    A traduo acompanhada pelo texto grego da recente edio critica, publicado por Gnter Heil e Adolf Martin Ritter no vol. II do Corpus Dionysiacum, em curso de edio na coleco Patristische Texte und Studien da editora alem Walter de Gruyter de Berlim, a cuja direco penhoradamente agradecemos a graciosa autorizao de publicao.

    Maria Cndida Monteiro Pacheco

    rKH Texto grego da edio crtica por Gnter Heil e Adolf Martin Ritter

    Teologia MsticaVerso do grego e Estudo complementar por Mrio Santiago de Carvalho

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    Desejo agradecer vivamente minha colega Mara Teresa Schiappa de Azevedo todas as preciosas indicaes e sugestes que possibilitaram o aperfeioamento de uma primeira verso. Devo-lhe sbias indicaes, mas qualquer imperfeio unica e exclusivamente da minha responsabilidade (M. S. de C.).

    z Os ttulos dos Captulos no pertencem edio c ritica. longo das notas desta verso, recorreremos a abreviaturas, cujo desdobramento, no que diz respeito s a obras filosfico-teolgicas post-helensticas (ou seja, com excluso dos textos bblicos e dos textos filosficos antigos), poder ser facilitado pela consulta do Estudo Complementar 10. 3. Presume-se que a identificao das passagens escritursticas por meio de abreviaturas faz parte do patrimnio do homem ocidental de cultura mediana, enquanto que qualquer diletante de filosofia antiga saber identificar as obras de Plato mencionadas.

    3 Hyperousia no original; daqui para a frente, e de maneira distinta da mais consagrada (vd., por exemplo, Dictionnaire de Siritualit, tome IVb, Paris, 1961, s. v. Essentiel, col. 1346 - 48), traduzimos ousia e seus derivados sempre por -substancia(1) em vez de -essencia(1). Visto tratar-se de uma traduo igualmente legtima, alis a preferida pelos tradutores medievais, no julgamos necessrio justificar demoradamente a opo, que se inscreve na linha da interpretao que fazemos do pensar dionisino cf.Estudo Complementar).

    T E O L O G I A M S T I C A

    [997 A] A imteol

    2

    A T r e v a D i v i n a

    < 1 > Trindade, mais que substancial3, mais que divina e mais que ba4, que guardas a sabedoria divina dos Cristos, gua-nos at ao pice dos escritos msticos, que mais que ignoto e mais que luminoso e o supremos. Al, os singulares, os puros, os imutveis mistrios da teologa ocultam-se numa treva de silnci6, mais que luminosa, arcano de quem se inicia, [997 B] que na maior obscuridade mais que manifesta, mais que brilhante e completamente intangvel e invisvel, fazendo transbordar dos esplendores mais belos as inteligncias desprovidas de lhs7.

    Para mim, realmente, isto que Cu suplico; quanto a ti, amigo Timoteo, dedica-te contnua exercitao nas maravilhas msticas e renuncia s percepes sensoriais e s actividades intelectivas, deixa tudo o que pertence ao sensvel e ao inteligvel e todas as coisas que n so e as que so; despojado de conhecimento, avana, na medida do possvel, at unio com aquele que est acima de toda a

    4 Cf. PLATO - Tim. 27c; 48d; 90c; Corp. Herr. V, 2; JMBLICO - De myst. V, 26; PROCLO - InAic. 6, 3 sg; I,, - InParm. I, 3, 1 sg.; ID. - In Tim. 1,212, 30 sg.; ID. - De dec. dub. 64, 12. J

    SCf. PLOTINO - En. I, 7, 1; V, 3, 7, 13 sg; V, 5, 6; V, 5, 8, 3 sg.; V, 8, 11, 16; VI, 7, 34, 29; VI, 7, 38; VI, 9, 11, 13 sg.

    6Cf., sobre treva, Ex. 20, 21; Dt. 4, 11 sg.; 2Sam. 22, 10; 1Rs. 8, 12. 53a; 2Par. 6, 1; Sl. 18, 10; 96, 2; Eccli. 45, 5; GREGORIO de NISSA - De Vita Moys. II; ID. - Hom. 1 in Cant. Cant. 26, 9 sg; ID. - Pss. tit. I, 7; ID. - Hex. I, prooemium

    7 Annmatos, no original, literalmente: sem olhos; tradutores h que optam pela circulocuo que sabem fechar os olhos. No se entenda, portanto, desprovidas de olhos em sentido literal. Alis, a recomendao para se ultrapassar a literalidade , naturalmente, aplicvel a quase todo o texto.

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    substncia e de todo o conhecer. N distanciamento irresistivel e absoluto de ti mesmo e de tudo, uma vez arredado e liberto de todas as coisas, elevar-te-s em plena pureza at ao brilho [ 1000 A], que mais que substancial, da obscuridade divina$.

    Mas presta ateno, que nenhum dos n iniciados te oua falar dist9, quero dizer, nenhum dos que se atm s realidades existentes e imaginam que nada mais que substancial existe acima delas, mas antes se crem ser capazes de entender, por fora do seu proprio conhecimento, Aquele que disps a obscuridade como ocultao10. se as iniciaes nos mistrios divinos esto acima deles, 0 que dizer dos que so demasiado profanos, que imaginarn a causa que se encontra acima de todas as coisas [1000 B] com base nas mais nfimas e defendem que ela n se eleva acima das que no tm aspecto divino e revestem uma multiplicidade de formas? A ela devemos referir e dela devemos afirmar todos os atributos do que existe, por ser causa de todas as coisas, mas com mais razo se lhe devem negar todos eles, na medida em que ela ultrapassa a realidade de todas as coisas. N por supor que as negaes se opem s afirmaes, mas antes por que a causa de longe anterior e superior s privaes, e est acima de tudo o que seja afrese e atribuio.

    Deste modo, o divino Bartolomeu afirma, por exemplo, que a teologa imensa e mnima, e que o Evangelho extenso e grande, ao mesmo tempo que conciso. Penso que ele o compreendeu de forma marailhsa,11 ou seja: [1000 C] que a boa causa de todas as coisas de muitas como de escassas palavras, ao mesmo tempo que indizvel, uma vez que no tem a ver com a palavra nem com o

    ,rw, 3Sktos obscuridade, treva, cegueira o nome alternativo, embora raro (em

    rigor, aparece apenas por mais duas vezes na TM.), para designar a Treva, normalmente gnphos.

    9Cf. PLATO - Teet. 155e 3.10S1. 18, 12. Vulgata l, Treva, Faz das Trevas o seu vu. Traduzimos o masculino por

    `Aquele` e o neutro por `aquele'.11 Divergimos da lio adoptada pelos eruditos editores e, de acordo com lies atestadas

    por outros mss. (vd. ed. critica p. 143 n.10), lemos dokei em vez de doken.

    131"

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    entendimento; isto, porque ela se encontra acima de todas as coisas, de um modo mais que substancial, e s se manifesta sem vus, na sua verdade plena, aos que transpem tudo o que impuro e o que puro, que em cada subida se elevam alm de todos os cumes santos e deixam para trs todas as luzes divinas, todos os sons e palavras do cu, penetrando na treva onde na realidade est conforme dizem as Escrituras aquele que tudo transcende12.

    E assim, no por acaso, o divino Moiss recebe pessoalmente ordem, n apenas de primeiro se purificar, mas tambm de se apartar dos que n so puros, e, depois de completa a purificao, ouve as trombetas de mil sons, [1000 D] v os puros raios amplamente disseminados das muitas luzes perfulgentes; ento, apartando-se da multido, apressa-se, com os sacerdotes escolhidos, a chegar ao cume das divinas ascenses13. Entretanto, ele n se rene de facto ao prri Deus, nem a Ele mesmo contempla (pois invisvel), mas ao lugar onde Ele est1a

    (Suponho que isto significa o seguinte: as mais divinas e excelsas coisas que se podem ver e pensar so algo como representaes hipotticas das realidades sujeitas quele que se eleva acima de tud15; [ 1001 A] atravs delas, mostra-se a presena daquele que est acima de toda a reflexo, estabelecida nos cumes inteligveis dos seus lugares mais santos).

    Nesse momento iss, liberto de tudo o que visto e de tudo o que , penetra na treva do no-conhecimento, a treva autenticamente mistica e,,,,renuncian i s percepes intelectias16 chega total intangibilidadee'invisibilidade; entrega-se inteiramente ao que est acima de tudo e de nada (e no ele proprio nem outro), unindo-se da forma mais perfeita ao que completamente incognoscvel mediante a total inactividade do conhecimento, conhecendo alm do esprito graas ao acto de nada conhecer".

    '6"Percepes intelectivas" traduz "gnostiks antilpseis".

    "Cf. PLOTINO - En. V, 5, 7; GREGORIO de LAISSA - DeVita Moys. I ID. - Beat. 3.

    12 keina, no original dionisino, mais alm (de); o mesmo vocbulo com que na Repblica (VI 509b) Plato se refere transcendncia do Bem. Cf., para a aluso treva, GREGORIO de NAZIANZO - Poemas dogmticos 29 (PG 37, 507); GREGORIO de NISSA - De Vita Moys. II, texto em que o episdio do Monte Sinai, a que a seguir se alude, representa a entrada na treva da incognoscibilidade; vd. ainda Ex. 20, 21 (cf.19,9);x. 19;20,18-21;33,21.

    13 Cf. L. 19, 10, 20.14 Cf. . 33,20- 23.15 Passagem de difcil traduo; verteu-se lgous (de `logos') por "representaes", mas

    tambm poderia optar-se por "ideias".

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    18

    Via para alcanar a Treva

    [1025 B] Chegar a esta treva mais que luminosa o que suplicamos e, pela privao da viso e pelo n-conhecimento, ver e conhecer Aquele que est acima da contemplao e do conhecimento, precisamente pelo acto de ver nem cnhecer19 nisto consiste, de facto, a verdadeira observao e conhecimento , e celebrar Aquele que mais que substancial de um modo mais que substancia120, pela afrese sistemtica das coisas existentes; tal o artista que esculpe uma esttua ao natural, desbastando todas as excrescncias [ 1025 C] que entravam a contemplao pura da figura oculta, e apenas mediante essa afrese faz aparecer a formosura escondida tal como ela em si mesma21.

    de facto necessrio, creio, que celebres as afreses em oposio s atribuies22: nas afirmaes principivamos pelas primeiras de todas as coisas e, passando pelas medianas, descamos at s mais nfimas; aqu, ao invs, fazemos a ascenso a partir das mais nfimas at s mais importantes, procedendo por eliminao sistemtica a fim de conhecer sem vus aquele no-saber que em todos os seres se encontra velado por tudo o que conhecemos, e a fim de observar aquele*'re,va mais que substancial, que toda a luminosidade que os seres comportam obscurece.

    18 [.

    1025 Al19 Cf. PLOTINO - En. V, 5, 7; GREGORIO de NISSA - De Vita Moys. II; ID. - Beat 320 Cf. PROCLO - In Parm. VI, 190. Sobre o verbo celebrar, hymneo, que aqu se repete,

    vd. infra, Estudo Complementar 8.3.

    16

    21 Cf. PLOTINO - En. I, 6, 9.22Afrese e atribuio, no original, de aphaireo e tithemi; vd. Captulo seguinte;

    remete-se tambm para o Estudo Complementar 3. 4 e 8.

    17

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    23

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    23 [1032 C]24 Cf. infra, Estudo Complementar, 4.25 Cf. PROCLO - Theol. plat. II, 5 sg.; ID. - In Farm. VI, 43 sg.26 Cf. PROCLO - De mal. subst. 11, 23 sg; ID. - Theol. plat. II, 6, 1027 Cf. infra, Estudo Complementar 4.28 Cf.; Ep. I.

    1R

    O mtodo afirmativoe o mtodo negativo

    [ 1032 D] Efectivamente, nos sbs Telgics24 celebrmosos principais aspectos da teologa afirmatia25: como [1033 A] que podemos dizer, da natureza divina e boa, que una e trina; que espcie de paternidade e filiao se invoca a respeito dela; o que pretende mostrar a teologa do Esprito; como que, do bemimaterial e indivisvel, da sua bondade ntima, surgiram as luzes quea residem, como elas habitam nele e em s mesmas, conjunta ealternadamente, sem jamais abandonarem a morada que coeternacom a sua propagao26; como que Jesus, que mais que substancial, se assumiu como uma substncia na verdade da natureza humana; e tantos outros aspectos relevados pelas Escrituras que sao celebrados nos sbs Teolgicos.

    Por sua vez, no livro que trata d' Os Nomes Divinos, dizemosde que modo se deve nomear o bem, o ser, a vida, a sabedoria, opoder e quantas outras denominaes divinas so do domnio dointeligvel. Na Teologia Simblica27 explicmos as metonimias quea partir dos sentidos pdem ser conformes com a divindade, quaisso as formas diinas J0,3 B], as suas figuras, partes e rgs;quais so os lugares divinos suas disposies, e os mpetos, quaisas penas e as cleras, quais os excessos e os desregramentos, quaisas juras e as imprecaes, quais os sonos e os despertares, e todas asoutras formas e configuraes sagradas que representamsimbolicamente Deus28.

    10

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    Enfim, creio que tu compreendeste j como as coisas nfimas so de muito mais palavras do que as principais; e assim os sbs Teolgicos e Os Nomes Divinos tiveram de ser explicados com palavras mais breves do que A Teologia Simblica, porque as palavras, quanto mais nos erguemos at ao que elevado, mais se limitam numa viso de conjunto das realidades inteligfveis.

    Assim tambm, agora, ao penetrarmos na treva que est acima do inteligvel, n a escassez de palavras que encontramos, [1033 C] mas uma completa privao delas, bem como do entendimento. Ali, 0 nosso discurso descia, vindo de cima at s coisas nfimas e medida que descia expanda-se at atingir uma proporcional abundncia de palavras; porm agora que, ao invs, sobe das coisas nfimas s transcendentes, na proporo da subida vai-se tambm contraindo, e no termo dela ficar completamente mudo, totalmente unido ao Inefe129.

    Mas porque que ento dirs , quando partimos do princpio mais elevado, estabelecemos sobre Deus afirmaes e quando partimos das coisas procedemos por negaes? que, ao termos em vista o que est para alm de toda a afirmao, tnhamos de fundamentar os nossos pressupostos afirmativos a partir do que lhe mais conatural; enquanto que, ao ter em vista o que est acima de toda a afrese, temos de proceder por eliminaes, negando os aspectos que lhe so mais alheis30. u no ser ele mais vida e bondade [1033 D] do que ar e pedra? mais no embriagado e no ressentido pelo odio do que no se deixa dizer ou sequer no se deixa pensar?31

    29 Cf. PROCLO - In Alc. 248, 5 sg.; ID - In Crat. 65.'OMais uma vez nos deparamos com o mtodo afirmao/negao e afrese; os vocbulos

    a que recorremos afrese, negar, assim como estabelecer afirmaes ou pressupostos afirmativos traduzem apenas os compostos de aphaireo e tithemi, conforme se disse em nota anterior. Em relao lio do texto dionisino, cf. JMBLICO - De myst. V, 18 sg.

    >1Cf. 1Rs. 19, 11; Sl. 117, 22.

    2120

  • < IV >

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    32

    Causa no sensvel

    [1040 D] Dizemos, por conseguinte, que a causa de todas as coisas, embora acima de todas elas, nem privada de substncia nem de vida, nem de palavras nem de inteligncia. Mas to pouco um corpo u sequer uma figura, e n possu aspecto, quantidade u volume. N est em lugar algum nem vista; no pode aperceber--se pelo tacto, nem sente nem 6 sensvel; n conhece a desordem nem a perturbao, pois n importunada pelas paixes materiais; tambm n desprovida de poder, por estar submetida s contingncias do sensvel; no sente falta de luz; no sofre alterao nem corrupo nem diviso, nem privao nem derramamento, e nem 6 nem tem 0 que quer que seja de sensel33.

    32 [1040 Cl33 Sobre todo este captulo, cf. PROCLO - Theol. plat. II; 5 sg.; 10 sg.; ID. - In Parm . VI,

    54 sg.

    22 23

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    3 [1045 D]35 Cf. PLOTINO - En. VI, 9, 3.

    Causa no inteligvel

    E ao ascendermos de novo dizemos que a causa de todas as coisas no alma nem inteligncia, nem tem a ver com a imaginao, com a opinio, com a palavra, u com o pensamento; pois nem palavra nem pensamento, nem to pouco se deixa dizer ou se deixa pensar35; tambm no nmero, nem ordem, nem extenso [ 1048

    Al nem pequenez, nem igualdade u desigualdade, semelhana ou dissemelhana; n est parada nem em movimento nem em repouso, n tem poder nem poder u luz; no vive nem vida; n substncia nem eviternidade ou tempo; no intelectualmente apreensvel como no conhecimento, verdade, realeza, ou sabedoria, nem um nem unidade, no divindade ou bondade; to pouco esprito tal como o conhecemos ou filiao u paternidade; ou qualquer outra coisa que ns outros entes possamos abarcar com o conhecimento; no nenhuma das coisas que no existem nem das que existem, nem os seres a conhecem tal como ela , nem ela mesma conhece os seres assim como eles so; no h palavra para elf, nem nome nem conhecimento; no obscuridade nem luz, ne erro nem verdade; nem sobre ela, em sentido absoluto, h uma afirm u uma negao [1048 B], mas quando fazemos afirmaes u negaes das realidades que vm na sua sequncia a ela nada atribumos ou negamos, pois que a causa, soberana e unitiva, de todas as coisas, est acima de toda a afirmao e acima de toda a negao, identificando-se na sublimidade d' Aquele que, simplesmente liberto de tudo, est alm do universo das coisas.

    24 '

  • ESTUDO COMPLEMENTAR

    1.O `caso' dionisacoPouco sabemos acerca do autor do brilhantssimo opusculozinho

    que acabmos de traduzir'. A Teologia Mstica integra-se, porm, num grupo de obras 0 Corpus Areopagiticum (ou Corpus Dionysiacum) - que deve pertencer a uma mesma personagem, provavelmente de origem sria, que vulgarmente identificamos pela designao estranhssima Pseudo-Donso (ou Dinis) Areopagita. Nalgumas das obras do Corpus lia-se, de facto, a seguinte dedicatria (120 A, 396 A): Dionsio presbtero ao presbtero Timteo. A falar verdade, a identificao deste autor permanece u envolta num mito ou num programa em relao ao qual os investigadores pouco podem fazer, no sentido de nele serem capazes de avanar.

    O caso dionisaco, no Ocidente, explica-se em poucas palavras. O abade de So Dinis, na Frana, Hildufno (sc. IX), escreveu uma biografia do autor do Corpus dionysiacum (sobre o qual adiante diremos algo mais2) em que o identificava com um certo Dinis que no Arepago da cidade de Atenas ouvira o prprio So Paulo, convertendo-se de seguida (Act. 17, 16 - 34), e acabando os seus dias como mrtir em Paris (PL 16, 23). (Na verdade, o fantasioso Dionisio, alm de nos Nomes Divinos se remeter a So Paulo, endereara uma das suas cartas ao apstolo So Joo e, noutra, afirmava ser contemporneo da morte de Cristo3.) Em 8 de Outubro do ano 827, Hilduino aguardava, na sua Abadia, precisamente dedicada a So Dinis, a chegada de um manuscrito contendo aquele coreus4. N seria difcil imaginarmos o ambiente e o significado da festa que nesse dia se viveu. Estamos, evidentemente, num perodo em que um livro pode valer mais do que um vasto terreno de cultivo ou tanto quanto, hoje, um Ferrari 456, mas mal andaramos

    Servimo-nos da recente edio ctica do Corpus Dionysiacum II ("Patristische Texte und Studien" Bd 36), editada por G. Heil e A. M. Ritter (t), (Berlim- Nova Iorque 1991) 139- 150; vd. infra 10. 1.

    2Vd. infra 2, nota 10 e 4.Vd. infra, 4 sobre Ep. X e Ep. VII.4Num manuscrito da Hierarquia Eclesistica poda ler-se o seguinte explicit, Dionisio

    Areopagita, bispo de Atenas, a Timteo, bispo de feso (vd. M. De Gandillac, in Oeuvres Comltes du Pseudo-Denys l'Aragite, Paris, 1943, 326, n. 3).

    27

  • se quisessemos medir a importncia deste acontecimento longe de qualquer cunho de ordem espiritual; assim, mesmo se eram poucos aqueles que sabiam ler, uma obra que se julgava to contempornea de Cristo era por Si s uma riqueza que Monarqua e Igreja ocidentais n podiam desprezar; livro de Deus, objecto precioso, tal acontecimento teria um alcance autenticamente pblico e mesmo poltico. O manuscrito tinha sido trazido pelo imperador bizantino Miguel I em oferta ao rei Lus o Piedoso, facto translativo por su s importante j que, graas a ele, tambm o Ocidente passava a dispor de uma das (muitas) riquezas que ofuscava Bizncio e cuja cultura seria imperioso importar, sob pena de o Ocidente se encontrar desprovido daquilo que verdadeiramente pode fundar, e consolidar um Imprio e uma civilizao renascente. Eis que a Idade Mdia latina nascia sob o signo de um livro grego e da bandeira de um programa poltico-cultural j esboado por Carlos Magno, nos Libri Carolini: a passagem do poder para as mos dos Francos era uma realidade irreversvel, quer poltica quer religiosamente faland5. sabido como Ado de Viena (t875) ao reportar as seis idades do mundo, instaura definitivamente, ao menos at ao ano de 1806, a fico jurdica da `translatio imperii', que ao ligar os imperadores romanos orientais a Carlos Magno traz consigo uma forte legitimidade da ideia de herana ou cntinuidade6.

    Hilduno, que havia sido discpulo de Alcuino, deveria ter uma cultura e inteligncia suficientemente sensvel para logo procurar haurir, quer religiosa quer teologicamente, todo o manancial de saber registado em letras gregas. Tambm do ponto de vista religioso e de poltica eclesistica seria de uma grande fortuna a coincidncia entre o autor daquelas obras magnficas, agora tambm na posse da Igreja e do Imprio ocidental, e o mrtir So Dints que no Arepago, ao converter--se ao apstolo Paulo, estava to prximo da prpria fonte da Reve-lao'. Infelizmente para o abade Hilduno, uma tal coincidncia (alis tambm conhecida no Oriente j que em 532 os monofisitas apelaram para a sua autoridade apostlica") no passava de um mito.

    5 Cf. K. FLASCH - Introduction la philosophie mdivale, trad., Fburgo, 1992, 1 - 27. Vd. infra, nota 177.

    6 Vd. H. GUNTHER - Le temps de l'histoire, trad., Paris, 1995, 74-75.' Vd. mais adiante ( 6) a reproduo do passo dos Actos dos Astolos em causa (17, 16 -

    34); ela servir-nos-h para avanar com a nossa hiptese de trabalho ao caso dionisino.Por monofiismo deve entender-se a doutrina (triunfante no Conciiio de Efeso de 449),

    28

    Por razes que ainda haveremos de indicar, o autor do Corpus dionysiacum no poderia, de facto, ter vivido no primeiro sculo da nossa era, mas s nos finais do sculo V ou princpios do VI, talvez em Atenas. Embora muitos estudiosos, desde cedo (e j durante a prpria idade Mdia, como no caso de Abelard9), suspeitassem daquela identificao, s a erudio histrica e filolgica do sculo XIX pde acabar definitivamente com o muto.

    Relembremos, rapidamente, algo do contexto eclesistico-cultural daqueles dois sculos da Antiguidade Crist. Entre 470, data do terceiro saque a Roma, e 529, ano em que Justiniano manda encerrar a escola filosfica de Atenas, nasce o filsofo Bocio Ancio (475/80), em Roma; a polmica monofisita est na ordem do da (o Concilio de Calcednia reunira-se em 451); e Victor de Vita narra (484/9) a perseguio dos Vndalos arianos Igreja Catlica africana na Historia persecutionis Africanae provinciae. Por esta altura, Pseudo-Dionisuo dever estar a escrever a sua obra, bem longe destes acontecimentos, talvez na cidade de Atenas, onde os pagos, por enquanto, ainda podem ensinar institucionalmente. Proclo morre em 487, mas nascem (480) Cassiodoro e So Bento de rsia. Acontecimento importante para o Ocidente, o baptismo de Clvis (c. 500) contemporneo das Institutiones Gramnmaticae de Prisciano, e pouco depois do ano em que Bocio, o autor da Consolatio Philosophiae, mandado para a pruso (524), em 532, temos as primeiras noticias de obras dionisacas. Em Constantinopla publica-se (534) o Codex Justinianus, Bizncio invade Itlia, e Fulgncio de Ruspe confronta-se, nas suas obras, com problemas trinitruos e cristlgics, alm de questes relativas graa e liberdade provocadas pelo semipelagianismo.

    que defende uma nica natureza para Cristo, em vez de duas, humana e divina, como o Conclio de Calcednia estipular. Relativamente questo cristolgica, no Pseudo- -Dionisio, vd. R. ROQUES - L'Univers dyonisien. Structure hirarchique du monde selon le Pseudo-Denys, Paris, 1954, 305 -329; vd. tambm infra, nota.

    9Cf. D. LUSCOMBE - Denis the Pseudo-Areopagte in the Middle Ages from Hilduin to Lorenzo Valla, in Fdlschungen im Mittelalter. Internationaler Kongress der Monumenta Germanice Historica, Hanover, 1988, t. I, 133 - 152.

    29

  • 2.Significado histrico-teolgico da obra dionisacaCoadjuvado por helenfonos, em 835 Hilduno d por concluda

    a primeira traduo latina do Corpus, a qual, no entanto, enfermava de erros e escolhos de leitura e de interpretao vrios]. Ns mesmo fizemos a experincia das adversidades filolgicas da aventura de traduo de Dionsio'1. Do referido Corpus fazem j ento parte quatro importantssimos tratados Hierarquia Celeste, Hierarquia Eclesistica, Nomes Divinos e Teologia Mstica e dez Cartas de valor desigual, mas que na generalidade acompanham o temrio dos tratados 12.

    Felizrrlente, 25 anos mais tarde, o eminente Joao Escoto (que em homenagem a Dionisio passa a assinar Erigena) faz, sob o alto patrocnio de Carlos o Calvo, uma nova traduo daquele corpus, com base tambm em outras famlias de manuscritos, que aperfeioa um pouquinho mais o texto do atelier de tradutores de Hilduno. O Ocidente vivia ento um momento de renascimento das letras, a chamada Re-nascena Carolingia, e graas aos seus protagonistas, designadamente ao irlands Joo, passava-se a poder pensar teologicamente em latim sob um cadastro alternativo ao augustinismo13. Ou melhor: a teologia

    10 Entendam-nos bem quanto s dificuldades da operao tradutora, a trs `mos', digamos assim. Algum primeiro interventor num trabalho de equipa 1 o texto grego em voz alta; uma segunda personagem (de facto 0 verdadeiro tradutor) profere em latim aquilo que acabou de ouvir em grego; uma terceira figura escreve em latim o que ouviu da boca da segunda figura. Ora, nestas condies de trabalho, detectam-se, pelo menos, as seguintes dificuldades, para ns, hoje em dia, inimaginveis: o primeiro leitor pode errar, dado o tipo especfico de letras e de escrita (v. g. sem separaes de palavras e com escassssimas pontuaes); a traduo em voz alta, para alm do facto de depender daquilo que se ouve (e no necessariamente daquilo que foi efectivamente dito), tambm no pode evitar totalmente os erros de caractersticas fonticas, o mesmo pode acontecer com monge ouvinte-copista, o qual, por seu lado, pode entender mal, seja por defeito de dico, sotaque, ou de audio.

    " Tal como se registou no devido lugar, ficmos porm a dever muito ao saber da nossa colega Maria Teresa Schiappa de Azevedo.

    'Z Por comodidade e economia, abreviaremos os ttulos do Corpus, da seguinte forma: H. C. = Hierarquia Celeste; H. . = Hierarquia Eclesistica; N. D. = Nomes Divinos; T . = Teologia Mstica; Ep. = Cartas. Aos ttulos, e conforme a tradio, pospomos os nmeros da paginao da edio do abade J.-P. MIGNE (Patrologia Graeca, III e IV, Paris, 1857).

    " ainda algo recente oitavo Colquio da SPES (=Society for the Promotion of Eriugenian Studies), alguns autores G. d'Onofrio, J. McEvoy u W. Beierwaltes insistiram

    latina passava a poder adquirir um rigor indito at ento, tornado possvel pelo facto da gramtica filosfica que subjazia ao texto do Corpus ser oriunda dos crculos neoplatnicos de Proclo (t 487). De notar que alm do facto de se poder dividir a obra de Escoto Erigena em duas fases distintas antes e depois do seu contacto apertado com o Corpus Areopagiticum com a obra-prima do irlands, De Divisione Naturae, o Ocidente latino passou a deter, no neoplatonismo dionisaco, a base acalentada para a elaborao de um completo sistema que integrasse todas as esferas do real bem como para a leitura da gnese do real14.

    No se pense que o desafo que o texto grego do Pseudo-Dionisio lanava parou com Joo Escoto; Joo Sarraceno, no sculo XII, volta empresa de uma nova traduo, logo seguido por Roberto Grosseteste (1235) e por mbrsio Travesari (1436)15.

    atermo-nos apenas a uma leitura intempestiva do ttulo aqu traduzido, pleno de excessos literrios (pleonasmos, gradaes, clmaxes, perfrases e oxmoros) e dominado por uma linguagem barroca, poder parecer bizarro falarmos em rigor a propsito da mstica. coisa, naturalmente, ter de ser bem explicada, mas talvez nos possamos lembrar, para j, com Bertrand Russell, da afinidade existente entre mstica e lgica, patente numa mesma ateno ao pormenor e num idntico desprendimento dos desejos16. Mas, naturalmente, o rigor de

    porm na sntese do augustinismo com o dionisismo levada a cabo por Erigena, vd. Eriugena: East and West. Ed. by B. McGinn & W. Otten, Notre Dame, 1994, passim. Que no se lea, pois, a nossa aluso a um cadastro altemativo no exterior de qualquer complementaridade; alis, esta estratgia latente de afinidade passaria ainda por dimenses e/ou noes platnicas (razo/autoridade), bblicas e neoplatnicas (men-sura); vd. infra 3.

    "H tradues, inglesa, de JOO ESCOTO ERIGENA- Periphyseon, por I. E Sheldon- -Williams, L. Bieler e J. J. O'Meara, Dublin, 1968- 81, e tambm francesa: De la division de la nature, par F. Berti ~, Pars, 1995; em portugus poder ver-se C. H. do C. SILVA - 0 pensamento da difereha no `De divisione naturae' de Escoto Ergena, Didaskalia 3 (1973), 247- 303; . F. BLANC - Divina Natureza segundo Escoto Erigena, Revista Portuguesa de Filosofia 52 (1996), 97 - 109; vd. infra 10.1.

    15 Vd. Dyonisiaca (citada na Bibliografia, infra), que ntegra um total de dezoito edies e tradues, publicadas em paralelo, que vo at ao sc. XVIII; destacaramos a verso referida de Hilduno (H), a de Ergena (E), a de Sarraceno (S), a de Grosseteste (R), que nos foi particularmente til, a parfrase de Toms Gallus (V), alm da verso de Marsflio Ficino (F).

    Cf. F. NEF - Lgica e Mstica: propsito do Atomismo Lgico de Russell e Wittgenstein, Anlise 10 (1988), 91.

    30 31

  • que falamos no acaba nesta afinidade, nem tem nela sequer o seulugar dilecto. Com efeito, ao tornar-se leitor do neoplatnico Proclo,autor, como se sabe, dos clebres Elementos de Teologa (ttulo quesendo embora dependente das Sentenas de Porfirio, nos poderia fazer lembrar os Jlementos do clebre gemetra Euclides e que j pde ser comparado corn a tica de Espinosa17), o cristo Pseudo-Dionsiodeparou-se corn uma produo teolgica, decerto pag, porm no assistemtica, merc do znite intelectual do programa neoplatnico que desde o sculo III visava harmonizar um conjunto impressionante e variegado de dogmas e doutrinas religiosas que aparentemente dir-se-iam ir substituir definitivamente a filosofia. Vale por isso a pena transcrevermos o mdo como A. C. Lloyd aluda ao racionalismo da filosofia neoplatnica contempornea do nosso autor: 0 sistemado sculo V representa acima de tudo o racionalismo, na acepo emque Descartes e Hegel so chamados racionalistas. Os graus de realidade coincidem com graus de simplicidade na medida em que dessa maneiraa ordem real coincidia corn a ordem lgica; d que, analisar um conceito, passa por encontrar os elementos que lhe so anteriores e que, pelasua presena, fazem dele um complexo. Necessariamente que este racionalismo faz das relaes, relaes internas, pois que a nicaverdade que reconhece pertence ao que Hume chamou relaes deideias. A regra de ouro "Todas as coisas em tudo, mas de maneira conveniente" exemplifica duplamente uma doutrina das relaes internas.Primeiro, qualquer substncia tinha de ser definida por relao a tudoo que nao d (...), em conformidade ao modo que Proclo encontra noSofista e Hegel em Proclo; em segundo lugar, a qualificao "de

    17 . C. LLOYD - The Later Neoplatonists..., in The Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy, Cambridge, 1980, 306: While confined to meta-physics it is a handbook of the same kind [of Porphyry's Sententiae], but formally it takes a remarkable step beyond the Sententiae: it is not merely presented as a set of theorems, but each of these is proved and (at least in intention) so that the proofs depend only on preceding theorems. Its clear parallel is in fact Spinoza's Ethics. The book was responsible for a good deal of the Neoplatonic current in scholastic theology through its silent absorption by Pseudo-Donysius and the Liber de causis. Its contents are thoroughly abstract. Beginning with theorems (1 - 6) about Unity and the One it expounds at lenght the formal relations of generator and generated (7 - 112) and then in turn the formal character of the participated One or `henads' (113 - 58), of Being (159 - 65), of Intellect (166 - 83) and of Soul (184- 211). Veja-se tambm infra, nota45.

    32

    maneira conveniente" segue-se da teoria segundo a qual uma diferenade relao ou sujeito leva a uma diferena de qualidade possuda pelo sujeito. elucidativo comparar o modo como Leibniz aplicou a regraao que, tambm ele, chamou mnadas. Tambm poderia ajudarcomparar-se a dupla estrutura dos gneros aristotlicos, que obedecema uma forma lgica, e os "tipos" platnicos, que no obedecem, cornos "conceitos" e os "universais"de Hegel.15

    Deixemos de lado o conjunto destes programas ou hipteses de trabalho, nem todas, alis, corn o mesmo grau de pertinncia. O que quereramos evidenciar que o nvel de maturidade do neoplatonismo pago dificilmente poderia ser dispensado pelo telogo cristo srio,na medida em que aquele poderia dar a este uma poderosa armaoterica. Seria errado pensar-se estarmos perante um esprito religioso desprovido de filosofia. Como adiante se ver, tratar-se-ia antes de uma transformao da prpria filosofia. Nao d de estranhar, assim, que um jovem cristo treinado ou educado na leitura da tradio eclesistica grega (os chamados Padres da Igreja, corn particular relevo para Orgenes e para os Capadcios19), ao tomar contacto com o edifcio particularmente imponente da mais requintada teologia paga, sentisse alguma seduo por uma aparelhagem conceptual e por uma lgica problemtica, na qual, se era certo nao poder ver o nome de Cristo, dava tradio crist a chave estrutural (hierrquica) que lhe faltava20. A obra do maior e mais imediato discpulo do Areopagita, Mximo o Confessor, testemunha exemplarmente o que acabmos de dizer21. Ao promover essa operao, o Corpus dionysiacum poderia avantajar-se no Oriente grego tal como uma parte da obra de Agostinho j imperava no Ocidente. Certo que quando o Ocidente latino conheceu os tratados de Pseudo-Dionsio rapidamente pressentiu neles uma alternativa construo da teologia de cariz augustinista. Seriam,11 . C. LLOYD - The Later Netists..., 323.14 Vd. infra 3.3.2" Cf. R. ROQUES - L'Univers..., 30, citando H. C. 164 D: hierarquia uma ordem

    sagrada (txis hier), uma cincia (eistme) e uma actividade (enrgei).; vd. infra 5.

    i1 Cf. . U. von BALTHASAR - Liturgie Cosmique. Maxime le Confesseur, trad., Paris, 1947; mais recentemente, V. KRAYIANNIS - Maxiine le Confesseut: Essence et nergies de Dieu, Paris, 1993. Sobre Mximo, em portugus, poder consultar-se, a ttulo de introduo, L. F. F R. THOMAZ - S. Mximo Confessor e os Valores Fundamentais do Ocidente, Communio 4 (1987), 516 - 529.

    33

  • afinal, duas maneiras diferentes de se ser neoplatnico. Como se sabe,ter sido atravs do discpulo ocidental de Plotino (t270), Porffrio, autorde uma Vida de Plotino e editor das Enadas do mestre, que SantoAmbrsio e Santo Agostinho tomaram contacto com o neoplatonismo, depois de ti Vitorino ter traduzido para latim os dois gregos22. Ora, Pseudo-Donsio (por ter sido talvez ouvinte de Damscio em Atenas)permitia uma ligao a Plotino via Proclo, filsofo cujo significado,no Oriente, sempre 'se sobreps, verdadeiro epitome do prprioneoplatonismo.

    Ser preciso esperar-se pelo sculo XIV, com Bertoldo deMoosburgo, para que r2 Ocidente latino possa saber ler sistematicamente a obra neoplatnica de Proclo, at ento conhecida sobretudo graass obras de Pseudo-Dionsio Areopagita23.

    3.A `situao' dionisacaCom efeito, a compreenso da obra de Pseudo-Dionsio poder

    enxertar-se em dois files distintos, um eclesistic e outro pago, este ltimo grosso modo posterior ao nascimento da religio crist, pelofacto de se remeter ao filsofo Plotino que viveu no sculo III. Embora assumindo-se como um platnico, a sua reinterpretao de Platofoi suficientemente original para, por si s, inaugurar uma outraescola conhecida pelo nome de neoplatnism24.

    22 As Enadas de Plotino so compostas por 54 tratados, organizados por Porfrio em seis grupos obedecendo a um plano fixo: tica, cosmologa e teologa; para uma edio, vd. Bibliografia no final. Acerca da aluso de Agostinho aos libri platonicorum, vd. a nossa edio do Santo Agostinho. Dilogo Sobre a Felicidade, Lisboa, 1988, 94, n. 17. J. M. BARBOSA - Estudos de Filosofia Medieval: 1. Manual de Ensino, Lisboa, 1984, 17 - 20, ignorava o nome de Proclo, a propsito de Pseudo-Donsio, relacio-nando-o apenas com Plotino.

    23 Importa porm mencionar pelo menos anterior e relevante trabalho de comentador proclusino, feto por Egfdio Romano, cf. L. STURLESE - I dibattito sul Proclo Latino nel Medioevo fra l'Universit di Parigi e Studium di Colonia, in Proclus et son influence (Actes du Colloque de Neuchtel), Ed. G. Boss & G. Seel, Zurique, 1987,270.

    24 Tradicionalmente, entende-se por neoplatonismo a corrente filosfica, dominante a partir do sculo III, que, privilegiando os planos metafsico e tico, Sc extra da obra de Plotino. Porm, nao se pode esquecer os seus antecedentes naturais: desde a Antiga Academia, logo aps a morte de Plato, passando pelo prprio Aristteles, e sobretudo o seu comentador Alexandre de Afrodisias, pelo estoicismo (sobretudo o chamado

    Graas aos trabalhos de H. Koch e de J. Stiglmayr, os quaismostraram a dependncia do captulo IV de Os Nomes Divinos, dedicado ao problema do mal, para com a obra de Proclo, conhecidapelo ttulo latino De maloruin subsistentia, no s se determinou queo nosso autor jamais poderia ter sido ouvinte de So Paulo comotambm se comeou a estudar a influncia neoplatnica que sofreu.(As investigaes foram depois continuadas por H. Weertz, H. F. Mller,G. della Volpe, R. Roques, M. Schiavone, W. Beierwaltes, B. Brons,H. D. Saffrey, S. Gersh, S. Lilla, C. Steel.) Este tipo de trabalhos foiainda prolongado noutras direces: estudiosos como E. von Ivnkae E. Corsini, examinaram a relao entre o nosso autor e o Parmnides de Plato; C. Pera, e o mesmo Corsini, descobriram paralelos com oDe diis de Salstio; L. H. Grondijs e R. F. Hathaway dedicaram-se

    dependncia do nosso autor em relao a Damscio, o ltimo dos representantes oficiais da Escola de Atenas. Por seu lado, C. Pera, H.Ch. Puech, V. Lossky, E. von Ivnka e W. Vlker, estudaram asinfluncias dos Padres Alexandrinos e Capadcios em Pseudo-Dionfsio Areagita25.

    Podemos assim falar em duas matrizes fundadoras, a neoplatnicae a da ento relativamente longa, e por isso substancial, tradioeclesistica. Em todo o caso, e antes de dizermos algo mais sobre estas matrizes, gostaramos de deixar bem claro como o projecto dionisaco radica na mais antiga philosophia.

    3.1.As metamorfoses da philosophiaAo escrever, como no podia deixar de ser, em grego, o nosso

    autor tinha atras de Si uma tradio filosfica ancestral, de que o

    estoicismo mdio), pelo neop' gorismo ds primeiros dois sculos da nossa era, pela Nova Academia de Antioco de scalon, pelo platonismo mdio, e pelo helenismo judaico que de um Filon de Alexandria passou a Plotino por intermdio de Amnio Sacas. Embora pretendendo sobretudo fazer obra de exegeta, e de exegeta sistematizador de Plato antes de mais, Plotino consuma toda esta tradio num sincretismo ao qual nada falta em originalidade. Aps Plotino, a corrente conhecer as contribuies de Porfrio, Jmblico e Juliano o Apstata, Proclo e Damscio. (Para uma rpida, mas boa, informao sobre esta evoluo, cf. S. LILLA - Neoplatonism in Encyclopedia of the Early Church, Cambridge, 1992, 585 - 93, para pormenorizaes, vejam-se as nossas varias notas, mais adiante.)

    25 Vd. infra 10. 2.

    34 ~5

  • neoplatonismo era apenas uma a ltima erupo. A leitura de Dionsio no original leva-nos obrigatoriamente a pensar o efeito de uma tradio que se plasma num lxico soberbamente retransfrmel, e a elucidao da situao epocal e individual de um leitor/filsofo (desta vez do sculo ,V-VI), .luz dessa tradio, reabilita o seu lugar-donde, condio para um possvel reencontro que no caa no silncio que advm de toda a estratgia de isolamento de uma qualquer origem.

    Ao evocar, a propsito de Deus (Tearchia), a velha palavra grega arch, Dionsio mostra-nos que o seu fito tambm , de certa maneira, fisiolgico: a busca da substncia bsica do princpio em que todas as coisas se fundam. Como bvio, semelhante afirmao no pode ser lida come se entr os jnicos e os religiosos atenienses nada se tivesse passado. Com efeito, desde a descrio aristotlica relativa arch (Met. 983 - 985b), ligava-se quela busca um outro problema, com o qual Dionsio tambm se defronta. Referimo-nos ao processo que faz surgir das coisas primrias as secundrias, a transformao da arch em genesis e em syntheta. Sc aceitarmos que desde Anaximandro a identificao da arch deixou de se rever na mera materialidade, podemos dizer que salto tcnico qualitativo anaximndric do mais sensvel para o mais abstracto [ou "das coisas mais nfimas s principais segundo a expresso de Dionsio] se consuma na estratgia neoplatnica, e portanto dionisaca tambm. Pois, como observou F. E. Peters, Anaximandro iniciou a linha de investigao que levou ao Uno simples e esfrico de Parmnides com a correlativa distino entre o saber verdadeiro e a opinio e s archai geomtricas e matemticas dos pitagricos e aos atoma de Leucipo e Demcrito26. Sc conjugarmos a introduo do movimento nos elementos (stoicheia) irredutveis aos perceptos, operao levada a cabo por Anaxgoras e pelos atomistas, temos a elevao da genesis a problema filosfico, elevao essa que, depois, Plato e Aristteles reanalisaram, inflectindo--a na direco da dynamis.

    Recordemos, primeiro, como ttulo de Proclo, Elementos [stoicheiosis] de Teologa, se pode integrar na linha da velha busca do Urstoff, a realidade primria, na condio, naturalmente, de lhe acrescentarmos o reconhecimento platnico das archai nos stoicheia,

    26 F. E. PETERS - Termos Filosficos Gregos. Um lxico histrico, trad., Lisboa, 1977, 37. O parntesis recto nosso.

    36

    que a fonte do problema gentico em filosofia: os elementos transformam-se uns nos outros, pois o substrato dotado de qualidades, imanentes a cada substrato, capazes de duplo movimento, para forae para dentro. Ora, sem pormos de parte a ancestralidade pr-filosfica da genesis, e portanto a sua natural correlao com as mais arcaicas sabedorias religiosas, cujo conhecimento e influncia, merc de condicionalismos histrico-sociais, patente nos ambientes neoplatnicos, as observaes de Scrates no Fdn (96a) indicam o qui heterodoxo privilgio do problema da genesis em filosofia. Recrdmo-lo: jovem Scrates fica intrigado pelo facto de a genesis estar a ser interrogada nos termos de uma procura pelas causas (aitiai). Depresssa, na casa dos editores de Aristteles, cunhar-se- mesmo uma palavra para identificar toda a procura sistemtica das causas, metaphysica, masoEstagirita chegou inclusivamente a recorrer (Met. 1026a) ao termo platnico (Rep. 379a) do qual os neoplatnicos abusaro, theologia, que se identificaria com a metafsica como filosofia primeira. Desta feita, os neoplatnicos apenas tiveram que alargar o espectro semntico do termo, na esteira do estoicismo, passando a abarcar todo o discurso sobre os deuses, agora que a inclinao psicossociolgica to universal para com o maravilhoso e o miraculoso j tinha sido sustentada, em termos tericos, graas a uma sofisticadfssima teoria, parcialmente estica, a teoria da simpata (sympatheia) universal. Congraando todas as coisas numa interaco mtua, ela serviria a Plotino n s para discutir o papel do Sol na teora aristotlica da genesis (En. IV, 4, 31), mas tambm para poder entender kosmos como um organismo vivo em que todas as suas partes se encontram impregnadas de uma alma universal e actuando mutuamente em virtude da semelhana (hmites)27.

    Nesta transformao, e sem se esquecer a legitimidade de um misticismo de caractersticas aristotlicas (como v. g. o de Alexandre de Afrodfsias), acrescentaramos uma ltima nota, decerto no alheia ao devir da prpria philosbpjiia: aquele programa plotfnico nao deixava de conviver com um misticisrrfo. preciso (En. VI, 7, 38). Deparamo-nos assim com a segunda palavra do ttulo dionisaco, mstica. Inscrita na tradio do Banquete (que Plato remete para os mistrios de Elusis), P. Hadot, diz encontrar, a esse propsito, uma tonalidadee uma atmosfera relativamente novas na histria da filosofia antiga:27 Cf. PLOTINO - En. IV, 4, 32.

    37

  • na mstica ...o discurso filosfico s serve para mostrar, sem exprimir, aquilo que o ultrapassa, isto , uma experincia na qual todo o discurso se aniquila, na qual tambm deixa de haver auto-conscincia individual, mas to-s um sentimento de alegria e de presena28. Haveremos ainda de voltar a este assunto.

    Em Aristteles, nem dynamis nem energeia so susceptveis dedefinio24. Todava, a sua ilustrao, seja a ttulo exemplificativo sejapor analoga (Met. 1048a-b), liga-se a uma anlise do ser que, comose sabe, remete para a teologia, o estudo das entidades transcendentese imperecfveis do .mundo supralunar e do primeiro Motor30. Mas se

    desde os Milsios que a dynamis era uma fora activa nas coisas oseriorme transfornnada, por Plato, na noo de qualidade activa

    (Teet. 182a) - na filosofia post-aristotlica estender-se- a dynainisa todo o tipo de motores e inteligncias intermdias. No judeu de

    Alexandria, Fflon, identificam-se ora com os anjos, ora com as formasplatnicas (ideai) presentes no espirito de Deus e fora criadora doUniverso. Tambm em. Plotino os noeta, unificados no Nous csmico,

    so descritos nos termos de dynamis universal de capacidade ilimitada(En. V, 8, 9) e, individualmente identificados (como um eidos separado),so-nos apresentados como uma dynamis tambm individual (En. V,9, 6), mais tarde operativa nos dois mundos, inteligvel e sensvel (En.

    IV, 4, 36). Dado que estes dois mundos derivam de uma fonte nica,proodos, a dynamis, sob a figura do desejo (orexis), domina tambmum movimento de regresso, epistrophe. (De notar que a base ontolgicadesta ltima operao, qual teremos de voltar, a identificao doUno transcendente com o Bem e da causa eficiente com a fina131.)

    A descrio de proodos por Plotino, estratgia que responde aovelho problema parmenfdeo do Uno e do Mltiplo, envolve dimenses

    metafricas, que Proclo tambm segue, e que justificaremos nopargrafo seguinte32. Todavia, depois do que dissemos sobre o rigor,

    no resultar difcil entender que no convm sobrevalorizar essas

    28 P. HADOT - Qu'est-ce que la philosophie antique?, Paris, 1995, 249.29 Cf. F. E. PETERS - Ternosloscos..., 73.30 Cf. ARISTOTELES - Met. 1050 b, 10716, 1072b - 1073.31 Cf. PLATAO - Rep. 509b; ID. - Fil. 20d; PLOTINO - En. V, 5, 13; PROCLO - Elem.

    Teol. 8, para a primeira identificao referida; cf. PLATAO - Tim. 29e; PLOTINO - En. IV, 8, 6 e V. 4, 1, para a segunda.

    32 Cf. PROCLO - Elem. Theol. 25 - 30.

    38

    expresses metafricas em detrimento do seu fundo lgico. H sempre uma nfase clara no elemento racional (logos) da sympatheia ainda que, pelo menos a partir de Posidnio, a sympatheia se torne cada vez mais vital, e o consequente reforo do dinamismo se abra a influnciasreligiosas que, por vincarem a transcendncia e imobilidade dos deuses, necessitavam de actuar nas coisas atravs de dynameis, que logochegaro a ser personificadas. Tambm aqu h um trao tericoimportante, posto que os filsofos acharam isso uma maneiraconveniente de reconciliar os mltiplos deuses da mitologa com o seu prprio henotesmo33. De notar, portanto, que est assim consagradaa compatibilizao da imanncia com a transcendncia, no seio da quala pergunta pela arch se retransforma, pois a caracterstica dos poderes divinos nas coisas que existem assinala-se pela irradiao para baixonuma sucesso seriada que atinge todos os nveis da realidade34. Sobesta ptica, a Teologia Mstica uma obra de requintado racionalismo, conforme diremos ao apresentar a metodologia da negao e daafrese3s

    3.2.A matriz neoplatnicaComo explicou Dodds na Introduo que escreveu para os

    Elementos de Teologia, com Plotino consuma-se metamorfose pagda filosofia em teologia36. Concebendo o real de um modo dinmico (dominado por uma dupla pulso, processo e converso), eassegurando o equilfbrio dessas foras mediante a figura do primeiro princpio, o Uno, Plotino vertia pessoalmente, embora em chaveplatnica, a velha aporia do Uno e do Mltiplo, com todas as suas metamorfoses (como a da Diversidade/Unidade, Devir/Repouso, etc.37). Desde tempos imemoriais elas eram o puncturas saliens da philosophia. Se, como escreveu P. Hadoptffirmado e vrios testemunhos, ... desdeo inicio do sculo II d. a filosofia era concebida como um

    33 F. E. PETERS - Termos filosficos..., 61.34 Paralelamente, estar tambm justificada a teurgia, a arte mgica que procura manipular

    os deuses atravs dos seus smbolos ocultos nas coisas (vd. infra nota 42).35 Vd. infra 8.36 Cf. E. R. DODDS - Proclus. The Elements of Theology, Oxford, 1963, xviii - xxvi.37 Cf. F. GIL - Mimsis e Negao, Lisboa, 1984, 194 sg.

    39

  • itinerrio espiritual ascendente correspondendo a uma hierarquia daspartes da filosofia, a tica assegura a purificao inicial da alma; afsica revela que o mundo tem uma causa transcendente e convida,por isso, a procurar as realidades incorporais; a metafsica u teologia, tambm chamada etica, por se tratar, tal como nos mistrios, dotermo da iniciao, traz por ltimo a contemplao de Deus.3R Pela processo (proodos), Plotino explicava a derivao original de todasas coisas, a relao de causa a efeito, enquanto que pelo movimentoda converso , (epistrophe) justificava a nsia de unidade u deunificao que alimentava o deseje de cada homem, como tambm decada ser, ao mesmo tempo que garantia o valor do real talvez ameaado por uma rcess qu era o prprio afastamento em relao ao Uno. consabido, ainda, que Plotino via no dificlimo dilogo platnicointitulado Prmnides um exame do prprio Uno, que sera a culminaodo seu prprio sistema atento aos vrios nveis do ser. No seu desgnio, portanto, tratava-se de continuar na esteira do divino Plato permanecendo-lhe fiel:

    De Roma o neoplatonismo passou para o Oriente (referimosacima a sua expanso no Ocidente34). O discpulo de Plotino, Amli, instala-se em Apameia, na Sria, e Jmblico tambm af ensinar. Porque os ensinamentos deste v ser objecto de estudo e de disputa nas escolas platnicas de Atenas em que Proclo se formar, vale a pena dizermos tambm algo sobre a metafsica de Jmblic4.

    Leitor e comentador de Plato, Jmblico estabelece um programa

    38 P. HADOT - Qu'est-ce que la philosophie..., 238.34 Poder-se- obter informao rpida e acessfvel sobre a expanso do neoplatonismo, e

    sua variedade geogrfica in G. FRAILE - Historia de la Filosofa I: Grecia y Roma, Madrid, 1982, 718 sg.

    ao Jmblico representa a fase terminal do neoplatonismo, o qual, se depois de Porffro j tinha tornado contacto apertado com os Orculos Caldaicos, agora, sofre uma direco ainda mais sincrtica. Bastara atentar-se no seguinte: enquanto Porfirio identifica o primeiro principio com o primeiro membro da triade inteligvel e com o Pai dos Orculos, Jmblico coloca acima dessa primeira trade: (i) peras e apeirIa (cf. PLATAO - Fil. 23c, 24a); (ii) o Uno, anterior a este ltimo par de primeiros principios, simples, no-coordenado com a primeira triade, idntico monada, anterior essncia (proousIos), pai da essncia (usidtr), principio do inteligvel (net ches), ser pr-existente (rnts on), bem, primeiro deus e primeiro re, que ocupa um lugar intermedi; (iii) o primeiro principio absoluto (rtists), totalmente inefvel, ante-rior ao primeiro deus e ao primeiro rei, imvel, solitrio, isento de qualquer contacto

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    filosfico que compreendia um acesso sistemtico aos dilogos dePlato em conformidade s trs componentes da filosofia, tica, lgicae fsica. Estas seriam propeduticas teologa, que Jmblico pretendia ensinar custa do dilogo referido, o Prmnides (enquanto o acesso filosofia natural seria feito pela leitura do Timeu). Sabemos queJmblico defenda que a alma mergulhava completamente na matriapelo que se requeriam ritos tergicos, rituais mntics e hierticos que teriam por finalidade o regresso da alma ao divino. Relembremos quea palavra teurgia surge no sc. II da nossa era. Talvez criada pelo(s) autor(es) dos Orculos Caldaicos, ela designara os ritos capazes de purificar a alma e o seu "veculo imediato", o corpo astral, a fim de possibilitar-lhe a contemplao dos deuses41. Jmblico diz mesmo, emOs Mistrios do Egipto, que no a filosofia terica mas os ritos incompreensveis que nos permitem a unio aos deuses42. Esta obra-nos particularmente interessante; no dizer de Saffrey, pela primeira vez nela o autor pe num mesmo plano as doutrinas caldaicas,hermticas u egpcias e as doutrinas filosficas gregas, querendo trataros problemas teolgicos teologicamente, os problemas tergicos teurgicamente e os problemas filosficos filsficamente43. Os textosde Plato so considerados como revelaes divinas. Aristteles passaa ser va privilegiada de acesso a Plato, e o esforo dos filsofos,doravante, concentra-se nesse ideal de harmonizao ao qual no escapa nada (rasdias rficas, sentenas pitagricas, dilogos de Plato, versos dos Orculos Caldaics)44. Trata-se de uma complexa situao de

    corn o inteligvel, arqutipo (parddeigma) do primeiro deus, nascido por um processo de iadia5. Sobre tudo isto, vd. S. LILLA - Neoplatonism, 589; A. C. LLOYD - The Later Neoplatonists, 293 sg.

    41 P. HADOT - Qu'est-ce que la philosophie..., 26242 Cit. in P. HADOT - Qu'est-ce que la philosophic..., 262 Na magia procura-se forar os

    deuses, na teurgia o praticante submete-se vontade deles; a teurgia concretiza-se em ablues, sacrificios, e incaes por vezestcm palavras incompreensveis. Sobre a teurgia, vd. E. R. DODDS - Os egs e o Irracional, trad., Lisboa, 1988; H. LEWY - C/ia/dean Oracles and Theurgy, Cairo; 1988, 227 - 57, e 467 - 71 para informaes sobre rituais. Sobre os aspectos mais filosficos, designadamente a questo da deificao, vd. W. BEIERWALTES - Proklos. Grundzige seiner Metaphysik, Francoforte s. Meno, 1965, 328, 385 - 90.

    43 H. D. SAFFREY - Les dbuts de la thologie comme science (IIIe - VIe sicle), Revue des Sciences Philosophiques et Thologiques 80 (1996), 215.

    44 Cf. H. D. SAFFREY - Accorder entre elles les traditions thologiques: une caractristique du noplatonisme athnien, in . P. BOS & P. A. MEIJER (ed.) - On Proclus and His Influence in Medieval Philosophy, Leida, 1992, 35 - 50.

    41

  • amlgama cultural que decerto s voltar a ter paralelo no humanismo u renascimento florentino, mormente o de Pico della Mirandola.

    Conforme testemunha Marino a propsit de Proclo, que Saffrey cita, este filsofo neoplatnico no s n teve qualquer dificuldade em penetrar em toda a teologia, quer grega quer brbara, bem como na que se encontra oculta pelas fices dos mitos, como tambm, para quem a quer u a pode compreender, a expe luz do dia, explicando todas as coisas sob a inspirao dos deuses e pondo todas as teologias de acordo45. Com razo, pois, a obra-prima de Proclo, Teologia

    45 Cf. H. D. SAFFREY - Les dbuts..., 215.Digamos atg mais: Nd sistema de Proclo, a tendncia hierarquizante levada s suasltimas cgsequencias. Entre as leis que regulam as relaes das rias classes deseres hierarquizados, encontramos as seguintes: (i) os momentos da man, rds e eistroh (El. Theol. 29 - 35); (ii) a semelhana do ser gerado ao ser gerador (El. Theol. 28, 29, 32); (iii) a inferioridade daquele em relao a este (El. Theol. 28, 36), (iv) a inalterabilidade do ser gerador apesar da sua actividade produtiva (El. Theol. 27); (v) a superabundncia do princpio gerador como causa da produo dos seres (El. Theol. 27); (vi) a relao estreita entre a produo dos seres inferiores e a subdiviso da unidade e do poder do ser supremo (El. Theol. 27, 35, 64, 95); (vii) a maior u menor participao dos seres na perfeio e unidade original, dependendo da posio que ocupam na escala hierrquica (El. Theol. 36, 62, 86); (viii) a relao existente entre o lugar que um ser ocupa nessa escala e a sua dignidade e capacidade para receber as iluminaes do ser superior (El. Theol. 122, 144); (ix) a presena, nos seres superiores, de todas as propriedades dos seres inferiores e a ausncia parcelar nestes seres das particularidades dos seres superiores (El. Theol. 18, 97, 150); (x) a representao da relao de seres superiores para inferiores mediante a transmisso (metddosis) (El. Theol. 18), e de seres inferiores para superiores, pela participao (mthexis, metch, rnetousIa) e converso (eistroh) (El. Theol. 1, 2, 3, 12, 148); (xi) a funo de ligaodos membros centrais em cada srie (El. Theol. 148).Relativamente ao Uno, eis algumas das suas marcas: (i) o mltiplo participa dele de algum modo (El Theol. 1; Theol. Plat. II); (ii) transcende a multiplicidade (El. Theol. 5; Theol. Flat. II, 1); (iii) causa do mltiplo (Theol. Plat. II, 1); (iv) nico (Theol. Flat. II, 2); (v) est para alm do ser (Theol. Plat. II, 2); (vi) no-ser (Theol. Flat. II, 2; II, 5); (vii) causa de tudo o que existe (Theol. Flat. II, 3); (viii) est acima do intelecto (Theol. Flat. 11,4; El. Theol. 20); (ix) identifica-se com o bom absoluto (Theol. Flat. II, 6; El theol. 20); (x) apesar desta identificao, est acima da ideia de bem (Theol. Flat. II, 7); (xi) est para alm do conhecimento, . e., no tem nome e desconhecido (Theol. Flat. II, 7); (xii) gera todas as ordens divinas (Theol. Flat. II, 7);(xiii) fonte da bondade que preenche o universo em s i mesmo (Theol. Flat. II, 7);(xiv) fecundo, embora sem sofrer qualquer diviso, movimento e multiplicao (Theol. Plat. II, 7); (xv) todos os seres o desejam (El. theol. 12); (xvi) o que mais lhe convm, a via negativa que caracteriza a primeira hiptese do Farmides (Theol. Flat. II, 10).So nove as ordens do sistema hierarquizado (aqui pela ordenao em que a Theologia

    42

    latnica, pode, a esta luz, ser vista como os prolegmenos a toda a teologa rigorosa. que a teologa? pergunta o autor, res-pondendo (I 3): ela consiste em ver, tal como o Uno supremo as v, as processes dos deuses nos seres e as distines dos seres segundo os deuses. E onde estudar teologia? resposta -nos conhecida: num dilogo de Plato, Parmnides, designadamente na sua segunda parte onde h todo um programa em aberto, que Proclo descobre: enquanto que a primeira hiptese dessa segunda parte se o Uno uno desenvolve uma teologia apftica (i. e. negativa), a segunda hiptese se o Uno enumera por ordem a sucesso completa dos deuses, ao concurso da qual o autor adapta ou cria nomes e noes filosficas precisas46. filosofia, com Proclo, metamorfoseia-se em mistagogia (i.

    Platonica no-las apresenta): (a) uno (Livro II); (b) hnades (III); (c) deuses inteligveis (III); (d) deuses inteligveis-inteligentes (IV); (e) deuses inteligentes (V); (f) deuses hipercdsmicos (VI); (g) deuses encsmics; (h) almas universais; (i) anjos, demnios e heris (os Livros que tratariam da stima nona ordem, encontram-se perdidos). Relativamente s henades, poder dizer-se: (i) a sua gerao unitria (i. e.correspondente ao uno) (Theol. Flat. III, 3); (ii) esto para alm de todos os seres (Theol. Flat. III, 3); (iii) os seres inferiores participam delas (Theol. Flat. III, 4); (iv) so intermedirias entre o uno e os seres (Theol. Flat. III, 3 e III, 4); (v) ordenam-se hierarquicamente (Theol. Flat. III, 5).Tal como para Porfrio e para Jmblico tambm Proclo pensa a trade ser, vida e inteligncia de uma forma descendente (El. theol. 101; Theol. Flat. 111, 6; IV, 1): o ser caracterstico dos deuses inteligveis, a vida, dos deuses inteligveis-inteligentes, e ainteligncia caracterstica dos deuses inteligentes (Theol. Plat. IV, 1 e 3). maneira de Jmblico tambm Proclo postula a existncia de dois princpios constitutivos das vrias trades (cf. PLATAO - Fil. 27b): rtn ras ( segundo uno, directamente derivado do primeiro principio) erte apeiria (poder infinito e gerador, intermedirioentre o segundo uno e o ser absoluto, e que se difunde em todos os restantes seres); enquanto prton ras corresponde non, rt apeira exprime o movimento do rds divino. Fras e apeirIa combinadas geram um misto (mikt) que participade ambas, o ser absoluto por excelncia (t), qual, juntamente com os seus constituintes, peras e apeiricI frrna a rliera e mais elevada trade dos deuses inteligveis (a produo das trades s bsequentes tambm depende deste par ao qual seagrega a trade imediatamente anterior). Por participar de ras, o ser absoluto uma unidade ( n); por participar de apeirIa contm, embora de forma indistinta, a multiplicidade, que cada vez mais se ir clarificando e distinguindo. (Sobre todos estesassuntos, cf. S. LILLA - Neoplatonism, 591 e A. C. LLOYD - The LaterNeoplatonists, 302 - 14.)

    46 Valer a pena, julgamos, particularizar este ponto. Diversamente de Amnio Sacas, nesteparticular muito mais asttlic (afinidade que Orgenes partilhou), Platino n aceitaque seja Nous o principio do sistema, mas o Uno, inflexo que, naturalmente, radica

    43

  • e. numa iniciao de carcter sagrado) e o seu texto revelado, o Parmnides, recebe o ttulo de epptica, palavra, como se disse, alusiva aos ritos dos mistrios de Eleusis. Isto mostra bem como a leitura de um texto filosfico pde passar a ser vista como um acto religioso47. o momento em que a estratgia da filosofia enquanto arte de viver atinge a sua expresso mais aguda, embora no menos paradoxal.

    Enfim, graas a Proclo, a investigao da natureza do divino e da hierarquia dos deuses tornou-se o objecto quase exclusivo da filosofia. E cbmo na Grcia a filosofia nunca foi apenas uma actividade intelectual, mas foi tambm um \estilo de vida, a vida espiritual destes filsofos tornou-se uma orao e uma liturgia contnuas. Na altura em que os imperadores cristos probem o culto dos deuses pagos, fazem encerrar os templos e mandam levar as esttuas do culto para as transformar em objectos de decorao nos seus palcios e jardins, a orao e a liturgia pags tornam-se uma orao interior e uma liturgia domstica, melhor ainda, a prpria actividade filosfica, pelo seu objecto particular, um culto que se rende aos deuses.4"

    no Parmnides. Porm, possvel traar-se uma gnese mais alargada (vd. E. R. DODDS - The Parmenides of Plato and the Origin of the Neoplatonic One, Classical Quaterly 22 (1928), 129-42). Assim, temos () a interpretao teolgico-metafsica das primeiras trs hipteses do Parrnides dada pelo neopitagrico Moderato: o Uno da primeira hiptese identificado com o Uno acima do Ser, o da segunda, com o inteligvel e com as ideias, o da terceira hiptese com a alma (vd. tambm PLOTINO - En. V, 1, 8); (ii) uma passagem de Plato (Rep. VI, 509b) que autorizava a defesa do Bem, acima do ser; (ii) Espeusipo tambm distinguira o Uno do intelecto e do ser; (iv) um fragmento de Aristteles (46, Rose), juntamente com os neopitagricos Pseudo-Brutino e Pseudo-Arquita, afirmavam a superioridade do Uno em relao ao intelecto; (V) talvez o prprio Plato tenha identificado o Uno com o Bem (vd. ARISTTELES - Met. 1091 b 13-14), lio que o neopitagrico Pseudo-Brutino seguiu. Sobre tudo isto, vd. tambm S. LILLA - Neoplatonism, 586, mas em particular H. D. SAFFREY - La thologie platonicienne de Proclus, fruit de l'exgse du `Parmnide', Revue de thologie et de philosophie 116 (1984), 1 - 12.

    47 Cf. H. D. SAFFREY - Les dbuts..., 217, 218. Pode ver-se uma apresentao da discusso que Proclo faz de toda a tradio de interpretao do Parmnides (no Comentrio Parmnides), no Prefcio ao primeiro volume da edio da Theologia platonica, Paris, 1968, LXXV - LXXXIX: expe e critica as interpretaes de Aurlio e de Porfrio, de Jmblico e do filsofo de Rodes, de Plutarco de Atenas e Siriano, esta dltima bastante afim que Proclo, pelo seu lado, desenvolver.

    n H. D. SAFFREY - Les dbuts..., 217.

    3.3. matriz eclesisticaContrastando com esta situao estava, obviamente, a tradio

    eclesistica crist. Como dissemos, Pseudo-Dionsio bebeu sobretudo na teologia alexandrina, mormente em Orgenes44, e nos Padres Capadcios, cujo nome mais destacado foi o de Gregrio de Nissa5o Ao tratarmos destes autores no podemos esquecer uma particularidade, que, afinal, explica at a razo pela qual Pseudo-Dionfsio se impressionou tanto por Proclo: em todos estes Padres encontramos a prtica consciente de um dilogo com a cultura e a filosofa dita pag, no sentido de haurir o que ela tem de melhor a fim de a submeter ao servio do pensamento do dogma51. J o mestre de Orgenes em Alexandria, Clemente, recorria a uma alegoria bblica para justificar esta atitude (Strom. I 5)52:

    Quando, porm, a Escritura diz: "No frequentes muito a estrangeira", aconselha a utilizar a instruo do mundo, mas sem fixar--se ou permanecer nela (...) A Escritura dar testemunho do que dizemos com o seguinte: Sara, a esposa de Abrao, era h muito tempo estril e, nao tendo filhos, entregou a Abrao, para que os tivesse

    n Sobre o autor, vd. Origeniana Sexta. Origne et la Bible, Lovaina, 1995; H. CROUZEL - Origne et la Philosophic, Paris, 1962. Em portugus, poder-se- consultar, R. GILOT - Do significado de Orgenes na teologia do sc. III, ou a marginalizao da teologia da marginalidade, Itinerarium 33 (1987), 281 - 310, mas, sobretudo, W. JAEGER - Cristianismo Primitivo e Paideia Grega, Lisboa, 1991,67- 91.

    5o Sobre o autor, vd. J. DANIELOU - Platonisme et thologie mystique. Essai sur la doc-trine spirituelle de S. Grgoire de Nysse, Paris, ed. rev, 1953; U. v. BALTHASAR -Prsence et ense. Essai sur la philosophie religieuse de Grgoire de Nysse, trad., Paris, 1988; W. JAEGER - Cristianismo Primitivo..., 111 sg.; alm de, naturalmente, Ma C. da C. R. M. PACHECO

    -

    .5 Greprio de Nissa. Criao e Tempo, Braga, 1983. Sobre o estado da questo bibliogrfica, vd. H. J. SIEBEN - Die Vita Moisis (II) des Gregor von Nyssaein geistlicher Wegweiser. Aufbau und Hauptthemen, Theologie und Philosophic 70 (1995), 494-525.

    51 Para uma contextualizao mais lata (anterior) no tempo, vd. o nosso Filosofia Brbara (Consideraes sobre a Patrstica), Itinerariu,n 41 (1995), 345 - 368

    52 Sobre o autor, vd. A. VAN DEN HOEK - Clement ofAlexandria and His Use of Philo in the `Stromateis', Leida, 1988; C. MONDESERT - Clement d'Alexandrie. Introduction l'tude de sa ense religieuse partir de l'criture, Paris, 1944. A traduo do excerto de J. M. da Cruz Pontes.

    4544

  • dela, sua escrava egpcia de nome Agar. A sabedoria, pois, que habita com o crente (pois Abrao foi considerado crente e justo) era ainda estril e sem filhos naquela gerao, de modo que no tinha dado nenhum filho a Abrad e julgou conveniente, com razo, que este, tendo ento ocasio de continuar-se, se unisse antes erudio do mundo (pois pelo Egipto est alegoricamente significado o mundo), e depois, voltando a ela, pela divina providncia gerasse Isaac. (...) Pode-se, portanto, depois de uma instruo prvia, chegar sabedoria suprema, da qual nasce a famlia de Israel...

    Tanto quanto nos d dado saber, foi W. Vlker quem levou mais longe o exame da rnatriz eclesistica em Pseudo-Dionsio. Devemos--lhe, por exemplo, a descoberta da correspondncia dionisaca entre a hierarquia celeste e a eclesistica como uma ideia passvel de ser encontrada em Clemente de Alexandria 5 3. Todavia, semelhante correspondncia, e como a obra deste intrprete bem mostrou, submete--se a uma estrutura muito mais basilar e essencial, mais u menos comum tradio eclesistica crist. Ela diz respeito mstica. Como no podia deixar de ser, enquanto intelectual, e depois cristo sobretudo, Gregrio de Nissa contribuiu grandemente para uma destacada corrente mstica, e mstica crist em particular 54. H algum tempo atrs L. Bouyer mostrou-nos como a tradio patrstica empregava a palavra mstica num triplo sentido: bblico, litrgic e espiritual55, Consideremos rapidamente o primeiro, sobretudo na sua especificidade crista. Fonte de mistrios, a Bblia essencialmente mstica. Traduz-se esta componente ora pela perscrutao do sentido oculto na letra matria na qual se avantajou Orgenes (184/5 - 254), como se disse o major nome da teologia alexandrina a influenciar Dionsio ora na contemplao desse sentido numa incansvel meditao. Para H. Crouzel, a chave de interpretao da obra origenista (ela que mostra

    53 Cf. W. VLKER - Kontemplation und Ekstase bei Pseudo-Dionysius Areopagita, Wiesbaden, 1958, 108-09.

    Sa Cf. T. BOHM - Die Konzeption der Mystik bei Gregor von Nyssa, Freiburger Zeitschrift fuir Philosophic und Theologie 41 (1994), 45 - 64.

    55 L. BOUVER - Mystique. Essai sur l'histoire d'un mot, Vie Spirituelle 3 (1949), 3-23.

    ter da philosophia um entendimento experimentalista56) est na complementaridade dos aspectos antitticos que derivam daquele entendimento. Resulta daqui um mtodo que permite a Orgenes apropriar-se dos vrios campos da realidade nica, essencialmente misteriosa, para alm da razo conceptual e discursiva, numa realidade que s a f pode pressentir e que a inteligncia mstica pode perceber. Assim, o conhecimento pode culminar num contacto u viso sem intermedirios, confundindo-se com o amor e a uni57. Ao servio deste programa est portanto uma tcnica exegtica escriturfstica, maximamente dividida, como a de Clemente, em sentido literal e espiritual58. Ela privilegia contudo trs sentidos, que podemos assim escalonar, em paralelo com outros aspectos do contributo do autor, mas de onde ressalta a dimenso espiritual que conjuga o esprito da Bblia com a bblia do espfrit54:

    HOMEM SENTIDO da ESCRITURA VERDADE

    GRAU de PERFEIOcorpo

    alma

    esprito

    alegrico literal=somtico

    psquico

    pneumtico

    histrica

    moral

    mstica

    cristo simples

    cristo avanado

    cristo perfeito

    Todos os Padres Gregos do sculo IV em diante adaptaram a ideia platnica da theoria como contemplao e perfeio. Recordemos que j na Repblica (VI 532c) j no Banquete (210e - 212a), ao falar

    >"Cf. L. PERRONE - 'Quaestiones et responsiones' in Ogene. Prospettive di un'analisi

    formale dell'argomentazione esegetico-teologica, Cristianesimo pella Storia 15(1994), 1 - 50.

    57 . CROUZEL - Orige et la Philosophic, 209 -11.58 Vd. H. de LUBAC - Histoire et Esprit. L'Inteligence de l'criture d'aprs Origne,

    Pars, 1950.540 esquema segue Ph. BOEHNER & . 3ILSON - Histria da Filosofia Crist, Petrlis,

    1985, 54 (notemos que esta obra inclui um pequeno captulo sobre Dionsio, 115 -25). De acordo com MONDSERT (Clment..., 156 - 59) seriam os seguintes, os sentidos que a exegese de Clemente de Alexandria permitira: 1) histrico; 2) doutrinal, dividido em: moral, religioso e teolgico; 3) proftico e/ou messinico; 4) filosfico, dividido em: csmico e psicolgico; 5) mstico. Para um fundo helenstico comum a Clemente e a Dionfsio, vd. D. CARABINE - A Dark Cloud. Hellenistic Influences on the Scrip-tural Exegesis of Clement of Alexandria and the Pseudo-Donysus, in Scriptural Interpretation in the Fathers. Ed. by Th. Finan & V. Twomey, Cambridge, 1995,61-74.

    4 7

  • da mais superior de todas as realidades, o Bem, e ao postula-linteligvel, Plato abria uma perspectiva que os Padres n podiamdeixar cair, depois de a transformarem (de intelectiva passou aespiritual): a theoria contemplativa coincide com a viso espiritual da totalidade. Ora. eis aqui. a particularidade da mstica crist, no factode a totalidade a ser desvelada dizer respeito s varas incarnaes do Logos-Cristo, revelado no Novo Testamento, realidade espiritual, mstica e no meramente intelectual. especificidade da revelao do Esprito uma graduao at ao extse luminoso, mas desde Gregriode Nissa a maior luminaria 'da teologia capadcia a influenciarDionisio que entra, como alternativa mstica da luz, uma msticada treva. , inclusivamente, na Teologia Mstica de Pseudo-Dionisio, uma passagem que radica no prprio ncleo da tese de Gregrio, ondeessa ideia desenvolvida: Moiss subindo o Sinaifi0. Na Vida de Moiss, escrita pelo presbtero de Nissa, aquele surge (...) como o modeloperfeito do santo e dp mstico, o prottipo do que Gregrio chamaa vida filosfica ou contemplativa, o homem cuja vida foi vivida numa permanente comunho com Deus, que ascendeu ao cume mais alto doseu Sinai espiritual para ver Deus na escurido da nuvem.fi1 De acordo com Gregrio de Nissa, aquela dificil ascenso passou pelos seguintes fases: 1) na luz (di phts), que o momento da purificao; 2) nanuvem (di nephles), que a entrada na contemplao dos inteligveis; 3) na obscuridade (en skt), como ltima etapa do conhecimento, apartir da qual a alma toma outra va, a do amor, servindo-se das asasdo amor. a este momento que se chama ek-stase, xtase, a sadapara fora de uma actividade meramente intelectual.

    Sabemos que todos os Padres Capadcios so herdeiros deOrgenes. Isto, no apenas na produo de um platonismo cristo (chamemos-lhe a dimenso especulativa), como tambm nos esforos msticos que se lhe reconhecem (chamemos-lhe a componente espiritual).Mas no dizer de E. von Inka, Gregrio de Nissa teria sido o primeiro

    fio A tese de Gregrio , no entanto, a cristianizao de uma leitura simbolizante de FLON - De vita Mosis (trad. franc. no vol. 22 de Les Oeuvres de Philon d'Alexandrie, Paris, 1967). Embora se tratando de uma obra de filosofia, justo indicar-se o melhor ttulo portugus sobre este autor de Alexandria, M.A. JNIOR - Argumentao Retrica em Filon de Alexandria, Lisboa, 1990. Quer sobre a gnese do tema quer sobre a sua ocorrncia j n' Os Nomes Divinos j na Teologa Mstica, vd. Y. de ANDIA - Henosis. J'Uninn Dieu chez Denys 'Aropagite, Leida, 1996.

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    pensador a perceber a oposio (finalmente irreconcilie162) entre uma dimenso dialctico-racional, que cr na inteligibilidade do Principioe nas capacidades da Razo para paulatinamente dele se aperceberem,e uma dimenso mstico-experiencial, que cr na possibilidade do estabelecimento de uma ligao ao Principio exterior Razo eimediat63. No discutiremos, aqui, esta interpretao, mas seria inevitvelno inserir-se o prprio Pseudo-Dionisio nesta corrente crist conjugadoradestas duas complexas vertentes. Sem arriscarmos muito, ela poder-se-ia determinar a partir da seguinte base (todos ela origenista)4: a Incarnao de Cristo efectiva em cada homem, pelo que deve a alma, individualmente considerada, faz-l nascer e crescer de novo. Numaascese espiritual pela orao e pela virtude o homem depara-se coma transfigurao do prprio Cristo, smbolo do mais elevadoconhecimento: a sua divindade revelada na humanidade. Os cincosentidos espirituais, semelhana dos cinco sentidos corporais, permitem

    o conhecimento, mas dessa feita o conhecimento intuitivo e inatodas realidades divinas s quais, pela f, se tinha j aderido. esteinatismo que justifica a participao em Deus, Logos, o qual foirecebido pelo homem no momento em que foi criado. O conhecimento tem assim por objecto os mistrios, quer dos seres visveis e invisveis, quer da Trindade e das suas relaes, mormente o Filho, mistrio por excelncia. Imagem do Pai e Logos, a relao inter-trinitaria d-se eexplica-se pela luz. Mas o conhecimento, que tem o seu ponto de partida na Escritura, ainda 0 encontro da liberdade divina que se oferece

    e a liberdade humana, que recebe. Conforme dissemos, a toda esta plataforma mental haveri apenas, para entrarmos na obra de Dionisio,

    fit W. JAEGER - Cristianismo Primitivo..., 121.62Cf. . von IVNKA - Plato Christs. berna1me und Umgestaltung des Platonismus

    durch die Vter, Einsiedeln, 1964179- 185.63 . von IVNKA - Plato Christianus..., 37: ... so mu uns zunchst einmal auffalen, da

    es sich beim Aufstieg zur `Idee der Ideen' um eine ganz abstrakte, mathematisch-rationale Erfassung des obersten Seins in seiner reinsten Ailgemeinheit handelt (...). Aber im Symposium wird derselbe Aufstieg zum `wahrhaft Seiendem' (...) zugleich als die Anschauung des `Schnen selbst' (...) dargestellt, eine Anschauung (...), die, den epoptika der Mysterien vergleichbar (Symp. 209) mit einem Schlag das an sich Schne enthll (...) das ewig ist, mit nichts zu vergleichen, mit keinem Begriff zu umschreiben.

    fi4 Vd. H. CROUZEL - Origen, in Encyclopaedia..., 621.

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  • que acrescentar a temtica da mstica da treva, agendada por Gregrio de Nissa conforme se lembru65.

    3. 4. filosofia perfeitaSe pensarmos agora, embora rapidamente, no modo como Pseudo-

    Donsio concebe a filosofia a filosofia perfeita, teleiotdten philosophan verificaremos, alm da plena insero histrico--eclesistica do autor, a maneira como nele desaguam, para serem recicladas, as guas destas matrizes, decerto mais complexas do queesta nossa Introduo o pode deixar transparecer. de um autor defuses que ,nos aproXimams.

    Na verdade, no seu entendimento, a philosophia d tarefa que os monges esto mais habilitados a realizar. E isto porque, neles, se renem duas caractersticas que definem a prpria filosofia tal como nesterpido percurso a acabmos de apresentar: a especulao terica e sua extenso pragmtica vivencial. Reunir theoria e praxis num s modelo scio-eclesal, o que, na poca, permitiria o gnero de vida monstica. Mas dizer isto equivale, por um lado, a visualizar-se o sucesso futurodo monaquismo, e por outro, a reconhecer-se o legado comum,mormente do primeiro e do segundo helenismos, que se recusava apraticar a philosophia independentemente de um compromisso vital,que na sociedade humana se deveria estender, atravs do indivduo,

    sociedade divina. Ora os cristos tinham ao seu dispor primeiroa realidade e depois a noo de ecciesia, de Igreja, com a qual estatranslao se realizaria.

    Os monges so porm (os) verdadeiros filsofos, na medida emque a sua conduta experimenta e consuma a relao com o divino,tarefa que os purifica, os ilumina e os realiza espiritualmente, idealque um pago como Proclo, um judeu como Filon e um cristo como Gregrio perseguiriam sempre. diferena est em que, para umcristo, a verdade reside na revelao das Escrituras enquanto para um neoplatnico de estrita observncia a revelao esgotar-se-ia nosorculos de um Homero, de um Pitgoras, de um Plato ou de Orfeu. Theosofia, theologike episteme, theologia, theia philosophia, so

    65 Para uma primeira aproximao ao tema em geral, mas tambm concedendo urn captulo ao nosso autor, vd. D. TURNER - The Darkness of God. Negativity in Christian Mys-ticism, Crnbridge, 1995.

    sinnimos, enquanto se plasmam totalmente na palavra bblica, cnonee luz (kanni ki phote) para todo esforo de indagao, de busca de sabedoria. semelhana do ltimo neoplatonismo pago, o carcter normativo da palavra escrita-revelada (revelao = cincia) no constituaimpedimento para se ter do mundo uma leitura integral.

    Tambm o monge no vive sem o mundo, apenas o impede decair na idolatria ou no naturalismo, ameaa que espreita sempre quena indagao filosfica se deixar de mirar a causa de todas as coisas. Podemos enunciar este programa de outra forma: se o ensino relativoao fundamento de tudo o que existe se encontra plasmado na cincia revelada, a realizao dessa cincia tarefa de interpretao enquanto filosofia prtica. Entendamo-nos bem: no o sujeito que d o sentidos coisas, so estas, carregadas de sentido, que se constituem como representaes, smbolos a cuja interpretao, o sujeito, sua medida (terico-vivencial), se pode aplicar com sucesso, i. e., quando o filsofo conhece e pratica a perfio.

    Como ainda haveremos de ver mais detidamente, a especificidade da contribuio sistematizante dionisaca residir, nesta conformidade,no dinamismo eclesistico hierrquico mediador. Isto far com quea filosofia perfeita provenha do alto, da sua fonte, mediatamentetransmitida por uma cadeia cujo ensinamento verdadeiro passa, nolimite, pela descnstru de toda a hierarquia: smbolos e linguagem humana mediatamente transmitidos e interpretados visam exercitar a inteligncia a pr de parte, a abandonar mesmo, linguagens e smbolos jamais redutveis origem fontal de onde provm toda a linguagemdado no se tratar da prpria linguagem. Isto explicar, em ltimaanlise, algum tom esotrico da escrita dionisaca, pois se todo 0 conhecimento visa um ser (...) todo o ser limitado 66. N se vejaaqui, por conseguinte, qualquer atitude aristocrtica ou pretensosecretista, mas um descomplexado sinal de fecunda impotncia. Defacto, s Deus poderia falar de si, sefndo a sua linguagem irredutvel

    linguagem humana. firmov e negao no podem ser, assim, osdois nicos mtodos em filosofia, tal como a prpria sabedoria nose deixar encerrar nem s na mera imanncia nem s na temticada transcendncia. Haver que superar os dois movimentos,demasiadamente humanos, por uma dinmica que aqui designaremos

    eeND 593.

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  • como afrese (aphairesis) que combine abstraco e purificao intelectual. Aplicar semelhante combinao (sempre inacabada) totalidade dos contedos da revelao crist ser, segundo Pseudo--Dionsio Areopagita, a prpria gramtica da filosofa perfeita. Em qualquer caso, a consecuo deste gesto neoplatnico de uma instaurao da razo prtica representar o momento em que o olhar das praias da Jnia atinge a sua major radcalidade. J no se divisa apenas o horizonte, divisa-se j a partir da prpria linha do horizonte. Ou, se quisermos, o prprio horizonte que se problematiza.

    4.

    O Corpus DionysiacumComo escrevemos, o Corpus Areopagiticum actualmente

    composto de quatro tratados e dez cartas. Dizemos actualmente porque, nas suas obras, o Pseudo-Dionsio alude a mais algumas, a saber: Os sensiveis e os inteligveis (vd. 397 C); os Esboos Teolgicos (vd. 1032 D); a Teologia Simblica (vd. 1033 A - B); os Hinos divinos (vd. 212 B); as Propriedades e ordens anglicas (vd. 696 B); Do justo e da Teodiceia (vd. 736 B); e A alma (vd. 696 C). Ser preciso, porm, acrescentar que nada nos garante n se tratarem, no todo u