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48 JOSÉ PEDRO SERRA selvagem; na guerra anunciada, Argos pagará com a morte a vida casta das dúplices suplicantes; no fundo, é a "mão" culpada que justamente pede justiça. É sobre esta fecunda ambiguidade' 4 , a que o coro das Argivas'' , em defesa de Afrodite, vem dar o toque final, que a tragédia á'As Suplicantes está construída. É impossível, mau grado o empenho de todas as suposições, saber com rigor como se resolveria esta ambiguidade; nesta peça, porém, parece certo que culpa e inocência se colhem no mesmo regaço. Os exemplos apontados permitem-nos concluir que, muito embora o tema do eros não seja dominante no teatro de Esquilo, ele encontra-se subjacente às grandes questões tratadas por este autor. Seria estranho, de resto, se assim não fosse. Um homem tão atento ao equilíbrio e à proporção, tão sensível à justiça e à ordem que governam a realidade, tão empenhado em mostrar os caminhos da aprendizagem pelo sofrimento, um tal homem não poderia ignorar a força de eros, nem que seja para denunciar excessos que o desfiguram ou cegueiras que o traem. No reverso, porém, desse retrato negativo, brilha intocável a resplandecente luz de eros. 34 A hipótese de uma evolução do carácter das Danaides no sentido de uma radicalização de atitude, começando numa estrita recusa dos primos e terminando na misandria, não me suscita aprovação. Em primeiro lugar, como princípio geral, entendo que interpretar a tragédia grega a partir da evolução do carácter é tender para a inadequada psicologização da tragédia. Em segundo lugar, concretamente, penso que a ambiguidade está dada de início e, por essa razão, não encontro essa nítida progressão no sentido da misandria. "Cf. vv. 1034-1051. HVMANITAS - Vol. LIV (2002) 49-62 MARIA DO CéU FIALHO Universidade de Coimbra VIVÊNCIA Ε EXPRESSÃO DE EROS EM SOFOCLES, TRAQUÍNIAS (Tradição e Novidade) As Traquínias distinguem-se, no elenco das tragédias de Sófocles que até nós chegaram, pela estrutura diversa do seu prólogo — o mais breve de entre os sete prólogos conservados, logo seguido do de Antígona. A longa intervenção monológica da protagonista, seguida de um breve diálogo, destoa do diálogo marcado por progressiva rapidez nas outras peças. Motivo da longa intervenção de Dejanira é a ansiedade pela longa ausência, sem notícias, de Héracles, agravada pelo seu gesto à partida: a entrega das tabuinhas com as suas disposições testamentárias. O teor do texto, porém, só será mencionado posteriormente ao Coro. Um outro motivo de ansiedade — o teor das profecias de Dodona — também só será explici- tado mais tarde, como argumento de exortação para a partida de Hilo em busca do pai. Toda a rhesis de Dejanira se articula, até rematar com o motivo da pre- sente ansiedade, como um percurso por uma existência em que a sua condi- ção de mulher é, desde bem cedo, marcada pela angústia e atormentada pelo medo frente a situações de ameaça que não domina e em que o seu destino se joga, na decisão ou no confronto 4e terceiros. Esta ameaça toma primeiro forma na violência do desejo amoroso com que é procurada por monstros (as múltiplas formas que o rio Aqueloo assume, vv. 6-14) e na expectativa perante a decisão paterna (vv. 15-17), depois na expectativa do desenlace da luta em que, de novo, o impulso amoroso compele agora Héracles e Aqueloo a disputarem a jovem (vv. 18-25). A beleza da donzela núbil, estímulo natural do himeros com que eros opera, converte-se, assim, em perigosa fonte de dor. Por fim, o desenlace

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48 JOSÉ PEDRO SERRA

selvagem; na guerra anunciada, Argos pagará com a morte a vida casta das dúplices suplicantes; no fundo, é a "mão" culpada que justamente pede justiça.

É sobre esta fecunda ambiguidade'4, a que o coro das Argivas'' , em defesa de Afrodite, vem dar o toque final, que a tragédia á'As Suplicantes está construída. É impossível, mau grado o empenho de todas as suposições, saber com rigor como se resolveria esta ambiguidade; nesta peça, porém, parece certo que culpa e inocência se colhem no mesmo regaço.

Os exemplos apontados permitem-nos concluir que, muito embora o tema do eros não seja dominante no teatro de Esquilo, ele encontra-se subjacente às grandes questões tratadas por este autor. Seria estranho, de resto, se assim não fosse. Um homem tão atento ao equilíbrio e à proporção, tão sensível à justiça e à ordem que governam a realidade, tão empenhado em mostrar os caminhos da aprendizagem pelo sofrimento, um tal homem não poderia ignorar a força de eros, nem que seja para denunciar excessos que o desfiguram ou cegueiras que o traem. No reverso, porém, desse retrato negativo, brilha intocável a resplandecente luz de eros.

34 A hipótese de uma evolução do carácter das Danaides no sentido de uma radicalização de atitude, começando numa estrita recusa dos primos e terminando na misandria, não me suscita aprovação. Em primeiro lugar, como princípio geral, entendo que interpretar a tragédia grega a partir da evolução do carácter é tender para a inadequada psicologização da tragédia. Em segundo lugar, concretamente, penso que a ambiguidade está dada de início e, por essa razão, não encontro essa nítida progressão no sentido da misandria.

"Cf. vv. 1034-1051.

HVMANITAS - Vol. LIV (2002) 49-62

MARIA DO CéU FIALHO

Universidade de Coimbra

VIVÊNCIA Ε EXPRESSÃO DE EROS EM SOFOCLES, TRAQUÍNIAS

(Tradição e Novidade)

As Traquínias distinguem-se, no elenco das tragédias de Sófocles que até nós chegaram, pela estrutura diversa do seu prólogo — o mais breve de entre os sete prólogos conservados, logo seguido do de Antígona. A longa intervenção monológica da protagonista, seguida de um breve diálogo, destoa do diálogo marcado por progressiva rapidez nas outras peças.

Motivo da longa intervenção de Dejanira é a ansiedade pela longa ausência, sem notícias, de Héracles, agravada pelo seu gesto à partida: a entrega das tabuinhas com as suas disposições testamentárias. O teor do texto, porém, só será mencionado posteriormente ao Coro. Um outro motivo de ansiedade — o teor das profecias de Dodona — também só será explici­tado mais tarde, como argumento de exortação para a partida de Hilo em busca do pai.

Toda a rhesis de Dejanira se articula, até rematar com o motivo da pre­sente ansiedade, como um percurso por uma existência em que a sua condi­ção de mulher é, desde bem cedo, marcada pela angústia e atormentada pelo medo frente a situações de ameaça que não domina e em que o seu destino se joga, na decisão ou no confronto 4e terceiros. Esta ameaça toma primeiro forma na violência do desejo amoroso com que é procurada por monstros (as múltiplas formas que o rio Aqueloo assume, vv. 6-14) e na expectativa perante a decisão paterna (vv. 15-17), depois na expectativa do desenlace da luta em que, de novo, o impulso amoroso compele agora Héracles e Aqueloo a disputarem a jovem (vv. 18-25).

A beleza da donzela núbil, estímulo natural do himeros com que eros opera, converte-se, assim, em perigosa fonte de dor. Por fim, o desenlace

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propício inaugura uma outraiase de ansiedade: a da companheira solitária de uma figura de destino excepcional (vv. 27-35).

Dois aspectos ressaltam nesta visão panorâmica da existência de Deja-nira: a experiência negativa dos efeitos da força de eros e o estatuto de dependência da figura feminina, primeiro da decisão paterna, depois do des­fecho da luta e por fim do destino de um Héracles sempre ausente e con­frontado com perigos, pela excepcionalidade do seu destino .

A escolha de um Coro feminino, constituído por mulheres de Tráquis — que deu o nome à peça —, permitiu a Sófocles perspectivar a vivência da orquestra em relação à situação da protagonista como compreensiva afinidade e simpatia, de que o párodo faz eco, nos dois primeiros momentos que o constituem2: o da prece ansiosa à omnividência de Hélios para iluminar o paradeiro de Héracles (primeira estrofe) e o da percepção da situação de Dejanira (primeira antístrofe), sublinhando o contraste entre as lutas de outrora pela sua posse e a solidão ansiosa do presente, referenciada às eóvoâs άνανδρώτοισι (νν.109-Π0) e marcada por pothos, termo ambíguo de expressão de saudade e de desejo, que no contexto vale essencialmente na primeira das acepções (v.107).

O terceiro dos momentos, que compreende o segundo par de estrofes e o epodo, constitui uma exortação à esperança, a partir da constatação de que sempre Héracles se salva do perigo e de que, na corrente alternada de dor e de prazer com que a tradição grega percebe a vida humana — o que Píndaro tão concisa e poeticamente formulouJ —, forçoso é que a própria dor conheça um fim.

A esperança (éãTUS), no contexto da exortação lírica de Traquinias,

revela uma dupla dimensão de ironia trágica: o pressuposto de que parte o Coro, de que à dor presente se seguirá fatalmente um tempo de prosperidade, pela lei da alternância cíclica, falha no caso de Dejanira . Esperança é, pois, sinónimo de cegueira, a mesma cegueira que impedirá Dejanira e Héracles de entenderem, na alternativa do oráculo, a coincidência de opostos — o fim dos

1 Sobre os aspectos do mito colhidos na tradição poética grega e laborados na dramatização trágica por Sófocles, veja-se H. Flashar, Sophokles. Dichter im demokratischen Athen, cap. VI, Munchen, Beck Verlag, 2000.

2 Sobre as estratégias de configuração dos coros sofoclianos, veja-se R. W. B. Burton, The Chorus in Sophocles Tragedies, Oxford Univ. Press, 1980.

2 O. 2. 31-34. 4 Veja-se a nota 12 à tradução da peça em M. C. Fialho, Sófocles. As

Traquinias, introd., versão do grego e notas, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1989 .̂

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trabalhos de Héracles e o fim da sua vida são um só — , a mesma cegueira que não deixará Dejanira apreender o verdadeiro sentido das palavras de Nessos.

Por outro lado, saber o amor de Héracles perdido e perceber a sua pró­pria situação de desvantagem em relação ao novo objecto amoroso suscitará em Dejanira aquela esperança vã, própria da cegueira amorosa, de recuperar, por meios excepcionais, a atenção do amado.

O espectador, apto a perceber que tem diante de si a dramatização dos últimos momentos da vida de Héracles, pode apreender, na ironia trágica das últimas palavras do Coro, os primeiros indícios de associação entre o trágico da cegueira cognitiva e dos efeitos da força devastadora de eros.

A noção de que a estrutura díptica de Ajax, Antígona e Traquinias é sinal de incipiência dramatúrgica encontra-se, desde há muito, ultrapassada na investigação sofociiana, para dar lugar, nos nossos dias, à consciência de que tal estrutura representa uma técnica de composição intencionalmente utilizada, corrrespondente a uma fase da presença do autor e utilizada com objectivos definidos6. Ora o efeito expressivo do díptico de Traquinias con­siste, exactamente, em realçar a distância entre o universo de Dejanira e o de Héracles, que nunca se encontram em cena7. Héracles constitui não só o objecto da preocupação constante de Dejanira, patente nas suas palavras, como o próprio sentido e motor da sua acção — recuperá-lo, a partir da expe­riência de privação e de segura desvantagem frente à vantagem que a natu­reza confere a outra mulher.

Em contrapartida, Dejanira está ausente do espírito de Héracles, cen­trado na sua própria dor e no seu destino. As únicas palavras que sobre ela profere são de profundo rancor pelo desastre provocado, e o erro fatal de Dejanira, convertido em tema do relato de Hilo, único fio de ligação entre as duas figuras, proporcionará o ensejo para que Héracles reconheça, por fim, ao

" Poderá o oráculo, sob a forma de falsa alternativa, pouco ou nada aduzir ao desenrolar da acção na peça, conforme observa E. Schwinge, Die Stellung der Trachinierinnen im Werk des Sophokles, Gõttingen, Vandenhoeck und Rupreht, 1962, p. 102, mas a sua percepção, como uma ilusória disjunção que mais tarde, no momento da queda, virá a revelar-se como uma equivalência, contribui para esboçar com clareza a cegueira trágica das figuras.

6 O estudo de T. A. Szlézak, "Zweiteilige Dramenstruktur bei Sophokles und Euripides", Poética, 14, 1982, 1-23, representa um importante marco na investigação sofociiana ao defender, com unia sólida fundamentação, que a estrutura díptica é um recurso de composição consciente e com objectivos dramáticos muito concretos.

7 Ε todavia os destinos de Dejanira e Héracles estão profundamente ligados, ainda que na incomunicabilidade. Vide ~G. Gellie, Sophocles. A Reading, Melbourne Univ. Press, 1972, p. 56.

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ouvir nomear Nessos, de que modo se articulam as predições de Zeus e o oráculo de Dodona (vv. 143-144 e 1157-1163), assinalando para este memento a sua morte, sob a aparente forma de alternativa — processo de reconhecimento da situação do herói e do seu erro de percepção tão do gosto de Sófocles.

Ao canto do Coro e às palavras de angústia reiteradas por Dejanira, agora encorajada a partilhar com as Traquínias o conteúdo das tabuinhas deixadas por Héracles, respondem os factos, projectando a heroína numa fugaz ilusão de que as suas aflições conhecem um termo, como se o raciocí­nio do Coro no párodo se confirmasse.

É o regresso triunfal de Héracles vitorioso que se anuncia, em todo o esplendor, e que faz associar, na euforia do momento, o péan exaltado do Coro ao júbilo da protagonista .

O cortejo de cativas põe Dejanira frente a uma íole cuja identidade des­conhece. O silêncio impenetrável da jovem prisioneira de guerra, interrogada pela rainha, é inspirado — embora a sua utilização tenha fins totalmente diversos — na cena da chegada de Cassandra e no seu silêncio perante Clitemnestra, frente ao palácio de Agamémnon. O destino de íole, fechada no desespero da sua condição, no sofrimento contido do seu cativeiro e na nobreza do seu porte, provoca um particular sentimento de compaixão em Dejanira.

A chegada do Mensageiro, a desmascarar a piedosa mentira de Liças para denunciar a paixão de Héracles, fará substituir esse primeiro sentimento de comiseração de Dejanira pela súbita percepção da beleza evidente do novo objecto do amor do herói :

κάρτα λαμπρά και κατ' όμμα και φύσιν.

Essa jovem de olhar e porte resplandecente.

8 Este é um recurso dramático muito do gosto de Sófocles: criar a ilusão de uma prece atendida ou de um anseio satisfeito poucos momentos antes do reconhecimento da dureza dos factos. À prece a Apolo em Rei Édipo, feita por Jocasta, parece responder o deus com a vinda do Mensageiro de Corinto, que em boa verdade fará, definitivamente, ruir a existência de Jocasta. Análogo recurso virá a ser utilizado em Electra, parecendo.a vinda do Pedagogo, com o seu falso relato, constituir uma resposta favorável dos deuses às preces de Clitemnestra.

9 V. 379. Gellie, op. cit. p. 62, sublinha o efeito de isolamento de Dejanira, realçado pela querela entre os dois servos.

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Esta mudança de percepção é sublinhada pela confissão de Dejanira10:

τί χρή νοείν, γυναίκες; ώ? εγώ λόγοι?

τοις νυν παροΰσιν έκπεπληγμένη κυρώ.

Que hei-de fazer, mulheres, pois que me sinto aterrada por estas

palavras?

São palavras que traem o desconcerto do desespero amoroso e a dolo­rosa consciência da existência de uma rival com absoluta vantagem.

O efeito da violência do desejo erótico que domina Héracles é expresso pelo Mensageiro como destruição pelo fogo (έντεθέρμανται πόθωι, 368),

o que insinua já o efeito do veneno de Nessos. Alguns versos depois confirma-se a percepção deste efeito arrasador de pothos, como agente de destruição da Ecália":

...ήκουσεν ώ? ταύτη? πόθωι

πόλι? δαμείη πάσα, κούχ ή Λυδία

πέρσειεν αυτήν, άλλ'ό τήσδ'ερω? φανεί?.

...e te ouviu contar como toda a cidade foi subjugada devido à paixão de Héracles [por íole], e que não foi essa mulher da Lídia quem a devastou, mas o amor que pela jovem surgiu.

A forma passiva utilizada para assinalar o processo de destruição da cidade — δαμείη — pertence a δάμνημι, 'subjugar', e não pode deixar de sugerir a projecção sobre a conquista da cidade da posse da παρθένο?

άδμή?12 ou άδμητο?13. Pothos é, para o Mensageiro, o impulso desenca­deado pelo verdadeiro responsável pela destruição — eros14.

10 Vv. 385-386. " Vv. 431-433. 12 Od.6. ]Q9etpassim. 13 Esquilo, Suppl. 149.

O próprio desejo — pothos — como forma de manifestação de eros, é já, desde Arquíloco, sentido como força que subjuga: damatai (196 West). Cf. Anacreonte, frg. 357 P.

Sobre a metáfora do jugo amoroso como expressão da 'domesticação', veja-se C. Calame, The Poetics of Eros in Ancient Greece, Princeton University Press, 1999 (trad. ingl. do orig. de \992),passim.

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Héracles, o herói vencedor de monstros e superador de perigos extre­mos, é apresentado não como responsável, mas como vítima de uma força que o impele e arrasta à destruição: força que assume, no modo como o Mensageiro a verbaliza, a dimensão de dinâmica universal, incontível e arra­sadora no seu efeito. O paradoxo do vencedor vencido, similar ao do caçador caçado, é formulado por Liças no momento em que fala já abertamente a Dejanira, no final do episódio I15:

ώ? ταλλ'έκεΐνο? πάντ'άριστεύων χεροΐν

του τήσδ'ερωτοί eis άπανθ'ήσσων έφυ.

É que ο homem que tudo vence pela força do seu braço, pelo amor desta jovem se deixou de todo vencer.

e sublinhado no jogo πάντα/απαντα.

Que a percepção da força e dos efeitos de eros intimida um mortal

comum, como Liças, tradu-lo a qualificação de 'ίμεροι16:

Ταύτη? ό δεινό? 'ίμερο? ποθ'Ήρακλή

διήλθε

dia.

Uma terrível paixão por essa jovem se apoderou de Héracles um

bem como o cauteloso aviso :

κείνου τε και σήν εξ ίσου κοινήν χάριν

κκί στέργε την γυναίκα και βουλου λόγου?

οϋ? είπα? ε? τήνδ' έμπέδω? είρηκεναι.

Ε agora que sabes toda a história, para bem dele e de ti, acolhe esta mulher e dispõe-te a manter presentes as reflexões que sobre ela fizeste.

Ora, as palavras de Dejanira, proferidas entre o momento em que per­cebe ter perdido Héracles, sem qualquer hipótese de superar a beleza e a juventude daquela que é novo objecto e vítima de um desejo amoroso cuja

15 Vv. 488-489. 16 Vv. 476-477. 17 Vv. 485-487.

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dimensão se avalia no arrrasar de cidades, e o momento em que Liças é levado a revelar a verdade, constituem um discurso cuidadosamente arti­culado em função de um objectivo bem definido — persuadir Liças.

É como se, de súbito, a esta mulher ansiosa, insegura e passiva, a sau­dade de Héracles — pothos — convertida agora em ameaça de privação der­radeira, também eros conferisse o poder de decisão e de energia que a toma capaz de uma eficaz competência retórica na articulação do seu discurso18.

O desespero de há pouco dá lugar, na rhesis de 436-46919, à afirmação da compreensão pela labilidade na natureza humana e a uma aparente racio­nalidade de quem reconhece, numa visão já com o distanciamento bastante para assegurar lucidez, a dimensão universal da esfera de acção de Eros20:

Ούτω? γαρ άρχει και θεών οπω? θέλει,

Κάμοϋ γε-

Ε que ele governa os deuses a seu belprazer — e a mim também.

Esse tom de compreensão pelos mecanismos de eficácia de Eros é apreensível no reconhecimento da insensatez (οΰ καλώ? φρονεί) de quem

ousa fazer frente a um poder universal: constatação que se inscreve na perspectiva da tradição vinda da época arcaica e a que o Coro do estásimo III de Antígona dá voz, na invocação de Έρω? άνίκατε- μάχαν21 ou da

άμαχο? ... θεό? Άφροδίτα2 2, depois do confronto entre Hémon e Creonte, como forma velada de chamar a atenção de Creonte para o risco de fazer frente ao amor do filho, como forma de contrariar uma entidade de poder e eficácia universais.

Por coerência lógica, deduz Dejanira que ela mesma, tanto quanto qual­quer outro homem ou mulher, estão sujeitos ao império de tal força e, assim sendo, não há culpa nem vergonha que deva cobrir qualquer dos atingidos. É com compreensão que devem ser olhados.

18 A relação entre pothos, himeros e charis, na fenomenologia da experiência de eros, eneontra-se bem analisada na obra de Calame acima citada (n. 14).

19 Em outro lugar ("Eros e fmitude em As Traquínias de Sófocles", Humanitas, 27-28, 1975-1976, 143 sqq.) apresentei já uma perspectiva das várias interpretações deste discurso, até então, desde a de Kirkwood, que o entende como expressão da inconsistência interna desta figura, até Reinhardt, que aproxima o discurso da Trugrede de Ájax, considerando que Dejanira se dispõe, desde o primeiro momento, a lutar por Héracles.

20 Vv.443-444. 2,Ant. 780. 22 Ant. 799-800.

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Assegurada a benevolência quanto à cativa, Dejanira assegura que Liças a não consegue enganar e, sendo assim, a não deve tentar enganar, pois o seu gesto é vão e dele, sim, podem advir os dissabores que temia quando tentou o engano.

A parte final da rhesis retoma o argumento de que o processo de apai-xonamento é conforme à natureza, com o objectivo de o banalizar em Héracles a partir do que pretende mostrar como perspectiva sua — a atitude distanciada e compreensiva, a partir da qual vê também a cativa íole2"':

ήδε τ'ούδ' αν eí κάρτ' έντακείη τώι φιλεΐν ,

Esta não as irá também receber [uma palavra rude ou uma censura] se porventura se consumir de amor

A compaixão por íole e pelo destino suscitado pela sua beleza parecem deixar transparecer a projecção sobre íole do próprio destino e dos medos da juventude de Dejanira.

As referências e designações para as manifestações de Eros, neste dis­curso, situam-se na esteira dos vários modos de expressão e vivência reco­nhecidos como tradicionais na poesia grega: a luta24 — mais propriamente o pugilato — de quem resiste ao Amor, a loucura, coberta pelo termo nosos,

aplicado a Héracles, e adivinhada na prótase κάρτα μαίνομαι da expressão condicional enunciada por Dejanira em 44S-44625, o processo de destruição

23 Vv. 462-463. 24 Eros, vivido como uma batalha, vindo já da poesia de Arquíloco, assume a

forma específica de pugilato em Anacreonte, frg. 396 P. Note-se, em Arquíloco, uma forma ainda mais vigorosa de exprimir a brutalidade da manifestação do desejo ipothos) como tortura física, como é o caso do frg. 193 West.

Sobre este fragmento veja-se o comentário de E. Suárez de la Torre, Yambógrafos Griegos, introd. trad. y notas, Madrid, Ed. Gredos, 2002, pp. 170-171.

A associação extrema de eros (kimeros) e morte está patente, por exemplo, em Safo, 95 LP.

25 Numerosos são os exemplos que se poderiam apontar, desde Arquíloco, para o amor vivido como loucura, em várias modulações: Arquíloco, frg. 191 West (vide E. Suárez de la Torre, op. cit. p. 169, n. 103), descreve um efeito da paixão sobre os sentidos que, não deixando de lembrar as numerosas descrições homéricas da noite da morte ou da ilusão que envolve os olhos — e tolda a percepção — dos guerreiros na batalha, nos evoca a posterior descrição da loucura de Ajax, na peça homónima, provocada por Atena.

Veja-se ainda, a título de exemplo, a expressão do amor e da sua acção como loucura em Safo, frg. 1 LP, Ibico, frg. 286 M. Davies, 10-11, ou Anacreonte, frgs. 359 e 398 P.

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pelo aquecimento (veja-se eí κάρτ'έντακείη τώι φιλεΐν, 462-463), que

sugere o fogo e que retoma, para o espectador, a expressão έντεθέρμανται

πόθωι, aplicada a Héracles pelo Mensageiro em 368: expressão que se deve entender enquadrada na esteira da tradição da lírica arcaica, muito próxima da confissão do poema de Safo, καιομέναν πόθωι2 6.

Num nível mais profundo, esta linguagem acorda a sugestão do pro­cesso que conduzirá ao fim de Héracles, envolto na corrosão de um filtro que a cegueira de Dejanira havia entendido como filtro amoroso.

O estásimo í atesta que o entendimento do Coro quanto às palavras de Dejanira é similar ao de Liças27:

μέγα τι σθένος ά Κύπρίϊ' εκφέρεται

νίκα9 aei.

Grande e eterno é o poder da vitória que a Cípris acompanha.

Ao enumerar, no contexto lírico, Zeus, Hades e Poséidon, alvos da απάτη da deusa, o Coro exprime o reconhecimento da supremacia da

eficácia de Cípris, no impulso à união sexual (εΰλεκτρο? Κυπρί?, 515),

sobre o governo do universo, distribuído pelos três deuses: o mesmo impulso que, já referido por Dejanira como fonte das tribulações da sua juventude, envolveu em luta a força monstruosa dos pretendentes ao seu leito. Como nota Flashar2 , esta ode, cujo tema centra! é, como no estásimo III de Antígona, o poder de Eros, apresenta nítidos traços do estilo do epinícío, nomeadamente de Píndaro.

Do destino de Dejanira, vítima da particular violência de um impulso que domina o universo — o que a descrição da luta corpo a corpo, em que se mistura o homem e a besta, salienta expressivamente — se desprende a indi­recta identificação com o da jovem íole, separada, como aquela, à força, da sua casa de origem.

É, no entanto, uma outra linguagem a que Dejanira, agora saída do palácio, utiliza para as suas confidências às mulheres que a rodeiam. A sua permanência no interior do palácio foi dedicada a preparar a oferta do peplo, embebido no que pensa ser um filtro amoroso legado pelo centauro mori-

26 Frg.48 L.P. Em Álcman aparece-nos já a associação entre o amor e o fogo, mas de forma positiva, na suavidade de um amor que acalenta: frg. 58a M. Davies.

Vv. 497-498. Op. cit. p.89.

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bundo. As suas palavras estâp trespassadas pela amargura de quem é sur­

preendida por uma dura realidade: a infidelidade e o abandono de Héracles29:

...'Ηρακλή?,

ό πιστό? ήμιν κάγαθο? καλούμενο?.

Héracles, ο homem fiel, conhecido pela sua nobreza.

Ε há ainda a consciência insuportável de que o peso dos anos — os mesmos anos que viveu como companheira de Héracles — constitui agora insuperável desvantagem com que a natureza sobrecarrega a que vê a frescura da beleza que desabrocha-*", como estímulo de 'ίμερο?, na sua nova rival3'.

De comum com a rhesis anterior há, sobretudo, o reconhecimento da nosos

de Héracles e a incapacidade de sentir rancor perante os múltiplos acessos dessa doença.

Do desespero sem saída nasce a ousadia de uma esperança depositada no que julga ser um filtro amoroso legado por outro monstro — Nessos —, quando o desejo incontrolado por Dejanira foi causa da sua própria morte, por intervenção de HéraclesJ'.

Esta alteração de disposição e de perspectivas, pelo menos aparente, entre dois momentos dramáticos tão próximos, marcados pela entrada e saída do palácio, enquanto o Coro se manifesta, em consonância com o sentido que apreende no primeiro discurso, aproxima a peça de Ájax, onde uma questão

29 Vv. 540-541. Ε esse mesmo peso dos anos, com as marcas físicas que deixa, que já

Arquíloco aponta às filhas de Licambas, com a contundência do seu verbo poético, como factor de incapacidade de continuarem a suscitar o desejo erótio.

31 Este aspecto é realçado com toda a acuidade por H. Flashar, op. cit. p. 89: nos já longos anos de casamento com Héracles, marcados por numerosas ligações do herói a outras mulheres, esta é uma situação nova e ameaçadora, já que o novo amor do filho de Zeus é trazido para debaixo do mesmo tecto e a sua juventude, por contraste com a marca deixada pelos anos em Dejanira, torna a situação de ambas desespera-doramente desigual. Só uma tal situação, após um casamento de tanto tempo, torna o filtro num último recurso.

O motivo, nota Flashar, tal como o da luta entre os pretendentes (Aqueloo e Héracles), é próprio do conto popular e figura na Eoiai pseudo-hesiódicas, no entanto, "aus dcm Mârchenmotiv ist eine menschliche Grundsituation erwachsen".

32 Antifonte deixa-nos perceber que as consequências funestas de filtros supostamente amorosos, mal aplicados ou de composição tóxica, terão levado, com frequência, mulheres aos tribunais da Hélade do séc. V a. C.

Sobre esta matéria e o eco de tal realidade na peça de Sófocles veja-se C. A. Faraone, Ancient Greek Love Magic, Harvard University Press, 1999, pp.110-119.

VIVÊNCIA Ε EXPRESSÃO DE EROS EM SÓFOCLES, TRAOUINIAS 59

comparável se pode levantar a partir da percepção de uma primeira rhesis,

para quem a ouve, em contraste com o sentido óbvio de uma segunda. No caso de Traqiãnias, corresponderá o sentido da intervenção dos vv.

436-469 à aceitação complacente e conformada, por Dejanira, do seguinte princípio: estando os homens, por igual, submetidos à contingência do Amor, há que aceitá-la, na sua universalidade e no modo como afecta cada indiví­duo?...Liças e o Coro parecem entender assim as palavras ouvidas. Qual o nexo, então, que justificaria uma mudança de sensibilidade e de atitude em tão curto espaço de tempo — o da breve permanência no interior?

Poderá o discurso corresponder à tentativa frustrada de Dejanira de ade­rir a uma formulação de princípios que se não coadunam com o seu sobres­salto, nem com a ferida provocada pela percepção da juventude e da beleza da sua rival, quando conhece o verdadeiro estatuto de íole — formulação cujo objectivo seria o de se persuadir a si mesma, por um lado, e de persuadir Liças?...O episódio II traria, então, à cena, com a saída do palácio, uma pro­tagonista que não logrou iludir o seu próprio desespero.

Esperar-se-ia, contudo, do tom confessional da segunda rhesis, que o malogro desse esforço constituísse a reflexão inicial do discurso. Este, no entanto, começa abruptamente, como acto de comunicação iniciado na etapa final de execução de um plano — um plano em torno de uma única espe­rança: o filtro.

A confissão aberta do turbilhão de sentimentos e mágoas explana-se para apontar para essa esperança e para, por fim, justificar o uso de meios que, ao mesmo tempo, Dejanira repudia como prática criminosa. A protago­nista tem pudor em ser identificada com o vulgar tipo de mulheres que, como se sabe, recorriam à magia amorosa e que, como se sabe, eram levadas fre­quentemente a tribunal pelas consequências fatais dos seus filtros ou da sua má aplicação.

Que a articulação retórica da primeira rhesis se destina a arrancar a ver­dade a Liças, não restam dúvidas. Mas uma análise mais atenta descobre na rhesis indícios de um outro nível de significação, tal como na Trugrede de Ájax., só apreensível pelo emissor e que conferem ao discurso um carácter de monólogo críptico.

Que é uma insensatez resistir ao Amor, expressa-o Dejanira pela metá­fora do pugilato33 e justifica-o pelo domínio daquele sobre os deuses — mas sobre ela também (vv. 443-444). A incapacidade de se encolerizar contra um Héracles, vítima constante da nosos amorosa, ou contra íole, é reiterada quanto ao primeiro e não desmentida quanto à segunda, no episódio II. Que

1 Cf. Anacreonte, frg. 396 Ρ: προ? Έρωτα πυκταλίζω.

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íole não é causadora voluntária de motivo de vergonha ou de mal é um facto, se atendermos a que metaitia, 'causadora' (v. 447), pode ter a acepção de 'cúmplice'. A protagonista percebe, na relativa analogia de destinos entre as duas mulheres, que íole é, sobretudo, vítima, pese embora ser fonte de sofri­mentos para ela.

Os dois níveis de significação do discurso provêm da amargura de uma Dejanira solitária que impregna estas palavras de uma ironia que só ela entende, enquanto as organiza, no seu sentido apreensível para os outros, em função do fim a obter.

As últimas palavras, ditas ainda no exterior a Liças, no episódio I, prolongam essa ironia amargaJ :

â τ'άντι δώρων δώρα χρή προσαρμόσαι,

και ταϋτ'άγηι?.

É necessário retribuir também com ofertas às ofertas recebidas.

Elas atestam, além disso, o propósito de retribuir adequadamente ao envio de tais cativas: que outra dádiva seria mais adequada que um sortilégio amoroso?!

Assim, ao reconhecer a eficácia universal do poder de Eros, Dejanira diz a verdade e é sincera na afirmação de que é insensato contra aquela lutar. Mas o sentido de primeira instância que se deixa perceber, para além do objectivo conseguido de persuasão de Liças, preserva da apreensão o sentido segundo, aquele por que Dejanira exprime o modo como essa tal força uni­versal afecta a sua existência e o seu mundo.

Se é insensato fazer frente ao Amor, como pode Dejanira impedir a acção deste sobre si mesma? Como pode impedir-se de, pelo seu impulso, tentar, por meios excepcionais, anular a actual paixão de Heracles?... Presa nesta aporia da existência, Dejanira vive as implicações individuais do uni­versal numa experiência sua, agora próxima da de limite, e que em breve assumirá a natureza de experiência trágica, quando a notícia da destruição de Heracles pelo peplos embebido no veneno do filtro de Nessos lhe revelar, simultaneamente, a perda irrecuperável do objecto do seu pothos e a cegueira, que eros propicia, de entender nas palavras de Nessos o sentido que a sua referência a Heracles lhe pedia que esperasse entender. Torna-se óbvio que o seu gesto de autodestruição deva ocorrer no tálamo, centro da sua união de

VIVÊNCIA Ε EXPRESSÃO DE EROS EM SOFOCLES, TRAOU1N1AS 61

outrora com um Heracles agora perdido, contraponto, no presente, da εύλ6κτροΐ...έν μέσωι Κύπρίϊ que o Coro celebra no estásímo I (v.5!5).

Heracles, o vencedor vencido, é destruído pela cegueira de Dejanira, que assim o leva ao reconhecimento do verdadeiro sentido dos oráculos de Zeus. Através da acção de Eros, ou de Cípris, autora destes factos, como entoa o Coro no estásimo ΙΪΙ (v. 861), se cumpre o que Zeus prevê e o homem entende parcelarmente.

Nessos e o engano tecido para Dejanira nos últimos momentos de vida do centauro tomado pelo desejo não levarão apenas Heracles à morte, mas contribuirão para que o filho de Zeus reconheça como se concatena, num todo articulado por um sentido profundo, que é o do conhecimento e desígnio primordiais da divindade, o que ao homem aparece como fragmentário, particular, disjuntivo'' .

Consistindo o cerne do trágico em Sófocles na experiência-Iimite da fmitude humana, vivida como cegueira do indivíduo que, nesse momento-limite, a reconhece, reconhecendo a sua condição, verifíca-se, pois, que em Traqiúnias essa cegueira tem um cariz específico, ao concatenar-se, no destino humano, individual, com a especificidade da vivência do poder de eros, e das suas consequências devastadoras nesse mesmo destino ameaçado, embora esse poder esteja expresso, como se viu, através de todos os recursos poéticos da tradição como força universal — essa mesma força para a qual o Coro de Antigona chama a atenção no estásimo III36.

A força de eros, impelindo Dejanira ou Heracles a agir, leva-os a projectar-se nessa mesma acção com todas as marcas de fmitude que, à beira da catástrofe, se fará reconhecer como cegueira específica de cada um.

Em parte, a ironia trágica consiste, na peça, no facto de duas pessoas, homem e mulher, a quem os itinerários do desejo amoroso juntaram e separaram, terminarem, na incomunicabilidade mútua, envolvidos num destino que os associa — não já como rede de eros ou de Afrodite^7, mas

*Vv. 494-495.

35 Tomo como pressuposto a tese defendida por H. Diller em "Gõttliches und menschliches Wissen bei Sophokies" e "Menschendarstelliing und Handlungstuhrung bei Sophokies", trabalhos recolhidos em Kleine Shriften zar antiken Literatur, Miinchen, Beck Verlag, 1971, que constitui um correlato, em meu entender, da tese reinhardtiana do trágico de opostos verdade-aparência. Ambas as teses continuam a ser um marco decisivo para a compreensão da tragédia de Sófocles.

3 A Lesky, Vom Eros der Hellenen, Gõttingen, Vandenhoek und Ruprecht, 1976, pp. 60 sqq. hama a atenção para a carga individual da manifestação de eros nas Traquínias.

37 Cf. íbico frg. 287 M. Davies, 3-4, Sobre o motivo da rede de Afrodite, veja-se o artigo de G. A. Privitera, "La rete

di Afrodita'', QUCC, 4, 1967, 7-58.

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como teia mortífera do centauro (v. 831). Cípris — aponta o Coro no final do

estásimo III — é a autora manifesta destes factos.

Sófocles apresenta o fim de Héracles, previsto na pira do Eia, sem

apoteose38, como se a constatação do Mensageiro, de que o desejo o abrasa'9,

se materializasse no fogo que o consumirá totalmente, após o espectáculo da

mania ou da nosos que fisicamente o agitam,

É óbvio que o espectador conhece a apoteose de Héracles, elevado da pira do Eta até ao Olimpo, cena representada, inclusivamente, no quotidiano grego através da arte figurativa em objectos de uso comum, como é o caso da pelike em exposição nas Antíkensammlungen de Munique. Mas o que ressalta e importa, na peça, como de resto no Furens de Eurípides, é o destino humano do herói em toda a sua dimensão de fraqueza e sofrimento.

Vide R. Habel, "Schiller und die Tradition des Heraklesmythos", Terror und Spiel, Miinchen, Fink Verlag, 1971, pp. 265-294.

R. L. Fowler, "Three Places of the Trachiniae", Sophocles Revisited. Essays presented to Sir Hugh Lloyd-Jones, ed. J. Griffín, Oxford University Press, 1999, pp.167-174, defende, no entanto, que é a atmosfera de incerteza quanto ao desfecho da existência de Héracles que confere vigor e densidade ao final da peça: a presença reconhecida de Zeus nos acontecimentos referir-se-á não apenas aos oráculos, mas também à consciência de que Zeus opera ainda nos acontecimentos. Essa é, segundo o autor do artigo, uma forma encontrada por Sófocles para, sem trazer o episódio do Eta e da apoteose explicitamente para a peça, deixar sugerido o mistério do termo humano de uma existência excepcional como ponte de passagem para a heroização.

39 V. 368. Vide Kamerbeek, comm. ad loc.

HVMANITAS - Vol. LIV (2002) 63-100

EMíLIO S U á R E Z DE LA TORRE

Universidad de Valladolid

EN TORNO AL BANQUETE DE PLATON

INTRODUCCION

El objeto de este artículo es, por una parte, analizar el Banquete de

Platón como ilustración de la forma en que el filósofo se sirve de un género

literário que, en lo formal, permitia la eficaz combinación de la confrontación

dialéctica dramatizada con la argumentación discursiva, con el fin (presente

en otros diálogos) de demostrar la insuficiência e inadecuación de las

tradiciones literárias y filosóficas anteriores y coetâneas para una adecuada

búsqueda de la Verdad y el tratamiento de cuestiones que competen a la

filosofia en sentido estricto y que no pueden reflejarse de modo suficiente en

ninguna variedad literária concreta1. Por otra parte, haré hincapié en la

1 Como podrá apreciarse, mi postura personal se aproxima bastante en algunos extremos a la línea de interpretación de la llamada "escuela de Tubinga" (cf. una ponderada valoración de la misma en Eggers-Lan, 1997), aunque aqui hago una propuesta acerca de la utilización dei diálogo en los âmbitos llamados "esotéricos" y "exotéricos" que presenta divergências con la citada escuela. Quiero subrayar que las reflexiones que aqui publico surgieron con total independência de las opiniones de Reale (2001b), con las que se apreciarán bastantes coincidências, pêro con una diferencia inicial (y otras de detalle, que luego senalaré) importante. En efecto, el párrafo siguiente sintetiza bien su propuesta general: "Dunque, il Simpósio è un grandioso manifesto programmatico in cui Platone si presenta como il 'vero poeta' dei momento, con la motivazione che il 'vero poeta' non può essere se non il 'filosofo'. La vera arte poética non può essere, a suo avviso, se non collegata alia ricerca perenne delia verità. Próprio mediante questo rapporto con la verità, il poeta-filosofo sa cogliere la realtà sia nella dimensione dei cómico che in quella dei trágico" (2001b, XVI). Esta utilización dei término "poeta" es absolutamente disonante en la cultura griega desde un punto de vista estrictamente genérico-literario y, adernas, incluso entendida como metáfora es desafortunada ai tratarse precisamente de Platón. No solo porque, como indican sus biógrafos, dejó la poesia para dedicarse a la filosofia, sino,