Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

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Sobre os Deuses e o Cosmos Salústio

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Sobre os Deuses e o Cosmos

Salústio

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Sobre os Deuses e o Cosmos

Salústio

Tradução por Nogueira Sousa

Título original:

Περὶ Θεῶν καὶ Κόσμου

Traduzido para o Português a partir das traduções de

Thomas Taylor e Gilbert Murray

Introdução por Alex Hoffmann

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Sumário

Introdução

Prefácio

I. O que o discípulo deve ser; e a respeito de concepções comuns

II. Que deus é imutável, não gerado, eterno, incorpóreo e não

existe no espaço.

III. Sobre os mitos; por que são divinos.

IV. Que as espécies de mito são cinco, com exemplos de cada.

V. Sobre a Causa Prima

VI. Sobre os deuses cósmicos e hipercósmicos.

VII. Sobre a natureza do mundo e a sua eternidade.

VIII. Sobre mente e alma e porque esta é imortal

IX. Sobre Providência, destino e fortuna

X. A respeito da virtude e vício.

XI. Sobre a organização social certa e errada.

XII. A origem das coisas más; e porque não existe mal positivo.

XIII. Como as coisas eternas são feitas.

XIV. Em que sentido, apesar dos deuses nunca mudarem, diz-se

que que tornam-se irados e apaziguados.

XV. Por que cultuamos os deuses quando eles não precisam de

nada.

XVI. Acerca de sacrifícios e outras adorações, porque beneficiamos

o homem com elas, e não os deuses.

XVII. Que o cosmos é por natureza eterno.

XVIII. Por que existem rejeições aos deuses e por que eles não se

ofendem.

XIX. Por que os transgressores não são punidos imediatemente.

XX. Sobre a transmigração das almas e como se diz que elas

migram para naturezas irracionais.

XXI. Que os bons são felizes, tanto vivos como mortos.

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Introdução

O homem que, sem o entendimento do Alfa (A) e do Ômega (Ω)

dos cosmos vem a levar um rumo desorientado, ora material,

ora espiritual. Suas concepções sem saber o que o rodeia, são

limitadas, e demasiadamente pobres, sem a mão divina sobre as

meras cabeças humanas que se rodeiam de ilusões, assim, se

fazendo o Crepúsculo dos deuses.

O que são? A quem os deuses detestam? Se deixados de

cultuados, nossa sociedade cairá em abismos?

Qual a origem de toda essas mitologias?

Tendo chegado ao fim de nossas narrativas de episódios da

mitologia pagã, impõe-se uma pergunta: "De onde vieram

aquelas lendas? Têm algum fundamento na verdade, ou são

apenas sonhos da imaginação?" Os filósofos têm aventado sobre

o assunto várias teorias:

1. Teoria Bíblica - De acordo com esta teoria, todas as lendas

mitológicas têm sua origem nas narrativas das Escrituras,

embora os fatos tenham sido distorcidos e alterados. Assim,

Deucalião é apenas um outro nome de Noé, Hércules de Sansão,

Árion de Jonas etc. "Sir Walter Raleigh, em sua História do

Mundo, diz: Jubal, Tubal e Tubal Caim são Mercúrio, Vulcano e

Apolo, inventores do pastoreio, da fundição e da música. O

Dragão que guarda os pomos de ouro era a serpente que

enganou Eva. A torre de Nemrod foi a tentativa dos Gigantes

contra o Céu." Há, sem dúvida, muitas coincidências curiosas

como estas, mas a teoria não pode ser exagerada até o ponto

de explicar a maior parte das lendas, sem se cair no contra-

senso.

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2. Teoria Histórica - Por essa teoria, todas as personagens

mencionadas na mitologia foram seres humanos reais e as

lendas e tradições fabulosas a elas relativas são apenas

acréscimos e embelezamentos, surgidos em épocas posteriores.

Assim, a história de Éolo, rei e deus dos ventos, teria surgido do

fato de Éolo ser o governante de alguma ilha do Mar Tirreno,

onde reinou com justiça e piedade e ensinou aos nativos o uso

da navegação a vela e como predizer, pelos sinais atmosféricos,

as mudanças do tempo e dos ventos. Cadmo, que, segundo a

lenda, semeou a terra com dentes de dragão, dos quais nasceu

uma safra de homens armados, foi, na realidade, um emigrante

vindo da Fenícia, que levou à Grécia o conhecimento das letras

do alfabeto, ensinando-o aos naturais daquele país. Desses

conhecimentos rudimentares, nasceu a civilização, que os

poetas se mostraram sempre inclinados a apresentar como a

decadência do estado primitivo do homem, a Idade do Ouro, em

que imperavam a inocência e a simplicidade.

3. Teoria Alegórica — Segundo essa teoria, todos os mitos da

antigüidade eram alegóricos e simbólicos, contendo alguma

verdade moral, religiosa ou filosófica, ou algum fato histórico,

sob a forma de alegoria, mas que, com o decorrer do tempo,

passaram a ser entendidos literalmente. Assim, Saturno, que

devora os próprios filhos, é a mesma divindade que os gregos

chamavam de Cronos (Tempo), que, pode-se dizer, na verdade

destrói tudo que ele próprio cria. A história de Io é interpretada

de maneira semelhante. Io é a lua e Argos, o céu estrelado, que

se mantém desperto para velar por ela. As fabulosas

peregrinações de Io representam as contínuas revoluções da

lua, que também sugeriram a Milton a mesma idéia:

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Contemplas lá no alto a lua errante

Do apogeu, pouco a pouco aproximar-se,

Como alguém que tivesse se perdido

Nas vastidões do céu, sem rumo andando.

Il Penseroso

4. Teoria Física Para esta teoria, os elementos ar, fogo e água

foram, originalmente, objeto de adoração religiosa, e as

principais divindades eram personificações das forças da

natureza. Foi fácil a transição da personificação dos elementos

para a idéia de seres sobrenaturais dirigindo e governando os

diferentes objetos da natureza. Os gregos, cuja imaginação era

muito viva, povoaram toda a natureza de seres invisíveis, e

supuseram que todos os objetos, desde o sol e o mar até a

menor fonte ou riacho, estavam entregues aos cuidados de

alguma divindade particular.

Para o mal em bandos, nos encaminhamos facilmente: o

caminho é plano e ele mora junto de nós;

Mas ante a virtude, os deuses colocaram suor e trabalho.

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"Mas já é hora de nos retirarmos, eu para morrer, e vós para

viverdes.

Entre vós e mim, quem está melhor?

Isso é o que ninguém sabe, exceto Zeus"

- Platão

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Prefácio

A motivação para a seguinte tradução foi compartilhar, na

língua Portuguesa, o trabalho do filósofo Salústio sobre a

religião, crenças e cultos dos antigos gregos e romanos, para

que as pessoas interessadas nos mesmos assuntos possam

conhecer a visão dos próprios antigos. Assim, pode-se

desenvolver melhores trabalhos de discussão e mesmo de

reconstrução de antigas crenças, evitando equívocos comuns a

neo-pagãos, equívocos que muitas vezes derivam de uma visão

distorcida das antigas religiões indo-europeias, uma visão que

foi propagada muitas vezes pela igreja, ou mesmo por outros

neo-pagãos.

Tendo acesso ao pensamento dos antigos sobre as suas

próprias religiões, podemos ver melhor como elas tinham

impacto sobre o seu mundo e o quanto eram presentes em suas

vidas. Assim, evitamos projeções modernas e anacrônicas sobre

as antigas religiões.

Salústio foi um filósofo do século IV da EC, foi amigo do

Imperador Juliano, o Apóstata, o mesmo que tentou restaurar as

antigas práticas religiosas romanas, entrando em conflito com o

cristianismo ascendente na época. Em seus trabalhos, Salústio

sintetizou ideias platônicas, pitagóricas e mesmo as ideias do

imperador Juliano. Por ter vivido em um período de embates

religiosos com o cristianismo, escreveu o seguinte trabalho

como uma espécie de catecismo sobre o Helenismo, a antiga

religião grega, fazendo um trabalho bem conciso e breve, como

defesa do Helenismo contra as polêmicas cristãs.

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“Pois estaremos sempre com você, em qualquer

lugar, eu (Hélios), Athena e Hermes, e conosco todos

os deuses que estão no Olimpo e os deuses do ar e

da terra, e todas as formas de divindades em

qualquer lugar, enquanto você estiver conosco,

sendo leal a seus amigos e bondoso com seus

súditos, liderando e guiando-os para o bem. Nunca

se renda aos seus desejos ou aos deles.”

- Flávio Cláudio Juliano, o Apóstata – Discurso a Heracleios

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I.

O que o discípulo deve ser; e a respeito de concepções comuns

Aqueles que desejam ouvir sobre os deuses devem ser bem

guiados desde a infância e não ser habituados a crenças tolas.

Devem também estar em boa disposição e sensatos, para que

possam adequadamente assistir aos ensinamentos.

Também devem saber a respeito de concepções comuns. As

concepções comuns são aquelas com as quais todos homens

concordam assim que as escutam; por exemplo, que todo deus

[aqui e em qualquer outro lugar, = a divindade, a natureza

divina] é bom, livre de paixões, livre de mudanças. Pois tudo

que sofre mudança assim a sofre para o pior ou o melhor; se

para o pior, é feito inferior; se para o melhor, deveria ter sido

inferior antes.

II.

Que deus é imutável, não gerado, eterno, incorpóreo e não

existe no espaço.

Deixe o discípulo assim ser. Deixe os ensinamentos serem do

seguinte modo. As essências dos deuses nunca vieram à

existência (pois aquilo que sempre é nunca vem à existência; e

aquilo que existe para sempre possui força primária e por

natureza não sofre nada): e nem consistem de corpos; pois

mesmo em corpos os poderes são incorpóreos. Nem estão

contidos no espaço; pois isso é uma propriedade de corpos.

Nem estão separados da prima causa nem de um ao outro,

assim como os pensamentos não estão separados da mente

nem atos de conhecimento da alma.

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III.

Sobre os mitos; por que são divinos.

Podemos muito bem perguntar, então, por que os antigos

renunciaram essas doutrinas e fizeram o uso de mitos. Há a

primeira vantagem dos mitos, a que temos que buscar e não

deixar as nossas mentes ociosas.

O fato dos mitos serem divinos pode ser observado através

daqueles que os usaram. Os mitos foram usados por poetas

inspirados, pelos melhores filósofos, por aqueles que

estabeleceram os mistérios e pelos próprios deuses nos

oráculos. Mas o porquê dos mitos serem divinos é dever da

filosofia investigar. Já que todas as coisas existentes se

regozijam no que lhes é similar e rejeitam o que não lhes é

similar, as histórias sobre os deuses devem ser como os deuses,

assim elas podem ser dignas da essência divina e tornar os

deuses bem dispostos àqueles que deles falam: o que poderia

ser feito apenas por meio de mitos.

Assim sendo, os mitos representam os próprios deuses e a sua

bondade – sujeita sempre à distinção do dizível e do indizível, o

revelado e o não revelado, o que é claro e o que é oculto: já que,

assim como os deuses fizeram os bens das sensações comum a

todos, mas aqueles do intelecto apenas aos sábios, então os

mitos afirmam a existência dos deuses para todos, mas quem e

o que eles são apenas para aqueles capazes de entender.

Eles também representam as atividades dos deuses. Pois pode-

se chamar o mundo de um mito, no qual corpos e coisas são

visíveis, mas as almas e mentes ocultas. Além disso, desejar

ensinar a todos toda a verdade sobre os deuses produz desdém

nos tolos, pois eles não podem entender e não possuem zêlo

pelo que é bom, enquanto que ocultar a verdade através de

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mitos previne o desdém do tolo e força os bons a praticar

filosofia.

Mas por que colocam nos mitos histórias de adultério, roubos,

patrícidio e todos os demais absurdos? Não seria talvez algo

digno de adimiração, feito assim para que através do visível

absurdo a alma possa imediatamente sentir que as palavras

sejam véus e que acredite que a verdade seja um mistério?

IV.

Que as espécies de mito são cinco, com exemplos de cada.

Alguns mitos são teológicos, alguns físicos, alguns psíquicos e,

mais uma vez, alguns são materiais e alguns misturam os

últimos dois. Os teológicos são aqueles que não usam forma

física, mas contemplam a verdadeira essência dos deuses: por

exemplo, Kronos devorando seus filhos. Como os deuses são

intelectuais e todo intelecto retorna a si mesmo, esse mito

expressa em alegoria a essência do deus.

Mitos podem ser encarados fisicamente quando expressam as

atividades dos deuses no mundo: por exemplo, as pessoas

antigamente viam Kronos como o tempo e chamavam as

divisões do tempo como os filhos que eram devorados pelo pai.

A maneira psíquica é ver as atividades da própria alma; o ato de

pensar da alma, apesar de que ele passa a outros objetos, não

obstante, permanece dentro de seu progenitor.

A material e última é a que os Egípcios têm mais usado, devido

a sua ignorância, crendo que objetos materiais são realmente

deuses e assim os chamando: por exemplo, chamam a terra de

Isis, a umidade de Osiris, o calor de Tifão, ou ainda, a água de

Kronos, os frutos da terra de Adonis e o vinho de Dionósio.

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Dizer que esses são objetos sagrados aos deuses, como muitas

ervas, pedras e animais, é possível para homens sensatos,

porém dizer que são deuses é noção de loucos – a não ser,

talvez, no sentido no qual tanto a orbe do Sol como o raio que

vem da orbe sejam coloquialmente chamados de “O Sol”

(Hélios).

O tipo misturado de mito pode ser observado em muitos casos:

por exemplo, quando dizem que em um banquete dos deuses, a

Discórdia (Éris) jogou uma maçã dourada; as deusas disputaram

por ela e foram enviadas por Zeus até Páris para serem julgadas.

Páris viu Afrodite como a mais bela e deu-lhe a maçã. Aqui o

banquete significa os poderes hipercósmicos dos deuses; é por

isso que eles estão todos juntos. A maçã dourada é o mundo, o

qual sendo formado de opostos, é naturalmente “atirado pela

Discórdia”. Os diferentes deuses concedem diferentes dons ao

mundo e assim diz-se que “disputam pela maçã”. E a alma, que

vive de acordo com os sentidos, – pois é o que Páris representa

– não vendo os outros poderes no mundo, mas apenas a beleza,

declara que a maçã pertence à Afrodite.

Mitos teológicos satisfazem filósofos, físicos e psíquicos

satisfazem poetas e os misturados satisfazem iniciações

religiosas, pois cada iniciação busca nos unir com o mundo e os

deuses.

Usando um outro mito, dizem que a Mãe dos Deuses vendo

Attis deitado à margem do rio Gallus se apaixonou por ele,

tomou-o, coroou-lhe com o seu chapéu de estrelas e depois

disso o manteve intimamente junto a ela. Ele se apaixonou por

uma ninfa e deixou a Mãe para viver com ela. Por isso a Mãe dos

Deuses fez Attis enlouquecer e cortar os seus órgãos genitais,

deixá-los com a ninfa e retornar para viver junto a ela.

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Logo, a Mãe dos Deuses é o princípio que gera a vida; é por isso

que é chamada de Mãe. Attis é o criador de todas as coisas que

nascem e morrem; é por isso que ele é encontrado à margem do

rio Gallus. Pois o Gallus significa a Galáxia, ou a Via Láctea, o

ponto em que o corpo sujeito às paixões começa. Assim, como

os deuses primários fazem perfeitos os secundários, a Mãe ama

Attis e dá-lhe poderes celestiais. É o que o chapéu significa.

Attis ama uma ninfa: as ninfas presidem sobre a geração, já que

tudo que é gerado é fluido. Mas como o processo de geração

deve ser parado em algum ponto e não permitido que gere algo

pior do que o pior, o criador que faz todas essas coisas arranca

de si os seus poderes gerativos para dentro da criação e retorna

aos deuses de novo. Logo, tais coisas nunca aconteceram, mas

sempre são. E a mente vê todas as coisas de uma vez, mas a

razão (ou fala) expressa algumas coisas primeiro e outras

depois. Assim, o mito está de acordo com o cosmos e por isso

mantemos um festival que imita o cosmos, pois como

poderíamos alcançar maior ordem?

E nós mesmos, primeiramente, tendo caído dos céus e vivendo

com as ninfas, estamos abatidos e nos abstemos de milho e de

todas as comidas ricas e impuras, pois são hostis à alma. Então

vem o corte da árvore e o jejum, como se estivéssemos também

cortando o processo de geração. Depois disso a alimentação

com leite, como se estivéssemos nascendo de novo; e então

vêm os júbilos e as guirlandas, como se fosse um retorno aos

deuses.

A estação do ritual é a evidência da verdade dessas explicações.

Os ritos são realizados por volta do equinócio de primavera,

quando as frutas da terra estão deixando de serem produzidas e

o dia está se tornando mais longo que a noite, o que se aplica

bem a espíritos ascendendo a planos mais altos. (Pelo menos, o

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outro equinócio é na mitologia o momento do estupro de Kore,

que é a descida das almas).

V.

Sobre a Causa Prima

Seguinte na ordem vem o conhecimento da prima causa e das

ordens subsequentes dos deuses, da natureza do mundo, da

essência do intelecto e da alma. Devemos também refletir sobre

a providência, o destino e a fortuna e sobre as coisas boas a

más que delas procedem. E finalmente devemos especular de

qual fonte o mal veio ao mundo.

Cada um desses assuntos precisa de muitas longas discussões;

mas talvez não haja problemas em apresentá-los brevemente,

para que o discípulo não permaneça ignorante sobre eles.

É necessário então que a prima causa seja uma – pois a unidade

precede a multiplicidade – e supere todas as coisas em poder e

bondade. Consequentemente todas as coisas devem tomar parte

da sua natureza. Pois nada pode impedir as suas energias

através de poder e, devido à sua bondade nada irá separá-la.

Se a prima causa fosse alma, todas as coisas possuiriam alma.

Se fosse mente, todas as coisas possuiriam mente. Se fosse o

ser, todas as coisas partilhariam do ser. E vendo esta qualidade

em todas as coisas, alguns homens pensaram que era o ser.

Porém se as coisas simplesmente fossem, sem serem boas, esse

argumento seria verdadeiro, mas se as coisas que são as são

por causa da sua bondade e partilham da bondade, a prima

causa deve estar tanto além do ser quanto além da bondade.

Uma forte evidência disso é que as almas nobres desprezam o

seu ser em defesa da bondade, quando encaram a morte pela

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sua pátria, pelos seus amigos ou pelo bem da virtude. – Depois

desse poder inexprimível as ordens dos deuses sucedem.

VI.

Sobre os deuses cósmicos e hipercósmicos.

Alguns deuses são do mundo, cósmicos, e alguns acima do

mundo, hipercósmicos. Por cósmicos quero dizer aqueles que

fazem o cosmos. Por hipercósmicos, os deuses que criam a

essência, alguns mente e alguns alma. Assim eles possuem três

ordens; todas das quais podem ser encontrados tratados a

respeito.

Alguns dos deuses cósmicos fazem o mundo ser, outros o

animam, outros o harmonizam, consistindo de diferentes

elementos; a quarta classe o mantém quando harmonizado.

Essas são as quatro ações, cada uma delas possui um começo,

meio e fim, consequentemente, deve haver doze deuses

governando o mundo.

Aqueles que fazem o mundo são Zeus, Poseidon e Heféstio;

aqueles que o animam são Deméter, Hera e Artemis; aqueles

que o harmonizam são Apolo, Athena e Áres.

Pode-se ver sugestões ocultas nas suas imagens. Apolo afina

uma lira; Athena está armada; Afrodite está nua (porque a

harmonia cria beleza e a beleza nas coisas vistas não é coberta).

Enquanto esses doze deuses no sentido primário possuem o

mundo, devemos considerar que os outros deuses estão contido

neles. Dionísio em Zeus, por exemplo, Asclépio em Apolo, as

Cárites em Afrodite.

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Podemos também discernir as suas várias esferas: à Hestia

pertence a Terra, a Poseidon a água, à Hera o ar, a Heféstio o

fogo. E as seis esferas superiores aos deuses aos quais são

normalmente atribuídas. Para Apolo e Artemis devem ser

atribuídos o Sol e a Lua, a esfera de Kronos deve ser atribuída à

Deméter, o éter à Athena, enquanto o céu é comum a todos.

Assim as ordens, poderes e esferas dos doze deuses foram

explicadas e celebradas nos hinos.

VII.

Sobre a natureza do mundo e a sua eternidade.

O cosmos deve ser por necessidade indestrutível e não criado.

Indestrutível, pois, suponha que seja destruído: a única

possibilidade é fazer um melhor, pior ou igual ou então um

caos. Se pior, o poder do qual do melhor se faz o pior deve ser

ruim. Se melhor, o criador que não o fez melhor antes deve ser

imperfeito em poder. Se o mesmo, não haverá sentido em fazê-

lo; se um caos... é ímpio até mesmo pensar em tal coisa. Essas

razões seriam suficientes para mostrar que o mundo é também

não criado. Tudo que é criado é sujeito à destruição. E além

disso, já que o cosmos existe pela bondade do bom, segue-se

que deus deve sempre ser bom e o mundo existir. Assim como

a luz coexiste com o sol e com o fogo e a sombra coexiste com

o corpo.

Dos corpos no cosmos, alguns imitam a mente e movem-se em

órbitas; alguns imitam a alma e movem-se em linha reta, fogo e

ar para cima, terra e água para baixo. Dos que movem em

órbitas a esfera fixa vai até o leste, os sete [planetas] para o

oeste (É assim para várias causas, especialmente para que a

criação não seja imperfeita devido ao rápido circuito das

esferas.)

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O movimento sendo diferente, a natureza dos corpos deve ser

também diferente; consequentemente o corpo celestial não

queima ou congela o que toca, ou faz qualquer outra coisa que

pertence aos quatro elementos.

E como o cosmos é uma esfera – o zodíaco o prova – e em cada

esfera “para baixo” significa “em direção ao centro”, pois o

centro é a maior distância de cada ponto e as coisas pesadas

“caem” para a terra.

Todas essas coisas são feitas pelos deuses, ordenadas pela

mente, movidas pela alma. Sobre os deuses já discutimos.

VIII.

Sobre mente e alma e porque esta é imortal

Há uma certa força, menos primária que o ser, porém mais

primária que a alma, que extrai sua existência do ser e completa

a alma como o sol completa os olhos. Algumas das almas são

racionais e imortais, algumas irracionais e mortais. As primeiras

derivam dos primeiros deuses, as segundas dos secundários.

Primeiro, devemos considerer o que é a alma. É aquilo, então,

pelo qual o animado se difere do inanimado. A diferença está no

movimento, sensação, imaginação, inteligência. A alma,

portanto, quando racional, é a vida que controla os sentidos e a

imaginação e usa a razão. A alma irracional depende das

afeições do corpo; sente desejo e raiva irracionalmente. A alma

racional, com a ajuda da razão, despreza o corpo e, lutando

contra a alma irracional, produz ou virtude ou vício, de acordo

com a sua vitória ou derrota.

Deve ser imortal, tanto por conhecer os deuses (e nada mortal

conhece o que é imortal), quanto por observar os assuntos

humanos como se estivesse fora deles e, como algo incorpóreo,

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é afetada da forma oposta ao corpo. Enquanto o corpo é jovem

e belo, a alma é oprimida e o seu vigor diminuido; mas quando

ele envelhece, a alma revive e aumenta a sua força e vigor. E

toda boa alma usa a mente; mas nenhum corpo pode produzir

mente: pois como que aquilo que não possui mente produz

mente? Enquanto a alma usa o corpo como um instrumento, ela

não está nele; assim como um engenheiro não está na sua

máquina (apesar de que muitas máquinas se movem sem serem

tocadas por alguém). E se a alma é normalmente feita para errar

pelo corpo, não é nada espantoso. Pois as artes não são capazes

de realizar o seu trabalho quando seus instrumentos não

funcionam.

IX.

Sobre Providência, destino e fortuna

Isto é o suficiente para mostrar a Providência dos deuses. Pois

de onde vem a ordem do mundo, se não há força ordenadora? E

de onde vem o fato de que todas as coisas existem por um

propósito: por exemplo, a alma irracional para que haja

sensação e a racional para que a terra seja posta em ordem?

Mas é possível deduzir-se o mesmo resultado das evidências da

providência na natureza: por exemplo, os olhos foram feitos

transparentes com uma visão para enxergar; as narinas estão

acima da boca para distinguir os alimentos mal-cheirosos; os

dentes frontais são afiados para cortar os alimentos e os dentes

posteriores são largos para moê-los. E observamos que cada

parte de cada objeto é arranjada sobre um princípio similar. É

impossível que haja tanta providência nos últimos detalhes e

nenhum nos primeiros princípios. Então as artes da profecia e

da cura, que são parte do cosmos, vêm da boa providência dos

deuses.

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Todo esse cuidado pelo mundo, devemos crer, é tomado pelos

deuses sem nenhum ato de vontade ou trabalho. Como corpos

que possuem algum poder produzem efeitos por meramente

existirem: por exemplo, o sol dá luz e calor por meramente

existir; assim, por uma razão muito maior, a providência dos

deuses age sem esforço para si mesma e para o bem dos

objetos de sua premeditação. Isso resolve o problema dos

Epicurianos, que afirmam que o divino não tem nem problemas

em si mesmo e nem dá problemas aos outros.

Mas o beneficente empenho incorpóreo dos deuses resultando

de corpos e subsistindo em corpos, é diferente do primeiro e é

chamado de destino, porque as suas séries de causas são mais

visíveis em corpos; e foi por lidar com essa sorte que a ciência

da Matemática [=Astrologia] foi descoberta.

Portanto, acreditar que as coisas humanas, especialmente a sua

constituição material, sejam ordenadas não apenas por seres

celestiais, mas também pelos corpos celestiais, é uma crença

racional e verdadeira. A razão mostra que a saúde e doença, a

boa e má sorte, procedem de acordo com nossos merecimentos

de tais fontes. Mas atribuir os atos de injustiça e lascívia dos

homens ao destino, é tornar-nos bons e os deuses ruins. A não

ser que por acaso um homem queira dizer que, no geral, todas

as coisas do mundo e qualquer coisa que tenha uma substância

natural são boas, mas a má educação ou fraqueza de natureza

muda os bens do destino para algo pior. Assim como acontece

com o Sol, que sendo bom para todos, pode ser prejudicial a

pessoas com oftalmia ou febre. Ou porque os Masságetas

comem os seus pais, os Hebreus praticam circunsição e os

Persas preservam as suas regras de classe? Por que astrólogos,

quando chamam Saturno e Marte de “malignos” acabam os

tornando bons, atribuindo-lhes filosofia e realeza, liderança e

tesouros? E se falam de triângulos e quadrados, é absurdo que

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os deuses devam mudar suas naturezas de acordo com a sua

posição no espaço, enquanto a virtude humana permanece a

mesma em qualquer lugar. Além disso, o fato de que as estrelas

predizem uma classe alta ou baixa para o pai da pessoa da qual

o horóscopo é feito, ensina que nem sempre elas fazem as

coisas acontecerem, mas ás vezes apenas as indicam. Pois como

as coisas que precedem o nascimento poderiam depender do

nascimento?

Além do mais, como há a providência e o destino de nações e

cidades e também de cada indivíduo, então também há a

fortuna, que deverá ser tratada em breve. O poder dos deuses

que ordena para o bem as coisas que não são uniformes e, que

acontecem ao contrário das expectativas, é comumente

chamado de Fortuna, e é por essa razão que a deusa é

especialmente cultuada em público por cidades; pois cada

cidade consiste de elementos que não são uniformes. A Fortuna

tem poder abaixo da lua, pois acima da lua nada pode acontecer

por fortuna.

Se a fortuna torna próspero um homem perverso e pobre um

homem bom, não há necessidade de se espantar. Pois os

perversos tratam a riqueza como tudo e o bem como nada. E a

boa fortuna dos maus não pode tomar a sua maldade, enquanto

que a virtude sozinha será o suficiente para os bons.

X.

A respeito da virtude e vício.

A doutrina da virtude e vício depende da alma. Quando a alma

irracional entra no corpo e imediatamente produz conflito e

desejo, a alma racional, posta em autoridade sobre todas elas,

torna a alma tripartida, composta de razão, conflito e desejo. A

virtude na região da razão é sabedoria, na região do conflito é

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coragem, na região do desejo é temperança; a virtude de toda a

alma é a justiça. É pela razão julgar o que é certo, pela luta em

obediência à razão desprezar as coisas que mostram-se

terríveis e pelo desejo perseguir o que não é aparentemente

desejável, mas aquilo que é com a razão desejável.

Quando essas coisas assim são, temos uma vida justa; pois a

justiça em matéria de propriedade é apenas uma pequena parte

da virtude. E assim encontraremos todas as quatro virtudes em

homens devidamente treinados, mas entre os não treinados

pode-se ser corajoso e injusto, um outro comedido e estúpido e

outro prudente e sem princípios. De fato, essas qualidades não

deveriam ser chamadas virtudes quando elas são desprovidas

de razão, imperfeitas e são encontradas em seres irracionais. O

vício deve ser considerado consistindo de elementos opostos.

Na razão é insensatez, na luta, covardice, no desejo,

intemperança e em toda a alma, injustiça.

As virtudes são produzidas pela organização social correta e

pela boa criação e educação, os vícios pelo oposto.

Page 23: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

XI.

Sobre a organização social certa e errada.

As constituições também dependem da natureza tripartida da

alma. Os governantes são análogos à razão, os soldados à luta,

os homens comuns aos desejos.

Onde todas as coisas são feitas de acordo com a razão e o

melhor homem governa, é um reino; onde mais do que um

governa de acordo com a razão e lutam, é uma aristocracia;

onde o governo é de acordo com o desejo e ofícios dependem

do dinheiro, a constituição é chamada de timocracia. O contrário

é: ao reino, tirania, pois um reino faz todas as coisas guiado

pela razão e a tirania, nada; à aristocracia, oligarquia, quando

não as melhores, mas algumas das piores pessoas são os

governantes; à timocracia, democracia, quando não os ricos,

mas os homens comuns possuem todo o poder.

XII.

A origem das coisas más; e porque não existe mal positivo.

Com os deuses sendo bons e criando todas as coisas, como que

o mal existe no mundo? Ou talvez é melhor antes afirmar o fato

que, sendo os deuses bons e criando todas as coisas, não há

mal positivo, ele só existe pela ausência do bem; assim como a

própria escuridão não existe, mas assim aparece com a ausência

da luz.

Se o mal existe, deve ser ou nos deuses ou nas mentes, ou nas

almas ou nos corpos. Não existe em nenhum deus, pois todo

deus é bom. Se alguém diz que a mente é má, deve ao mesmo

tempo dizer que a mente não possui uma mente. Se diz que é

uma má alma, ele torna a alma inferior ao corpo, pois nenhum

corpo é mau em si mesmo. Se diz que o mal é feito de alma e

Page 24: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

corpo juntos, é absurdo que separadamente eles não sejam

maus, mas que juntos criem mal.

Suponha-se que existam espíritos maus: - se possuem o seu

poder dos deuses, não podem ser maus; se de outro lugar,

então os deuses não criam todas as coisas. Se não criam todas

as coisas, então ou eles desejam ou não podem, ou podem e

não desejam; nada que seja consistente com a ideia de deus.

Podemos ver, portanto, desses argumentos, que não há mal

positivo no mundo.

É nas atividades dos homens que o mal aparece e não de todos

os homens e nem sempre. Na verdade, se os homens fizessem

coisas ruins por causa do mal, a própria natureza seria má. Mas

se o adúltero pensa que o seu adultério é errado mas o seu

prazer bom, se o assassino pensa que o seu assassinato é ruim

mas o dinheiro que consegue é bom e se o homem que faz mal

a um inimigo pensa que fazer mal é ruim mas que punir seus

inimigos é bom e se toda a alma cometer pecados dessa

maneira, então o mal é feito por causa do bem. (Da mesma

forma que se não há luz em um lugar, então há escuridão, que

não possui existência positiva.)

Portanto, a alma produz coisas ruins porque, tentando buscar o

que é bom, comete enganos sobre o que é bom, porque não é a

prima essência. E vemos muitas coisas feitas pelos deuses para

preveni-la de cometer enganos e para curá-la quando os

comete. Artes, ciência, maldições e orações, sacrifícios e

iniciações, leis e constituições, julgamentos e punições, tudo

vem à existência para prevenir que as almas caiam na culpa; e

quando elas partem do corpo, deuses e espíritos a purificam de

toda a sua culpa.

Page 25: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

XIII.

Como as coisas eternas são feitas.

Acerca dos deuses, do mundo e das coisas humanas a seguinte

descrição será o suficiente para aqueles que não puderam

passar por todo um curso de filosofia, mas que ainda sim não

possuem almas que não possam ser ajudadas.

Resta explicar como tais objetos nunca foram feitos e não são

nunca separados um do outro, pois já dissemos acima que as

substâncias secundárias foram “criadas” pelas primeiras.

Tudo que é criado é feito ou por arte, ou por processo físico, ou

de acordo com algum poder. Mas em arte ou natureza o criador

deve ser anterior ao que é criado: porém o criador, de acordo

com o poder, constitui a criação absolutamente junta a si

mesmo, já que o seu poder é inseparável dela; assim como o sol

produz luz, o fogo produz calor e a neve produz frio.

Mas se os deuses criam o mundo por arte, eles não o fazem ser,

mas fazem-no ser em uma forma particular. Pois toda arte faz a

forma do objeto. O que então o faz ser?

Se é um processo físico, como, nesse caso, pode o criador dar

parte de si mesmo ao que é criado? Se os deuses são

incorpóreos, o mundo também o deveria ser. Se fosse dito que

os deuses são corpos, então de onde o poder das coisas

incorpóreas viria? E se fossemos admiti-lo, então seguiria-se

que o mundo se decompõe e o seu criador também deveria se

decompor, se é um criador por processo físico.

Se os deuses não criam o mundo nem por arte e nem por

processo físico, só resta dizer que o criam por poder. Tudo

assim criado subisiste junto com aquilo que possui o poder.

Nem as coisas assim criadas podem ser destruídas, exceto que

Page 26: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

o poder do criador seja tomado: assim, aqueles que acreditam

na destruição do cosmos, ou negam a existência dos deuses,

ou, enquanto a admitem, negam o poder dos deuses.

Portanto, quem faz todas as coisas por seu próprio poder faz

todas as coisas subisistirem juntas a si mesmo. E como o seu

poder é o maior, ele deve ser o criador não só dos homens e

animais, mas também dos deuses e dos espíritos. E quanto mais

longe está o primeiro deus da nossa natureza, mais poderes

devem estar entre nós e ele. Pois todas as coisas que estão

muito distantes umas das outras possuem muitos pontos

intermediários entre elas.

XIV.

Em que sentido, apesar dos deuses nunca mudarem, diz-se que

que tornam-se irados e apaziguados.

Se alguém pensa que a doutrina da imutabilidade dos deuses é

razoável e verdadeira e logo reflete sobre como os deuses se

alegram com coisas boas e rejeitam as más, ficam irados com

aqueles que cometem maus atos e tornam-se amigáveis quando

apaziguados, a resposta lhe é a seguinte: deuses não se

alegram – pois o que se alegra também se aflige; nem ficam

irados – pois ficar irado é uma paixão; nem são apaziguados por

oferendas – pois se fossem, seriam conquistados pelo prazer.

É ímpio supor que o divino seja afetado positiva ou

negativamente pelas coisas humanas. Os deuses são sempre

bons, sempre fazem coisas boas e nunca prejudicam, estando

sempre no mesmo estado e como eles próprios. A verdade é

simplesmente esta, quando somos bons, estamos juntos aos

deuses pela nossa similitude a eles, em viver de acordo com a

virtude, assim nos ligamos aos deuses. Porém quando nos

tornamos maus, fazemos dos deuses nossos inimigos – não

Page 27: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

porque ficam enfurecidos conosco, mas porque nossos atos

impedem que a luz dos deuses chegue a nós e logo entramos

em comunhão com os espíritos da punição.

E se através de orações e sacrifícios conseguimos perdão, não

agradamos ou mudamos os deuses, mas pelo que fazemos e

por nos colocarmos em direção ao divino, curamos a nossa

maldade e assim aproveitamos mais uma vez a bondade dos

deuses. Dizer que os deuses viram as costas ao mal é como

dizer que o sol se esconde do cego.

XV.

Por que cultuamos os deuses quando eles não precisam de

nada.

Isto resolve a questão sobre sacrifícios e outros ritos realizados

aos deuses. O divino em si mesmo não possui necessidades e a

adoração é feita para o nosso próprio benefício. A providência

dos deuses chega a todo lugar e precisa apenas de alguma

congruência para a sua recepção. Toda a congruência é

alcançada através de representação e similitude; é por essa

razão que os templos são feitos como representações dos ceús,

o altar da terra, as imagens da vida (é por isso que são feitas de

coisas vivas), as orações do que é abstrato, os caracteres

místicos dos poderes celestiais inefáveis, as ervas e pedras da

matéria e os sacrifícios de animais da vida irracional dentro de

nós.

De todas essas coisas os deuses não ganham nada; o que um

deus poderia ganhar? É nós que ganhamos alguma comunhão

com eles.

Page 28: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

XVI.

Acerca de sacrifícios e outras adorações, porque beneficiamos o

homem com elas, e não os deuses.

Penso que seja importante acrescentar algumas notas sobre

sacrifícios. Em primeiro lugar, como recebemos tudo dos

deuses, e é certo pagar a quem nos dá uma fração dos seus

dons, pagamos uma pequena fração de posses em voto de

oferenda, de nossos corpos em oferendas, cabelo e adornos, e

de vida em sacrifícios. Em segundo lugar, orações sem

sacrifícios são apenas palavras, com sacrifícios são palavras

vivas; a palavra dá significado à vida, enquanto que a vida anima

o mundo. Em terceiro lugar, a felicidade de cada objeto é a sua

própria perfeição; e a perfeição para cada um é a comunhão

com a sua própria causa. Por essa razão, oramos pela

comunhão com os deuses. Assim, portanto, a primeira vida é a

vida dos deuses, mas vida humana é também a vida de uma

espécie e a vida humana deseja a comunhão com a vida divina,

um meio termo é necessário. Pois as coisas que estão muito

distantes não podem ter comunhão sem um meio termo e o

meio termo deve ser como as coisas que tornam-se juntas;

portanto, o meio termo entre a vida e a vida deve ser a vida. É

por isso que os homens sacrificam animais; apenas os ricos o

fazem agora, mas nos velhos tempos todos o faziam, mas não

indiscriminadamente, mas concedendo as oferendas

apropriadas a cada deus junto a um grande culto de adoração.

Basta desse assunto.

Page 29: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

XVII.

Que o cosmos é por natureza eterno.

Mostramos acima como os deuses não destroem o cosmos.

Ainda resta mostrar que a sua natureza é indestrutível.

Tudo que é destruído, ou é destruído por si mesmo ou por outra

coisa. Se o cosmos é destruído por si mesmo, o fogo deve

queimar a si mesmo e a água secar a si mesma. Se por outra

coisa, deve ser ou por um corpo ou por algo incorpóreo. Por

algo incorpóreo é impossível; pois coisas incorpóreas preservam

corpos – a natureza, por exemplo, e a alma – e nada é destruído

por uma causa da qual a sua natureza seja preservar. Se é

destruído por algum corpo, deve ser ou por aqueles que

existem ou por outros.

Se por aquilo que existe: então ou aquilo que se move em linha

reta deve ser destruído por aquele que se revolve em círculo, ou

vice-versa. Mas aquilo que se revolve em círculo não possui

natureza destrutiva; se não, então por que não vemos nada

destruído por essa causa? Nem mesmo aquilo que se move em

linha reta pode tocar os outros; se não, por que nunca o

fizeram?

Mas nem aquilo que se move em linha reta pode ser destruído

por um ao outro; pois a destruição de um é a criação de outro; e

isso não é se destruir, mas se transformar.

Mas se o mundo é destruído por outros corpos, então é

impossível dizer onde tais corpos estão ou de onde eles virão.

Mais uma vez, tudo destruído é destruído ou em forma ou em

matéria. (Forma é o formato de uma coisa, a matéria é o corpo.)

Mas se a forma é destruída e a matéria permanece, vemos

Page 30: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

outras coisas aparecerem. Se a matéria pode ser destruída,

como que ela pode ter durado por todos esses anos?

Se quando a matéria é destruída outra matéria toma o seu lugar,

a nova matéria deve vir ou de algo que é ou de algo que não é.

Se daquilo-que-é, sendo que aquilo-que-é existe

perpetuamente, então a matéria também deve ser eterna. Mas

se aquilo-que-é é destruído, então quer dizer que tal teoria

afirma que não o mundo, mas tudo no universo é destruído.

Se então a matéria vem daquilo-que-não-é: em primeiro lugar,

é impossível que qualquer coisa venha de algo que não seja;

mas suponha que isso aconteça e que a matéria realmente

viesse daquilo que não é; então, enquanto existir coisas que não

são, a matéria existirá. Pois presumo que não possa nunca

haver um fim para as coisas que não são.

Se dizem que a matéria não tem forma: em primeiro lugar, por

que isso acontece com o mundo como um todo quando não

acontece com qualquer parte? Em segundo lugar, por essa

hipótese, não se destrói o ser das coisas, mas apenas a sua

beleza.

Além disso, tudo que é destruído, ou é dissolvido nos elementos

do qual veio, ou desaparece no não-ser. Se as coisas são

dissolvidas nos elementos dos quais elas vieram, então haverá

outros: ou então como elas vieram a ser? Se aquilo-que-é se

dissolver em não-ser, o que previne que isso não aconteça com

os próprios deuses? (O que é absurdo.) Ou se os poderes dos

deuses previnem isso, não é uma propriedade de poder ser

capaz de salvar nada mas apenas si mesmo. E é igualmente

impossível para que aquilo-que-é venha do nada e se dissolva

no nada.

Page 31: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

Mas, se o cosmos é destruído, deve ser ou destruído de acordo

com a natureza ou contra a natureza. Contra a natureza é

impossível, pois aquilo que é contra a natureza não é mais forte

do que a natureza. Se de acordo com a natureza, deve haver

então uma outra natureza que muda a natureza do mundo: o

que não aparece.

Mas qualquer coisa que seja naturalmente destrutível podemos

destrui-la por nós mesmos. Mas ninguém nunca destruiu ou

alterou a esfera do cosmos. E os elementos, apesar de que

poderem ser transformados, não podem ser destruídos. Então

tudo que é destrutível é transformado pelo tempo e envelhece.

Mas o cosmos através de todos esses anos permaneceu

completamente inalterado.

Tendo dito tanto para o auxilio daqueles que se sentem na

necessidade de uma demonstração que seja bem forte, oro ao

próprio mundo para que seja gracioso para mim.

XVIII.

Por que existem rejeições aos deuses e por que eles não se

ofendem.

O fato de que as rejeições aos deuses aconteceram em certas

partes da terra e muitas vezes acontecerão no futuro perturba a

mente dos sábios: tanto porque coisas do tipo não afetam os

deuses, assim como vimos que os cultos não os beneficiam; e

porque a alma, sendo de média essência, não pode estar

sempre certa; quanto por causa do mundo todo não poder

desfrutar da providência dos deuses igualmente, mas algumas

partes podem tomar parte dela eternamente, algumas às vezes

e algumas de forma primária ou secundária. Assim como a

cabeça percebe todos os sentidos, mas o resto do corpo apenas

um.

Page 32: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

Por essa razão, parece, aqueles que estabeleceram festivais

também estabeleceram dias proibidos, nos quais alguns tempos

ficam fora de funcionamento, alguns são fechados e outros têm

os seus adornos removidos, em expiação da fraqueza de nossa

natureza.

Não é improvável também que a rejeição dos deuses seja um

tipo de punição: podemos muito bem acreditar que aqueles que

conhecem os deuses e nunca os negaram em uma vida podem

ser privados do seu conhecimento completamente na outra.

Além disso, aqueles que cultuaram os seus próprios reis como

deuses merecem como punição a perda de todo o seu

conhecimento sobre os deuses.

XIX.

Por que os transgressores não são punidos imediatemente.

Não há necessidade de surpreender-se se alguns atos não

trazem a punição imediata a quem os comete. Pois não são só

os espíritos que punem o mal, mas a alma se põe em

julgamento: e também não é correto que aqueles que devam

sofrer durante um longo tempo, pelo tamanho de sua culpa,

sejam punidos por um curto período: além disso, é preciso

virtude humana. Se as transgressões fossem punidas

imediatamente, os homens agiriam apenas por medo e não

teriam virtudes.

As almas são punidas quando deixam o corpo, algumas vagam

entre nós, outras vão para lugares frios da terra, algumas são

perturbadas por espíritos. Sob todas as circunstâncias elas

sofrem com a parte irracional de sua natureza, com a qual

cometeram maus atos. Por isso que subisiste um corpo sombrio

que é visto pelas sepulturas, especialmente pelas dos que

viveram uma vida de abandono.

Page 33: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

XX.

Sobre a transmigração das almas e como se diz que elas

migram para naturezas irracionais.

Se a transmigração de uma alma acontece em um ser racional,

ela simplesmente se torna a alma daquele corpo. Mas se a alma

migra para um animal bruto, ela segue o corpo por fora, como

um espírito guardião que segue um homem. Pois uma alma

racional não poderia nunca estar em um ser irracional.

A transmigração das almas pode ser provada pelas aflições

congênitas das pessoas. Por alguns nascerem cegos, outros

paralíticos, outros com alguma doença na própria alma? Logo, é

o dever natural das almas fazer o seu trabalho no corpo;

deveríamos supor então que assim que elas deixassem um

corpo elas deveriam viver toda a eternidade de forma ociosa? Se

as almas não entrassem mais uma vez em corpos, elas deveriam

ou ser infinitas em números ou os deuses deveriam produzir

novas constantemente. Mas não há nada infinito no cosmos;

pois em um todo finito não se pode ter uma parte infinita. Nem

outras podem ser feitas; pois tudo em que algo novo possa ser

criado deve ser imperfeito. E o cosmos, sendo criado por um

autor perfeito, deve ser naturalmente perfeito.

Page 34: Sobre os deuses e o cosmos - Salustio

XXI.

Que os bons são felizes, tanto vivos como mortos.

As almas que viveram em virtude são geralmente felizes e,

quando separadas da parte irracional de sua natureza e

purificadas de toda a matéria, alcançam comunhão com os

deuses e unem-se a eles para governarem o mundo, junto às

divindades das quais foram criadas. Mas mesmo que nada do

tipo possa acontecer à alma, a própria virtude, a alegria e a

glória da virtude e a vida que que não é sujeita a qualquer

aflição ou senhor são o suficiente para tornar felizes aqueles

que buscaram viver de acordo com a virtude e a conseguiram.