O Processo de Secularização em Portugal„πo... · É no seguimento destas duas premissas que...
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S = Secularizao
i = Igreja
e = Estado
PAULO CALVINHO DA SILVA COELHO
O Processo de Secularizao em Portugal:
da Primeira Repblica ao Estado Novo
Dissertao de Mestrado em Sociologia,
sob orientao do Professor Doutor lvaro Francisco Rodrigues Garrido,
apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Coimbra, 2011
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PAULO CALVINHO DA SILVA COELHO
O Processo de Secularizao em Portugal:
da Primeira Repblica ao Estado Novo
Dissertao de Mestrado em Sociologia,
sob orientao do Professor Doutor lvaro Francisco Rodrigues Garrido,
apresentada Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Coimbra, 2011
Ilustrao da capa: adaptao do poema visual She, da autoria de Pedro Xisto, 1964.
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NDICE
Resumo 4
Abstract 5
1. INTRODUO 6
2. SECULARIZAO E LAICIZAO 9
2.1. A Gnese da Secularizao 9
2.2. Secularizao: o processo Repblica Velha e a Nova
Repblica Velha
13
2.3. Secularizao: o processo no Estado Novo 19
2.4. A II Guerra Mundial: o agravar das dissenses 23
2.5. Concluso 29
3. MODERNIZAO DO ESTADO EM PORTUGAL 33
3.1. O Desenvolvimento da Administrao Pblica 36
3.2. A Organizao Corporativa 39
3.3. A Engenharia em Portugal 41
3.4. Autopoiesis e autonomizao do Estado 45
3.5. Concluso 48
4. HABERMAS E O CONCEITO DE ACO COMUNICATIVA 49
4.1. Os Sindicatos e o Parlamento na Primeira Repblica e no
Estado Novo
51
4.2. Concluso 57
5. AUTONOMIA DA SOCIEDADE CIVIL E LIBERDADE RELIGIOSA 59
5.1. Problematizao 61
5.2. Concluso 68
BIBLIOGRAFIA 70
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Resumo
O processo de secularizao em Portugal diz respeito autonomizao do Estado
relativamente Igreja. A emergncia de novas mundividncias vem questionar o papel
da Igreja na sociedade, em particular, a sua excessiva influncia.
Assim, o entendimento deste processo implica um breve enquadramento
historiogrfico comparativo da Primeira Repblica e do Estado Novo, de modo a
esclarecer a questo da secularizao da sociedade; da autonomizao do Estado e da
esfera poltica face Igreja e os conflitos entre eles (Concordata estabelecida com a
Santa S); a questo da histria da secularizao da Igreja, bem como das contendas
internas decorrentes deste processo; constatar as consequncias na esfera social,
nomeadamente no ensino.
Esta abordagem parte, ento, da relao, que servir de instrumento de anlise
nossa pesquisa, entre a historiografia e as categorias epistemolgicas. Inspiramo-nos na
teoria dos Sistemas de Aco Racional, de Max Weber, na teoria dos Sistemas de
Aco Comunicativa, de Jrgen Habermas, e, ainda, na Teoria dos Sistemas, de
Niklas Luhmann, em especial, no conceito de autopoiesis deste autor.
Esta problematizao permite debruarmo-nos sobre a modernizao do Estado
portugus da passagem da Primeira Repblica para o Estado Novo, por intermdio da
avaliao do Sistema Corporativo, das suas implicaes ideolgicas e do
desenvolvimento do ensino da Engenharia em Portugal, com o intuito de entender a
operacionalizao dos mecanismos do sistema poltico do Estado Novo, em termos
institucionais, de forma a atingir os seus fins.
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Abstract
The process of secularization in Portugal is concerned with the autonomy of the
State in relation to the Church. The emergence of novel world-views comes to put in
question the role of the Church in society, its excessive influence in particular.
So, comprehending this process implies a brief historical frame of reference
comparing the Primeira Repblica and the Estado Novo, in order to highlight: the
issue of societys secularization; the autonomy of the State and the political sphere
before the Church and the conflicts between both (the Concordat established with the
Holy See); the secularization of the Church as well as the internal struggles originated
in this process; a check on the consequences for the social range, namely for the field
of education.
So being, this approach starts from the relationship between historiography and
the epistemological categories, which will work as an analyzing instrument for our
research. We base on Max Webers theory of Systems of Rational Action, Jrgen
Habermass Systems of Communication Action and on Niklas Luhmanns Theory of
Systems, too, especially on this authors concept of autopoiesis.
The matter at issue allows us to approach the modernisation of the Portuguese
State in the passing from the Primeira Republica to the Estado Novo by evaluating
the Corporation System, its ideological implications and the development of the
teaching of Engineering in Portugal, with the purpose of understanding how the
mechanisms of the political system of the Estado Novo were put into practice, so as
to achieve its goals.
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1. INTRODUO
Este estudo reveste-se de grande pertinncia por vrias e diferentes razes: pela
importncia do conhecimento das pocas em questo partindo da utilizao de
instrumentos de anlise sociolgica; tambm, pela relevncia da Sociologia na anlise
historiogrfica para uma actualizao e renovao do saber sobre as pocas objecto de
estudo; e, ainda, pela busca da verdade, tendo como fundo uma melhor percepo da
sociedade passada e presente.
Neste trabalho pretende-se apreender as rupturas e continuidades da
modernizao do Estado portugus em dois momentos histricos distintos, Primeira
Repblica e Estado Novo, atravs da anlise crtica da relao entre dois processos
conexos: o de secularizao e o da emergncia dos Sistemas de Aco Racional
Teleolgica (Weber, 1987).
Deste modo, so objectivos especficos estabelecer uma relao entre os dois
processos acima referidos, enquanto instrumentos que nos permitem no s conhecer
e caracterizar como tambm comparar as diferenas existentes entre os dois regimes
polticos; enquadrar a identidade poltica dos dois regimes em funo da anlise das
distines observadas relativamente ao processo de secularizao, contribuindo, desta
forma, para um melhor entendimento dos processos em questo; e, por ltimo,
reflectir sobre os efeitos que estes processos assumiram na compreenso actual dos
fenmenos que pretendemos estudar.
Lus Reis Torgal (2009), no subcaptulo Perspectivas futuras acerca dos estudos
sobre o Estado Novo, includo na sua obra Estados Novos Estado Novo, chama a
ateno para a necessidade de se estudar este perodo histrico na sua relao com o
passado republicano e monrquico, pois no incio do sculo XX, seno no fim do
sculo XIX, que se est a formar a ideia de Estado Novo , e, mais adiante, para a
necessidade de se realizar uma verdadeira luta pelo rigor da histria, na base de que a
cincia sempre mais revolucionria (no sentido correcto da palavra) do que as
ideologias (2009, p. 412).
no seguimento destas duas premissas que orientamos a anlise a que nos
propomos. Em primeiro lugar, a quantidade e qualidade do nmero de publicaes
bem como a possibilidade de contacto com elas facilita-nos o trabalho relativamente
aos factos (dados empricos) nos quais baseamos este estudo. Em segundo lugar, tal
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como o ttulo deste trabalho sugere, debruamo-nos, entre outras questes, sobre o
processo de secularizao em Portugal, com incio na Revoluo Liberal, que perpassa os
dois regimes, a Repblica e o Estado Novo, e que, por isso, reclama a anlise
comparativa entre os dois. Por ltimo, em busca do rigor terico por que so
conhecidos os autores que nos emprestam os seus conceitos e categorias analticas,
Max Weber, Jrgen Habermas e Niklas Luhmann, aspiramos, em ltima anlise,
contribuir para a formao de uma memria que corresponda a uma verdadeira
crtica sobre a Histria, nesta caso a histria do Estado Novo (Torgal, 2009, p. 413) e
da Repblica.
Desta forma, esperamos que, a partir das categorias de que nos auxiliamos,
possamos ultrapassar os limites impostos pelas abordagens hegemnicas, isto ,
dentro de tipologias definidas por um conjunto de critrios pr-estabelecidos, e
muitas vezes correspondendo a modelos de anlise relativamente fechados,
circunscreve conceptual e metodologicamente um campo de problemas [na medida em
que] as tipologias devem ser um meio e no, como por vezes tem acontecido, um fim
da investigao. (Domingos e Pereira, 2010: 11).
Esta dissertao tem como ponto de partida o processo de secularizao do
Estado portugus enquanto factor/indicador de modernizao da sociedade
portuguesa1. Da averiguao das rupturas e continuidades no processo de secularizao
entre a Repblica e o Estado Novo, pretende-se, por um lado, identificar e perceber
de que forma ocorreu o processo de modernizao do Estado portugus, em funo
da estrutura social do pas de cariz catlico, representada pela importncia do papel da
Igreja na esfera social (Vtor Neto, 1998), e, por outro, apreender o processo de
modernizao e secularizao do Estado e da Igreja na passagem da Repblica para o
Estado Novo, considerando a questo da Lei da Separao.
Uma questo central aflora desta temtica. Apesar do forte pendor catlico que
caracteriza o Estado Novo e do seu apoio Igreja (por razes instrumentais ou
ideolgicas, ou, inclusivamente, pelas duas razes), motivaes houve que
fundamentaram a separao entre Estado e Igreja, processo que vinha desde a
Revoluo Liberal e foi concretizado mais vincadamente pela Repblica, sabendo-se
1 Por modernizao, entenda-se a autonomizao do Estado face esfera religiosa por intermdio da emergncia dos Sistema de Aco Racional Teleolgica (instrumental e estratgica) (Max Weber, 1987).
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que o Estado Novo no se transformou em Estado Confessional como no
Franquismo (Pinto, 2005: 42).
De outra forma, partimos da hiptese de que o Estado pelo seu grau de
modernizao operou esta separao por intermdio da racionalizao, especializao
e burocratizao - fomentada pelas reformas constitucionais Liberal e da Repblica e
pelo crescimento e desenvolvimento da administrao pblica, que abriu caminho
pluralizao dos actores polticos/sociais, nomeadamente pela secularizao da Igreja
(mesmo que limitada), sem que por isso se tenha verificado uma verdadeira
pluralizao no sentido democrtico do termo. A modernizao imps e definiu per se
fronteiras entre a esfera poltica ligada ao Estado e a social ligada Igreja.
Assim sendo, contrape-se questo da laicizao/secularizao, com origem
ideolgica Republicana/Socialista, a ideia de que a modernizao do Estado operou essa
mesma diviso, que no resulta de um confronto ideolgico com a Igreja, como
aconteceu no Estado Novo, pela convergncia de interesses das duas instituies.
Deste modo, a hiptese que se pretende problematizar a de que a separao
entre as duas esferas, a do Estado e da Igreja, tcnica e que se objectiva no e por
intermdio do Corporativismo, o modelo poltico, econmico e social estabelecido
pelo Estado Novo.
Neste sentido, partimos para a anlise do Estado portugus, assumindo a
racionalizao, especializao e a burocracia do Estado como tecnologia/tcnica2 de
dominao (Weber, Marcuse e Habermas, 1987; Luhmann, 1998), de conhecimento e
de aco ontolgico-poltica e heurstica, enquanto instrumento central terico da
nossa pesquisa.
Interessa-nos saber em que medida que a autonomizao do Estado, face a
outros sectores preponderantes da sociedade portuguesa, se deveu a um processo
autopoietico (Luhmann, 1995: XX) em termos de racionalizao, especializao e
burocratizao, ou seja, pela emergncia destes subsistemas (Weber apud Habermas,
1987), e menos a uma questo ideolgica, que por si s estabeleceu e assegurou a
separao entre o Estado e a Igreja. Tal como aponta Jos Rebelo (1998), em Salazar,
2 Technology, in its broader sense, is functional simplification, that is, a form of the reduction of
complexity that can be constructed and realized even though the world and society where this takes place is unknown. It is self-assessing. The emancipation of individuals, even irrational individuals, is an unavoidable side effect of this technologizing (Luhmann, 1998: 6).
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o carisma cedeu o lugar a uma liderana hbrida, marcada por um grau mximo de
racionalizao, de burocratizao e de pragmatismo (1998: 35).
Assim, pretende-se sublinhar, por um lado, a questo da emergncia do Estado
moderno e com ele do Sistema de Aco Racional Teleolgica (instrumental e
estratgica), ou vice-versa, proposto por Max Weber, e, por outro lado, tentar
apreender a mudana estrutural de enquadramento institucional de uma sociedade
tradicional, na transio para uma [sociedade] moderna (Habermas, 1987: 56),
nomeadamente pela identificao da autonomizao da esfera poltica face esfera
social, esta ltima entregue durante o Estado Novo Igreja, aps dcadas de
secularizao republicana e liberal (Pinto, 2005: 42). Nesta abordagem, apoiamo-nos
nas categorias desenvolvidas por Weber e Habermas sobre os Sistemas de Aco
Racional Teleolgica, pois segundo Max Weber (1987), a modernizao do Estado
fruto da emergncia destes Sistemas que tm no seu cerne a organizao da empresa
capitalista e da burocracia de Estado.
2. SECULARIZAO E LAICIZAO
2.1. A Gnese da Secularizao
Este captulo inicial tem como objectivo introduzir o tema da secularizao assim
como apresentar um enquadramento terico e histrico comparativo entre a Primeira
Repblica e o Estado Novo. Debruar-se- sobre a questo da secularizao da
sociedade; a autonomizao do Estado e da esfera poltica face (s) Igreja(s) e os
conflitos entre eles (Concordata estabelecida com a Santa S); e tambm sobre a
histria da secularizao da Igreja bem como sobre as contendas internas inerentes a
este processo. Por fim, apresentar-se-o as consequncias na esfera social,
nomeadamente no ensino, que resultaram do processo de secularizao.
Segundo Vtor Neto (1998), o conceito de secularizao, que tem como origem a
palavra sa culum, contemplava, entre outros significados, o de distinguir o tempo
presente do religioso, divino ou espiritual, mais precisamente o mundo temporal
oposto sociedade religiosa (1998: 219), acepo que perdurou at Idade Mdia,
perodo em que o conceito de secularizao comeou a adquirir um sentido jurdico,
sendo usado para referir a apropriao dos bens eclesisticos pelo poder civil. (1998:
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219). Para alm desta utilizao, o termo era aplicado pela instituio eclesistica
para demarcar o clero regular do clero secular (1998: 219).
No obstante a diversidade de significados que a palavra secularizao assumiu ao
longo da histria, aquele que nos interessa para este trabalho diz respeito
autonomia da sociedade civil em relao Igreja (Neto, 1998, p. 220), nos termos de
Peter Berger, citado por Neto (1998: 220), com a subtraco dos smbolos e
autoridade religiosa a sectores especficos da sociedade, que a nvel institucional se
traduz na autonomizao da esfera do Estado face religiosa, significado que pe em
destaque a oposio entre as diferentes esferas e as contradies e conflitos inerentes
a ela.
Como Vtor Neto (1998) escreve, a interpretao do vocbulo ia levando a uma
oposio entre o religioso, entendido como dominante e necessrio ao passado, e o
secular, que surgia como o ponto de chegada da evoluo intelectual e moral da
humanidade (1998: 220), interpretao que, segundo o autor, nos finais do sculo XIX
acabaria por se tornar sinnimo de laicizao e de laicismo (Neto, 1998: 220).
Laicidade, segundo Fernando Catroga (2004), uma expresso que deve ser utilizada
com o devido cuidado, na medida em que, como o autor faz questo de sublinhar, se
toda a laicidade uma secularizao, nem toda a secularizao uma laicidade e,
sobretudo, um laicismo (2004: 91), questo central deste trabalho, abordada ao longo
desta reflexo em momento oportuno.
O termo secularizao exprime, efectivamente, a existncia de uma tenso
permanente entre as instncias religiosas e a vida social (Neto, 1998: 202-221). Ao
nvel institucional, esta tenso indica a perda da hegemonia por parte da Igreja sobre
os mecanismos produtores da ideologia [] passando a concorrer com as novas
instituies no processo de formao do sistema de representaes da sociedade
(Neto, 1998: 221). O entendimento da relao entre o Estado e a Igreja no se pode
limitar exclusivamente dimenso institucional, pois [o] estudo das ideologias (clerical
e anticlerical) torna-se indispensvel a um entendimento correcto (Neto, 1998: 297)
da relao entre eles. Se tivermos em conta, como diz Manuel Clemente (2009), que
o Clericalismo uma teoria que prope a influncia e a presena do clero em vrios
aspectos da sociedade e a sua interferncia activa mesmo na vida poltica ento, toda
a sociedade do chamado Antigo Regime uma sociedade tendencialmente volta do
religioso (2009, p. 21).
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Desta forma, o anticlericalismo designa o movimento social e poltico que contesta
essa mesma presena do clero na vida social e que se manifesta pelo anti-romanismo,
anti-jesuitismo e anticongregacionismo (Clemente, 2009) assim como a luta contra o
legitimismo e ultramontanismo (Neto, 1998) e contra o integrismo (Catroga, 2010). De
um modo genrico, estes movimentos, contrrios modernizao, representam,
ento, a interferncia clerical na sociedade, e opem-se ao projecto de uma Igreja
Nacional, em prol da Santa S. Com a emergncia do novo Estado a Igreja entra em
concorrncia com o poder poltico [] tendo a secularizao sofrido uma mediao
de ndole estadualista, que levou laicidade. E se, em alguns casos, esta veio a sofrer
uma recatolizao [] a neutralidade religiosa do poder, exigida pela laicidade, no se
confinou ao argumento racionalista. A necessidade de reproduo do contrato social e
de justificao do papel histrico da Nao tambm sacralizaro o profano pondo em
prtica uma certa f laica (F. Buisson) (Catroga, 2010: 142-143). Esta sacralizao
do profano fundamenta-se no em argumentos racionalistas mas em argumentos
irracionais.
No obstante esta caracterstica da moderna racionalidade [transportar] consigo
certas formas de sacralidade (Catroga, 2010: 99), aquilo que se quer evidenciar o
crescimento da soberania do Estado e da consequente tendncia para este subordinar,
aos imperativos da sua razo, todos os negcios [] incluindo os religiosos
(Catroga, 2010: 28) e que levaro autonomizao do poder poltico face ao religioso
em nome de um secularizado ideal de bem comum (Catroga, 2010: 28).
Relativamente secularizao, o Estado desempenha o papel central, criando as
condies culturais, polticas, sociais e jurdicas necessrias concretizao das
promessas emancipatrias do indivduo-cidado (Catroga, 2010: 298), enquanto novo
formador das conscincias.
O anticlericalismo designa a afirmao duma nova classe poltica contra o peso
excessivo das ordens religiosas na sociedade (Neto, 1998: 324) e, embora o conflito
entre clero e anticlericalistas no seja redutvel questo poltica e pblica, foi nela que
o conflito se manifestou mais e os combates por ela suscitados se tenham centrado
em torno do Estado (Neto, 1998: 324). A laicidade, enquanto projecto poltico,
chamou a si o campo privilegiado onde as duas frentes se confrontaram, uma realidade
totalizante, no dizer de Vtor Neto, que recobre a ordem social, o ensino, as ideias,
os costumes e tem pontos de contacto com a cultura, a religio e o poder (Neto,
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1998: 324). Ele pode ser descrito enquanto embate entre as foras de modernizao e
aquelas que se encontravam contra ela. A posio contrria ao processo de
modernizao tinha como precursores a doutrinao de Papas como Pio VI (1775-
1799), que qualificou os direitos de liberdade e igualdade como insensatos (carta Quod
Aliquantum, de 10 de Maro de 1791) e [] que vinculou o catolicismo ao
Absolutismo (Catroga, 2010: 289), assim como Gregrio XVI (1831-1846), Pio IX
(1846-1878), demanda que culminaria com Leo XIII (1887.1903) e Pio X (1903-1914)
com a condenao do processo de modernizao e que faziam do integrismo, aos olhos
do laicado, a expresso mais radical do clericalismo (Catroga, 2010: 291).
A secularizao desencadeada pelo processo de modernizao trouxe consigo
novos valores, ou novas interpretaes de valores j consagrados, como os de Nao
e de Ptria, alicerados a uma definio de Estado enquanto uma entidade soberana e,
portanto, superior aos poderes particulares e autnomo [] em relao Igreja
(Catroga, 2010: 320). Estes valores eram preconizados em nome de uma moral de
cariz social e cvica, mobilizada para harmonizar os direitos com a sua vocao
sociabilitria e humanista (Catroga, 2010: 322), promovendo, entre outras coisas, a
ciso entre Roma e a Igreja Nacional, entre uma entidade centralizadora que absorvia
todas as Igrejas Nacionais e uma Igreja Nacional fundada j no numa lei universal
ditada por uma fora externa, mas, sim, por uma jurisprudncia cuja fronteira se
objectiva nos conceitos de Ptria e Nao e que se exprime pela tutela da Igreja de
cada pas por parte do Rei e, mais tarde, do Estado. Como diz Manuel Clemente
(2008), isto passa-se mesmo depois do sculo XVI, quando em Portugal comea a
funcionar [] um determinado modelo de relao Igreja/Estado, que se chama Igreja
Nacional. Isto quer dizer que no sculo XVI se modifica o modelo de implantao de
Igreja no Mundo: abandona-se o modelo tipo hierocrtico, ou seja, aquele em que a
sociedade tutelada pelo clero, para um outro em que o catolicismo ou o
Cristianismo passam a ser tutelados pelo soberano do prprio pas (Igreja nacional)
(2008: 21-22). Nesta dinmica, enquadram-se a doutrina regalista, o anti-romanismo, a
questo do Padroado no Oriente e tambm o processo de autonomia da Igreja Nacional
face de Roma. Esta ltima, com a perda da soberania territorial, tinha o romanismo
assim como o ultramontanismo e a Propaganda Fide incumbidos da tarefa de demonstrar
aos catlicos que era possvel governar a Igreja mesmo sem possuir o seu territrio.
Esta unificao, segundo Manuel Clemente (2008) citando Alexandre Herculano,
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resultado do Conclio de Trento que dissolveu as fronteiras nacionais dando lugar a
uma sociedade temporal, onde as liberdades da Idade Mdia tinham cedido j o
campo ao absolutismo vitorioso, [que] ter-se-ia reflectido na organizao da Igreja,
absolutizando-a tambm (2008: 29). Esta ordem centralista era, agora, posta em causa
pelas alteraes histricas que estavam a ocorrer na relao entre a Igreja e o Estado.
Neste sentido, a questo do Padroado do Oriente expresso da oposio entre
a soberania do estado portugus e o internacionalismo romano interessado no
exerccio de uma hegemonia espiritual na sia (Neto, 1998: 150) que uma questo
central nas Concordatas de 1857 e de 1886 e, mais tarde, na Concordata de 1940,
durante a vigncia do Estado Novo, inseparvel do Acordo Missionrio [] [em
relao ao qual] Salazar est convencido [de] que um acordo missionrio limitar
inevitavelmente os poderes da Propaganda Fide, que traduz uma espcie de
imperialismo da Igreja contra o nacionalismo dos Estados em misria colonial (Cruz,
1998: 62). A questo do Padroado do Oriente foi tida em conta por Afonso Costa na
elaborao da Lei da Separao, conservando-a, a par do beneplcito, enquanto aspecto
da tradio regalista.
Contra os interesses estabelecidos da Igreja, impunha-se um novo mpeto
modernizador no qual se afirmava um novo conceito de soberania nacional e de uma
nova ordem econmica e cultural (Catroga, 2010: 377) que tinha como epicentro a
questo religiosa na gnese e consolidao do Estado-Nao (Catroga, 2010: 377),
assumindo-se o Estado como o nico instrumento catalisador da mudana numa
sociedade civil frgil e pouco secularizada face fraca industrializao, urbanizao e
alfabetizao (factores secularizantes) do pas. No entanto, se, por um lado, o
Liberalismo e mesmo os liberalismos da Monarquia Constitucional reconheciam no
catolicismo um papel importante enquanto fundamento tico da sociedade, embora
[...] exigissem a formao de uma nova classe eclesistica (Neto, 1998: 329) e, como
religio oficial do Estado (Catroga, 2010: 361), uma espcie de religio civil nacional,
que nas primeiras dcadas do sculo XIX ainda no propunham a completa
secularizao do ensino, nem a separao das Igrejas do Estado (Catroga, 2010: 377),
defendendo o regalismo e o regime concordatrio, por outro lado, o mesmo j no se
passou com a emergncia do republicanismo e do socialismo que levavam a questo da
secularizao e da laicizao mais longe, tendo como expresso mxima, entre outras
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medidas, o no reconhecimento da personalidade jurdico da Igreja Catlica (Seabra,
2009: 93).
2.2. Secularizao: o processo
Repblica Velha e a Nova Repblica Velha
Os republicanos apresentavam um projecto poltico de laicizao totalizante, para
a sociedade portuguesa, cujas medidas iam mais longe que as dos liberais mais
avanados [que] continuavam a defender o regalismo, o regime concordatrio e a
secularizao do ensino e da assistncia pblica (Neto, 1998: 330). Das medidas
defendidas pelos republicanos, destacam-se a neutralidade poltica do Estado em
matria religiosa, o que significava separar a religio da poltica, pugnavam [ainda] pela
independncia nacional em relao a Roma, afirmavam a responsabilidade do poder
poltico na formao cultural dos indivduos e remetiam a religio para a esfera
privada (Neto, 1998: 330-331), com o intuito de reduzir a influncia da Igreja na
formao das conscincias.
Durante a Revoluo Liberal, a Igreja de Antigo Regime foi sujeita a uma
desestruturao, tendo sido nacionalizada pelos liberais, dando continuidade
prtica regalista pombalina, que acarretou um conjunto de reformas que perduraram
at Monarquia Constitucional, com o objectivo da Igreja ser colocada ao servio do
poder poltico. Desta forma, a separao da Igreja do Estado, enquanto aspirao dos
republicanos iniciada pela legislao do Governo Provisrio (5 de Outubro de 1910)
que culminaria com a promulgao da Lei de Separao do Estado das Igrejas
apresentada por Afonso Costa (20 de Abril de 1911), no convinha nem Igreja nem
ao Estado. Se a instncia funcionarizada e governamentalizada beneficiava com a sua
ligao ao poder civil, a elite liberal sabia que o apoio dos bispos, clero paroquial e dos
fiis era indispensvel perpetuao do regime (Neto, 1998: 266).
A prpria reproduo do sistema poltico, atravs do concurso das estruturas
polticas por um lado e da ideologia religiosa por outro (Neto, 1998: 266), era um
prenncio dos futuros entraves que seriam colocados ao projecto republicano, na
medida em que ele colidia com os interesses estabelecidos, tanto pelo poder poltico
liberal como pelo religioso e que esteve no cerne do levantamento das alas mais
extremistas do entendimento do ideal de laicidade num contexto poltico no qual a
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laicidade funcionava como arma de oposio poltica e de contestao social, em
nome de um projecto redentor do homem (Catroga, 2010: 278).
O processo de secularizao da I Repblica pode ser dividido em dois momentos.
Um primeiro, a Repblica Velha (1910-1917), caracterizado por uma laicidade
violenta que ps fim ao regime concordatrio e s relaes com a Santa S, e, um
segundo momento, a Nova Repblica Velha (1919-1926), no qual se verifica um
relativo abrandamento na Lei de Separao de Afonso Costa e, consequentemente,
a reconciliao com a Igreja e o restabelecimento das relaes com a Santa S, depois
do golpe militar de 5 de Dezembro de 1917, que se traduziu no afastamento dos
afonsistas (Neto, 2004: 24). Todavia, o regime concordatrio s seria restabelecido em
1940, aps anos de negociaes, em pleno Estado Novo.
A Lei de Separao do Estado e das Igrejas, de Afonso Costa, imps um novo
enquadramento para as relaes entre a Igreja Catlica e a Repblica Portuguesa, com
desvantagens bvias para a Igreja (Barreto e Mnica, 2000: 221). Resumidamente, o
Diploma consagrou a plena liberdade de conscincia a todos os cidados portugueses e
estrangeiros residentes em Portugal acabando com o culto oficial e decretou a
liberdade de culto autorizando todas as Igrejas ou confisses religiosas. Assim, a Igreja
Catlica era posta ao mesmo nvel de qualquer outra religio. Passaram a vigorar as
leis do Marqus de Pombal, de 1759 e 1767, que decretavam a expulso dos Jesutas
assim como o decreto de Antnio Jos de Aguiar de 1843, que extinguia todas as casas
religiosas (conventos, mosteiros, colgios, hospcios), estendendo-se s congregaes
religiosas autorizadas pelo decreto de 18 de Abril de 1901 para fins de instruo ou
beneficncia ou para a propagao da f no ultramar (Barreto e Mnica, 2000: 221).
Alm disso, manteve o beneplcito rgio que proibia a publicao das bulas, pastorais
ou outras determinaes da Santa S sem autorizao do poder poltico (Neto, 2004:
19). Extinguiu, tambm, o ensino religioso das escolas assim como os feriados
religiosos e a Faculdade de Teologia de Coimbra. O Estado deixava de financiar
qualquer que fosse o culto religioso, abolindo as cngruas e todas as formas de
subsistncia da Igreja. Esta ficava duplamente dependente do Estado: no plano poltico,
tal como j tinha acontecido na Revoluo Liberal, a Igreja sujeitava-se ao Estado que
lhe impunha regras e definia as normas da sua renovao social (Neto, 1998:118); no
plano econmico, com a perda das cngruas, que eram a sua forma de financiamento,
substitudas por penses vitalcias e, desta forma, o clero seria completamente
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funcionarizado pelo Estado (Neto, 2004: 20), penses vitalcias que, imagem das
medidas liberais, iriam criar clivagens dentro da hierarquia eclesistica. O Diploma
criou ainda as cultuais, entregando a gesto do culto aos livres-pensadores e
impedindo padres de fazerem parte delas. Todas as manifestaes religiosas foram
regulamentadas e a prtica do culto era livre desde que ficasse confinada aos lugares
para ela destinados. Neste mbito, a propriedade da Igreja foi nacionalizada. As Leis do
Divrcio e do Casamento Civil, que tinham como o objectivo a laicizao da famlia
(Seabra, 2009: 71), foram tambm promulgadas. A Lei do Divrcio, segundo Joo
Seabra, a primeira grande medida de transformao social numa sociedade
tradicional, fortemente alicerada sobre a famlia (Seabra, 2009: 71). A Lei do
Casamento Civil, estipulando o casamento como um contrato puramente civil, retira
Igreja o monoplio sobre o casamento cujo registo paroquial, anterior aos estados
modernos, essencialmente eclesistico na sua origem, na sua natureza e no seu fim
(Seabra, 2009: 75).
No seu todo, estas medidas afectaram principalmente o baixo clero, isto , os
paroquianos funcionarizados pelos liberais de origem rural, que viviam com mais
dificuldades. Por seu turno, elas visavam limitar a esfera poltica da Igreja deixando de
exercer a sua influncia ideolgica na sociedade, j que esta, com sculos de
implantao e de institucionalizao, continuava a deter um poder enorme na
formao das almas num pas analfabeto, de fraca urbanizao e industrializao,
factores indispensveis ao processo de secularizao. Nesse sentido, afastar a Igreja do
Ensino tornava-se fulcral para laicizar a sociedade e combater a hegemonia catlica.
A ciso Igreja-Ensino tornou-se, assim, um dos principais objectivos do projecto
republicano. J com o Liberalismo, a Igreja tinha visto diminuir a sua influncia poltica
[com] a extino das ordens religiosas, o poder civil ficava com o campo aberto para
alargar as suas funes ao ensino secundrio (Neto, 1998: 51). Como diz Fernando
Catroga (2004), a conquista da separao do Estado e das Igrejas requeria a separao
da Escola e das Igrejas, pois s a criao de um sistema de educao nacional e a
neutralizao religiosa da escola seriam capazes de fazer dos indivduos seres racionais,
tica e socialmente preparados para a prtica dos seus direitos e deveres como
cidados. Ideal que o ensino religioso por ser intolerante, anti-racional, anti-nacional
e anti-patritico (porque ultramontano) nunca poderia alcanar (2004: 109), ou seja,
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17
a disputa principal entre o Estado e a Igreja centrava-se dentro do poder espiritual, isto
, na formao das conscincias.
Segundo Fernando Catroga (2004), no bastava ao projecto de secularizao laico
uma laicizao externa, institucional. Para ir mais longe, era necessrio uma
laicizao interna, empenhada em retirar Igreja a sua hegemonia na formao e
atraco das almas (2004: 112), ou seja, alcanar a conscincia dos indivduos de
forma a alter-la, s possvel com a afirmao da autonomia do homem perante a
justificao transcendente da tica, do conhecimento e das expectativas humanas
(2004: 107), pela autonomizao da Escola face Igreja bem como a secularizao do
corpo docente (2004: 111).
de salientar que algumas destas imposies legais no tiveram as repercusses
pretendidas, [s] 200 padres aderiram aos preceitos do decreto, s 87 cultuais
funcionaram devidamente (Barreto e Mnica, 2000: 222). As penses foram aceites
por um nmero pouco significativo de padres e a maioria dos decretos s surtiram
efeito nos meios de influncia republicanos, ou seja, nas cidades. Como afirma Maria
Lcia de Brito Moura, a ruptura entre pensionistas e no pensionistas foi adquirindo
um carcter irreversvel. () Os padres do penso, como alguns lhes chamavam ()
eram votados ao ostracismo pelos colegas que haviam permanecido fiis hierarquia
(2004: 154-155). Esta ciso entre faces do clero, j se manifestara no liberalismo,
ultrapassava as questes meramente pontuais e emotivas e encontrava a sua razo
ltima na oposio entre dois universos mentais e duas concepes do mundo (Neto,
1998: 58) que no tempo do liberalismo se exprimia no conflito entre absolutistas e
liberais.
Como diz Vtor Neto (1998), o processo de secularizao avanava
essencialmente nas cidades e, por isso, foi a que emergiu uma opinio desfavorvel
restaurao das ordens religiosas. Na verdade, os meios urbanos desempenharam um
papel fundamental na desestruturao das concepes tradicionais do mundo e na
aquisio de ideias e de valores secularizados (1998: 301). Daqui decorre que as
medidas, apesar de severas, no abalaram a autonomia da Igreja. Considerando que
Portugal era um pas maioritariamente rural, em vias de urbanizao e industrializao,
a esfera de influncia republicana esbarrava com um pas expressivamente analfabeto
sob a gide da Igreja Catlica, h muito o principal mecanismo de regulao social e
poltica.
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18
A Lei de Separao do Estado e das Igrejas de Afonso Costa no foi recebida
consensualmente pelos republicanos. Dentro do espectro republicano, afirmaram-se
divises quanto s finalidades a que se propunha o decreto, por diferentes razes,
designadamente por uma questo de sustentabilidade do regime republicano
caracterizado, desde a sua implementao, pela acentuada instabilidade governativa3.
A harmonizao das relaes entre a Igreja e o Estado adquiriu uma importncia
fulcral na estabilidade governativa. [Para] resolver a questo religiosa e pacificar a
sociedade a Repblica necessitava de chegar a um acordo com o Vaticano reatando as
relaes diplomticas (Neto, 2003: 24). Ora, vigorava nalguns sectores republicanos
liberais ou catlicos uma ideia positiva do papel social da igreja e da religio catlica
desde que reformada (ou secularizada), nomeadamente no partido Evolucionista e na
Unio Republicana que mostraram interesse na reviso do decreto de Afonso Costa.
Dos republicanos que tentaram o apaziguamento dos conflitos entre o Regime e
a Igreja e o restabelecimento das relaes com a Santa S, destacam-se Brito
Camacho, Moura Pinto e Antnio Jos de Almeida. As primeiras aproximaes Santa
S foram levadas a cabo, sem xito, por Jos Relvas e Bernardino Machado. S aps o
golpe militar de 5 de Dezembro de 1917, com estabelecimento do Governo ditatorial
presidido por Sidnio Pais, que as relaes com o Vaticano iriam ser reatadas. O
aspecto mais importante desta retoma foi a publicao do diploma n 3.856 que
estabeleceu a reviso da Lei da Separao (Neto, 2004: 24) pelo Ministro da Justia,
Moura Pinto. Apesar do diploma manter a neutralidade religiosa do Estado, alterava
alguns dos artigos considerados mais polmicos: decretou a anulao das cultuais,
atribuiu s irmandades a organizao do culto (), substituiu as penses ao clero por
uma subveno pessoal, anual e vitalcia, aboliu o beneplcito e permitiu ao clero o uso
de vestes talares (Neto, 2004: 25), criando as condies necessrias para uma
pacificao das relaes entre o Estado e a Igreja.
ainda de assinalar, relativamente neutralidade religiosa do Estado na
Repblica Velha, que este propendia para uma posio de subordinao da Igreja
3 A 1 Repblica pautou-se por uma grande instabilidade governativa de que so exemplo os 46 governos de 1910 (Governo Provisrio) a 1926 (governo democrtico de Jos Maria da Silva), que foram desde zero dias (o referido governo de Francisco Fernandes Costa, nomeado a 15 de Janeiro de
1920, que no chegou a tomar posse, e, na prtica, o de Joo Chagas, de 15 de Maio de 1915, atacado a tiro na estao do entroncamento por Joo Jos de Freitas, embora formalmente tivesse durado at ao dia 29) ao governo de cerca de um ano e um ms (o de Afonso costa, de 9 de Janeiro de 1913 a 9 de
Fevereiro de 1914, e o governo da Unio Sagrada, de Antnio Jos de Almeida, com o apoio de Afonso Costa e dos democrticos, de 15 de Maro de 1916 de Abril de 1917) (Torgal, 2010: 43).
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ou das Igrejas ao Estado (Torgal, 2009: 429), ao contrrio da frmula Igrejas livres no
Estado neutro, indiferente ou laico (Catroga, 2004: 111) [e], em oposio formula
liberal Igreja Livre no Estado livre (proposta avanada pelo catolicismo liberal desde o
segundo Lamennais) (Catroga, 2004: 111). Sendo o Regime Republicano laico,
favorecia a regulao e ingerncia da autoridade civil nos problemas e na organizao
da Igreja, de forma que no estamos diante uma Igreja Livre ou de Igrejas Livres mas
duma Igreja e Igrejas subordinadas aos interesses do Estado. A Nova Repblica
Velha vem alterar esta situao propondo a frmula de Lamennais - Igrejas livres no
Estado neutro, indiferente ou laico - pois, apesar das alteraes em curso, encontrava-
se ainda sob a orientao da Constituio Republicana de 1911.
As cerimnias religiosas solenes em 2 de Maro e 14 de Dezembro de 1918 por
alma dos soldados portugueses mortos na I Grande Guerra, com a presena do
Presidente da Repblica Sidnio Pais, foram tambm elas um sinal da viragem da
poltica religiosa levada a efeito pela Repblica Nova (Neto, 2004: 26).
Chegava-se assim ao compromisso entre as duas instituies, embora o
radicalismo republicano no tivesse desaparecido uma vez que o Partido Democrtico
se manteve num combate ideolgico apenas atenuado pela censura nos jornais
(Catroga, 2004: 27). A aproximao entre elas diminuiu o conflito desencadeado pela
questo religiosa. Porm, j com Antnio Jos de Almeida como Presidente da
Repblica, num ltimo esforo de restabelecimento das relaes entre Estado e Igreja,
a Repblica encontrava-se j num estado de desagregao definitiva (Neto, 2004: 27).
Seria esta desagregao que, independentemente das relaes Estado-Igreja, ditaria o
fim da Primeira Repblica e levaria emergncia do Estado Novo.
2.3. Secularizao:
o processo no Estado Novo
Depois da Primeira Repblica, neste captulo tratar-se- de analisar o movimento
de secularizao no Estado Novo, que pode ser dividido em trs fases: a primeira que
vai desde a ditadura militar, passando pela instaurao do Estado Novo em 1933, at
assinatura da Concordata (1926-1940); a segunda, entre a assinatura da Concordata e a
morte de Salazar (1940-1970); finalmente, a terceira que culmina com o fim do Estado
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20
Novo em 1974. No entanto, as duas primeiras sero o alvo principal da nossa anlise.
Questionamos, ento, em que medida o Estado Novo promoveu a secularizao.
O projecto de laicizao do Estado e da sociedade lanado pelo movimento
republicano, que pretendia afirmar a separao de dois mundos diferentes, o
espiritual e o poltico, acabava tambm por forar uma ligao dos eclesisticos ao
poder do Estado, [] houve reas particularmente difceis de definir e nas quais se
encontravam os dois plos, Estado e Igreja: a educao, a cincia e a cultura,
assistncia e a famlia (Torgal, 2004: 98), reas que constituram a fonte de conflitos
entre os dois e onde a separao se tornou mais conflituosa.
Foi nas reas sociais e culturais em que as fronteiras foram e so ainda mais
difceis de definir. Se na Repblica essas fronteiras se tornaram mais liminarmente
visveis por mrito da legislao de Afonso Costa, com o Estado Novo e com a subida
de Salazar ao poder as fronteiras esbateram-se de forma que podemos falar duma
aproximao nas relaes entre as duas instituies. No obstante a manuteno da
separao entre Igreja e Estado, a neutralidade confessional do Estado (que s cairia
no fim do regime salazarista aps a sua morte, em 1970, com Marcelo Caetano no
poder), e a dissenso entre o novo regime e a Igreja da qual testemunha as relaes
entre os dois at Concordata assinada em 1940 (assim como pelo tempo que duraram
as negociaes e o carisma conflituoso que as caracterizou), tudo isto no impediu que
as relaes entre a Igreja e o Estado se estabilizassem, como afirma Fernando Catroga:
[se] se afirmava o carcter laico do Estado, ele acabava por privilegiar a Igreja em
troca do seu apoio poltico e invocando valores de f (Catroga, 2010: 247).
A relao Estado-Igreja pautava-se por alguma ambivalncia ao longo da histria
do Estado Novo, que veio dificultar ainda mais a definio das fronteiras entre as duas
instituies assim como a anlise do Estado Novo enquanto regime laico ou
Catolaico, segundo Braga da Cruz (1998). Esta ambivalncia deve-se em parte
sabedoria da Igreja (que sensatamente reconheceu no ser o fascismo nem anticristo
nem totalitrio nos seus princpios e apenas estabeleceu uma separao entre Igreja e
o Estado que j existia noutros pases), que a atitude inicialmente anticlerical do
nacionalismo fascista deu rapidamente lugar [] a uma aliana, como em Espanha e
Portugal (Arendt, 2006: 341).
Este regime considera-se Catolaico, segundo Braga da Cruz (1998), porque o
catolicismo no foi considerado como a religio do Estado assim como o nome de
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Deus nunca foi constitucionalizado, ao contrrio do Franquismo, apesar da sua
orientao catlica e da estreita ligao e colaborao entre as duas instituies. A
relao Estado-Igreja foi-se alterando ao longo do tempo acabando com a manifesta
oposio ao regime, seno na totalidade, duma parte significativa da populao catlica
secular e regular.
Este foi um regime caracterizado pela criao da iluso do que se no , que se
dizia anti-totalitarista, vindo a ganhar contornos que caracterizavam os regimes
totalitrios (no num sentido Arendtiano, que significaria o fim do Estado pelo
movimento nacional nacional socialismo - mas num sentido autoritrio)4. O mesmo
sucedeu com a implementao do modelo corporativo que, de aparncia associativa,
dissimulava o mesmo centralismo estatal e do qual o nacional sindicalismo e o Estatuto
do Trabalho Nacional so testemunhos. , pois, desta estratgia de opacidade e de
ambiguidade entre o discurso de como o Regime se v e diz ser, como ele se
apresentava e o que na realidade ele era que relevam os maiores entraves e dificuldade
sua anlise.
Da ditadura militar de 1926 at a 1933, ano em que o Estado Novo tem o seu
incio, as relaes entre o Estado e a Igreja sofrem algumas alteraes. Entre estas
destacam-se, por um lado, o reconhecimento da personalidade jurdica das
corporaes encarregadas de culto (que no ainda da Igreja) (Cruz, 1998: 14), medida
rectificada na dcada de trinta em que se concedeu a liberdade de culto e de
organizao de todas as religies, a quem se reconhece existncia civil e
personalidade jurdica (Cruz, 1998: 17) e, por outro lado, a liberdade de ensino
religioso nas escolas particulares (no ainda nas pblicas) (Cruz, 1998: 14) pois, nas
escolas pblicas, s viria a ser aprovado com a Concordata em 1940, tal como o
estatuto das misses catlicas (Cruz, 1998: 14).
Em 1933, com a subida de Salazar ao poder eram oferecidas aos catlicos
garantias de vir a resolver as pretenses catlicas em matria de poltica religiosa e de
poltica social. No pois de estranhar a atitude de colaborao que patenteia a Igreja
com a instaurao do novo regime que, nos terrenos poltico, social e colonial, abre
perspectivas particularmente apreciveis Igreja e sua aco (Cruz, 1998: 17) e,
inclusivamente, ingressou nos corpos polticos do Estado Novo.
4 Braga da Cruz, O partido e o Estado no Salazarismo, Lisboa Editorial Presena, 1988, 18-27.
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22
A dissoluo do Centro Catlico, importantssimo organismo de mobilizao
poltica catlica de onde veio Salazar e seu principal apoiante poltico, e a sua
substituio pela recm-criada Unio Nacional assim como a criao da Aco Catlica
simbolizavam a separao da Igreja do Estado. Salazar rejeitava a intromisso do
poder poltico na vida da Igreja [], ora qualquer tentao clericalista de ingerncia na
vida poltica (Cruz, 1998: 17) dividia desta forma os poderes e correspondentes
exerccios, concedendo U.N. um papel de interveno poltica e relegando o papel da
A.C.P. para a esfera social, que era a esfera da Igreja. Estas medidas levariam alguns
catlicos a insurgirem-se. No impedindo os catlicos de participar na vida poltica,
essa participao era somente possvel pela sua insero na U.N., cuja aco era
puramente poltica e, desta forma, separava liminarmente a esfera religiosa da
participao poltica na sociedade. A aco catlica ficava pois limitada ao exerccio de
difuso e actuao dos princpios catlicos (Cruz, 1998: 24).
A Concordata, assinada em Roma a 7 de Maio de 1940, no satisfez por completo
as pretenses dos catlicos, como futuras exigncias o confirmaro (Cruz, 1998: 45),
visto que manteve a separao entre as duas instituies. O Estado Novo afirmava-se
um regime com um esprito catlico (Barreto e Mnica, 2000: 220) ou que
aproveitava o fenmeno religioso como elemento estabilizador da sociedade (Cruz,
1998: 16). Assim, de acordo com o estabelecido na Concordata, o Estado reconheceu a
personalidade jurdica da Igreja sem necessidade de recorrer ao beneplcito. Alm
disso, reconheceu os direitos e os privilgios de que era detentora, nomeadamente a
propriedade dos bens, que antes de ser desapossada pelos liberais e republicanos, lhe
pertencia. Foi-lhe concedida, ainda, iseno de impostos e contribuies e liberdade de
organizao. O Estado, por seu turno, ficava impedido de ingerncia na nomeao das
autoridades eclesisticas, apesar de exigir uma notificao quando tal ocorria.
Concedia s misses do Ultramar subsdios, exigindo a Cidadania portuguesa aos
bispos, procos e demais autoridades do clero secular e regular (art. 9.) (Cruz,
1998: 49). As questes do casamento civil e do divrcio, apesar de terem sido
ponderadas, no foram definitivamente resolvidas no s pela possibilidade de
existirem casamentos considerados civis sem serem cannicos mas tambm pela
possibilidade de s abdicarem do divrcio os casamentos cannicos. Um dos artigos
mais polmicos e que mais conflitos geraram entre o Estado e a Igreja foi o do ensino
particular da Igreja. Apesar da ratificao constitucional de 1935, [na qual se
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23
considerava que] o ensino ministrado pelo Estado [devia] orientar-se pelos
princpios da doutrina e moral crists, tradicionais do pas (Barreto e Mnica, 2000:
235), a Igreja continuava subordinada ao Estado no que dizia respeito ao ensino
privado. Era-lhe concedida a liberdade de exercer o ensino mas os locais e os diplomas
seriam sujeitos fiscalizao e oficializao por parte do Estado.
A partir da dcada de quarenta, no obstante o entendimento na prossecuo
dos interesses de ambos que, em muitos aspectos, foram coincidentes (Cruz, 1998:
15), assinalada pela Concordata, comeam a aumentar as dissenses entre catlicos e o
Estado Novo, j precedidas por outros conflitos, nomeadamente ao relegar o papel da
Igreja para uma aco estritamente social. Este enquadramento reflecte-se nas crticas
da Igreja tendncia laicizadora, estadualista e autoritria do novo regime, que Salazar
prontamente desmentiu, afirmando que o Estado Novo se subordinava ao direito e
moral (Cruz, 1998: 32) e ao associar o corporativismo a uma funo cristianizadora
com a promulgao do Estatuto do Trabalho Nacional [que] foi saudada com
entusiasmo pela generalidade dos catlicos (Cruz, 1998: 33).
2.4. A II Guerra Mundial:
o agravar das dissenses
Com a II Guerra Mundial, agudizam-se as relaes entre o Estado e a Igreja. O
apoio catlico ao regime vai conhecer alteraes ora pelo desenvolvimento do
progressivismo, ora pelas divergncias existentes entre o Estado Novo e o Vaticano.
Com o crescente descontentamento dos sectores catlicos relativamente ao regime
abre-se a questo social. A derrota dos nacionalismos italiano e alemo, e a vitria das
democracias ocidentais (Cruz, 1998: 93), a descolonizao e o tardar da
implementao das medidas concordatadas - a questo confessional e a questo do
ensino da Igreja - assim como um certo revs do modelo corporativista do Estado
Novo, no que diz respeito ao cumprimento das promessas inicialmente sugeridas por
Salazar e a frustrao das expectativas criadas por ele, daro mote para um
agravamento das relaes entre as duas instituies.
Os catlicos tinham resolvido entrar nas estruturas corporativas para as
cristianizar renunciando hiptese alternativa do desenvolvimento e da criao
paralela de sindicatos ou organizaes associativas operrias catlicas autnomas
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24
(Cruz, 1998: 95). Estas organizaes foram vedadas pelo Estatuto do Trabalho
Nacional, que, se de princpio foi bem recebido pela elite catlica, com o passar do
tempo, o corporativismo inicialmente associativo, ao ganhar contornos estatistas
(centralizadores), impedindo o livre associativismo, est na origem do
descontentamento e das crticas dos catlicos ao regime.
Com estas alteraes, a Aco Catlica, formada em 1933 por incentivo de Pio
XI, nos primrdios limitada pelos estatutos do Estado Novo a uma aco puramente
social, vai ganhar contornos cada vez mais polticos na vida social portuguesa,
designadamente por intermdio dos seus dois rgos de expresso, a L.O.C. (Liga
Operria Catlica) e a J.O.C. (Juventude Operria Catlica). Desta crescente crtica
so exemplo iniciativas como o I Congresso dos Homens Catlicos, em Dezembro de
1950, e o I Congresso da J.O.C., em 1955, e ainda a importncia do papel do Padre
Abel Varzim, onde se vo delineando as linhas da futura questo social que dizia
respeito no s aos problemas que afectavam a Igreja mas tambm os problemas que
afectavam os trabalhadores portugueses. Esta estratgia seria inclusivamente acusada
pelo Subsecretariado de Estado das Corporaes [] de usar [um] estilo marxista
(Cruz, 1998: 96), e est na origem do lanamento das linhas de aco e crtica poltica
ao regime no que diz respeito ao problema do trabalho. Esta questo foi tema da III
Semana Social Catlica, em 1949, na qual se abordou o trabalho como direito e como
dever, a organizao, a higiene, a durao e a remunerao do trabalho, a relao do
trabalho com a moral e com a propriedade, a participao dos trabalhadores na gesto
e lucro das empresas, o trabalho de menores e de mulheres, a formao para o
trabalho (Cruz, 1998: 97), entre outros problemas que diziam respeito classe
operria.
Por seu turno, o prprio plano ambicionado pela Aco Catlica, no obstante
as preocupaes com a situao dos trabalhadores, tinha como fito a recristianizao
do operariado, combatendo deste modo o pendor laicizante que mantinha o Estado
Novo pelo impedimento de ingerncia da Igreja nos problemas polticos e econmicos,
limitando-a, assim, aco social.
A ingerncia da Igreja no que concerne aos problemas dos trabalhadores
assume contornos secularizantes, nomeadamente pela formao do sindicalismo catlico
que conhece um impulso decisivo com a publicao em 1891, da encclica Rerum
Novarum (Rezola et al., 2004: 133) e, em 1931, com a publicao da encclica
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Quadragsimo Anno de Pio XI. O sindicalismo catlico vigorou no perodo entre a
ditadura militar, de 1930 a 1933. Neste ano, assistir-se-ia constituio do Estatuto
Nacional do Trabalho e do Nacional Sindicalismo, que poriam o fim ao sindicalismo
catlico e s formas pr-existentes de sindicalismo e associativismo. O seu papel,
embora efmero e de frgil expresso, no pode, contudo, ao pretender recristianizar
o operariado, ser considerado laico na medida em que este era um dos pontos por ele
combatido. No entanto, o sindicalismo catlico, politizando-se na defesa dos direitos dos
trabalhadores em detrimento do papel recristianizador, fez com que a questo
operria [adquirisse] uma nova relevncia para a Igreja, ou pelo menos para os seus
sectores mais avanados, lanando as bases da Doutrina Social da Igreja (DSI) (Rezola
et al., 2004: 133).
Ainda que a Igreja estivesse integrada no esprito da Revoluo Nacional, na
base das crticas da Igreja ao corporativismo de Estado (e no de associao) e ao
Estatuto do Trabalho Nacional estava o impedimento do livre associativismo, a
negao do direito greve e a excessiva tutela do Estado sobre os sindicatos
nacionais (Rezola et al., 2004: 139), como escrevia o Bispo do Porto, D. Antnio
Ferreira Gomes, notando que as profisses no podem organizar-se no justo respeito
da liberdade pessoal dos seus membros e na legtima personalidade da prpria
organizao em face de outras organizaes []. No o corporativismo em si
mesmo que alvo da crtica [] mas sim a organizao corporativa portuguesa [],
denunciando a proletarizao geral dos campos (Cruz, 1998: 99-100).
Serve ainda de exemplo o Bispo da Beira, D. Sebastio Soares de Resende,
sujeito censura pelas duras crticas ao regime publicadas no Dirio de Moambique, em
que denunciava os mais variados problemas sociais. No sentido de se mobilizar os
catlicos para fazer face aos problemas dos trabalhadores, criado em 1933 o
Secretariado Nacional de Aco Social Catlica, substitudo, em 1935, pelo
Secretariado Econmico e Social e a Unio Popular Catlica. Porm, os seus
promotores deixam bem claro no se tratarem de organizaes sindicais
aconselhando os operrios [] a ingressar nos Sindicatos nacionais (Rezola et al.,
2004: 141) pois eram as nicas estruturas autorizadas de representao do operariado
na defesa dos seus interesses.
Pesem embora as crticas ao regime por alguns sectores da Igreja catlica, estas
no faziam eco na totalidade da hierarquia da Igreja, acusada de excessivo
-
26
comprometimento com o regime, que se defendia pelas palavras do Cardeal Cerejeira
aquando das eleies de 1945, em que manifestava o carcter no confessional do
Estado Novo, acrescentado que o perodo contemporneo da vida portuguesa era
um dos maiores perodos de liberdade, de paz e de ressurgimento nacional, onde o
mtuo reconhecimento, a dupla cooperao, sem confuso das respectivas esferas de
competncia e a profisso da doutrina crist como base da tica do Estado e da
educao nacional fazem que o Estado no seja nem laicizante nem totalitrio e que
a Igreja seja legalmente reconhecida e garantida, e, como tal, fundamento de
liberdade (Cruz, 1998: 104).
Este comprometimento com o regime era reforado pela questo geopoltica
suscitada pela Guerra Fria e pelo anticomunismo e anti-socialismo vigente na esfera
eclesistica, que tinha como cerne o carcter anticlericalista dos regimes em causa, ou
seja, se at dado momento o projecto secularizante era comummente aceite pela
Igreja, enquanto esta mantivesse um papel central na conduo e construo das
conscincias e da moral dos indivduos, j no o era no que dizia respeito ao plano
laico que a arredava e condicionava nesse mesmo papel. Por seu turno, o eventual
afastamento da Igreja est na origem do projecto democrata-cristo, para fazer face
crescente supresso da liberdade, nomeadamente a religiosa, de que so protagonistas
os Padres Francisco Veloso e Joaquim Alves Correia, afectos ao M.U.D. (Movimento
de Unidade Democrtica), e o P.e Abel Varzim, com o intuito de constituir um partido
democrata-cristo, em 1946, que s veria luz do dia com fim do Estado Novo.
So, pois, o cerceamento das liberdades religiosas, mas acima de tudo, das
liberdades polticas da Igreja as suas principais crticas, e dos seus organismos C.A.D.C.
e J.O.C., sendo estes ltimos o motor da operacionalizao da oposio da Igreja ao
Estado Novo e tambm de mudana interna da Igreja.
A questo confessional prendia-se com os limites impostos Igreja pela
Concordata, por esta considerar que, de um lado, a religio catlica devia ser a religio
oficial do pas e do Estado e, de outro, incluir a invocao do nome de Deus no
prembulo da Constituio, propostas estas que viriam a ser rejeitadas. Apesar das
inmeras tentativas para que tal sucedesse, a religio catlica viria a ser considerada,
por ingerncia de Marcelo Caetano, com a reviso constitucional de 1951, como
religio da Nao Portuguesa (Cruz, 1998: 105).
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Alm disso, ao tornar facultativo o reconhecimento jurdico e civil das
associaes e organizaes das demais confisses, at ento considerado incondicional,
a reviso constitucional de 1951 limitava desta forma a liberdade para as confisses
no catlicas (Cruz, 1998: 106).
Relativamente ao ensino, se a Constituio consagrara uma orientao do
ensino pblico pelos princpios da doutrina e moral crists, j, quanto ao ensino
privado, em particular o da Igreja, o Estado impunha os seus limites reclamando o
direito de fiscalizar os programas das escolas assim como de oficializar os seus
diplomas.
A Constituio tinha consagrado o direito Igreja de ensinar em escolas
particulares e de poder ensinar a disciplina de Religio e Moral no ensino pblico, no
entanto, [o] Estado estava longe de reconhecer os direitos e o papel da Igreja na
educao (Cruz, 1998: 108), tendo sido inclusivamente criticado por Guilherme Braga
da Cruz pelo Estado se afastar desta forma da doutrina social da Igreja (Cruz, 1998:
108) e de este defender um sistema escolar essencialmente estatal.
Este confronto ganharia contornos maiores com a proposta da criao duma
Universidade Catlica, qual Salazar se ops veemente, e que s concretizaria anos
mais tarde, em 1967, ainda com Salazar no poder.
A demasiada ingerncia do Estado no associativismo, nos organismos
acadmicos assim como a falta de autonomia do Ensino Universitrio foram fontes de
insatisfao dos catlicos e do meio estudantil. No I Congresso da J.U.C. (Juventude
Universitria Catlica), em 1955, (Barreto e Mnica, 2000: 237), estas consideraes
viriam a ser sublinhadas.
A questo missionria que j vem desde o Liberalismo e que atravessa os sculos
XIX e XX, como j tivemos oportunidade de referir, repercutia-se nas ms relaes
entre a Igreja e o Estado. No tempo do Estado Novo, esta instabilidade prendia-se
com a interferncia do Vaticano nos territrios colonizados (por intermdio da
Propaganda Fide) na nomeao de missionrios de origem estrangeira (externa ao
Padroado) e sem a consulta do governo portugus, como aconteceu com a nomeao
de D. Teodsio Clemente de Gouveia como Prelado de Moambique (Barreto e
Mnica, 2000: 225), qual o Estado Novo se opunha. A ingerncia do Vaticano, com o
processo de descolonizao, veio a ganhar outros contornos, que no nos interessam
aqui discutir, mas que legitimariam o seu papel nos territrios ainda de soberania
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portuguesa sob a gide dos justos direitos dignidade e autodeterminao dos
povos africanos (Cruz, 1998: 181). De alguma forma, verificou-se, com o aproximar
do fim do colonialismo, um retrocesso no relacionamento com o Vaticano e um
ressurgimento do seu papel no mundo ou, se quisermos, com a descolonizao volta a
abrir-se uma porta, fechada quase dois sculos por Concordatas com Portugal.
A Santa S, ao nomear para a diocese de Bombaim um arcebispo Indiano,
contrariando desse modo a alternncia pactuada em 1928 de bispos ingleses e
portugueses (Cruz, 1998: 110), obrigou a uma futura negociao dos acordos do
Padroado, que viria a acontecer em 1950, em que [o] Estado portugus renuncia
ento ao privilgio de apresentao de nomes dos bispos e dioceses em territrio da
Unio Indiana e da nomeao de bispos portugueses para algumas delas (Cruz, 1998:
110), depois de ter sido acusado de os utilizar para fins polticos num territrio que
no era da sua jurisdio.
A questo colonial assume outra importncia aquando da audincia do Papa aos
lderes dos movimentos de libertao africanos, em 1970, com a realizao da
Conferncia de Solidariedade com os Povos das Colnias Portuguesas, promovida
pelas trs grandes confederaes sindicais italianas [] na qual compareceram os
lderes dos principais movimentos de libertao em luta com Portugal: Amlcar Cabral,
do PAIGC, Agostinho Neto do MPLA, e Marcelino dos Santos da FRELIMO (Cruz,
1998, p. 180). Embora o Vaticano tenha negado qualquer significado poltico, o
encontro contribuiu para o aumento da conscincia crtica catlica em face da guerra
ultramarina, e para o desenvolvimento de atitudes que iriam perturbar
progressivamente as relaes entre o Estado e a Igreja (Cruz, 1998: 185).
Apesar da abertura do Vaticano s crticas dos catlicos ao Estado Novo e
Guerra Colonial, nomeadamente pela realizao de um Conclio de Toda a Igreja pelo
Papa Joo XXIII, dando alento aos sectores crticos da Igreja em Portugal (Cruz,
1998: 158), o Cardeal Cerejeira, por ocasio dos 25 anos da Aco Catlica, em
Abril, em Ftima, [] criticaria abertamente os catlicos progressistas, que tentam
conciliar a esperana crist da f com o mito marxista da criao dum mundo novo,
da gnese de um homem novo, e conferem primado ao temporal, confiando
exclusivamente na aco poltica, esquecendo a aco espiritual e moral (Cruz, 1998:
158-159), confirmando, desta forma, a existncia de clivagens internas da Igreja,
recaindo a principal crtica sobre o que viria a ser rotulado de catolicismo progressista.
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A diviso interna da Igreja tinha vindo a ganhar vigor desde as eleies
presidenciais de 1958, com a campanha eleitoral de Humberto Delgado, que, apesar de
no ter chamado a si toda a populao catlica, na sua maioria apoiante de Salazar,
conseguiu, no entanto, arrastar para a oposio sectores at a tidos como afectos ao
regime, entre os quais um grupo significativo de catlicos (Cruz, 1998: 113), que
seriam responsveis pelo desencadear de futuras aces de protesto e de organizao
de cooperativas, como a PRAGMA, que eram um indcio das contendas existentes
entre catlicos, no s contra o regime poltico como contra o comprometimento da
Igreja com o Estado Novo.
O Conclio Vaticano II, a 4 de Maio de 1974, foi determinante pois defendeu
que a Igreja e os catlicos devem agir contra a injustia e em favor dos direitos
humanos. Alm disso compete aos poderes pblicos velar pela observncia integral
dos direitos humanos, harmonizar e regular devidamente o seu exerccio, garantir a
reparao dos que forem lesados e trabalhar pela instaurao de uma ordem social que
facilite aos cidados a defesa dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres
(Barreto e Mnica, 2000: 232), palavras que ecoaram no seio catlico suscitando
divises no seu interior e motivando a sua mobilizao contra o Estado Novo.
2.5. Concluso
O termo secularizao, segundo Cesar A. R. Jnior (2008), designa a perda de
importncia do religioso na sociedade em detrimento duma racionalidade que no se
fundamenta na racionalidade religiosa e tem como caracterstica a autonomizao das
diferentes esferas da vida social em relao Igreja. J a laicidade expresso do
conflito e da luta pela autonomizao do Estado em relao Igreja. A laicidade ,
neste sentido, um fenmeno poltico, j a secularizao pode ser um fenmeno poltico
se articulado com o movimento laico, mas pode no o ser se somente traduzir uma
consequncia da modernizao/modernidade, ou seja, se, independentemente dos
conflitos existentes entre Estado-Igreja, se traduzir por uma perda de influncia da
Igreja, como resultado da instalao duma ordem baseada na razo e na cincia (2008:
69-70).
Todavia, observando-se transformaes nas relaes Estado-Igreja, fruto do
processo de modernizao, pela instalao duma ordem baseada na razo e na cincia,
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esta no implica uma perda de influncia por parte da Igreja na sociedade, como
constatamos no Estado Novo, o que no anula a existncia de conflitos entre as
instituies, sem, no entanto, podermos consider-los como resultado do processo de
laicizao.
A laicidade concebida, segundo Fernanda Matos (2007), como um dos aspectos
da secularizao, significando uma maior autonomia dos indivduos e das instituies
sociais, frente tutela eclesistica, regime de separao jurdica entre Estado e Igreja,
assim como a garantia dos cidados face a ambos os poderes (2007: 9). Neste
sentido, a instaurao duma racionalidade que no se baseia numa racionalidade
religiosa trouxe consigo transformaes na relao Estado-Igreja mas que no se
repercutiram, no Estado Novo, na autonomia da sociedade civil face Igreja.
Depreende-se, assim, que a secularizao que diz respeito apenas a uma autonomizao
do Estado em relao Igreja no significa que dela resulte a perda da sua influncia na
sociedade. Por outras palavras, s se pode considerar secular, no a autonomizao do
Estado face Igreja e vice-versa, mas a autonomizao da sociedade civil em relao
religio. Conclui-se, ento, que o conceito de secularizao que se restringe relao
Estado-Igreja insuficiente para a anlise do processo em questo.
Como diz Fernando Catroga (2010), toda a laicidade uma secularizao, mas
nem toda a secularizao (ou foi) uma laicidade, da mesma forma [a] laicidade no
se confunde com a liberdade religiosa, o pluralismo e a tolerncia. Pode haver
liberdade religiosa, pluralismo e tolerncia sem que haja laicidade (Jnior, 2008: 64),
que o tema central da nossa anlise deste trabalho.
Ainda que se entenda por secularizao como a transferncia do contedo, dos
esquemas e dos modelos elaborados no campo religioso, para o campo profano, o que
acaba por relativizar a radical novidade dos tempos modernos, assim reduzidos
condio de herdeiros, no obstante todas as suas iluses de auto-fundao (Catroga,
2010: 17), certo que o termo alude no ao fim da religio mas transformao duma
religiosidade mais pblica para a uma forma mais privada, fenmeno que no teve eco
no Estado Novo. Logo, o processo de secularizao, neste perodo, ficou suspenso at
ao 25 de Abril de 1974.
Se na Primeira Repblica podemos falar numa secularizao laica, quanto ao
Estado Novo, dificilmente o podemos considerar laico ou ainda secular, na medida em
que a Igreja Catlica, no obstante s depois da morte de Salazar ter sido considerada
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como a Igreja oficial do Estado, teve sempre um carcter pblico e nunca, ao contrrio
do que se possa pensar, apesar do esforo republicano, perdeu a sua autonomia. Esta
autonomia viu-se fortalecida no Estado Novo, onde teve oportunidade de
experimentar novas formas de participao poltica da se poder falar dum
rejuvenescimento/renascimento da Igreja de que se vai socorrer na passagem para a
democracia.
Ao analisarmos o Estado Novo, no encontramos qualquer pendor laico, para
alm do encontrado por Braga da Cruz e que, mesmo assim, vem aposto ao
Catolicismo (Catolaico). Alm disso, o pendor secularizante da religio
funcionarizao, Sindicatos Catlicos, L.O.C., J.O.C., M.U.D., Aco Catlica no se
traduziu por uma privatizao da Igreja, ou, por outras palavras, por um decrescer do
papel pblico da Igreja, muito pelo contrrio. Daqui decorre a nossa anlise que toma
em conta todos estes factores e que nos leva a afirmar que o processo de secularizao
foi suspenso no Estado Novo.
No que diz respeito ao conceito secularizao, conclui-se que ele no pode ser
utilizado como categoria para analisar o processo de modernizao e de
autonomizao do Estado relativamente Igreja, uma vez que, se o Estado tanto na
Repblica como no Estado Novo se modernizou e autonomizou em si actividades que
no tm como base uma racionalidade religiosa (Catroga, 1999), s na Repblica que
so observveis transformaes de ndole social, ou s nela que se observa a
tentativa de alterar a relao entre o Estado e a Igreja e o papel da Igreja na sociedade,
pois a sua implementao tinha um fundamento laico. De outro modo, as
transformaes ocorridas no Estado durante o Estado Novo nada mais foram do que a
prpria operacionalizao do Estado e da sua adaptao s transformaes
decorrentes duma nova racionalidade (que assinalam a sua modernizao), impondo
Igreja novos desafios, mas de que no surtiu nenhuma transformao no que diz
respeito relao do Estado com a Igreja e desta com a sociedade.
O mesmo pode dizer-se do mpeto secularizante da Igreja e da questo social que
nada mais so do que um indicador da capacidade de adaptao da Igreja s
transformaes na organizao poltica como uma oportunidade/tentativa de alargar a
sua esfera de domnio, na sociedade, por intermdio da participao poltica. No
fundo, a participao poltica da Igreja, embora conflituosa, no deixou de ser um sinal
da capacidade de adaptabilidade da Igreja s mudanas ocorridas e aos tempos, da se
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poder falar dum rejuvenescimento do seu papel na sociedade por intermdio de novas
formas de interveno.
Dos conflitos entre a Igreja e o Estado Novo conclumos que eles tm origem no
cerceamento da participao poltica da Igreja e no caminho que o Estado Novo
seguiu, j que, do ponto de vista ideolgico, a Igreja nunca condenou a organizao
corporativa. A Igreja foi sempre um pilar de estabilidade social do Estado Novo. A
ideologia do Estado Novo e a organizao corporativa nunca foram o alvo das crticas
da Igreja, e, sim, o caminho que o Salazarismo acabou por tomar.
Por ltimo, se o termo secularizao utilizado para designar o fenmeno de
adaptao, apropriao e metamorfose do religioso sob o impacto da modernidade
(Catroga, 2010: 453), de que so exemplo os sindicatos catlicos, o M.U.D., o J.O.C., o
L.O.C. e a Aco Catlica, essa adaptao, a ser secular, seria caracterizada pela
privatizao, subjectivizao e pluralizao do religioso, mas tal no aconteceu em
Portugal. Daqui decorre que, apesar do envolvimento do religioso em novas formas de
expresso poltica, isso no se traduziu de forma secularizante porque no promoveu
nenhuma das caractersticas que identificam a secularizao enquanto fenmeno:
privatizao, subjectivizao e pluralizao (Catroga, 2010: 458).
Sublinhamos que, no caso do Estado Novo, no seguimento do que diz Fernando
Catroga ao afirmar que toda a laicidade uma secularizao, mas nem toda a
secularizao (ou foi) uma laicidade, se toda a laicidade uma secularizao (no
confundir com laicismo), quando cessa de ser laica cessa de ser secular, na medida em
que a relao entre Igreja e Estado no se caracterizou por uma dessacralizao da
sociedade. De facto, a religio continuou a ser um elemento estruturador da
sociedade, assim como os valores e as normas que orientam o comportamento das
pessoas no se distanciaram de qualquer referncia ao religioso mesmo nos domnios
da vida social regidos por regras prprias (da Cincia e da Tcnica), nem se assistiu a
uma privatizao da religiosidade, que se manifesta com a transferncia da religio para
a esfera privada.
O processo de diluio e deteriorao da influncia dos valores, smbolos,
prticas e instituies religiosas conhecido como secularizao acabou por no ocorrer
durante o Estado Novo, apesar dos esforos tentados pela Primeira Repblica.
poca da Primeira Repblica, a ausncia de autonomia da sociedade civil, aliada
a uma forte ingerncia da Igreja Catlica na educao e na vida social das pessoas,
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testemunha a inexistncia de quaisquer indcios de secularizao na sociedade, para
alm das evidenciadas pelo Estado, a nica instituio onde so observveis os
primeiros esforos de secularizao. Logo, o processo de secularizao em Portugal est
intimamente ligado ao laicado, autonomizao do Estado face Igreja, e o Estado
enquanto principal instrumento de luta pela emancipao social da sociedade civil.
Sendo assim, no podemos considerar como secular a adaptao da Igreja ao
processo de modernizao assim como a sua relao com o Estado Novo (Concordata,
Acordo Missionrio). Pelo contrrio, as relaes que estabeleceram as duas identidades
fortaleceram a Igreja Catlica em detrimento das outras igrejas existentes, isto , a
Concordata no promoveu a pluralizao religiosa nem a privatizao do culto religioso
e a sua subjectivizao. A Concordata promoveu um regime de separao jurdica entre
Estado e Igreja que no se saldou pela autonomia dos indivduos e das instituies
sociais nem do poder civil face ao religioso, assim como no garantiu a autonomia dos
cidados face a ambos os poderes, muito pelo contrrio, a relao entre Estado e
Igreja combateu essa autonomizao de que so exemplos a declarao da Religio
Catlica como a religio oficial da Nao Portuguesa e o cumprimento dos
compromissos assumidos na Concordata e no Acordo Missionrio (1940), muito
teis para a expanso do Catolicismo e para o fortalecimento dessa Igreja (em Portugal
e na sociedade internacional).5
3. MODERNIZAO DO ESTADO EM PORTUGAL
Neste captulo, partimos das categorias desenvolvidas por Weber e Habermas
sobre os Sistemas de Aco Racional Teleolgica, de forma a apreender a mudana
estrutural de enquadramento institucional de uma sociedade tradicional, na transio
para uma [sociedade] moderna (Habermas, 1987: 56). Interessa-nos saber,
nomeadamente, em que medida que a autonomizao do Estado, face a outros
sectores preponderantes da sociedade portuguesa, se deveu a um processo
autopoietico (Luhmann, 1995: XX) em termos de racionalizao, especializao e
burocratizao, ou seja, emergncia dos Sistemas de Aco Racional Teleolgica -
dirigidos a fins nos subsistemas sociais, como no econmico ou [no] aparelho
5 Manuel Gonalves Martins, IV Congresso Portugus de Sociologia, p. 10.
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estatal (Weber apud Habermas, 1987: 60), e menos a uma questo ideolgica. Estes
sistemas por si s estabeleceram e asseguraram a separao entre o Estado e a Igreja,
que muitos autores consideram sinnima de secularizao. No nosso ponto de vista,
porm, desta separao, consequncia da modernizao, no podemos inferir o grau
de secularizao da sociedade portuguesa no perodo poltico em estudo.
Segundo Habermas, as sociedades tradicionais so aquelas cujo poder
centralizado, representado pelo Estado ou pela organizao de parentesco,
caracterizadas por uma organizao social dividida em classes socioeconmicas e em
que existe um sistema de representao e de legitimao assente em algum tipo de
mundividncia (mito, religio superior) (Weber apud Habermas, 1987: 61).
A emergncia dos Sistemas de Aco Racional Teleolgica um indicador das
transformaes ocorridas num sistema social em processo de modernizao, ou seja,
o problema [ o] de reconstruir conceptualmente a mudana institucional, resultado
da presso do alargamento dos subsistemas de aco racional teleolgica (Weber
apud Habermas, 1987: 56), identificando, por intermdio deles, a mudana das
sociedades caracterizadas por um sistema de dominao tradicional para um de
dominao burocrtica.
Apesar de tanto a Primeira Repblica como o Estado Novo apresentarem
caractersticas associadas s sociedades tradicionais e do desenvolvimento dos
Sistemas de Aco Racional Teleolgica, primeira vista, no ter sido assim to
evidente, por questes estruturais, no primeiro regime pela ausncia duma poltica
econmica e pela instabilidade governativa de que so representativos os 45 governos
entre 1910 e 19266, e no segundo, no Estado Novo, pelo fraco desenvolvimento
industrial e duma modernizao lenta associada a uma estatizao da economia (apesar
da estabilidade do sistema poltico), esta situao no impediu que em cada um dos
regimes se tivessem operado mudanas no sentido da sua emergncia, mais visvel no
Estado Novo, que viu crescer a administrao pblica, cujo sector [] fonte de maior
investimento foi o da obras pblicas (Barreto e Mnica, 2000: 54), e o aparelho
burocrtico.
Neste sentido, partimos para a anlise do Estado Portugus, assumindo a
racionalizao, especializao e a burocracia do Estado como tecnologia/tcnica7 de
6 Antnio Costa Pinto et al., Portugal Contemporneo, Lisboa, Dom Quixote, 2005, 18. 7 Technology, in its broader sense, is functional simplification, that is, a form of the reduction of complexity that can be constructed and realized even though the world and society where this takes
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dominao (Weber e Marcuse, apud Habermas, 1987; Luhmann, 1998), de
conhecimento e de aco ontolgico-poltica e heurstica, enquanto instrumento
central terico da nossa pesquisa.
A hiptese avanada que a separao entre as duas esferas, a do Estado e da
Igreja, tcnica, em resultado do processo de modernizao do Estado que imps e
definiu per se os limites entre a esfera poltica ligada ao Estado e a social ligada Igreja,
e que se objectiva no e por intermdio do Corporativismo, o modelo econmico,
poltico e social estabelecido pelo Estado Novo. De outro modo, o Estado pelo seu
grau de modernizao operou esta separao por intermdio da racionalizao,
especializao e burocratizao e pelo crescimento e desenvolvimento da
administrao pblica, sem que desta separao tenha advindo uma mudana da
relao Igreja-Estado, no que concerne ao processo de secularizao.
Num primeiro momento, trataremos do desenvolvimento da Funo Pblica em
Portugal na Primeira Repblica e no Estado Novo, e relativamente a este ltimo
assinalaremos as caractersticas principais do modelo Corporativo. Num segundo
momento, tratar-se- a emergncia da tcnica e da cincia dos Sistemas de Aco
Racional Teleolgica com especial relevncia para histria da Engenharia em
Portugal.
Por agora, interessa-nos definir que factores so esses que nos permitem
distinguir o Estado moderno em relao ao do Antigo Regime, o que implica a histria
da sua evoluo, no que diz respeito ao seu crescimento, os recursos (financeiros e
burocrticos), as funes de que ele se ocupa (os mecanismos de regulao pblica),
de forma a apreender de que maneira ocorreu a modernizao do Estado portugus
assim como a perceber como que os dois sistemas polticos se operacionalizaram em
termos institucionais a fim de atingirem os seus objectivos.
Subjacente modernizao do Estado est, para alm da crescente influncia e
ingerncia deste na vida poltica, social e cultural da sociedade, como nos diz
Antnio Manuel Hespanha (2007), [aquilo] a que se assiste no sculo XIX [que] no
apenas a extenso (quantitativa, externa) do Estado; nem apenas [] uma
intensificao da sua aco; tambm [] uma exaltao laica da sua natureza, como
entidade que assegura um governo liberto da paixo e do arbtrio [] dominado por
um princpio tico (o da cura do bem pblico) racional e geral, possibilitando-lhe
place is unknown. It is self-assessing. The emancipation of individuals, even irrational individuals, is an unavoidable side effect of this technologizing. (Luhmann, 1998: 6)
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libertar-se quer da legitimao monrquica, quer da legitimao democrtica (2007:
18-19). Este princpio tico, no obstante as diferenas existentes entre a Primeira
Repblica e o Estado Novo, motivou o fortalecimento e o crescimento do Estado,
relativamente aos poderes institudos (os da coroa e da Igreja).
Por ltimo, a burocracia, enquanto integrante dos Sistemas de Aco Racional
Teleolgica que, segundo Max Weber8, uma marca do movimento de
racionalizao do mundo moderno [] A racionalizao implica um maior predomnio
da aco racional na prossecuo de um fim extrnseco (Zweckrational), tpica do
burocrata, ou pelo menos, da aco racional referida a um valor (Wertrational), e uma
menor relevncia emotiva ou tradicional (Lopes, 1973: 57). Em causa esto, pois, a
emergncia de mecanismos de mediao entre o Estado e a sociedade civil sob a gide
da categoria de racionalidade de Weber.
No se inclui no mbito deste trabalho aprofundar o conhecimento sobre a
burocracia nem sobre o funcionamento interno da organizao burocrtica, e, sim,
assinalar a importncia dos mecanismos que comprovam a sua existncia, as suas
funes e a sua importncia na prossecuo dos fins, para que foi utilizada, tanto na
Primeira Repblica como no Estado Novo.
3.1. O Desenvolvimento da Administrao Pblica
A Revoluo Liberal mostrou-se, nos seus propsitos, segundo Antnio Manuel
Hespanha (2007), adversria de um governo activo no que respeita s liberdades
polticas ou s chamadas garantias pessoais (liberdade pessoal, liberdade de expresso
de pensamento, inviolabilidade de domiclio) []. Quanto ordem social e civil,
mostrou, pelo contrrio, esperar a aco governativa do Estado (defesa, polcia,
governo civil, governo econmico) (2007: 20). O Estado liberal caracteriza-se, ento,
por ser pouco interventivo. A sua verso ortodoxa seria a de devolver a regulao a
entidades privadas, de natureza associativa (Hespanha et al., 2007, p. 20) mas, nos
casos tanto da polcia como na construo das infra-estruturas de comunicao, a
soluo foi cometer a primeira ao governo nacional ou ao municipal, e a segunda ao
Estado, funes que ganharam este sentido nas Cortes de 1821 (2007: 20).
8 Srgio Lopes, Anlise Social, Vol. X (1.), 1973 (n. 37), 51-78.
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Segundo o autor, independentemente do modelo constitucional, [o] desenho do
Estado prev a sua eminncia sobre a sociedade civil, atribuindo aos estados direitos
de interveno ou regulao social (Hespanha et al., 2007: 17). Neste sentido, a
Primeira Repblica herdou uma administrao pblica tpica do Estado Liberal:
estruturada luz da doutrina do no-intervencionismo, era uma administrao
pequena, tanto em nmero de servios pblicos como em nmero de funcionrios;
dispunha de escassos poderes de interveno e controle sobre a vida a economica,
social e cultural (Barreto e Mnica, 2000: 51). O no-intervencionismo do Estado
alargava-se s mais variadas esferas, inexistncia de mecanismos de regulao do
mercado, da sade, previdncia, ou seja, a administrao pblica era liberal no plano
poltico e econmico.
Apesar da Primeira Repblica ter dado continuidade ao modelo poltico liberal de
no-intervencionismo, s funes tradicionais do governo de defesa, justia e ordem,
acrescem agora funes racionalizadoras (Hespanha et al., 2007: 23) no que diz
respeito ideia da existncia de um variado e amplo dever de prestao por parte da
administrao pblica [] adquirida na doutrina administrativa portuguesa da dcada
de 1840 [] [justificando] os amplssimos poderes da administrao (Hespanha et
al., 2007: 22). Estes poderes ir esta conquistar no futuro e vo exigir do Estado a
multiplicao e complexificao das suas funes assim como a ampliao do seu raio
de aco. Estas transformaes, como veremos, fizeram, por um lado, aumentar
imenso o nmero de funcionrios pblicos; por o