O BINÔMIO PROFESSOR-ALUNO: REFLEXÕES SOBRE...

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117 Rev. Científica Eletrônica UNISEB, Ribeirão Preto, v.7, n.7, p.117-133, jan/jun. 2016. O BINÔMIO PROFESSOR-ALUNO: REFLEXÕES SOBRE PAPEIS E INTERAÇÕES SOCIAIS ENTRE OS ATORES DESTA RELAÇÃO Pedro Colombaroli Zoppi - bacharel em Letras (latim-português) pela UNESP Araraquara, Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Estácio Uniseb de Ribeirão Preto. Elizabete David Novaes doutora em Sociologia pela Unesp Araraquara; docente do Centro Universitário Estácio Uniseb de Ribeirão Preto. A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia. [...] Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? Grande Sertão: Veredas Resumo O presente trabalho intenta situar a relação professor-aluno como relação essencialmente humana. Para tanto, parte de uma compreensão sociológica a respeito da educação, e subsequentemente volta-se para uma reflexão de esteio psicanalítico, buscando entender a relação professor-aluno a partir de uma teia de reflexões que enriqueçam a prática docente. Palavras-chave: Educação. Relações humanas. Docência. Aprendizado. Psicanálise. Sociologia. Abstract The present work intends to situate the relationship between teacher and student in the human sphere through a psychoanalytical basis. Moreover, sociological concepts will be used in order to make an epistemic counterpoint. As a result, very important reflexions and statements on the problem are expected to be made, therefore enriching the teaching practice. Keywords: Human relationships. Education. Teaching. Learning. Psychoanalisis. Sociology. Introdução Existe uma gama de constantes e padrões no ser humano e em sua interação com o outro, assim, não é sem razão que Terêncio celebrizou a frase “sou humano: nada do que é humano me é alheio”. Como conjecturou Freud, o cerne da psique humana é perpetrado pelo incessante conflito entre ἔρος (Éros) e θάνατος (Thánatos), o amor (enquanto vida, criação, preservação) e a morte (destrutividade, tendência de retorno ao inanimado), as duas vertentes de nosso universo pulsional (FREUD, 2004a). Na formação anímica do homem, há processos vivenciais e condições existenciais que transcendem às culturas e à teia do tempo, ainda que por eles sejam

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    Rev. Cientfica Eletrnica UNISEB, Ribeiro Preto, v.7, n.7, p.117-133, jan/jun. 2016.

    O BINMIO PROFESSOR-ALUNO: REFLEXES SOBRE

    PAPEIS E INTERAES SOCIAIS ENTRE OS ATORES DESTA

    RELAO

    Pedro Colombaroli Zoppi - bacharel em Letras (latim-portugus) pela UNESP Araraquara,

    Acadmico do Curso de Direito do Centro Universitrio Estcio Uniseb de Ribeiro Preto.

    Elizabete David Novaes doutora em Sociologia pela Unesp Araraquara; docente do Centro

    Universitrio Estcio Uniseb de Ribeiro Preto.

    A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o madrugar,

    com lua no cu, dia depois de dia. [...] Mestre no quem sempre ensina, mas

    quem de repente aprende. Por que que todos no se renem, para sofrer e

    vencer juntos, de uma vez? Grande Serto: Veredas

    Resumo

    O presente trabalho intenta situar a relao professor-aluno como relao essencialmente

    humana. Para tanto, parte de uma compreenso sociolgica a respeito da educao, e

    subsequentemente volta-se para uma reflexo de esteio psicanaltico, buscando entender a

    relao professor-aluno a partir de uma teia de reflexes que enriqueam a prtica docente.

    Palavras-chave: Educao. Relaes humanas. Docncia. Aprendizado. Psicanlise.

    Sociologia.

    Abstract

    The present work intends to situate the relationship between teacher and student in the human

    sphere through a psychoanalytical basis. Moreover, sociological concepts will be used in order

    to make an epistemic counterpoint. As a result, very important reflexions and statements on the

    problem are expected to be made, therefore enriching the teaching practice.

    Keywords: Human relationships. Education. Teaching. Learning. Psychoanalisis. Sociology.

    Introduo

    Existe uma gama de constantes e padres no ser humano e em sua interao com o

    outro, assim, no sem razo que Terncio celebrizou a frase sou humano: nada do que

    humano me alheio.

    Como conjecturou Freud, o cerne da psique humana perpetrado pelo incessante

    conflito entre (ros) e (Thnatos), o amor (enquanto vida, criao, preservao)

    e a morte (destrutividade, tendncia de retorno ao inanimado), as duas vertentes de nosso

    universo pulsional (FREUD, 2004a). Na formao anmica do homem, h processos vivenciais

    e condies existenciais que transcendem s culturas e teia do tempo, ainda que por eles sejam

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    esculpidos e caracterizados. Trata-se do que Guimares Rosa, em Grande Serto: Veredas,

    to belamente chamou de [...] homem humano... Travessia (2006, p. 608).

    No bojo do humano, o pensador destaca a presena marcante de fenmenos

    edificadores e norteadores do indivduo, como as pulses, o Complexo de dipo, as intrincadas

    relaes objetais, a transferncia, a contratransferncia, o recalque, a sublimao, o

    deslocamento, entre outros mecanismos de lida e interao com a prpria psique e com o meio

    externo.

    No meio externo, o sujeito se defronta com um duro e constante desafio: o outro;

    que constitui o cerne do paradoxo ontolgico to caracterstico sua natureza. Como bem

    definiu W. Bion: O ser humano s e dependente. Tal condio ambgua, dplice, deixou

    lastros e marcas particulares em uma dimenso imemorial de nosso passado originrio ecoando

    no presente, a saber: a forja de nossa memria filogentica, o registro mais atemporal da

    evoluo humana, em cujo imo encontra-se uma das relaes intersubjetivas mais universais; e

    que figura como objeto do presente estudo: a relao entre mestre e aprendiz, professor e aluno.

    luz deste breve panorama introdutrio, apresenta-se a seguir uma reflexo acerca

    da construo da identidade, da dinmica intersubjetiva e do soerguimento de conhecimento na

    relao educativa, o que se faz, a princpio, por meio de uma abordagem sociolgica, que se

    desdobra posteriormente numa abordagem psicanaltica a respeito da relao professor-aluno.

    1. A Escola e a Socializao do Indivduo

    A sociologia da educao vem se dedicando, desde as contribuies clssicas de

    Emile Durkheim, tentativa de entender a escola e seus agentes, dentro de um contexto mais

    amplo, qual seja, a sociedade da qual participa e se insere.

    Como cincia social, a sociologia estuda essencialmente as formas de

    relacionamento entre os grupos, assim como as consequncias dessa relao, voltando seu

    objeto para as diferentes formas de interao social (SIMMEL, 2006). Desta forma, tendo como

    principal alvo o estudo da sociedade, a sociologia percebe a educao como uma forma valorosa

    de relacionamento entre as pessoas, buscando compreender melhor o comportamento dos

    grupos sociais e, por conseguinte, as relaes entre agentes escolares.

    Como mencionado, Emile Durkheim apresenta-se classicamente como um dos

    principais socilogos a se preocupar com tal temtica, especialmente voltado para a questo da

    socializao do indivduo, enfatizando o papel que a escola possui neste processo. Em obras

    como Educao e Sociologia (1978), A Evoluo Pedaggica na Frana (1995) e Educao,

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    Moral e Sociologia (2001), considera o autor que a escola se coloca como uma instituio

    fundamental para formao do indivduo, medida que a escola e a sociedade interagem e se

    completam.

    Vendo a sociedade como um organismo em funcionamento, em que diversas partes

    trabalham conjuntamente para um objetivo final, a escola aparece como uma instituio que

    reflete as condies sociais da realidade em que se insere. Assim, cabe escola socializar o

    indivduo, transmitindo-lhe e inculcando-lhe as regras sociais atravs da reproduo dos hbitos

    e valores.

    Numa viso semelhante, Talcott Parsons, especialmente na obra A Estrutura da

    Ao Social (1937), trouxe a percepo de que processo de socializao do indivduo permite

    que este aprenda a desempenhar determinados papis sociais, possibilitando que este

    aprendizado leve formao de uma determinada personalidade. Isto ocorre porque a educao

    leva o indivduo a internalizar as normas sociais, permitindo que seja formada uma determinada

    identidade social.

    Percebe-se como resultado, evidenciado tanto por Durkheim quanto por Parsons,

    que a educao, como processo de socializao, capaz de moldar os seres sociais, favorecendo

    a manuteno da vida social, exercendo assim uma funo dentro de uma sociedade, que se

    tornou historicamente mais complexa, especialmente por decorrncia da diviso do trabalho.

    Vale resgatar, para efeitos desta reflexo que aqui se faz, algumas linhas de

    pensamento que se voltaram a entender os processos de socializao a partir de uma perspectiva

    microssociolgica, enfatizando o cotidiano dos indivduos e suas aes sociais, colocando como

    objeto especial nesta perspectiva, as interaes sociais e o estudo dos grupos sociais. Tal

    abordagem, embora prpria da psicologia social, possibilita que a anlise das relaes entre

    mente e sociedade tambm faa parte dos estudos sociolgicos acerca do meio familiar, do meio

    escolar, dentre outros.

    Vrios autores permitem diferentes ensaios sobre a aproximao entre indivduo e

    sociedade, evidenciando que ao tratar de questes sociais, no se pode limitar ao estudo do

    indivduo, dado que existe algo que se sobressai a ele, resultado das diferentes formas de

    interao social. Como expressa Simmel (2006), trata-se da sociao, conceito que, para

    Simmel, demonstra que a sociedade no uma realidade em si mesma, ela , de fato, resultado

    da interao entre os dois polos (indivduo e sociedade).

    Numa perspectiva microssociolgica encontra-se George Herbert Mead, que,

    especialmente por meio da obra Mind, Self, and Society (1932) aborda os processos de formao

    file:///C:/wiki/Talcott_Parsonsfile:///C:/wiki/Papel_socialfile:///C:/wiki/Aprendizadofile:///C:/wiki/Personalidadefile:///C:/wiki/Identidade_socialfile:///C:/wiki/Microssociologiafile:///C:/wiki/A%25C3%25A7%25C3%25A3o_socialfile:///C:/wiki/Intera%25C3%25A7%25C3%25A3o_socialfile:///C:/wiki/Grupo_socialfile:///C:/wiki/Psicologia_socialfile:///C:/wiki/George_Herbert_Mead
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    da subjetividade (Self) a partir da capacidade dos indivduos de se representarem no lugar do

    outro (o Outro generalizado).

    Representando a microssociologia americana, encontra-se uma importante

    contribuio em Erving Goffman, notadamente na obra A Representao do Eu na vida

    Cotidiana (2009), em que o autor aborda as interaes sociais entre indivduos, segundo a

    perspectiva da micro-interao, ou seja, aquela que se expressa entre um pequeno grupo, num

    momento e num espao especficos. De acordo com esta perspectiva, os indivduos emergem

    como atores sociais, que desempenham papeis sociais decorrentes das interaes face-a-face.

    Segundo esta perspectiva, pode-se considerar a interao professor-aluno como um

    encontro de interao, em que as partes procuram obter informao a respeito do outro,

    buscando antecipar ou estabelecer as expectativas em relao ao outro. Cada parte, em meio a

    interao que se estabelece, busca definir (consciente ou inconscientemente), qual a maneira de

    agir ser eleita. Em outros termos, os sujeitos definem qual o personagem que iro incorporar

    ao longo da interao que estabelecem.

    Na interao professor-aluno, observa-se um encontro, no qual se estabelece um

    contato face-a-face das partes envolvidas, que se ajustam aos papeis a serem desempenhados.

    Observa-se, assim, que embora exista um processo de socializao promovido pela escola, que

    inculca valores e padres nos alunos, a interao social expressa um processo ativo, em que as

    partes constroem modelos de conduta, de pertencimento e de expresso social.

    Resta evidente que as relaes entre agentes escolares, mais especificamente entre

    professor-aluno, por serem relaes humanas, so, sem dvida, relaes complexas. Tais

    relaes envolvem conflitos, interesses, intenes, nem sempre claras para nenhuma das partes

    envolvidas em tal interao.

    Como se observa, isoladamente, a sociologia no d conta de compreender tais

    relaes, o que na realidade, no se pode fazer por meio de nenhuma cincia isolada, seno

    recorrendo s contribuies dos dilogos interdisciplinares. o que se busca fazer a seguir,

    resgatando as reflexes decorrentes da psicanlise.

    2. A relao Professor-Aluno sob a tica Psicanaltica

    Intenta-se neste tpico compreender teoricamente a dinmica da sala de aula, sob a

    tica psicanaltica dando foco especial aos conceitos freudianos, no alijando, contudo, os

    desenvolvimentos posteriores das sendas desbravadas por Freud; isto , no seria possvel

    excluir as contribuies seminais de psicanalistas como Anna Freud, M. Klein e Bion de nossa

    file:///C:/wiki/Self
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    base terica uma vez que, aps pesquisa preliminar, constatou-se ser enriquecedora no

    mergulho descritivo da alma humana.

    Buscando uma leitura mais penetrante da obra freudiana, sempre positivo

    trabalhar com os textos originais1, uma vez que, como assinalou Bruno Bettelheim em seu s

    de percucincia e sensibilidade, Freud e a alma humana, as tradues sobretudo a inglesa

    so seriamente defeituosas em importantes aspectos e tm levado formulao de concluses

    errneas, no s a respeito do homem Freud, mas tambm no que diz respeito psicanlise

    (1982, p. 7).

    Para o presente trabalho, pois, fundamental levar em conta a dimenso

    humanstica, filosfica - e no exclusivamente cientfica - dos escritos freudianos2, mesmo no

    sendo os autores deste artigo especialistas da rea.

    2.1 A construo da identidade

    Freud coloca a frustrao provocada pela falta do objeto materno que M. Klein

    (1959) posteriormente reviu e aprofundou como a dicotomia infante/seio materno como a

    ausncia primria, gerativa de perambulaes subsequentes e consequncias permanentes na

    vida psquica do indivduo. A falta do objeto em questo mobiliza e estrutura no sujeito

    processos compensatrios e substitutivos, ensejando o processo de individuao (a

    diferenciao primordial entre o Eu e o Outro), de simbolizao e, por fim, de pensamento na

    mente da criana (BION, 1994).

    Portanto, na esfera da frustrao e da ausncia que surge a primeira necessidade

    de busca de conhecimento e, mais que isso, se desenvolve o Instinto Epistemoflico; e a partir

    da distino primeva entre o Eu e o Outro que se principia a linha reflexiva acerca da questo

    proposta3.

    Contudo, no de todo vlido tentar prolongar esta etapa singularista de nossa

    proposta terica. Sobretudo quando se estuda a relao mestre-aprendiz, a contemplao isolada

    de um Eu e um hipottico alijamento do Tu so infrutferos, estrdios. Fundamental na anlise

    que ora se apresenta o esmiuamento dos meandros da intersubjetividade. Figurativamente:

    seria possvel pensar isoladamente em Dom Quixote e Sancho Pana? Sim. Mas apenas

    1 A Fischer Verlag, atualmente, detm os direitos de publicao em alemo da obra do pensador. 2 No se trata apenas dos clssicos empecilhos de traduo, como Unbehagen, Trieb, Seele, entre outros que

    exigem extensas notas de rodap, mas de ter compreenso lmpida de um corpus extremamente denso.

    3 Klein, no captulo Sobre Identificao (1975, p.74), prope que na emergncia da ansiedade depressiva no

    beb, em consequncia de uma maior capacidade de integrao de ambivalncias vivenciadas nas relaes objetais,

    que se estrutura o processo de simbolizao e se originam as primeiras instigaes epistemoflicas.

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    superficialissimamente uma distino tal concebvel. Quanto mais nos afastamos de Sancho

    Pana e perdemos o fio do dualismo, menos conhecemos sobre seu mestre. Em suma: trata-se

    de um problema que, em sua plenitude, apenas ganha vigor e luminosidade sob o prisma

    dialtico. O dilogo entre bacia do carbeiro e o elmo de mambrino (SAAVEDRA, 2004, p.

    463-473) revela a essncia interacional de nossa identidade e a inevitabilidade de se voltar o

    olhar relao humana como via summa de acesso a um suposto Eu.

    Apesar disso, ao passo que se versa sobre a identidade dos elementos humanos

    envolvidos na trama educacional, acrescenta-se simultaneamente um parecer crtico sobre o

    conceito psicanaltico envolvido, valendo-nos, para tanto, indicao de especialistas

    consultados, do Dicionrio de Psicanlise de Roudinesco e Plon (1998), alm da prpria obra

    de Freud e de alguns ps-freudianos, que perambulam pelas citaes literais e pelas entrelinhas

    deste artigo. Destarte, objetiva-se maior coerncia e sustentao para o gradeado de

    pensamentos aqui colacionados.

    O encargo de professor dos mais rduos que h. Contudo, precedendo prxis

    educativa, h consideraes de natureza idiossincrtica, ontolgica (numa acepo mais livre),

    a se tecer questionamentos que identifiquem constantes de identidade, trazendo luz

    posteriormente perscrutao da vivncia da subjetividade e da intersubjetividade, a saber: o

    que ou, antes, quem o professor? O que caracteriza sua condio (qui, essncia) de

    mestre? E, fundamentalmente: quais seriam as condies de existncia, num sentido identitrio,

    do mestre? Em suma, como situar o docente, em sua plenitude, na esfera do humano?

    O dilema da individualidade frente coletividade onipresente na literatura

    universal e foi, talvez, Shakespeare quem melhor o sintetizou, quando atribui a Rei Lear a

    indagao quem que pode me dizer que rei sou eu?. No original, a pergunta composta s

    por monosslabos, o que salienta o sentimento de solido de quem busca o prprio eu: Who is

    this that can tell me who I am?.

    A princpio, h que se ressaltar que, sob a tica psicanaltica, o professor , antes

    de tudo, um ser humano cujas circunvolues inconscientes o motivaram ao ofcio em questo4.

    Ora, isso representa um investimento alto de afeto em dois objetos, a saber o aluno (figurando

    no papel do Outro) e o conhecimento (a ponte ou via conectiva). a catexia ou investimento

    que todo mestre perfaz; sendo em absoluto cabvel aqui mencionar a definio de um conceito

    4 Segundo Boholavsky (apud SILVA, 1994, p.13), a escolha profissional est relacionada com as primeiras

    figuras de identificao, identificaes estas no distorcidas, dependendo de uma boa integrao dos objetos

    internalizados, da elaborao dos conflitos. Anlise e sntese, frutos da integrao das identificaes, permitem

    que o ego confronte fantasia e realidade. [...] Portanto, quem escolhe no est escolhendo somente uma carreira,

    [...] est pensando num sentido para a vida.

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    to psicanaliticamente essencial: [...] mobilizao da energia pulsional que tem por

    conseqncia ligar esta ltima a uma representao, a um grupo de representaes, a um objeto

    ou a partes do corpo. No Brasil, usa-se tambm [o termo] catexia (ROUDINESCO; PLON,

    1998, p.398).

    Assim sendo, consoante o modelo at aqui elaborado, a natureza humana do

    professor e de sua escolha e vivncias enquanto tal fatalmente o leva a defrontar-se com

    seus desejos, convices e aspiraes; de modo que seja absolutamente inevitvel que, permeio

    o contato com o Outro e sob as obrigatoriedades regenciais do sistema escolar, ele no vivencie

    o sentimento de quebra de expectativa e frustrao, em algum grau. Essa, supe-se, a segunda

    tnica identitria do mestre.

    Evidentemente, tudo isso faceia seu receptor: o aluno; uma vez que todo seu labor

    e aspiraes e convices e nsias sero postos frente ao e s vezes em coliso com o

    aprendiz. No caso tentador de imp-los em vez de prop-los, elimina-se a individualidade do

    aluno e a reciprocidade constitutiva da relao saudvel e transforma-se o processo educativo

    em martrio silente5.

    Como situar, nesse nterim, o aluno? Sem dvida, h uma comunho identitria com

    o professor no sentido de ambos terem voz e aspiraes e desejos. So humanos. No entanto,

    pela prpria origem e desenvolvimento do instinto epistemoflico (KLEIN, 1959), a busca pelo

    conhecimento , por natureza, tendente ao caos, desregrada, anrquica, provida de imensa carga

    libidinal. Diante disto, pode-se concluir que a catexia intrnseca condio de aluno dirigida

    ao conhecimento, que o enleia ao mestre.

    Nessas circunstncias, constata-se que h uma via transferencial de mo dupla em

    ao no decorrer do processo educativo. Por transferncia, designa-se

    ... um processo constitutivo do tratamento psicanaltico mediante o qual os desejos

    inconscientes do analisando concernentes a objetos externos passam a se repetir, no

    mbito da relao analtica, na pessoa do analista, colocado na posio desses diversos

    objetos [...] O termo transferncia no prprio do vocabulrio psicanaltico.

    Utilizado em inmeros campos, implica sempre uma ideia de deslocamento, de

    transporte, de substituio de um lugar por outro, sem que essa operao afete a

    integridade do objeto (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 766-767)

    Freud, nas Cinco lies de Psicanlise, publicadas em 1910, prope que a

    transferncia no advm do trabalho realizado em setting psicanaltico. O fenmeno emerge

    naturalmente na interao humana, evocando vivncias da esfera inconsciente, trazidas ao palco

    5 Silva (1994, p.12) de igual parecer: Na dinmica da transferncia, que se estabelece na relao professor-

    aluno, tanto pode emergir uma relao construtiva que possibilite o desenvolvimento do ato educativo quanto

    possvel que se estabelea uma relao de poder, negativa, por parte do professor, um mau uso do lugar que ocupa.

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    do dilogo e projetadas no interlocutor. Couto (2003) argui de maneira categrica a importncia

    de se pensar a fundo um fenmeno to recorrente no processo dialtico do aprendizado:

    'Necessidade inevitvel, a transferncia surge espontaneamente em todas as

    relaes humanas, reinstalando os equivalentes simblicos do desejo sexual infantil

    inconsciente que transitou pelo circuito sedutor me-filho, e invocando, nas

    subjetividades que se encontram, algo que falta. Esses fenmenos vividos e

    teorizados por Freud parecem ser o ncleo de uma questo que circula entre

    educadores e psicanalistas: o fenmeno transferencial na relao professor-aluno

    (p.75-76; nossos grifos)

    O mestre, por conseguinte, representa simbolicamente a figura materna e

    paterna ao aluno. Da me, toma o afeto e os cuidados; do pai, a autoridade que garanta a ordem

    e o bom andamento da educao remetendo conformao do superego (FREUD, 1992a).

    Portanto, uma vez que a busca discente anrquica, cabe ao mestre, enquanto representativo

    do pai, conter os mpetos caticos do aprendiz; sem deixar, figurando no papel materno, de

    respeitar, valorizar e canalizar a fora inerente ao caos, no af de construir o conhecimento.

    Mas, j mencionada a reciprocidade transferencial, o que representaria o aluno ao

    mestre? O aluno personifica a criana em busca de conhecimento que o mestre traz em si: no

    mbito da relao, h um mergulho, uma tentativa inconsciente de resgate duma parte de si

    mesmo. Silva (1994, p.31) observa que o professor tenta despertar nos alunos a mesma

    curiosidade epistemoflica que produziu nele o desejo de aprender. E o processo de reparao

    dos objetos primitivos perdidos na infncia repete-se, sendo recriado no incio de cada ano, a

    cada turma de novos alunos. Couto (2003, p. 81-82) leva adiante a perscrutao do lao:

    Professor e aluno esbarram um no outro como mulher-me. Essa relao tambm

    veicula significantes enigmticos que envolvem o aprendiz e o mestre no significante

    da dvida o outro, que quer de mim? [...] O ato de ensinar marca a fogo essa mesma

    pergunta, reinstalando-a. O desejo, eco da natureza no conclusiva dessa pergunta,

    deve continuar em aberto, diz Lajonquire.

    Trata-se, portanto, da conjuno ideal para que se perfaa a dialtica educacional;

    conjuno esta que introduz um dilema: havendo o imbrglio transferencial j mencionado

    (que, na prtica, no se desenrola la perfection, como se mostrar a seguir), o inconsciente

    presente na vida do indivduo e o aluno diante do mestre, ser possvel que as partes entrem

    num acordo, abrindo mo de seus mais ardentes desejos ss em prol do dilogo na relao? Em

    outras palavras, levando em considerao a problemtica desfiada, possvel que o professor

    abra mo de suas utopias e o aluno, de seu caos-curiosidade em nome dalgo maior, qual seja:

    a dialtica do saber?

    2.2 As interaes entre as Individualidades

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    Quem abdica? Quem fala? Como conjuminar as individualidades? Trata-se do

    dilema das vozes constitutivo da educao: concomitantemente fala, o indivduo v-se s

    voltas com a necessidade de ouvir; isto , h um alijamento do monlogo em prol do dilogo;

    h uma oscilao dialgica entre a perspectiva de receptor e emissor, que, na prtica,

    dificlima.

    Comungando da condio de seres humanos, relevo irregular em abismo, de que

    forma professor e aluno entram em acordo, se que ele possvel? O complexo dilema das

    vozes, envolvendo dois referenciais subjetivos (aprendiz e mestre) e uma via de interseco (o

    conhecimento) sem entrar a fundo na ideia de inconsciente configura o que alguns usaro

    como mais um argumento para afirmar que a educao, do ponto de vista da psicanlise, uma

    tarefa impossvel (KUPFER, 1992, p.50).

    O dilema das vozes talvez a mais primordial barreira interativa no panorama

    estudado. Contudo, h inda outro. Psicanaliticamente, o mais digno de nota a

    contratransferncia a rigor concebida como fenmeno intrnseco ao processo analtico, mas

    que se utiliza em sentido lato , a saber:

    Conjunto de manifestaes do inconsciente do analista relacionadas com as da

    transferncia de seu paciente [...], que se instala na pessoa do mdico atravs da

    influncia do paciente na sensibilidade inconsciente do mdico. Estava prximo o

    momento, acrescentou Freud, em que seria lcito formularmos a exigncia de que o

    mdico reconhea e domine obrigatoriamente em si essa contratransferncia'

    (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 133)

    O intento aqui transpor esse insight obtido em espao teraputico para a relao

    professor-aluno. imprescindvel, porm, pausar os pormenores de nossa reflexo psico-

    educacional e inquirir: at que ponto uma dita transposio conceitual vlida, j que as

    investigaes da psicanlise ocorrem em espao analtico? Ou, antes, como se deve facear, no

    plano hipottico, o modelo a que se busca chegar? Em outras palavras: a trama dos conceitos

    psicanalticos densa, complexa, bem elaborada, mas seu espao de concepo e aplicao,

    primordialmente, concerne teoria e prtica clnicas. Como aplicar tal trama num sentido mais

    amplo, no intento de ponderar sobre a dialtica educacional?

    Ora, at mesmo Freud, ao publicar Zur Psychopatologie des Alltagslebens

    (1992c)6, deixou claro que a psicanlise muito mais abrangente que uma simples cincia em

    busca da compreenso e cura da dor humana; trata-se, antes, de um sistema de pensamento

    6 Comumente traduzido por Psicopatologia da vida cotidiana. Os tradutores da edio Standard simplesmente

    ignoraram o Zur contido no ttulo original, que, expressivamente, mostra como o autor deixava claro que seu

    intento era refletir sobre suas teorias, no havendo, portanto, o propsito de cunhar axiomas cientficos. Freud era

    um pensador da alma humana. Uma traduo mais fiel seria [Reflexes] Acerca da psicopatologia da vida

    cotidiana (BETTELHEIM, 1982, p.98-100)

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    visando redefinio e ao aprofundamento da prpria noo de ser humano, proporcionando

    assim novas ferramentas para que o homem conhea a si mesmo ou conhea a prpria

    ignorncia7 , esclarecendo os conflitos e dualidades atrelados sua natureza e, portanto,

    mudando o trato mais profundo que se tem consigo mesmo e com o outro. Portanto, a

    psicanlise pode e deve ser considerada como novo sustentculo e amparo para outras doutrinas

    e circunstncias que digam respeito ao homem. A educao, para o autor, segundo Kupfer,

    uma delas: [...] as ideias freudianas sobre educao encontram-se em ntima conexo com as

    ideias por ele produzidas para compor sua teoria psicanaltica (1992, p.12-13).

    Desse modo, esclarece-se o intento de perscrutar o que h de humano na esfera

    educativa, inserindo, no lugar do duo paciente-analista, uma noo mais genrica de Eu-Outro;

    sendo de todo cabvel, pois, retomar o modelo transferencial construdo e refletir sobre seu

    contraponto, ou seja, a contratransferncia. Ou ainda: constatar a incompatibilidade entre

    psicanlise e educao.

    Enquanto arcabouo de paixes humanas, o aluno desperta no mestre um sem-

    nmero de sentimentos, tais como amor, dio, inveja, ternura, curiosidade, asco, frustrao,

    realizao, entre outros componentes afetivos inerentes a toda e qualquer relao a dois. Ao

    professor, cabe, pois, absorver a carga afetiva e saber trabalh-la em si; isto , metaboliz-la a

    fim de que se sustente uma relao saudvel. Maria Cristina Kupfer (1992, p.62-66) chega a

    argumentar que este seria um ponto positivo para a incluso da psicanlise na formao do

    professor, j que apenas pela compreenso mais profunda dos prprios conflitos e, por que

    no, da vida emocional como um todo, que se torna possvel lidar com a troca afetiva intrnseca

    relao.

    Caso no seja capaz de faz-lo, o docente por a relao merc de seus processos

    inconscientes, figurando o estmulo no seio educacional como um chamariz de suas vivncias

    passadas, objetos internos, conflitos mal resolvidos; de sua mundividncia inconsciente, em

    suma. Com isto, a relao est fadada a percalos e duras crises.

    Sujeitos em maior ou menor grau ao inconsciente, os professores tiveram sua

    profisso, ironicamente, desacreditada por Freud (1992c, p.40): Educar, ao lado de governar e

    psicanalisar, uma profisso impossvel. Ou seja, a condio humana, sob o prisma freudiano,

    to sujeita a processos que transcendem esfera da conscincia (ao contrrio das ideias

    7 Bettelheim (1982, p.34-45), em sua brilhante releitura do Complexo de dipo, mostra que, embora seu

    movimento fosse de busca por conhecer-se e tenha decifrado o enigma da Esfinge (que propunha exatamente um

    mergulho na prpria condio), dipo colocou enorme resistncia ao Conhece-te a ti mesmo do Orculo de

    Delfos, sendo essa recusa irracional da prpria identidade a fora-motriz da tragdia.

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    defendidas por Sartre em O Ser e o Nada, As palavras etc) que no se faz possvel administrar

    relaes, como o tm de fazer o governante, o psicanalista e o professor.

    Mezan (1982) menciona a amplificao de horizontes conceituais de Freud, com o

    desenrolar dos tempos, compreendendo mais aprofundadamente a dinmica do inconsciente:

    Ao concluir A Interpretao dos Sonhos, Freud demonstrara trs pontos essenciais

    para a teoria da psicanlise: a ocorrncia de processos de pensamento inconscientes

    em indivduos normais, o papel preponderante do desejo na vida psquica e o imenso

    alcance do fenmeno da represso. [...] Estas descobertas, e especialmente a da

    eficcia do inconsciente, conduziram-no a uma nova ordem de trabalhos, voltada para

    a deteco de mecanismos similares na esfera chamada normalidade' (p.99; grifos

    nossos)

    Ora, h que se lhe atriburem as devidas honras pelos insights a respeito de nossos

    mecanismos inconscientes. Freud teve a primazia em estudar com rigor cientfico8 a psique

    humana e compreender que tambm os ditos homens normais so sujeitos ao prprio

    inconsciente. Mas, igualmente, no se pode concordar com a ideia pessimista do pensador

    acerca da educao.

    Considerando-a impossvel, chegou mesmo a ser visto como antipedagogo, embora

    apenas desacreditasse da possibilidade de se fazer uma educao psicanaliticamente lcida,

    coerente e efetiva. Acredita-se que os processos inconscientes em andamento empecilham a

    relao; sobretudo quando no se sabe lidar com eles. Mas isso no anula a imprescindibilidade

    da educao9. O professor deve, portanto, refletir criticamente sobre as situaes de afeto que

    se lhe afiguram.

    Entretanto, h outro bice educativo digno de meno, vinculado s vivncias do

    aluno: trata-se dos processos edpicos, que configuram igualmente um dos cernes conceituais

    da teoria psicanaltica, aparecendo desde os primrdios (como nA interpretao dos Sonhos)

    at a fase madura do pensador (como em Moiss e o Monotesmo). Freud dedicou, pois,

    exaustivos estudos ao Complexo de dipo e lhe atribuiu imenso peso no que concerne

    evoluo e aos processos psquicos do indivduo (haja vista o Pequeno Hans, os casos de histeria

    e os escritos da maturidade aambarcando suas ideias psico-antropolgicas acerca de

    civilizao e cultura), embora no tenha feito uma incurso clara e unitria no campo

    educacional, no aprofundando o duo psicanlise e educao.

    8 Bettelheim (1982) mostra de uma maneira quase potica que Freud no foi um cientista, como o querem os

    tradutores ingleses. Foi, antes, um intrprete de ns mesmos. Um pensador, um humanista em sentido lato. Por

    isso evitamos, no presente estudo, considerar sua obra como pura, fria e simples cincia.

    9 Kupfer (1992, p. 12) prope que h certa dose de ironia no parecer do psicanalista. Cremos, contudo, que seu

    egrgio pessimismo, sobretudo o de seus ltimos anos, contribuiu para que o autor lanasse certa descrena sobre

    a educao e o futuro dos jovens, haja vista sua cruel perseguio pelos nazistas, seu exlio em Londres e a

    desiluso com a perspectiva de mudana desse panorama. O percurso histrico de Freud, por conseguinte, salienta

    nosso ponto de vista.

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    J se aludiu figurao simblica do professor como pai mantenedor da ordem e

    me acolhedora e propiciadora do desenvolvimento das potencialidades. Trata-se duma

    vivncia primordial, atemporal, levada sala de aula. O que se passa no caso do dipo do aluno

    no estar bem resolvido e apresentar tremores? E no caso de adolescentes, em turbulncia de

    crescimento com as referidas situaes?

    Antes de perquirir a problemtica proposta, cabe definir o que se entende por

    Complexo de dipo, a fim de lanar mais intensa luz a respeito da teoria de que se vale no

    presente trabalho. Primeiramente, evocando Roudinesco e Plon (1998, p. 166):

    O complexo de dipo a representao inconsciente pela qual se exprime o desejo

    sexual ou amoroso da criana pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com

    o genitor do mesmo sexo. [...] Na histria da psicanlise, a palavra dipo acabou

    substituindo a expresso Complexo de dipo. Nesse sentido, o dipo designa, ao

    mesmo tempo, o complexo definido por Freud e o mito fundador sobre o qual repousa

    a doutrina psicanaltica como elucidao das relaes do ser humano com suas

    origens e sua genealogia familiar e histrica. (nosso grifo)

    Bettelheim (1992, p.34-44) aponta que, embora esses sentimentos complexos nos

    sejam vetados conscincia quando adultos, por terem passado por uma slida e renitente

    represso, eles permanecem vivos no plano inconsciente, atrelados culpa que se alimenta por

    senti-los. O mito de dipo nos ensina que, tornadas conscientes, tais vivncias afetivas nos

    fazem facear suas consequncias; mas s a partir do contato consciente com o dipo que se

    pode tentar metaboliz-lo, i.e., tomar medidas para lidar com ele e suas implicaes.

    A relao conturbada com a figura dos genitores, portanto, pode desenrolar um

    intrincado processo transferencial que traz abalos relao se ao menos uma das partes a

    lgica aponta para o professor, que deve evitar processos contratransferenciais no refletir,

    contemporizar e lidar criticamente com a situao, sob o risco de o vnculo sofrer ataques e, em

    ltima instncia, haver uma ruptura.

    3. Educao e Psicanlise: epistemes inconciliveis?

    At aqui, expuseram-se alguns dos principais fenmenos encontrados na relao

    professor-aluno, norteadores da construo e manuteno do vnculo que os enleia e reveladores

    de aspectos identitrios essenciais dos sujeitos e objetos envolvidos na trama da dialtica

    educacional.

    Retomando a bibliografia disponvel acerca do universo tratado, nota-se que a

    posio de Kupfer (1992, p.12-13; p.50; p.62-66) referente possibilidade da prtica

    educacional sob a gide da psicanlise no clara e bem definida. Ao passo que mostra o

    ceticismo pessimista de Freud no s quanto educao, mas ao futuro em sentido mais amplo,

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    e expe uma das contradies do pensador10, que tambm estava convicto de que a psicanlise

    deveria ser usada como esteio para os outros campos das humanidades, se exime de emitir

    opinio prpria e versar sobre a legitimidade, procedncia e validade do duo que intitula o

    presente item.

    Digual maneira, nada de esclarecedor e especfico pode ser encontrado em Couto

    (1994) e Silva (1993), cabendo, apesar disto, a ns indagar: consoante a teoria psicanaltica, a

    educao se faz possvel? De que maneira? Quais os empecilhos esperados? Ou ainda: sendo

    possvel a educao, igualmente possvel estabelecer um vnculo de parceria ou relao de

    complementaridade com a psicanlise? Em caso afirmativo, como inserir a psicanlise na

    prtica educacional?

    Todas essas questes tm grande importncia e ainda no se refletiu

    suficientemente a seu respeito, no sendo, evidentemente, pretenso deste modesto artigo fazer

    uma elaborao de resposta, nem tampouco sendo aceitvel que se feche os olhos para o

    problema. H que se fazerem, portanto, os apontamentos e ponderaes que diagnostiquem o

    atual estado das tentativas de conciliao do binmio em questo.

    O posicionamento frente a esse polmico problema, deve rumar para algo

    ligeiramente alm do horizonte pura e simplesmente freudiano e avaliar como seu rebento

    psicanaltico portou-se ou portar-se-ia diante do impasse que se nos afigura.

    So afamadas as discusses de questes cientficas, administrativas e educacionais

    entre os seguidores de Melanie Klein e Anna Freud na Sociedade Britnica de Psicanlise entre

    os anos de 1941 e 194611. As tenses se acirraram aps a famlia Freud emigrar para Londres

    em fuga das perseguies nazistas. Este momento marcou, provavelmente, a primeira fortssima

    polmica sobre a aplicabilidade da psicanlise, entre outras coisas no cabveis de pormenor.

    Anna Freud representava a escola clssica, em franca e rigorosa sucesso do criador

    da psicanlise. Defendia uma aplicao geral da psicanlise como base para as outras cincias

    humanas. Melanie Klein, alm das inovaes na tcnica psicanaltica, arguia que a psicanlise

    se restringe a si mesma e no deve servir de prisma para estudos outros.

    3.1 A psicanlise e o corolrio de cincias humanas

    10 Mezan (1982, p.XVI) prope a necessidade de uma leitura diacrnica e extremamente cuidadosa, j que, em seu

    percurso, Freud reviu, desenvolveu e aprofundou ininterruptamente suas concepes. Da Famlia neuroptica ao

    Modelo Pulsional. A educao, contudo, um tema sobre o qual o pensador nunca se pronunciou delongadamente:

    h idias esparsas, soltas, que mostram que, embora no tenha se ocupado diretamente com a problemtica

    educativa, ela o acompanhou do princpio ao fim de sua obra (KUPFER, 1992, p.12-13). 11 http://www.enotes.com/psychoanalysis-encyclopedia/controversial-discussions-anna-freud-melanie-klein

    Acesso: 15/06/2016

    http://www.enotes.com/psychoanalysis-encyclopedia/controversial-discussions-anna-freud-melanie-klein
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    A psicanlise, para alcanar a cura pela palavra, visa, fundamentalmente, a

    propiciar o conhecimento de si mesmo por meio de livres associaes do paciente. Em outras

    palavras, defende-se que o mergulho em si mesmo seja a via de construo do dito

    conhecimento de si.

    Entretanto, percebe-se que o mergulho na subjetividade e na individualidade

    constitui o cerne no apenas da investigao psicanaltica, como tambm de sua concepo

    mais ampla do humano.

    Ora, o sistema escolar remonta dissoluo da individualidade no seio das prticas

    disciplinares. Nem ao menos em um plano mais superficial h espao para o mergulho

    consoante com a psicanlise. Para que o grupo ande, o indivduo deve abrir mo de grande

    parte de si mesmo, submetendo-se a regras, a programas, imposio de silncio etc. Em

    outras palavras: a diferena basilar exposta impede a possibilidade de, mais que coexistncia,

    complementariedade das duas vises no processo educativo?

    Aplicabilidade imediata da psicanlise em sala de aula como j se mostrou

    incompatvel. O que a psicanlise tem a oferecer uma compreenso aprofundada da realidade

    humana de cada indivduo, surgindo aporias epistemolgicas quando se tenta coadun-la com

    uma realidade grupal.

    No obstante, h outra episteme que fornece uma compreenso da sala de aula

    enquanto fato social e encara a realidade individual, grupal e as malhas do tecido social de uma

    maneira completamente diversa. Diante disto, indaga-se: como se d a relao professor aluno

    sob o prisma sociolgico? Em que em sntese a sociologia tem a contribuir para uma

    compreenso da sala de aula? Como a realidade escolar se relaciona com a complexa rede de

    fatos sociais?

    Consideraes finais

    No transcurso do presente artigo, clarificou-se como a noo de sujeito concebida

    por Freud, por neofreudiano e elaborada por conceitos psicanalticos, analisando de modo

    geral, todas as tramas e conflitos que a psicanlise perscruta projetados ao binmio professor-

    aluno. Alm disto, exps-se claramente como a psicanlise refratria a anlises grupais

    sistemticas e este fato, longe de apontar uma imperfeio, mostra os limites objetivos desta

    cincia.

    A perspectiva sociolgica evidencia, por sua vez, que a relao professor-aluno ,

    ao mesmo tempo, contraditria e complementarmente, uma relao de socializao em si

    mesma, bem como fruto de um processo de socializao. Contudo, tal processo se d dentro de

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    uma realidade social e cultural, em meio a qual se constroem perspectivas, expectativas e modos

    de agir, envolvendo portanto, aspectos psquicos, mentais e emocionais. Embora no se trate de

    uma relao estritamente psicanaltica, no sentido da triangulao pai-me- filho, envolve

    relaes microssociais entre indivduos que vivenciam uma realidade mais ampla, assimilam

    normas e modelos sociais e desempenham papeis socialmente valorizados.

    Ao traar-se um paralelo entre a sociologia e a psicanlise, salta aos olhos a

    importncia do dilogo entre disciplinas para que se lance distinta luz sobre o binmio

    professor-aluno, permitindo inferir-se que em regime de complementariedade os diferentes

    ramos do saber formam um aparato epistemolgico um pouco mais gabaritado a diagnosticar

    fenmenos complexos que envolvam, a um s tempo, o indivduo enquanto infinidade psquica

    e actante num contexto sociocultural.

    Cada vez mais, no sculo XXI, portanto, deve-se estimular a interdisciplinariedade

    e a quebra de dominao de uma episteme sobre a outra, com referida integrao inclusive

    enriquecendo individualmente cada ramo do saber, o que na educao e nas reflexes que a

    tomam como objeto, coloca-se como essencial.

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