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O BANQUETE de PATRÍCIA PORTELA

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OBANQUETE

dePATRÍCIA PORTELA

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XI

PRIMEIRA PARTE

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Heaven is hell if one lacks the ability to enjoy it.

Anónimo contemporâneo de Goethe

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* Definição reescrita após a leitura de Siren Feasts. A History of Food and Gas-tronomy in Greece, de Andrew Dalby (edições Routledge, 1996).

Sîtos

Sîtos (grego: σῖτος): refeição principal num menu da An-tiga Grécia, constituída por cereais (pão de trigo, biscoitos ou papas de cevada) e sopa de lentilhas. Para esta refeição o pão era muitas vezes fermentado com levedura de vinho alkali, misturado com queijo ou mel, e cozido em fornos de barro ou no carvão. Poderiam ainda fazer parte de uma refeição principal bolos e pãezinhos doces.*

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CavernaAntecâmara da morte

Todos os dias o mesmo sonho.Estou no meu funeral e falo para uma audiência de cen-

tenas de pessoas.Conheço-as a todas e lembro-me da primeira vez em

que me encontrei com cada uma delas.Estão todas sentadas e eu, de pé, revelo o segredo da

vida. Conto como o encontrei, explico de que é feito, e no preciso momento em que começo a descrever em

pormenor o sabor que tem,dois estranhos entram na sala, dirigem-se a mim e um deles murmura-me ao ouvido. Está alguém lá fora que precisa de falar comigo com

urgência.Faço uma pausa no meu discurso, peço licença para me retirar por breves momentos, e sigo os dois estranhos até à saída.

XVIII

Lá fora não encontro ninguém.Volto-me para trás e não há vestígio dos dois estranhos

que me vieram buscar.Olho mais uma vez à volta: ninguém.Decido regressar para retomar o meu discurso, mas, no preciso momento em que viro costas, um terramoto destrói tudo à minha volta.Todos os que conhecera morrem no meu funeral e eu

sou a única sobrevivente.Olho para os destroços e reparo nos vestígios de todos

os meus amigos impressos nas pedras arruinadas; percebo que o meu discurso se desenrola sem mim e sem que eu o oiça.

A sensação é estranha, semelhante a uma náusea que precede uma forte amnésia.

Toca um alarme. Acordo.

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NotíciaBoletim matinal

Bom dia, são 7 horas da manhã. O trânsito continua lento nas principais artérias do país: E19 e E40 estão con-gestionadas na direção norte-sul, E40 na direção oeste--este e E13 na direção nordeste-noroeste. A12 com trân-sito interrompido devido a um despiste de um camião de transporte de produtos agrícolas ao km33 provocado pelas fortes rajadas de vento que se fizeram sentir durante as últimas horas. Entrada dificultada na segunda circular de-vido a duas árvores que tombaram na via da direita na di-reção norte-sul atingindo um posto de emergência e dois postes de eletricidade. Acesso interdito no Km 13 da A2, devido a obras entre as 10h e as 15 horas.

O dia apresenta-se nublado com possibilidade de ventos fortes de nordeste. Chuva torrencial previs-ta para o final da tarde. As temperaturas máximas de-vem manter-se elevadas, entre os 20 e os 26 graus. A densidade das partículas de poluição na atmosfera é alta. Seguimos com a notícia de um...

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Acordo com o alarme do rádio a dar o noticiário. Naquele dia, tal como noutro dia qualquer, levanto-me

acompanhada pelas notícias do dia, tomo banho, desço até à cozinha, ligo o rádio sintonizado na mesma frequência do rádio do quarto, preparo o meu café com leite e açúcar, barro com manteiga quatro bolachas Maria compradas na única mercearia portuguesa da cidade e faço uma sanduí-che em torre. Oiço o jornal cair no tapete da minha entrada com a satisfação de quem sabe que a entrega nunca falha e apresso-me para o apanhar antes da imprevisível chuva que sempre cai nesta cidade. Bebo de um trago o resto do café e desligo o rádio da cozinha. A primeira dentada na sanduí-che de bolachas leva-me até ao corredor enquanto coloco o relógio no pulso esquerdo, a segunda dentada leva-me até ao sobretudo que visto com a pressa necessária de quem sai sempre a correr, quase atrasada, substituo as pantufas pelas botas de cano alto, que, ao olhar pela janela, prefiro ao meu par de saltos altos impecavelmente engraxados e escolhidos

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na noite anterior, calço umas e arrumo outros na mala de viagem e arrasto-a até à porta, a terceira e última dentada é dada no momento em que alcanço o interruptor do hall de entrada (que me desliga todas as luzes do primeiro andar de uma só vez sem ter de voltar a subir as escadas); apanho a minha carteira de pele e de marca, e com todos os docu-mentos necessários, enfio-lhe o portátil e um último livro para ler no comboio, chego à porta, e não consigo sair.

Não percebi logo a dimensão da minha recusa. A minha primeira reação foi achar que me tinha esquecido das chaves, mas confirmo de imediato que as trago no bolso interior es-querdo do casaco. Verifico depois se tenho todos os papéis, todas as notas de que necessito para todas as reuniões e eventualidades de uns dias que prometem ser intensos, pen-so que talvez me tenha esquecido do telemóvel, subo até ao primeiro andar, reviro o quarto, o escritório, a sala de estar, mas, claro, o telemóvel está, como sempre, no bolso exterior da minha mala, com a carteira e o batom. Começam-me a faltar razões para não sair de casa e por isso verifico se apa-guei a luz do candeeiro da biblioteca, a luz do escritório, de cada um dos quartos, e mais uma vez verifico se não deixei nada por fazer, se o gás está desligado, os aquecimentos, se o telefone fixo está no descanso, se alguma janela não está bem trancada, se algum dos estores está mal corrido, alguma gaveta aberta, procuro qualquer descuido, e de novo se tenho todos os meus documentos, se tenho as chaves, as pastas, o portátil, o telemóvel e perco, assim, a manhã. A verificar. Entre o corredor da porta e o resto da casa, o dia passa sem mim. Desisto e regresso à sala para me sentar por breves mo-mentos no sofá a pensar que não me recordo de ter tido um dia tão agitado como este. Aviso o meu grupo de trabalho no laboratório de que um assunto inesperado me impediu de sair de casa e aproveito para limpar o suor da fronte en-quanto peço para me adiarem a viagem para o dia seguin-te. Assoo-me com um lenço de linho que está na família há

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mais tempo do que eu e resolvo não dar muita importância ao caso. Decido que até preciso de um dia para descansar e preparo o dia seguinte com precisão durante a tarde. Quero ter a certeza de que nada me faltará e adormeço a imaginar com pormenor a minha saída, convicta de que a manhã se-guinte será normal. Mas o dia que se segue é igual, e o dia a seguir também, e o seguinte também, e o dia a seguir a todos estes já nem é igual, é pior. Por mais preparada que me sinta na noite anterior, não consigo sair de casa; passo as manhãs a verificar tudo vezes sem conta, e acabo, derrotada, a telefonar para o laboratório, desculpando-me por não poder compare-cer, ora que não me sinto bem, ora que estou quase a recupe-rar, ou que sofri uma recaída. Os dias sucedem-se sem mim e a ansiedade com que olho para a maçaneta da porta cresce até me paralisar por completo.

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Conferência dos PássarosDiscurso de abertura

Muito recentemente, pássaros, abelhas, aranhas e ventos reuniram-se de urgência para discutir a condição do Homem.

Nos dias que precederam este encontro, inesperadas altera-ções climatéricas manifestaram-se. Ventos mudaram de direção, chuvas caíram onde nunca caíam, desregularam-se as tempe-raturas, desorientaram-se as ondulações do mar, e causaram- -se alguns embaraços e até mesmo alguns danos irreparáveis em paisagens muito antigas.

No passado, pássaros, aranhas, abelhas e ventos não se reu-niam com tanta frequência, e por isso cada perturbação meteo-rológica chamava a atenção do mundo inteiro e fazia saber que algo importante se discutia nos círculos mais ilustres da Terra, instalando um espírito de mudança nos ares.

Mas a acumulação de assuntos por resolver (ou mal resolvi-dos) tornara estas conferências quase regulares, e exigia constan-tes marcações de novos encontros.

Por isso, hoje são comuns as inesperadas alterações do clima já não servindo de aviso ao Homem.

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Este último EMRLNAH (Encontro Máximo para a Reava-liação da Lei Natural Aplicada ao Homem) foi convocado, como era hábito, pela Presidente de Mesa, a Cegonha Mais Velha do Planeta.

Todos compareceram, não sobrando um ramo vazio.Uma infusão de flores e uns aperitivos de pólen foram dis-

tribuídos a todos os participantes durante os preparativos para o início dos trabalhos e a Cegonha Mais Velha do Planeta abriu a conferência piando um discurso de abertura que, se fosse tradu-zido em palavras, soaria mais ou menos assim:

CEGONHA

Boa tarde a todos e muito obrigada por comparecerem a mais um Encontro Máximo para a Reavaliação da Lei Natu-ral Aplicada ao Homem.

Encontramo-nos aqui reunidos, mais uma vez, para rea-valiar a imortalidade do Homem e considerar, novamente, a necessidade, ou não, de lhe colocar um fim.

Esta frágil criatura, sem asas, sem penas, sem barbata-nas e sem pelo suficiente para se aquecer tem conseguido sobreviver aos maiores tormentos, ultrapassando todas as adversidades ao longo da passagem dos tempos. A sua co-ragem é louvável mas as técnicas de autodefesa adotadas são de tal modo agressivas que podem hoje em dia, e em fa-vor da exclusividade da sua imortalidade, causar a extinção de qualquer outra espécie, incluindo as nossas.

Este é um momento crítico, e todos sabemos porque aqui estamos.

Os tempos de ponderação sobre a nossa interferência ou não no curso da imortalidade natural do Homem deve encontrar uma conclusão.

Não é possível adiar mais uma decisão que, sabemos, seja ela qual for, deverá ser irreversível. O planeta não su-porta a regularidade das nossas reuniões e temos recebido

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várias queixas, sobretudo de mães de família, que veem os seus ninhos serem destruídos com demasiada frequência devido às intempéries.

Peço-vos que, durante o decorrer dos trabalhos sejam sucintos e que exponham, de forma clara e inteligível, o Como e o Quando das vossas propostas, para que possa-mos tomar as medidas necessárias para executar aquela que reunir uma aceitação coletiva.

Para facilitar o funcionamento, esta conferência dividir--se-á nas seguintes partes:

1 – o princípio,2 – o meio,3 – e o fim.No final de todas as intervenções, uma pausa para re-

flexão será oferecida a todos os membros para que pos-sam usufruir dela da forma que entenderem. Durante esta pausa, para os que quiserem, foi ainda organizada uma visita ao rio mais próximo e haverá um pequeno concerto para muitos bicos, gentilmente oferecido pelo Coro Voluntário dos Colibris. No intervalo do almoço será servido um melaço, patrocinado pela Associação das Abelhas Livres, membro fundador destes encontros.

Dado o caráter decisivo desta conferência, e ao contrário das anteriores, não terminaremos com o cair do sol, mas apenas quando todas as resoluções forem tomadas e postas imediatamente em prática.

A votação decorrerá de asa ou pata no ar e repetir-se-á, após os devidos esclarecimentos, as vezes necessárias até que a decisão seja votada por unanimidade.

Relembro que a decisão será determinante para o futuro da espécie humana, e consequentemente, das nossas. Nas vossas pastas podem encontrar os estudos previamente en-comendados aos nossos melhores especialistas com os ce-nários possíveis de alteração, eliminação ou prolongamento da imortalidade humana.

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Alguma dúvida?

Todos os pássaros, abelhas e ventos aplaudiram entusiastica-mente o discurso de apresentação da Cegonha, agitando as asas e provocando ligeiras correntes de ar.

Apenas as aranhas permaneceram, de perninhas cruzadas, em silêncio, suspensas na última fila, tomando toda a atenção.

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NotíciaA bactéria mais antiga do planeta

Após prolongadas escavações no nordeste do Cana-dá, nordeste da Sibéria e na Antártida, uma equipa de investigadores dirigida pelo Professor Eske Willersleve da Universidade de Copenhaga conseguiu isolar o ADN de uma bactéria congelada há mais de meio milhão de anos, resistente a todas as intempéries, alterações do clima ou erosão. Esta bactéria, que continha ADN ainda ativo, mantinha as suas funções metabólicas básicas.

Nunca antes se tinham encontrado vestígios de orga-nismos com esta idade, sendo esta bactéria o mais velho exemplar de vida na Terra.

“Todas as células têm a capacidade de se regenerar”, afirmou o Professor Eske Willersleve em entrevista ao no-ticiário da manhã. “Mas o que é natural em qualquer or-ganismo vivo é o facto de a sua capacidade de regeneração implicar uma divisão das células, obrigando as mesmas a perder as suas qualidades até, eventualmente, morrerem. A descoberta de uma bactéria com meio milhão de anos

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poderá abrir novas pistas na área da genética e da geria-tria. Se encontrarmos uma forma de retroceder o enve-lhecimento das células dos seres humanos, tornando-as cada vez mais jovens através do seu próprio processo de regeneração, poderemos estar perante o fim da morte.”

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Todos os dias o mesmo sonho.Todos os dias acordo à mesma hora, com o alarme do

rádio e com uma notícia.Todos os dias… Sem alterações.Ou melhor, com os desenvolvimentos cada vez mais dra-

máticos que a minha recusa em sair de casa parece ganhar.Progressivamente, deixo de atravessar o corredor até à

porta, passando o dia a deambular pela sala e a olhar para a sua impecável decoração, o contador indo-europeu do século XVIII, em madeira escura, preciosa, atulhado de bi-belôs e objetos étnicos de maior e menor valor, recolhidos em todos os lugares por onde passei, há muito tempo atrás, como médica voluntária: o tambor zulu, os macacos chine-ses dos 4 sentidos em marfim, a matriosca russa, a balança de ópio chinesa, o zodíaco inca, e a capulana moçambicana na parede, por cima do móvel, a coleção de borboletas raras exposta na parede junto à mesa de jantar, a mesa de xadrez

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da Índia e os respetivos bancos em nogueira trabalhada so-bre um tapete persa, os exemplares raros de serigrafias do mundo vegetal de Albertus Seba.

Progressivamente deixo de conseguir descer as escadas.Agarro-me ao corrimão como se quisesse travar a ine-

vitável descida, os suores frios escorrem-me pela cara que limpo ininterruptamente com o lenço que sempre trago guardado na manga esquerda ou no bolso interior dos ca-sacos. Não passam muitos dias até não conseguir sair do quarto. O alarme toca e deixo-me ficar sentada na beira da cama. Uma ligeira corrente de ar vinda da única porta mal calafetada do terraço confirma-me que o tempo e o mundo continuam. Só eu parei. Passo dias com os estores corridos, dominada pela escuridão do momento em que pela primei-ra vez não consegui sair de casa e imagino o que faria lá fora, como progrediria eu se aqui não estivesse, e pergun-to-me se faria frio ou se faria diferença estar ou não estar onde não estava. Desço quando já é demasiado tarde para sair mas ainda assim tento.

Não percebo como tudo isto começou mas lembro -me vagamente de ter deixado de atravessar pontes a pé, lembro-me de quando comecei a evitar andar de carro, de como passei a recusar alguns transportes públicos, determi-nado tipo de elevadores, de escadas rolantes, e pergunto--me, pela primeira vez, se não haverá algum padrão, algum mapa lógico que ligue a viagem no meu corredor, agora proibido, a todas essas rotas inacessíveis.

Lá fora, naquele lá fora que é mesmo do outro lado des-te lado só cá de dentro, depois da porta que eu não consigo abrir, os jornais diários empilham-se no tapete da entrada, o som cada vez mais abafado da sua queda.

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NotíciaO primeiro organismo artificial

De acordo com Craig Venter são precisos apenas 381 genes para manter um organismo vivo. O objetivo des-te investigador é colocar estes 381 genes dentro de uma célula fantasma, adicionando-lhe um mecanismo seme-lhante ao utilizado atualmente para ler jogos, de forma a traduzir estes genes em proteínas e assim construir o primeiro organismo totalmente artificial. A concretizar--se, esta “é uma vitória da ciência” , conclui Craig Venter, e pode confirmar a previsão de vários estudos realizados na Universidade do Texas, que afirmam que dentro de 50 anos poderemos desenvolver com relativa facilidade vá-rios órgãos artificiais como braços, olhos, rins ou mesmo cérebros.

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