Ana Falcato - O Paradoxo de Moore

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Investigao Filosfica: vol. 2, n. 2, artigo digital 3, 2011.

O PARADOXO DE MOOREAna Falcato IFL Universidade Nova Lisboa

Resumo: O famigerado Paradoxo de Moore foi frequentemente interpretado na tradio analtica como um tpico mais das Investigaes Filosficas de Wittgenstein ou como um pseudo-argumento, cujo fito fosse provar a irracionalidade contida em afirmaes em primeira-pessoa que contradizem estados de coisas actuais. Neste artigo defendo a construo de um argumento a partir da Frase de Moore e apresento quatro modelos de interpretao do Paradoxo: a afirmao da Frase de Moore como uma forma de irracionalidade terica ou de irracionalidade prtica e o mero juzo da Frase de Moore enquanto forma de irracionalidade terica ou prtica. Para sustentar qualquer um dos modelos de interpretao, defendo, uma noo forte de assero requerida. Palavras-chave: Frase de Moore. Paradoxo de Moore. Afirmao em Primeira-pessoa. Juzo em Primeira-pessoa. Absurdidade.

Abstract: The so-called Moores Paradox has been sometimes misconstrued as a topic more of Wittgensteins Philosophical Investigations, sometimes as a pseudo-argument that aims to prove the irrationality enclosed in first-person statements of belief contradicting current states of affairs. In the present paper, I argue both for the construal of an argument out of Moores sentence and present four models to approach the paradox: the assertion of Moores sentence as a form of theoretical irrationality or practical irrationality and the bare judgment of the sentence as theoretical or practical irrationality. As a means of supporting each 1

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approach a strong notion of assertion will be required. Keywords: Moores sentence. Moores Paradox. First Person assertion. First Person judgment. Absurdity.

Introduo Neste artigo ser apresentado e discutido um argumento exposto por G.E.Moore pela primeira vez em 1944 numa sesso do Clube de Cincias Morais de Cambridge. Wittgenstein estava presente nessa sesso e a partir das suas reflexes e discusses sobre o argumento a apresentado por Moore que, na literatura subsequente, este passa a ser identificado como o Paradoxo de Moore [vide: Investigaes Filosficas, II Parte, seco X]. O Paradoxo analisado a partir do sem-sentido encerrado em elocues de frases como: O Joo abandonou a sala mas eu no acredito nisso (ou, no exemplo mais debatido: Chove e eu no acredito que chove). Se reduzirmos estes exemplos a uma frmula proposicional p, que represente o contedo de Chove, obteremos a frmula complexa: p e eu no acredito que p. Esta a chamada verso omissiva do Paradoxo de Moore. Uma outra verso discutida paralelamente a verso comissiva, que faculta, no respectivo contedo proposicional, a afirmao de uma crena com contedo negativo. A verso comissiva tem a seguinte forma: p e eu acredito que no-p. A presente exposio discute simultaneamente o absurdo patenteado por qualquer das duas verses do Paradoxo de Moore e a ausncia de contradio lgica da prpria formulao. Tambm ser apresentada a assimetria entre asseres em primeira e em terceira pessoas, explorada por Wittgenstein nos seus escritos sobre o paradoxo. A discusso dos aspectos de irracionalidade presentes em vrias sub-formulaes das duas verses do paradoxo ser suportada por uma teoria da pressuposio, segundo a qual, dada uma elocuo assertiva de uma frase de crena, o respectivo falante pressupe a verdade 2

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do contedo proposicional a que a atitude se prefixa. Definio de paradoxo: como o argumento de Moore corresponde definio A primeira etapa da exposio crtica de um argumento que, como o de Moore, se analisa como paradoxal, deve explicitar de que forma o argumento instancia uma definio de paradoxo. Autores como Sainsbury (Sainsbury, 1995) ou Roy Sorensen (Sorensen, 2003) definem paradoxo como uma concluso aparentemente inaceitvel (nos termos de Moore, absurda), derivada de um conjunto de inferncias aparentemente vlidas, aplicadas a um conjunto aparentemente consistente de premissas. Ou seja, esta definio aplica-se a argumentos com uma consistncia formal e uma estrutura dedutiva no questionveis, malgrado o resultado paradoxal das respectivas concluses. A anlise de um argumento paradoxal, que visa explorar o aspecto problemtico da respectiva concluso, pode centrar-se na implausibilidade do esquema dedutivo que estrutura o argumento ou na deteco da falsidade de uma das suas premissas (uma vez que o conjunto de todas elas pode ser consistente e uma ser claramente falsa, o que contribuiria para o carcter paradoxal da frmula argumentativa). Ao longo da seguinte apresentao da frase de Moore e da explorao do seu carcter absurdo, constataremos que nenhuma das duas verses mais discutidas do paradoxo tem propriamente a forma de um argumento: so as interpretaes dos aspectos paradoxais da frase que lhe emprestam uma forma argumentativa, para justificar o carcter absurdo de asseverar ou julgar verdadeiras conjunes proferidas na primeira pessoa, com a forma p e eu no acredito que p ou p e eu acredito que no-p. Na exposio de 1944, Moore insiste que uma frase como: (A)Ainda que eu no acredite que est a chover, de facto, est a chover no encerra, em si mesma, nenhuma contradio. Para descartar a hiptese de que frases 3

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como (A) sejam contraditrias, Moore encontra dois tipos de contra-exemplos em frases com a mesma forma lgica de (A), mas nas quais o carcter absurdo de (A) desaparece. Em verses de (A) na terceira pessoa do singular ou com uma conjugao pretrita dos verbos, o carcter absurdo que caracteriza uma elocuo de (A) desaparece. No h nenhum problema com frases como: Ainda que Moore no acredite que est a chover, est, de facto, a chover ou Eu no acreditava que estivesse a chover e, de facto, estava a chover. Como a frase (A) contm uma expresso de atitude proposicional, Moore defende que o contedo semntico de (A) tem de ser analisado em termos da atitude do falante 1. Frases de crena como: (B) Eu no acredito que p, cujo significado numa lngua como o Portugus explicado em termos da relao de um falante que profira (B) com o contedo proposicional de qualquer pensamento abreviado pela letra p, s podem ser verdadeiras na condio de que o conjunto de crenas do falante que profere (B) no inclua [a crena em] p. As propostas de anlise da frase de Moore que pretendem justificar o seu carcter paradoxal so construdas a partir da deteco das diferenas de contedo proposicional e de condies de verdade entre duas elocues de (1) e (1): (1). Eu acredito que est a chover. (1). Est a chover. Se um mesmo falante F1 proferir ambas as frases, s para a verdade de (1) que o contedo 1 The words I dont believe its raining, when said by a particular person have a definite meaning: we can say that what they mean is something about his state of mind what they mean cant be true unless his state of mind is one which can be properly described by saying he doesnt believe that; and also with as a matter of fact it is raining. [Moore, 1993:210] 4

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das suas crenas ou, como diz Moore, o seu estado mental ser relevante. Uma elocuo de (1) no faria mais do que reportar um determinado facto extra-lingustico e, por isso, seria verdadeira apenas no caso de, no tempo t em que F1 profere (1) estar, de facto, a chover no local l (o local em que F1 se encontra em t) e falsa se no tempo t no estiver a chover em l. Mas, conforme veremos na anlise subsequente das verses omissiva e comissiva da frase de Moore e sendo esse o princpio explicativo que confere frase de Moore o estatuto de um paradoxo, pela definio anterior , dado um conjunto de regras que asseguram a consistncia entre as crenas de F1 e a sua racionalidade judicativa, uma elocuo sria de (1) compromete F1 com a crena em (1). Mutatis mutandis, Moore justifica este compromisso como uma implicao (no sentido de consequncia lgica) de que, se F1 profere (1), ento porque atribui verdade ao contedo de (1), mesmo se a ltima no explicitamente proferida. A verdade da elocuo de F1 fica comprometida com a crena do falante na verdade de (1). O carcter absurdo de frases como (A) sobrevm-lhes numa utilizao assertiva, na primeira pessoa e no presente do indicativo. O que torna (A) num paradoxo que o absurdo que decorre da sua utilizao assertiva no pode ser explicado em termos de uma contradio lgica entre os dois membros da conjuno em (A) ou seja, que no exista incompatibilidade lgica entre os dois segmentos da conjuno: Est a chover e Eu no acredito que est a chover [p e eu no acredito que p]. Assim, a concluso de que utilizar assertivamente (A) absurdo (uma concluso aparentemente inaceitvel) segue-se de uma no-contradio entre os membros da conjuno em (A). Quer dizer, uma afirmao conjunta de ((1) e no-(1)) podem fazer-se sem incorrer em contradio nem sequer em inconsistncia, uma vez que, prescindindo da tese da implicao de Moore, (1) e (1) podiam ser verdadeiras conjuntamente (um conjunto de inferncias aparentemente vlidas, aplicadas a um conjunto aparentemente consistente de premissas). esta a razo por que a frase de Moore se adequa definio de Paradoxo de que se partiu.

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Crenas contraditrias e afirmaes contraditrias Aquilo que a frase de Moore, em qualquer das duas verses, evidencia, a diferena entre a forma lgica da conjuno, por um lado, e o respectivo contedo cognitivo, por outro. A primeira coisa para que Moore chama a ateno que apenas a verdade de (1) depende do contedo mental do falante. Ainda que este aspecto parea trivial, veremos que ele o eixo das principais discusses tericas sobre o paradoxo, desde as Investigaes Filosficas at trabalhos muito recentes. Em Investigaes Filosficas II, X, Wittgenstein defende que uma elocuo da frase de Moore est muito prxima da auto-contradio. Se eu disser que acreditava que p, estarei a reportar uma crena pretrita e se algum disser que eu acredito que p, estar a reportar a minha crena presente (ou a descrev-la). Porm, se eu disser eu acredito que p, no estarei a descrever a minha crena, mas a express-la h uma clara diferena de estatuto entre afirmaes em primeira e terceira pessoa e entre expresso e descrio (de crenas, contedos mentais ou estados psicolgicos). E o mesmo estarei a fazer com uma simples elocuo de p (isto , estarei a expressar o contedo de p). Ao proferir o contedo de p ou ao utilizar uma forma verbal em primeira pessoa, no presente do indicativo, com uma atitude proposicional (como eu acredito que p), posso estar a mentir ao meu interlocutor mas no posso expressar uma crena falsa em primeira pessoa. [IF, II, X] Num quadro terico que aceite as implicaturas conversacionais de Grice, pode explicarse que um indivduo, em primeira pessoa, opte por dizer Eu acredito que p, ao invs de afirmar meramente p, para evidenciar hesitao ou dvida. Mas, como adverte Wittgenstein, salvaguardando esse aspecto de conveno conversacional sem eliminar a diferena de estatuto das afirmaes em primeira pessoa relativamente s de terceira pessoa: No confundamos uma afirmao hesitante com uma afirmao de hesitao.2 [IF, II X] 2 Wittgenstein, L. Philosophical Investigations, Part II, X. 6

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Assinalada a diferena, em termos de fora ilocutria, entre uma afirmao simples do contedo de p e uma outra antecedida da atitude proposicional de crena e dado o carcter expressivo das afirmaes em primeira pessoa, podemos concluir que uma afirmao de p e eu no acredito que p (verso omissiva do paradoxo) expressa o mesmo contedo de p mas talvez no-p, que tem a forma no dissimulada de uma auto-contradio. Aquilo que a anlise wittgensteiniana da estrutura proposicional de uma frase de Moore consegue, uma vez determinado o contributo da atitude de crena e com base em exemplos de contraste, marcar a diferena que existe entre dois tipos de elocuo como Eu acredito que p e Ele acredita que p. Eu posso descrever os contedos de crena de outrem com base na observao de comportamentos e na creditao das respectivas expresses de crena. A diferena de estatuto da primeira pessoa est em que eu no preciso de observar o meu comportamento ou fazer um exerccio de introspeco antes de poder expressar as minhas crenas ou como forma de as legitimar. A assimetria entre afirmaes em primeira e em terceira pessoa no , porm, compatvel com uma explicao da atitude de crena em termos de comportamentalismo lgico [CL], isto , com um modelo que defende que acreditar que p simplesmente desenvolver um conjunto de comportamentos como se p (fosse o caso). Se esta explicao comportamentalista fosse correcta, ento algum que fizesse uma afirmao em primeira pessoa de eu acredito que p, estaria a reportar a prpria disposio comportamental (algo que dedutvel da explicao anterior, dado que afirmar que p mais determinante do que simplesmente acreditar que p ou julgar que p verdade). Uma explicao do absurdo da frase de Moore que subscrevesse a tese do [CL] teria de explicar a sua implausibilidade pela observao concomitante de dois tipos de comportamento antagnicos num mesmo indivduo uma experincia de concepo demasiado bizarra! , uma vez que, pela afirmao de uma frase como p e eu no acredito que p, e tendo como modelo explicativo a tese do [CL], s se poderia explicar o absurdo do seu

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contedo com o suporte de uma experincia de observao de dois tipos de comportamento contraditrios mas simultneos, num mesmo indivduo, como se acreditasse que p e como se no acreditasse que p. O que torna a frase de Moore absurda o uso assertivo na primeira pessoa de qualquer uma das suas duas formulaes. Por seu turno, o que paradoxal que o contedo proposicional da frase, em si mesmo, no encerra nenhuma contradio com efeito, a frase no uma instncia da frmula (p ^ p), o exemplo de frmula proposicional contraditria mais prximo da frase de Moore. O contedo da atitude proposicional Eu acredito que p no dedutvel nem de p nem de Eu afirmo que p. Porm, o reforo que Moore d ao carcter paradoxal da utilizao assertiva de (A), passa por defender que, quando um falante usa assertivamente uma frase no presente do indicativo em modo declarativo, acredita naquilo que assevera. Na verso omissiva da frase de Moore, pelo princpio [P1] que desenvolve a intuio de Moore acima mencionada se S afirma p, ento S implicita a atitude eu acredito que p (Moore, 1993). Se, com o segundo membro da conjuno afirmada em (A), S tambm afirma eu no acredito que p, ento aquilo que S implicita contradiz aquilo que S afirma na segunda parte da conjuno. Na verso comissiva da frase de Moore, [P1] no justificaria o carcter absurdo da respectiva afirmao. A verso comissiva tem a forma p e eu acredito que no-p. Se, na verso comissiva e por causa de [P1], ao afirmar que p, o falante implicitasse eu acredito que p, com o segundo membro da conjuno no implicitaria e afirmaria uma contradio, mas apenas uma inconsistncia de crenas a respeito de p. Para explicar o absurdo resultante da verso comissiva do paradoxo, Moore usa um segundo princpio explicativo [P2], de acordo com o qual se um falante F afirma que p, ento F assume que no acredita que no-p. Ora, com a afirmao do segundo membro da conjuno em p e eu acredito que no-p, aquilo que afirmado (eu acredito que no-p) contradiz o que assumido, dado [P2]. Moore foi pouco econmico na explicao do absurdo que resulta de afirmar cada uma 8

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das verses das suas frases. Nem [P1] nem [P2], cada um tomado isoladamente, permitem explicar o absurdo resultante da verso do paradoxo alternativa que cada um dos princpios se prope bloquear. [P2] no justifica o absurdo da verso omissiva, porque com a aplicao de [P2] a uma elocuo de p e eu no acredito que p, F implicita e depois afirma que nem acredita que no-p nem acredita que p, o que no representa nem uma auto-contradio nem uma indecidibilidade de crenas a respeito de p, mas uma recusa de julgar o valor de verdade de p. Para reparar esta falha de economia na explicao do absurdo das duas verses do paradoxo, Moore poderia escolher entre aplicar [P1] tambm verso comissiva ou com menos economia de meios explicar a verso omissiva e comissiva, respectivamente, por [P1] e [P2], como foi dito. Na primeira hiptese, ao afirmar p, eu implicito acreditar que p. Se depois afir mo que acredito que no-p, o que afirmo no contradiz o que foi implicitado. Ao invs de uma auto-contradio, na verso comissiva F implicita-e-depois-afirma uma indecidibilidade de crenas3 a respeito de p. Conforme seja baseada em [P1] ou [P2], a explicao do absurdo da verso comissiva do paradoxo conceptualmente diferente. Escolhendo a segunda hiptese (aplicar [P1] verso omissiva e [P2] verso comissiva), qualquer afirmao, em primeira pessoa, das duas verses do paradoxo levaria F a incorrer em auto-contradio entre aquilo que afirma e aquilo que implicita (por [P1] para a omissiva, eu acredito e no acredito que p; por [P2] para a comissiva, eu acredito e no acredito que no-p). Com os dois princpios, a explicao do absurdo nas duas verses do paradoxo tem 3 Por exemplo, se numa frase sobre o futuro sobre a probabilidade de um determinado evento ocorrer ou no no futuro eu afirmar (ou implicitar e afirmar) que tanto acredito que o evento pode ocorrer como acredito que o evento pode no ocorrer, no me estarei a autocontradizer, mas apenas a manifestar a minha indecidibilidade entre uma crena positiva e uma crena negativa sobre o mesmo evento (ou, no mximo, a implicitar que existe um ndice de probabilidade igual para as duas alternativas). Ao contrrio do Argumento da Batalha Naval, inventado por Aristteles para defender a indecidibilidade do valor de verdade de frases sobre o futuro mesmo sem a complexificao introduzida pelas atitudes proposicionais -, a pura contradio lgica entre frases de crena muito mais difcil de detectar, por falta de critrios estritos de formalizao ou da legitimidade de um padro para definir contradio como, por exemplo, a afirmao conjunta de uma frase e da sua negao. 9

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um resultado conceptualmente equivalente. As reconstituies de uma ou das duas verses do paradoxo, a fim de se explicar o absurdo que cada uma encerra, tero de optar por uma economia do explanandum ou uma economia do explanans. Diferentes tipos de irracionalidade numa assero da frase de Moore Uma questo determinante quando se analisa a frase de Moore nas duas verses e se oferecem propostas explicativas para o absurdo da respectiva afirmao a de saber em que tipo de irracionalidade incorre quem afirma ou julga verdadeira uma frase com a forma de (A). Moore atribui o absurdo de uma elocuo de (A) a uma auto-contradio do falante. Como esta auto-contradio entre aquilo que o falante afirma (e o que implicita acreditar atravs do que afirma) e aquilo em que afirma acreditar, esta explicao do absurdo de (A) imputa uma falha de racionalidade terica ao falante ou sujeito judicativo. Os critrios normativos para preservar a racionalidade num domnio de elocues de um falante incluem restries na formao de crenas baseadas em evidncia extra ou intralingustica insuficiente e em inferncias dedutivamente invlidas ou indutivamente fracas. Falhas substanciais de racionalidade podem degenerar em absurdos (de tipo lingustico ou judicativo) como o da frase de Moore. Moore distingue o absurdo contido em qualquer das verses da sua frase de uma contradio lgica, em sentido estrito ou seja, de uma frmula que conjuga uma frase e a sua negao ou de uma falsidade lgica, isto , uma frase que no pode ser verdadeira em nenhuma interpretao. Como j vimos, uma anlise standard da frase de Moore, nas suas duas verses recorrendo aos princpios [P1] e [P2] , explica o carcter absurdo das duas formulaes como uma auto-contradio nas crenas de F a respeito de p ou como uma indecidibilidade na crena de F a respeito de p (consoante o princpio de economia na utilizao de [P1] e [P2] para explicar as duas verses do paradoxo). Por outro lado, quer a contradio quer a 10

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indecidibilidade num subconjunto das crenas de F, que explicariam o absurdo das duas verses do paradoxo, poderiam ser removidas atravs de regras de preservao da racionalidade nas inferncias encerradas numa elocuo com base num mnimo de reflexo por parte de F. Um outro lastro de interpretaes do Paradoxo de Moore defende que o tipo de racionalidade que a frase de Moore viola prtico (portanto, atravs de uma afirmao da frase de Moore, F incorreria em irracionalidade prtica). A racionalidade prtica diz respeito aco prudente. No conjunto de princpios normativos que regem a aco prudente podemos encontrar a prescrio de optar, dado um grupo de aces possveis, por aquela que se adequa mais s expectativas e desejos do agente, de acordo com a forma como este acredita que o mundo . Uma outra norma prescreve que o agente escolha aquela aco que maximize os seus prprios ganhos de acordo com mximas de utilidade subjectiva. Ainda que parea mais intuitivo explicar o absurdo da frase de Moore em termos de irracionalidade terica, h autores como Max Black, D. Rosenthal e o prprio Wittgenstein que exploraram aspectos da irracionalidade prtica em que F incorre, ao proferir qualquer uma das verses da frase de Moore. As explicaes do Paradoxo de Moore em termos de irracionalidade prtica baseiam-se na desvantagem para o agente mesmo que seja um agente discursivo ou judicativo que, ao proferir a frase de Moore, no maximiza a utilidade esperada se, ao nvel das interlocues, expe uma parcela das suas crenas e um conjunto de afirmaes em primeira pessoa a dedues de inconsistncia ou auto-contradio, retirando ao agente condies de equidade na argumentao, relativamente a outros interlocutores. Diferentes explicaes para o absurdo de uma frase de Moore podem destacar falhas de racionalidade terica ou prtica numa elocuo da frase, organizando a argumentao em funo de algum destes esquemas explicativos: I. A elocuo da frase de Moore como irracionalidade terica; 11

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II. A considerao judicativa da frase de Moore como irracionalidade terica; III. A elocuo da frase de Moore como irracionalidade prtica; IV. A considerao judicativa da frase de Moore como irracionalidade prtica. H anlises do absurdo da frase de Moore que cobrem mais do que um tpico dos supra-mencionados. As propostas explicativas que se concentram na irracionalidade da atitude proposicional de crena, expressa no segundo membro da conjuno de cada uma das verses da frase de Moore, aceitam o princpio de que a crena - tal como a afirmao - distribuvel pela conjuno e que algum que afirme acreditar numa conjuno (p ^ q), assume acreditar que p e acreditar que q. As interpretaes do absurdo da frase de Moore quer seja considerado como uma forma de irracionalidade terica ou prtica assumem um princpio terico para as frases de crena, enunciado por Wolgast e Shoemaker (1977): Princpio de Shoemaker (PS) Aquilo que pode ser coerentemente acreditado determina o que pode ser coerentemente asseverado, mas o inverso no verdadeiro. O que pode ser coerentemente acreditado determina o que pode ser coerentemente asseverado porque fazer uma assero , entre outras coisas, expressar ostensivamente uma crena. Se o contedo da assero incoerente, ento tambm o acto de asseverar o . Uma proposta explicativa do Paradoxo de Moore que aceite a correco do (PS) pode, dedutivamente, ampliar a explicao da irracionalidade da crena na frase de Moore respectiva irracionalidade de assero, em qualquer das duas verses. Uma vez identificados os quatro tipos de irracionalidade que podem servir de bice frase de Moore, exporemos quatro propostas explicativas do absurdo de Moore que instanciam, respectivamente, I., II., III. e IV. A elocuo da frase de Moore como irracionalidade terica. 12

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Uma linha de autores de inspirao wittgensteiniana explica o absurdo da frase de Moore com a tese de que uma assero de Eu acredito que p tem o mesmo uso (e, portanto, o mesmo significado) que p (i.e., p o caso). A explicao para esta posio simples, mas precisa de ser esclarecida. No que, da elocuo em primeira pessoa de Eu acredito que p, por F, seja dedutvel a verdade de p (porque F pode ter crenas falsas e p pode ser uma delas); mas sim que, a partir da elocuo assertiva de uma frase de crena, em primeira pessoa, por F como Eu acredito que p podemos deduzir que F atribui verdade ao contedo de p. Com base neste pressuposto (e admitindo-o extensvel a todas as frases que contenham atitudes proposicionais de crena), podemos concluir que o falante que afirma p e eu acredito que no-p (a verso comissiva do paradoxo) acaba de atribuir verdade a p e no-p, dando provas de uma irracionalidade terica forte, ao sustentar uma contradio. A forca ilocutria que a expresso de crena aduz ao contedo da frmula a que se prefixa discutida por autores como Malcolm (1995) 4, que alega que afirmar Eu acredito que no-p apenas (just is) afirmar no-p. Para outro autor, Heal (1994)5, afirmar eu acredito que no-p , de facto (in effect) afirmar no-p. Portanto, para estes autores, a verso comissiva do paradoxo que a nica que exploram consiste em ou requer duas asseres contraditrias, incorrendo o respectivo falante ou sujeito judicativo em irracionalidade terica forte. Esta interpretao de inspirao wittgensteiniana teria de ser confrontada com a verso omissiva do paradoxo. Uma elocuo de Eu no acredito que p no implica (nem no sentido corrente de que falava Moore nem em sentido estritamente lgico) uma assero de no-p. 4 Malcolm, N. (1995): Disentangling Moores Paradox, in R.Egidi (Ed.), Wittgenstein: Mind and Language. Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, 195-205. 5 Heal, J. (1994): Moores Paradox: a Wittgensteinian Approach. Mind, 103: 5-24. 13

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Goldstein (1993) e um conjunto de autores que estudam as diferenas semnticas entre as formas assertivas da negao e a denegao ou rejeio [denial], alegam que um falante que afirme eu no acredito que p, rejeita (ou denega) p. Com esta interpretao para a denegao, a um falante que proferisse a verso omissiva do paradoxo deveria ser adscrito um conflito de crenas, analisvel como Eu aceito p e eu denego (rejeito) p. Que a denegao no nos expe a um fenmeno de contradio de crenas (num falante que profira a verso omissiva do paradoxo, em que se pressupe que, no primeiro membro da conjuno, faz o oposto de denegar p), algo que podemos constatar com um exemplo. De algum que afirme: (E) Eu no acredito que o Pai Natal exista nem acredito que o Pai Natal no exista [Eu no acredito que p e no acredito que no-p], Teramos de concluir, com base no modelo de Goldstein para a denegao, que sustenta um conjunto contraditrio de crenas, relativas a um predicado de segunda ordem como a existncia, que no admitiria ambiguidades de atribuio e, por isso, afirm-lo e neg-lo constituiria uma contradio. Para Goldstein, teramos uma interpretao de (E) como segue: (I) Eu rejeito (ou denego) que o Pai Natal exista e rejeito (ou denego) que o Pai Natal no exista. Um falante que afirmasse ou pressupusesse (I) incorreria numa auto-contradio. Porm, com a intuio de falantes competentes do Portugus de que dispomos, entendemos facilmente que a frase (E) no uma conjuno de duas frases que se contradizem, mas uma indecidibilidade de crenas a respeito da existncia do Pai Natal, ou melhor, uma recusa em participar num juzo ou em subscrever uma afirmao de crena positiva ou de crena negativa (acredito que no-p) quanto existncia do Pai Natal. A frase (E) contm duas denegaes e uma negao afirmada - no-p que rejeitada pela segunda 14

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denegao. Em (E), os dois modelos de negao esto conjugados com a atitude proposicional de crena. Esta concluso, sustentada pelo contra-exemplo tese de Goldstein que analismos, confirma o que se disse no ponto anterior quanto introduo de [P2] para explicar a verso omissiva da frase de Moore isto , que a verso omissiva do paradoxo, que incorpora uma atitude de denegao (e no de negao afirmada), conduz a uma indecidibilidade de crenas a respeito do contedo proposicional representado por p e no a uma auto-contradio. A considerao judicativa da frase de Moore como irracionalidade terica Baldwin (1990) defende que eu no poderia ser considerado um agente racional se acreditasse conscientemente numa frase de Moore, j que isso me foraria a, no modelo omissivo, acreditar que acredito e no acredito na mesma coisa e, no modelo comissivo, a acreditar que acredito e no sou capaz de acreditar na mesma coisa. O raciocnio de Baldwin proceder da seguinte forma: na medida em que a minha crena na primeira parte da conjuno consciente, ento eu acredito que acredito que p, e na medida em que consciente a minha crena na segunda parte da conjuno, ento eu acredito que no acredito que p (na verso omissiva) e eu acredito que acredito que no-p (na verso comissiva). O primeiro caso (omissivo) no ser correctamente descrito como um em que eu acredito que (acredito e no acredito na mesma coisa), porque esse seria um caso em que eu acreditasse que (eu acredito que p e eu no acredito que p). O modelo omissivo , isso sim, um caso em que eu tenho crenas contraditrias de segunda ordem6 a respeito de acreditar que p. To pouco o segundo caso (comissivo) correctamente descrito como um em que eu acredito que acredito e no sou capaz de acreditar na mesma coisa, porque esse seria um caso em que 6 Crenas de segunda ordem seriam crenas auto-creditadas, expressas em primeira pessoa, a partir de crenas simples; ou seja, da crena consciente Eu acredito que p seguir-se-ia (num indivduo racional e auto-consciente) eu acredito que acredito que p. 15

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eu acreditasse que (eu acredito que p e eu acredito que no-p). O modelo comissivo do paradoxo de Moore , sim, um caso em que as minhas crenas de segunda ordem apenas so fidedignamente representadas como crenas contraditrias a respeito de p. Para derivar cada uma das crenas parciais num elemento da conjuno (para qualquer dos modelos), teremos de partir da regra da distributividade da crena pela prpria conjuno. E essa regra discutvel. Vejamos porqu. Um indivduo com um sistema de crenas organizado no tem de acreditar (na verdade, no assim que o nosso sistema de crenas funciona) na conjuno de todas as suas crenas da mesma maneira que um indivduo que configura as suas crenas de determinada forma, no est racionalmente coagido a individuar toda e cada uma das respectivas crenas, para fins prticos e no de anlise da estrutura das atitudes de crena. Por outro lado, a explicao proposta pelo princpio de autoconscincia de cada uma das minhas crenas, sugerido por Baldwin, no explica totalmente o modelo comissivo do paradoxo. Ainda que, no modelo omissivo, um agente possa ser considerado irracional por acreditar numa auto-contradio (se o princpio de autoconscincia for verdadeiro) ou por sustentar crenas contraditrias (se o princpio no for verdadeiro), a conscincia da distributividade das minhas crenas, no modelo comissivo, no me torna necessariamente num sujeito irracional, na medida em que a autoconscincia da prpria irracionalidade pode funcionar como o primeiro movimento na demarcao da mesma. Kriegel (2004), influenciado pelo modelo interpretativo de Baldwin, tem uma proposta ainda mais complexa, que parte de uma regra psicolgica R definida por Franz Brentano: R: Se eu acredito conscientemente que p, ento eu acredito que (p e eu acredito que p). Por aplicao desta regra verso omissiva do paradoxo, diz Kriegel, ficamos com a seguinte formulao: R1) Eu acredito conscientemente que (p e eu no acredito que p). 16

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Por aplicao da regra de segunda ordem para crenas, dada pela minha autoconscincia quanto s mesmas (tal como proposta pela tese de Brentano), podemos interpretar a verso omissiva do paradoxo como se segue: R2) Eu acredito que ( ((p e eu acredito que p)) e eu acredito que ((eu no acredito que p) e eu acredito que acredito que (eu no acredito que p))). Neste ponto, Kriegel apela para uma segunda regra, que conjuga a da autoconscincia da crena, proposta por R, com a distributividade da crena pela conjuno. A nova regra estipula que: R*: Se eu acredito que (q e eu acredito que p), ento eu acredito que (eu acredito que q e eu acredito que acredito que p). A partir de R2) e de R*, Kriegel deduz R3) (distribuindo a atitude de crena pela conjuno que a verso omissiva do paradoxo representa): R3) Eu acredito que (eu acredito que p) e eu acredito que (eu no acredito que p) 7. Neste ponto, Kriegel alega que a combinao das crenas de segunda ordem em R3) encerra uma contradio: (eu no acredito que p eu acredito que p). Ento, conclui, se eu sustentar uma verso consciente do modelo omissivo do paradoxo de Moore, poder-me- ser imputada uma crena auto-contraditria. Porm, R2) tem a seguinte forma: eu acredito que (q e eu acredito que acredito que 7 Esta a nica parte da anlise de R2 que nos interessa aqui, quando estamos a aplicar a R2 a regra R*, que combina a regra para as crenas de segunda ordem com a regra da distributividade da crena pela conjuno. 17

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q), em que q p e eu no acredito que p. Se assim for, tudo aquilo que R* parece implicar : R4: Eu acredito que (acredito que (p e eu no acredito que p) e eu acredito que (acredito que p e eu acredito que no acredito que p)). A estratgia de Kriegel, para extrair R3) de R2) e de R*, parece ser a de aplicar R* aos primeiros membros das conjunes de crenas em R2), isto : R5: Eu acredito que (p e eu no acredito que p), E depois aplicar a R5 o princpio da distributividade de crenas, para obter R4. Mas R* no parece poder aplicar-se a R5 porque R5 no tem a forma eu acredito que (q e eu acredito que p). A anlise que Kriegel prope para a verso comissiva do paradoxo parece inconsistente. Kriegel observa que a Regra de Brentano (R) e R6: Eu acredito conscientemente que (p e eu acredito que no-p), Implicam R7: R7: Eu acredito que ( (p e eu acredito que p) e eu acredito que (no-p e eu acredito que acredito que no-p)). Conjugando R7 com R*, supostamente obteramos: R8: Eu acredito que (acredito que p e acredito que acredito que p) e eu acredito que (acredito que no-p e acredito que acredito que acredito que no-p).

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Ento, um agente que sustente conscientemente o modelo comissivo do paradoxo acredita que sustenta crenas contraditrias. Mas o que pode ser extrado, por R e R* verso comissiva do paradoxo : R9: Eu acredito que (acredito que p e eu acredito que acredito que no-p). Se agora voltarmos a aplicar o princpio da distributividade de crenas a R9, o que vamos obter : R10: Eu acredito que acredito que p e eu acredito que acredito que acredito que no-p. Este resultado ainda veicula uma auto-contradio de crenas que, com a aplicao da Regra de Brentano, se representa por uma auto-conscincia daquela. A crena auto-contraditria tornase visvel pela distributividade da crena pela conjuno, o que patenteia o contedo de crenas de segunda ordem. Porm, para que as normas que regulamentam o contedo das crenas de segunda ordem sejam vlidas, teremos que legitimar um princpio mais geral, a saber: se o contedo do que eu acredito implica tal-e-tal, ento tal-e-tal parte do contedo do que eu acredito . E para este princpio, facilmente encontramos contra-exemplos. Eu posso acreditar conscientemente e afirmar que A maior do que B e que B maior do que C, sem estar concomitantemente consciente de que A maior do que C. Isto pode verificar-se porque as regras que governam o sistema de crenas de um indivduo no tm correspondncia estrita com as propriedades das leis e relaes lgicas fundamentais (neste exemplo, a propriedade de transitividade entre relaes). Uma via de resposta ao paradoxo que, sem abdicar da Regra de Brentano, analise minuciosamente as consequncias lgicas da autoconscincia das crenas deve, em qualquer caso, raciocinar dedutivamente a partir de R e da regra de que a crena tem distributividade pela conjuno. 19

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Vejamos o modelo omissivo. Para a primeira conjuno de R2 ser verdadeira, ento (e uma vez que a crena distribui pela conjuno), eu acredito que p tem de ser verdadeira. Mas, para a conjuno toda ser verdadeira, eu no acredito que p, no segundo membro da conjuno, tambm ter de ser verdadeira. Ento, R2 descreve uma auto-contradio de crenas (e uma falsidade lgica, em sentido estrito, porque a conjuno total sempre ser falsa, em qualquer interpretao). Vejamos o modelo comissivo. Para que toda a conjuno de R7 seja verdadeira, ento eu acredito que no-p (no segundo membro da distributividade da crena pela conjuno) tem de ser verdadeira. Mas, para que tal se verifique, tambm o primeiro nvel de autoconscincia da crena na proposio expressa por p, isto , eu acredito que p ter que ser verdadeiro. Se eu, conscientemente, afirmo ou julgo verdadeiro o modelo comissivo do paradoxo, ento professo (conscientemente) um par de crenas contraditrias a respeito de p. Para o modelo omissivo ou para o comissivo, esta densa interpretao do paradoxo, que parte de uma regra psicolgica de autoconscincia de crenas e das contradies que a partir dessa regra se podem extrair da frase de Moore, prova que quem assevera ou julga verdadeira qualquer das verses do paradoxo incorre em grave irracionalidade terica. A elocuo da frase de Moore como irracionalidade prtica No ponto 3. foram enumerados alguns princpios de racionalidade prtica que sumarizam a aco prudente. O absurdo da frase de Moore pode ser interpretado como uma corrupo desses princpios e, portanto, identificado com um exemplo de irracionalidade prtica. As teses de Rosenthal sobre a irracionalidade prtica de uma elocuo da frase de Moore apoiam-se no Princpio de Shoemaker e num critrio de pragmtica discursiva, que Kripke8 defende que o Wittgenstein das Investigaes Filosficas introduziu para substituir o 8 Kripke, S. Wittgenstein on Rules and Private Language. Oxford, Blackwell Publishers, 20

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modelo vero-condicional do Tractatus Logico-Philosophicus. Kripke fala de condies de asseverabilidade, ou seja, das condies que legitimam a assero de uma frase - por oposio s condies que tornam uma frase verdadeira. Rosenthal (1995) defende que o acto de fala que me permite afirmar que p tem as mesmas condies de asseverabilidade que aquele que me permite afirmar Eu penso que p; ou seja, as situaes de conversao em que eu posso afirmar o contedo de p so as mesmas que justificam antepor ao contedo de p a atitude Eu penso que e afirmar o resultado; o converso tambm seria vlido. Portanto, se p tem um conjunto [C1] de condies de asseverabilidade, no-p ter um conjunto [C2] que nunca intersecta [C1]. Esquematicamente: [C1][C2] = { }. A partir desta simetria entre as condies de asseverabilidade de p e de eu penso que p, Rosenthal alarga essa norma atitude de crena (eu acredito que p); portanto, em todas as condies em que p for assevervel para um falante F, eu acredito que p tambm o ser e essas condies nunca sero intersectadas pelas que legitimam F a asseverar eu no acredito que p [C3]. Pela reflexividade da regra das Condies de Asseverabilidade para frases com as atitudes proposicionais j identificadas e para as frmulas proposicionais simples, nas condies em que eu acredito que p for assevervel, p s-lo- tambm e, portanto, no-p (cujas Condies de Asseverabilidade nunca intersectam as das frmulas anteriores) no ser assevervel nessas mesmas condies. Se aceitarmos a regra de que a assero distribuvel pela conjuno, qualquer assero da verso omissiva da frase de Moore viola a frmula derivada do raciocnio acima exposto para a atitude de crena, isto : [C1] [C3] = { }. Com a mesma regra explicativa da irracionalidade de asseverar a frase de Moore, chegaremos verso comissiva do paradoxo, assumindo que no-p e eu acredito que no-p tm as mesmas condies de asseverabilidade e que, portanto, qualquer das duas frmulas tem condies de asseverabilidade que nunca intersectam as de p ou eu acredito que p. 1982. 21

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Como as condies de asseverabilidade so normas para a prtica da assero, uma elocuo das verses omissiva ou comissiva da frase de Moore incorrer numa irracionalidade de tipo prtico: a anlise de Rosenthal9 explica o absurdo da afirmao de uma frase de Moore como irracionalidade de pragmtica discursiva. As regras que determinam as condies de asseverabilidade de uma frase ou frmula parecem s decidir quando que um falante tem justificao suficiente para fazer uma elocuo determinada. Quer isso dizer que estas regras no exploram o contradomnio das condies positivas de asseverabilidade no enunciam nem determinam o conjunto de actos de fala ou contextos de conversao em que a assero justificada pelas condies positivas de asseverabilidade no se pode fazer. As mesmas regras to pouco disponibilizam ao defensor deste modelo um conjunto de condies de no-asseverabilidade de frases ou frmulas, que fortalecesse este mtodo. Porm, talvez devamos pensar que porque o mtodo apenas normativo e s enuncia normas positivas ou um tipo positivo de normas pragmticas, que so as condies de asseverabilidade que esta anlise de uma assero da frase de Moore como irracionalidade prtica se coaduna com os princpios que regem a aco prudente (adaptada s Condies de Asseverabilidade, como princpios que regem a assero prudente), princpios esses que no visam determinar nenhuma aco ou conjunto de aces, mas so meros enunciados formais que descrevem procedimentos que visam maximizar a vantagem do agente ou evitar a irracionalidade prtica. A considerao judicativa da frase de Moore como irracionalidade prtica Na anlise de diferentes tipos de irracionalidade que podem explicar o absurdo da frase de Moore, os trabalhos mais recentes sobre o problema seguem a proposta de Sorensen (1988) de que se analise separadamente a irracionalidade demonstrada por uma assero da 9 Rosenthal, D. (1995b): Moores Paradox and Consciousness, Philosophical Perspectives. 22

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frase de Moore e uma ponderao judicativa da veracidade do seu contedo (diferena entre o absurdo da frase de Moore como contedo de elocuo ou como contedo de pensamento). J. Hintikka (1962) responde ao paradoxo alegando que, para um falante F que afirma uma frase de Moore ou tem que avaliar o seu contedo proposicional, impossvel acreditar no que est a afirmar ou a julgar. Hintikka organiza uma explicao do absurdo da frase de Moore em termos da inconsistncia nas crenas de ordem superior de um agente. As crenas de ordem superior (high-order beliefs) esto ligadas a um reconhecimento auto-consciente das prprias crenas, a partir das crenas (ou outras atitudes proposicionais) de primeira ordem. Por exemplo, um agente consciente e racional que afirme ou julgue verdadeira a frase Eu acredito que p, por este princpio, tambm acredita que acredita que p. Hintikka parte do seguinte princpio de explicao para o absurdo da frase de Moore: [HP] Numa afirmao em primeira pessoa, uma falha de obedincia ao princpio: se eu acredito que p, ento tambm acredito que acredito que p, deve ser tomada como impossvel. Hintikka defende ainda que se eu (ou seja, numa afirmao ou juzo em primeira pessoa) acredito que (p e eu no acredito que p), ento eu acredito que p (pela distributividade da crena pela conjuno) e tambm por [HP] acredito que acredito que p [1]. No entanto, justamente pela distributividade da crena pela conjuno, eu acredito que no acredito que p [2]. Extraindo [1] e [2] da aplicao de [HP] verso omissiva do paradoxo, teremos de atribuir ao falante F que profere a frase de Moore em primeira pessoa ou a julga verdadeira crenas contraditrias de ordem superior. Ou seja, F induzido numa auto-contradio ao nvel da crena na sua crena em p (violando assim a regra estipulada por [HP]). O Principio de Hintikka talvez no possa ser generalizado a lei psicolgica, que determine a reflexividade e autoconscincia para todas as crenas de um agente, dado que uma crena minha, por exemplo, em p, poder ser algo de que eu no sou totalmente 23

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consciente e assim [HP] seria enfraquecido por um contra-exemplo. E essa suposta falha de auto-reconhecimento de uma crena minha no torna inconsistente todo o meu sistema de crenas. Por seu turno, uma falha de autoconscincia de uma das minhas crenas tambm no indicia uma contradio no conjunto das mesmas, o que seria uma marca de irracionalidade terica, mais do que prtica. A interpretao que Hintikka fornece para a verso omissiva do paradoxo de Moore, justificando o absurdo como uma auto-contradio em crenas de segunda ordem, pode ser parcialmente refutada por casos de auto-iluso ou inconscincia de algumas crenas, mesmo num sujeito perfeitamente racional. No parece, por exemplo, defensvel como principio psicolgico que as crenas de um indivduo sejam dedutivamente fechadas (isto , que, se eu acredito que p implica q, e acredito que p; ento forosamente eu acredito que q). Um simples lapso de ateno ou desinteresse em deduzir as crenas que as minhas crenas conscientes implicam, invalida a generalizao deste princpio a lei psicolgica estrita. Um agente pode fazer uma afirmao (sincera) de: (L) Eu acredito que a Segunda Guerra Mundial j acabou, Mesmo havendo motivos subjacentes inclusive confirmados por factos da experincia, ou seja, por indagaes quanto autoconscincia dessa crena que no autorizem uma afirmao de crena de segunda ordem na crena de primeira ordem. Um agente que profira (L) no est constrangido a aceitar conscientemente e inclusive e ter de proferir (L1), se solicitado, para contar como um agente racional, onde (L1) equivale a: Eu acredito que acredito que a Segunda Guerra Mundial j acabou, falhando assim a generalizao de [HP]. Este esquema interpretativo do Paradoxo de Moore enquanto irracionalidade prtica no oferece um modelo explicativo para a mesma na verso comissiva do Paradoxo. Concluso 24

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As vrias vias de anlise do absurdo encerrado, quer numa assero em primeira pessoa da frase de Moore quer na respectiva considerao judicativa, imputam ao respectivo falante ou sujeito judicativo um ncleo de incoerncia, a montante do qual poderemos encontrar disfunes na parcela do sistema cognitivo que organiza o respectivo conjunto de crenas. No fundo, dadas as diferentes perspectivas em que uma frase de Moore pode ser analisada, o trao comum e mais geral que explica o absurdo da mesma, quando proferida ou considerada judicativamente, a assero de uma frase que representa uma contra-evidncia efectiva (isto , ao nvel dos factos) a uma dada proposio que se constata pertencer ao sistema de crenas do falante ou sujeito judicativo. Se, nos vrios modelos de anlise e diagnstico do absurdo de uma frase de Moore expostos acima, debatemos a existncia de dois nveis bsicos para aferir a veracidade de um dado contedo proposicional (a saber: o nvel de constatao de um determinado facto por um agente, expresso numa formulao proposicional correspondente e o distinto nvel de crena do mesmo agente no mesmo facto), justamente essa duplicidade de nveis que se ramificam em sub-nveis, logo que a anlise do contedo de uma frase de Moore se complexifica que bloqueia a classificao de qualquer das verses da frase como uma contradio, mas legitima a classificao de qualquer das verses como absurdo paradoxal, bem como a adscrio de irracionalidade ao falante que as profira ou ao sujeito judicativo que as subscreva. Mesmo a proposta de anlise de Wittgenstein, parecendo demarcar-se deste modelo muito esquemtico de justificao do absurdo das frases de Moore, incorpora-o de uma maneira transformada. Alegando que o falante que profira uma frase de Moore incorrer numa forma de auto-contradio, dada a assimetria entre o ponto de vista da primeira e da terceira pessoa e a conotao expressiva das elocues de crena em primeira pessoa, Wittgenstein parece prescindir dos dois nveis bsicos supra-mencionados para aferir a veracidade de um contedo proposicional e fazer um novo diagnstico do absurdo encerrado 25

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numa frase de Moore. como se, no quadro wittgensteiniano, tanto o nvel constatativo como o nvel de ponderao subjectiva articulado numa frase de crena em primeira pessoa fossem assimilados tutela do falante ou sujeito judicativo, justificando o diagnstico de autocontradio. Porm, no esse raciocnio que legitima o esquema interpretativo proposto por Wittgenstein. Nas Investigaes Filosficas, Wittgenstein defende que um falante que profira uma frase com a forma eu acredito que p, no apenas no estar a descrever uma crena em primeira pessoa e sim a express-la, como ilegtima qualquer forma de comportamentalismo lgico que pretendesse aferir a veracidade de tal elocuo pela auto-observao dos comportamentos ou disposies comportamentais do falante ou por um exerccio de introspeco. O privilgio da perspectiva da primeira pessoa poder expressar uma crena, naquela frmula proposicional, sem necessidade de um auto-exame do interior pelo falante. Bem assim, a expresso de uma crena em primeira pessoa que renegue ou contradiga eu acredito que p (respectivamente, na verso omissiva e comissiva do Paradoxo de Moore) dispensa introspeco ou auto-exame para ser legitimada. O que Wittgenstein faz reexaminar o nvel de crena de um agente ou falante num dado contedo proposicional que relaciona a crena com um facto constatvel, afirmando que, em primeira pessoa, a expresso de crena tem a legitimidade de um facto e, portanto, conjugada com uma renegao ou contradio da mesma crena ao nvel da constatao (no primeiro segmento de uma frase de Moore) expe o falante ou sujeito judicativo a uma autocontradio. Os dois nveis mantm-se, s que o paradoxo explicado a partir das prerrogativas do nvel de crena em primeira pessoa. Referncias Green, M. and Williams, J.N. (Eds.). 2007. Moores Paradox: New Essays on Belief, Rationality, and the First Person. Oxford: Oxford University Press. 26

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Heal, J. 1994. Moores Paradox: a Wittgensteinian Approach. Mind, 103: 5-24. Kripke, S. 1982 Wittgenstein on Rules and Private Language. Oxford: Blackwell. Rosenthal, D. 1995. Moores Paradox and Consciousness. Philosophical Perspectives. Malcolm, N. 1995. Disentangling Moores Paradox. In R.Egidi (Ed.), Wittgenstein: Mind and Language. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers. 195-205. Wittgenstein, L. 2003). Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell.

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