A FALSIFICAÇÃO E O TEATRO GREGO: DUAS FACES DA...

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43 PHOÎNIX, Rio de Janeiro, 22-2: 43-58, 2016. A FALSIFICAÇÃO E O TEATRO GREGO: DUAS FACES DA MESMA MOEDA 1* Lorena Lopes da Costa ** Resumo: O presente artigo busca discutir a ficção para além do ψεῦδος (pseûdos) no mundo grego. Para tanto, examino o estatuto da ficção e do ficcional a partir de moedas falsas. Na relação do homem grego com sua moeda, falsa ou verdadeira, deparamo-nos com situações em que moedas falsas são autori- zadas a integrar a circulação, tornando-se, consequentemente, equivalentes às verdadeiras; há também moedas falsificadas capazes de pôr em xeque as verdadeiras; e ainda as falsas que podem se tornar mais verdadeiras do que as reais. É preciso notar que o contraste vocabular entre ψεῦδος e ἀλήθεια (alétheia) não permite perceber a fluidez da fronteira entre uma ideia e outra. Donde, talvez, a contribuição de observar como essa mesma fronteira se comporta nas práticas do mundo grego pouco familiares às noções de ψεῦδος e ἀλήθεια (como no caso das moedas), mas que, inevitavelmente, participam de sua elaboração e sofisticação. Tais práticas ajudam, assim, a explicar o pacto de ficcionalidade no teatro clássico. Palavras-chave: falsificação; moedas falsas; moedas verdadeiras; ficção; teatro. LA CONTREFAÇON ET LE THÉÂTRE GREC: DEUX FACES D’UNE MÊME PIÈCE Résumé: Dans cette réflexion, je voudrais discuter la fiction au-delà du ψεῦδος (pseûdos) dans le monde grec. J’examine, pour ce faire, le statut de la fiction ou du fictionnel, en particulier dans les fausses pièces. Dans la relation de l’homme grec avec sa monnaie, tant réelle que fausse, on est confronté à des situations où il y a des pièces fausses qui sont autorisées à intégrer * Recebido em: 07/07/2016 e aceito em: 31/08/2016. ** Doutora em História pela UFMG, sob orientação do Prof. José Antonio Dabdab Trabulsi. E-mail: [email protected].

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  • 43PHONIX, Rio de Janeiro, 22-2: 43-58, 2016.

    A FALSIFICAO E O TEATRO GREGO: DUAS FACES DA MESMA MOEDA1*

    Lorena Lopes da Costa**

    Resumo:

    O presente artigo busca discutir a fico para alm do (psedos) no mundo grego. Para tanto, examino o estatuto da fico e do ficcional a partir de moedas falsas. Na relao do homem grego com sua moeda, falsa ou verdadeira, deparamo-nos com situaes em que moedas falsas so autori-zadas a integrar a circulao, tornando-se, consequentemente, equivalentes s verdadeiras; h tambm moedas falsificadas capazes de pr em xeque as verdadeiras; e ainda as falsas que podem se tornar mais verdadeiras do que as reais. preciso notar que o contraste vocabular entre e (altheia) no permite perceber a fluidez da fronteira entre uma ideia e outra. Donde, talvez, a contribuio de observar como essa mesma fronteira se comporta nas prticas do mundo grego pouco familiares s noes de e (como no caso das moedas), mas que, inevitavelmente, participam de sua elaborao e sofisticao. Tais prticas ajudam, assim, a explicar o pacto de ficcionalidade no teatro clssico.

    Palavras-chave: falsificao; moedas falsas; moedas verdadeiras; fico; teatro.

    LA CONTREFAON ET LE THTRE GREC: DEUX FACES DUNE MME PICE

    Rsum: Dans cette rflexion, je voudrais discuter la fiction au-del du (psedos) dans le monde grec. Jexamine, pour ce faire, le statut de la fiction ou du fictionnel, en particulier dans les fausses pices. Dans la relation de lhomme grec avec sa monnaie, tant relle que fausse, on est confront des situations o il y a des pices fausses qui sont autorises intgrer

    * Recebido em: 07/07/2016 e aceito em: 31/08/2016.

    ** Doutora em Histria pela UFMG, sob orientao do Prof. Jos Antonio Dabdab Trabulsi. E-mail: [email protected].

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    la circulation et, par consquent, sont quivalentes aux vraies; ainsi que pices contrefaites qui sont capables de mettre en chec la vraie monnaie; et encore des contrefaites qui peuvent devenir plus relles que les relles. Il faut noter que le contraste entre e (altheia) ne permet pas de percevoir la fluidit de la frontire entre une ide et lautre. Do, peut-tre, la raison dobserver comment cette mme frontire se comporte dans les pratiques du monde grec, en principe pratiques peu habitues aux notions de e (comme dans le cas de la monnaie), mais qui, invitablement, ont particip leur laboration et leur sophistication. Et qui aident (ces pratiques) expliquer le pacte de fiction au thtre classique.

    Mots-cls: contrefaon; fausses pices; varies pices; fiction; thtre.

    I - Introduo: sobre o

    Para a ideia de verdade, j em Homero o vocabulrio grego apresen-ta formas variadas, tais como (altheia, verdade, que se acredita ter significado, inicialmente, algo sem esquecimento, algo no esqueci-do), (verdadeiro), (genuno), dentre outras (LEVET, 1976; BRANDO, 2005). Por outro lado, para a mentira, o falso, o ardil, a inven-o, o errneo, o fictcio e a fico no h, na tradio grega, mais do que uma denominao: (psedos).2 Tal restrio vocabular no pode, porm, enganar-nos: a noo de psedos ampla e a compreenso grega da mentira e de suas variaes bastante elaborada. Empreendendo graus de ficcionalidade diferentes ao contar suas histrias, Odisseu ser o exemplo arquetpico da conscincia do fictcio e do falso. Ele , na tradio, o pri-meiro a mentir, e a mentir de maneira variada: contando mentiras maiores e menores, mais distantes ou mais prximas da verdade, todas elas , e, no extremo, entregando-se mais pura inveno, .

    Noutro extremo, o mitgrafo Acusilau de Argos3 inaugura, no sculo VI a.C., o tema do documento original na tradio do Ocidente (GRAFTON, 2004). O mitgrafo estreia o uso do documento como meio de comprovar a veracidade de suas histrias fabulosas. Atravs da autoridade das tabui-nhas de bronze encontradas no jardim da casa de seu pai, Acusilau de Argos experimenta evidenciar a saga de seus deuses e heris. Suas afirmaes nesse sentido so atestadas de forma inovadora pela fora de um documen-to original que, segundo sua inteno, permite supor que seria o necessrio para garantir seu teor de verdade, de modo a desenvolver a credibilidade no interlocutor. De maneira parecida, atentos ao documento verdadeiro, histo-

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    riadores, oradores e filsofos coevos tambm passam a citar no apenas os discursos, mas os documentos que comprovariam o argumento de suas ver-dades. Tucdides, por exemplo, reivindica insistentemente a necessidade de o historiador srio (em oposio a Herdoto e aos outros loggrafos, como os denomina) embasar seu relato com o testemunho. Antes deles, Pisstrato, visando no ao documento original, mas ao menos a um registro oficial para servir da em diante como autoridade, determina a fixao dos cantos da Ilada e da Odisseia. A iniciativa do tirano demarca, ainda que de forma arbitrria, um limite entre o que pertence a Homero e o que no pertence, estabelecendo no o registro original (cuja noo mesma seria incompat-vel com a reivindicao), mas, ao menos, o registro do oficial, do mais ver-dadeiro. No obstante, o mesmo Pisstrato e tambm Slon so acusados de terem interpolado versos da glria de Atenas nos textos homricos fixados, infringindo assim o texto oficial com entrechos no verdadeiros.

    Veem-se no sculo V, ademais, o desenvolvimento e o aperfeioamento das inscries oficiais, responsveis por provar os direitos e os ttulos de propriedade, bem como a proliferao de inscries oficiais demarcando e comprovando as decises pblicas. Atenas, assim, demonstra dar crdito e atestar o crdito, ela tambm, dos documentos originais e verdadeiros. Da mesma maneira, a fim de se resguardar do falso, a cidade vai estabelecer as regras a serem observadas na verificao das moedas destinadas ao tesouro, estabelecendo at mesmo cargos para especialistas treinados a comprovar ou desmascarar a autenticidade das peas.

    II - As moedas falsas em Atenas: um ndice da plasticidade da fronteira entre o falso e o verdadeiro

    Observa-se, a partir de algumas inscries gregas, que a estampa (ou o carter) [] da moeda, seja a moeda produzida nas casas de fundi-o, seja a produzida nas oficinas domiciliares, devia seguir as prescries da plis, assim como era preciso seguir as prescries oficiais para o peso e a liga dos metais (CALLATA, 2009; BABELON, 1979).4 As faces da moeda deviam indicar no apenas a identidade da regio (no caso de Atenas, a famo-sa coruja e as letras iniciais do nome da deusa da cidade) onde a moeda iria circular, como deviam indicar os responsveis pela srie de moedas. Alm disso, qualquer que fosse sua origem, as moedas tinham de passar pelo crivo do responsvel pela verificao [] da autenticidade, de modo que,

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    caso apresentassem peso inferior ou liga inadequada em relao ao peso e s ligas oficiais, o responsvel pela produo pudesse ser punido at mesmo com a morte, se confirmada sua intencionalidade (HEISSERER, 1984). , ao menos, o que mostra o documento epigrfico da conveno monetria entre as cidades de Mitileno e da Foceia, datado dos ltimos anos do sc. V a.C. ou, o que mais provvel, do sc. IV a.C. [ [] -/ -/ ] (I.G. XII, 2, 1).

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    Por outro lado, uma estela de mrmore, descoberta apenas em 1970 durante as escavaes na gora de Atenas, informa-nos que as moedas falsas, detectadas pelo (o responsvel por avaliar a veracidade da moeda), poderiam ter dois destinos diferentes (I, 7180).6Segundo o do-cumento, cuja inteno parece ser, com efeito, a de orientar o em seu trabalho de verificao da autenticidade das moedas, se algum apresentasse moedas falsas (cunhadas em oficinas no autorizadas) cujo carter fosse o mesmo do carter tico (a coruja e as letras iniciais da deusa Atena) e elas tivessem valor ponderal e metlico correspondente ao tico, essas moedas estariam autorizadas a circular no comrcio ateniense. Mas se, ao contrrio, as moedas, mesmo tendo o mesmo carter da oficial, no correspondessem a ela, quer dizer, no tivessem o padro ponderal e me-tlico correspondente ao da moeda cunhada em Atenas, ento deveriam ser danificadas (riscadas ao meio) e, depois disso, consagradas Me dos deuses e depositadas na Boul (Conselho).

    O encarregado de avaliar a genuinidade das moedas, portanto, ao apurar as moedas falsas, deveria distinguir entre elas (entre as falsas) as boas das ruins. Se a moeda falsificada fosse boa, ento poderia circular; se no fosse boa, antes de ser levada ao templo da deusa protetora, deveria ser arranhada ao meio, ficando, da em diante, marcada com a insgnia da proibio.

    Fica decidido pelos Legisladores [], no arcondado de Hi-ppodamas; Nikofon tendo feito a proposta: moeda de prata deve ser aceita quando [parecer ser] de prata e portar o carter [[]] oficial. O avaliador pblico [], assentado [s] mesas, deve testar, de acordo com essas orientaes todo [dia, exceto] em dia de pagamento; quando ele deve fazer seu trabalho de avaliar no [Bouleutrion]. Se algum apresentar [moeda estrangeira de prata] com o mesmo carter que a tica [ []], [se ele for bom], o avaliador deve devolv-la a quem a

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    apresentou, mas se ela for [de bronze no ncleo] ou abaixo do peso, ou falsificada, ele deve atravess-la com um risco [imediatamente] e [ela] deve ser consagrada Me dos Deuses e ser [depositada] por ele junto Boul. (I 7180. 1-13, traduo nossa)7

    Com relao s moedas falsas que deviam ser aceitas no comrcio, ao invs de riscadas ao meio e consagradas deusa, o documento no deixa dvida: trata-se de moedas que tinham o mesmo carter que o ateniense [ []]. Ora, sendo o mesmo que o ate-niense, o carter da moeda falsa s poderia ser algum que no o ateniense, embora semelhante a ele: portanto, um carter falso. Nesse caso, o carter, que era falso por no ser o ateniense, no era danificado de ponta a ponta, porque a moeda, apesar dele, era como a verdadeira, tornando-se, por isso, autorizada pela cidade a circular, e verdadeira tambm. Pelo texto, pode-se concluir que muitas das moedas falsas eram falsificadas com boa-f, uma vez que, respeitando o valor ponderal e metlico da oficial, os falsificadores no elevavam seu valor aparente lucrando sobre o valor real. Ao reconhecer essa boa-f da ao, a plis no punia o falsificador nem proibia o uso da moeda; ao contrrio, permitia que ela circulasse e fosse aceita no comrcio.8

    Curiosamente, as moedas falsas que existiam na Atenas clssica, apesar de falsas no eram denominadas (fossem elas as riscadas ao meio ou as aceitas no comrcio). A moeda falsa, conforme a inscrio (e , segundo outras fontes), ao menos em princpio tecnicamente falsa, podendo ter sido adulterada no peso ou na liga dos metais. No plano vocabular, tambm os verbos , e principalmente indicam tecnicamente a ao de falsificar, alm do conhecido (BYWATER; MILNE, 1940). A dife-rena lexical, no entanto, no impede a observao de que, ao aceitarem a circulao de uma moeda legitimando-a, os atenienses acabavam por imiscuir o falso e o verdadeiro num objeto concreto, criando um objeto to verdadeiro quanto o verdadeiro, embora fosse falso.

    II.I - Sobre as moedas falsas em Digenes Cnico

    A inscrio descoberta na gora, em 1970, com as orientaes a serem seguidas pelo (o encarregado pela apurao da autenticidade das peas), no um caso isolado cujo teor problematiza a fronteira, ex-tremamente fluida, entre falso e verdadeiro, atravs de uma prtica no

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    inscrita no universo do . Da mesma maneira que a falsificao de boa-f pode ajudar na apreenso dessa fronteira, tambm a falsificao de m-f pode dar outras pistas no sentido de apreend-la. Logo na aber-tura do livro consagrado a Digenes Cnico, D. Larcio narra a histria em que a falsificao da moeda aparece como a causa do exlio de Digenes e a oportunidade para sua iniciao filosfica.

    Digenes de Snope era filho do banqueiro Icsio. Diocles diz que ele foi banido da sua cidade porque seu pai, que era responsvel pelo dinheiro do estado, falsificou a moeda [ ]. Mas Eublides, no Sobre Digenes, diz que o prprio Digenes fez tal coisa e foi exilado com o pai. Alis, ele mesmo, no Prdalo, afirma ter falsificado a moeda [ ]. Alguns dizem que ele se tornou administrador e que, tendo sido cor-rompido por alguns trabalhadores, foi at Delfos ou ao orculo Dlio da sua cidade perguntar a Apolo se poderia fazer aquilo a que era induzido. Teve, ento, o consentimento para alterar as instituies polticas, mas no entendeu bem e falsificou a moeda [ ]. Depois, quando foi descoberto, segundo alguns, foi exilado, mas, segundo outros, deixou a cidade voluntariamente, com medo. Outros dizem ainda que ele recebeu do pai a responsabi-lidade de cuidar da moeda e adulterou-a []; o pai morreu na priso e ele fugiu; foi em seguida para Delfos e perguntou no se poderia falsificar [], mas o que deveria fazer para ser mais famoso e assim recebeu o referido orculo. (DIGENES LARCIO. VI, 20-1, traduo de Flores-Jnior)

    O tema da falsificao da moeda , na verdade, um tema que aparece em D. Larcio no apenas nessa passagem, mas que est no centro de uma tradio que fez desse episdio da vida de Digenes Cnico um exemplo privilegiado da doutrina cnica. que a plasticidade das possibilidades in-terpretativas da passagem soma-se conservao da anedota pela tradi-o, de modo a confirmar um dos traos fundamentais do corpus cnico: a recusa do uso da moeda corrente, entendida como uma escolha que no exatamente a refuta, mas refuta seu uso corrente e inverte esse uso para deixar mais evidente sua crtica a ele (FLORES-JNIOR, 2000). Em ou-tras palavras, Digenes Cnico, tendo ou no falsificado a moeda, ter-se-ia aproveitado da histria tal como a tradio cnica o faria.

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    Da expresso , utilizada no relato de D. Lar-cio, possvel pensar em trs possveis significados (BYWATER; MILNE, 1940). Em primeiro lugar, o , aglutinado ao verbo , poderia indicar a m qualidade da ao que se segue a ele, qual seja, a de marcar o material da moeda com um carter, formando assim o . Assim, a expresso traduziria a ao de marcar uma moeda com uma efgie de modo a produzir uma impresso ruim. Um segundo significado indi-caria a mudana do timbre que marca moeda, a partir da fabricao de um falso, dando vazo ao sentido metafrico da expresso. Um terceiro significado, por fim, indicaria a falsificao de forma mais direta, enfatizando a ao de utilizar um carter falso para produzir o dinheiro falso, tal como um falsificador profissional de moeda faz. Os trs senti-dos, obviamente, guardariam elementos em comum, podendo se confundir, mas dos trs, principalmente o segundo significado revelaria a riqueza da expresso que interessou aos Cnicos. Tem-se, nesse segundo sentido, que a ao de falsificar, ao ser nomeada , privilegia no o contedo, mas a estampa que cobre a moeda, de modo que a moeda resultante dessa ao ter sido impressa com uma nova efgie, ainda que sem abandonar o material j existente. Dessa forma, quando o falsificador executa tal ao [ ], introjeta algo novo no que j existe. Ele cria o novo por meio da estampa, mas preserva o j existente. E, fazendo isso, no recusa totalmente a moeda, apenas altera uma parte dela, que precisamente o seu carter.

    sabido que Digenes Cnico teve o costume de tomar um material e imprimir sobre ele um novo carter, aproveitando o material existente para dar a ele um novo uso. Citando apenas o exemplo mais evidente, ele fez do tonel sua morada: tomou o tonel, o material j existente; imprimiu sobre ele o novo carter, o da morada; e deu a ele o novo uso, recusando seu uso corrente imediato (ou, mais precisamente, deu a ele o uso mais simples, simplificando o costume mesmo da morada).9 O duplo sentido da palavra nmisma moeda, mas tambm costume s enriquece o relato. Falsificar a moeda [ ] calha como metfora do procedimento cnico em que um costume [ ] alterado para que outro seja colocado em evidncia como possvel substituto. Por outro lado, sabe-se que a falsifica-o das moedas era plenamente possvel no tempo de Digenes. Um estudo sobre a emisso das moedas de Snope, no sc. IV a.C., revela que um con-junto de moedas falsificadas foi encontrado exatamente na regio do Ponto,

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    datado da poca em questo (DUDLEY, 1967). A expresso no relato de D. Larcio, dessa forma, parece ir totalmente ao encontro da tradio cnica, iluminando-a com seu valor metafrico bem como com seu valor histrico, pois tendo em vista uma filosofia que tem no falar franco e claro (FLORES-JNIOR, 2000, p. 28) um de seus princ-pios, pouco provvel que o episdio de Digenes Cnico falsificando as moedas em Snope no tenha ocorrido. Soma-se em defesa do fato, alm do que afirmam as outras fontes citadas no relato do filsofo, a informao dada por Digenes mesmo, atribuda a ele por D. Larcio, que, no Prda-lo, atesta sua ao de falsificar as moedas [ ] (DIOGENES LARCIO.VI, 20.5).

    A possibilidade de confirmao (ou da no confirmao) do valor his-trico que resguardaria o caso da falsificao das moedas por Digenes, no entanto, no deve implicar separ-lo de seu valor como construto metafri-co. Exatamente nessa confluncia residiria a fora do relato para a tradio cnica. Tambm nela seria possvel apreender, tal como no caso das moedas falsas que circulavam como verdadeiras em Atenas, a falsificao enquanto elemento fundamental de uma cultura que, ao invs de escolher o falso em detrimento do verdadeiro, mistura o falso com o verdadeiro sem refutar o material j existente e, aproveitando-o por meio da marcao de um novo carter, faz com que um objeto falso torne-se apto a ter um uso to verda-deiro quanto o objeto verdadeiro.

    II.II - Sobre as moedas falsas em Alexandre, o Grande

    O episdio narrado por D. Larcio sobre Digenes Cnico aludido por outras fontes, dentre elas Plutarco, que, de forma rpida, mas no ingnua, explora, se no a polifonia, ao menos a ambiguidade do evento no texto Sobre a fortuna ou a virtude de Alexandre. Plutarco conta que Alexan-dre, o Grande, cuja admirao por Digenes Cnico era notria, teria dito que, tal como fizera o filsofo de Snope, tambm ele falsificaria a moeda. Alexandre propunha alterar o carter da cunhagem nas peas fornecidas pelos povos conquistados, de modo a imprimir sobre elas a marca do Esta-do grego. Em outras palavras, ele alteraria a moeda [ ] e falsificaria, assim, a moeda brbara [ ]. A passagem, porm, deve ser entendida como uma espcie de concluso que coroa a explicao do historiador sobre o imperador macednico. Segundo

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    Plutarco, Alexandre teria misturado aos costumes gregos os costumes de outros povos, civilizando cada pas, disseminando a justia helnica e a paz sobre cada nao, alargando os limites do mundo conhecido. Esse impera-dor que tanto fizera era tambm grande admirador de Digenes, a ponto de ter dito certa feita: se eu no fosse Alexandre, Digenes seria [ , ] (PLUTARCO. Sobre a fortuna ou a virtude de Alexandre 332). A admirao de Alexandre por Digenes no revela, porm, nenhuma insatisfao com seu exerccio de poder, o que poderia se depreender da afirmao. Alexandre no desejava ser filsofo como Digenes mesmo o tendo em grande estima, por j enxergar em si um filsofo em ao, um filsofo em seu propsito maior: o de misturar [] o mundo no grego ao mundo grego, as coisas dos brbaros s coisas gregas. Sem desejar abandonar seu lugar, Alexandre admirava a simplicidade e a autonomia (o bastar-se a si mesmo) de Digenes e no hesitava em tomar como lio alguns de seus costumes:

    [...] Por minha causa, aqueles [sbios] precisam vir conhecer Digenes bem como ele precisa conhec-los. E eu tambm, como Digenes, devo alterar as moedas e falsificar as brbaras com a efgie grega. (PLUTARCO. Sobre a fortuna ou a virtude de Alexandre 332, traduo nossa)10

    Alexandre julgava-se, assim, um filsofo em ao por enxergar em sua conquista do mundo conhecido o propsito filosfico de civilizar cada re-gio atravessada, disseminar a justia e a paz, estimular e promover a troca de costumes, o cosmopolitismo enfim. , ento, na concluso dessa ex-plicao11que Plutarco faz seu Alexandre dizer sobre a fabricao de uma moeda nova, usando o verbo , que indicaria a falsificao num sentido mais tcnico, bem como o ambguo provavelmen-te, o verbo sempre utilizado nas aluses histria da falsificao da moeda por Digenes: eu tambm, como Digenes, devo alterar [] as moedas e falsificar [] as brbaras com a efgie grega.

    Tal como no relato de D. Larcio, a expresso, em referncia a Di-genes, parece tirar proveito, no relato de Plutarco, de seu valor histrico (independente de sua veracidade) para enriquecer seu valor metafrico. Se usada no sentido denotativo, ela explicitaria, na prtica, a soluo que Alexandre tinha em mente para criar sua nova moeda: alterar a moeda dos brbaros. No sentido figurado, porm,12 a expresso apenas coroaria me-

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    taforicamente o projeto de Alexandre de helenizao do mundo, em que tanto o conquistador quanto o conquistado contribuiriam para a formao do imprio, agremiando-se num mesmo espao.

    Em geral, as alexandras eram moedas de prata e de ouro que seguiam o valor ponderal do modelo tico do quinto sculo, nas quais se via como le-genda o nome de Alexandre no genitivo, indicando a posse de Alexandre []. Nas de prata, Hracles e Zeus figuravam no anverso e no re-verso, respectivamente, ao passo que nas de ouro, Atena e Nik constituam a dupla estampa. Sabe-se que, no caso de moedas a serem forjadas iguais num grande nmero de cidades (o que acontecia com as moedas emitidas no alcance de um reino ou um imprio como o de Alexandre), gravava-se sobre elas uma marca para indicar o lugar da fundio das sries. Mas, parte esses sinais que diferenciavam cada srie, as moedas fabricadas nas diferentes regies submetidas a um nico poder tinham uniformemente os mesmos tipos e as mesmas legendas. Sabe-se ainda que a emisso de mo-edas com o nome de Alexandre representa um fenmeno maior na histria das moedas, sobretudo nos ltimos anos de seu reinado. E tal observao funda-se na ideia implcita de uma massa metlica essencialmente estvel, que teve significativo aumento com os butins de guerra orientais captura-dos pelo filho de Felipe (BABELON, 1979; CALLATA, 1993). Tendo em vista a amplitude da fabricao das moedas durante o reinado de Alexan-dre, de se desconfiar, portanto, que o rei tenha requerido o essencial da massa metlica disponvel (LE RIDER, 2003), parecendo natural ao julga-mento de Plutarco, se o sentido da expresso for literal, que a nova moeda, a moeda imperial, estaria destinada a suplantar toda variedade, fazendo desaparecer as anteriores.13

    Se h a possibilidade de que uma confirmao histrica mnima se some ao construto metafrico no uso da expresso no episdio de Digenes Cnico, essa possibilidade, no episdio de Alexan-dre, mostra-se igualmente possvel e incerta. Porm, tal como no caso de Digenes, no seria preciso escolher um dos dois sentidos pois, ainda que o valor metafrico se apresente com mais fora narrativa do que o valor histrico no episdio narrado por Plutarco, evidente que o primeiro s pode existir e ser compreendido enquanto metafrico em funo da plasti-cidade da expresso, ou, em outras palavras, pelo fato de que a expresso pode transitar de um lado a outro, revelando, por conseguinte, quo frgil a fronteira entre eles.

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    Essa fragilidade da fronteira entre o histrico e o metafrico, que en-riquece a expresso, por fim pode ser entendida luz da disposio que a cultura grega desenvolveu, ao menos desde Homero, no para o falso, mas para certa solidariedade entre verdade e mentira. Em comum, os episdios narrados por D. Larcio, por Plutarco e o decreto que aceita a circulao de moedas produzidas com o mesmo carter que o ateniense, evidenciam uma espcie de reconhecimento por parte da cultura grega da fora produ-tiva do falso, entendida como uma fora que nasce no restrita ao universo da mentira, mas na fronteira que mistura mentira e verdade.

    III - Moedas falsas para se pensar a falsificao das histrias

    Como as histrias de Digenes Cnico e Alexandre, vrias outras po-deriam ser aludidas, porque no h dvida de que o falso um elemento fundamental da cultura grega. Na pica, no teatro, na histria, na filoso-fia, a mentira [] um dos elementos que constituem a narrativa [ ]. O , nesse sentido, um elemento embora um elemento de mltiplos sentidos que estrutura a cultura grega e que a estrutura medida que a altera. O caso que o contraste vocabular entre e curiosamente no ajuda a entender a fluidez das fronteiras que existem entre uma noo e outra. Da, talvez, a necessidade de observar como essa mesma fronteira constri-se igualmente fluida em experincias gregas que, em princpio, no se inscrevem no permetro vocabular das noes de e (tal como no trato das moedas), mas que ine-vitavelmente participam da elaborao e da sofisticao delas nas prticas sociais. Assim, os casos das moedas falsificadas podem auxiliar na emprei-tada de compreender essa fluidez que domina os universos da verdade, da mentira e da fico.

    No sculo V a.C., justamente o teatro que institui e leva ao extremo o pacto de ficcionalidade em que verdade e mentira se combinam.14A trag-dia, em cena, reconduz e refora a imitao; ela fabrica imageticamente suas imagens [ ] (PLATO. Repblica X, 605), com a inteno de satisfazer um pblico atravs do espetculo e, segundo Plato, vido pelo espetculo. Por isso, o Odisseu das tragdias no poderia confundir-se com o Odisseu homrico, mas, ali, em cena, caracterizado como Odisseu, falando, pensando, agindo como Odisseu, ele torna-se, por-

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    que mais falso, mais verdadeiro do que o Odisseu que o precedeu. O teatro clssico quer tornar (e torna) a personagem mtica mais verdadeira do que at ento tinha sido. O mito seu material mesmo que a tragdia j no seja mais o mito (VERNANT, 2001), exatamente porque sobre esse material o poeta trgico imprime uma nova estampa e fabrica, assim, uma moeda falsa--verdadeira. Como a moeda falsa-verdadeira que tem o mesmo carter que o ateniense, mas no tem o carter ateniense, o heri trgico vai ter o mesmo carter que o heri do passado, mas no o carter do heri do passado. Essa nova moeda, tal como a verdadeira, vai poder circular livremente por Atenas, mas apenas por ser como a verdadeira e, portanto, por no ser a verdadeira que ela ser capaz de colocar o uso corrente da verdadeira em questo.

    A tragdia muda o lugar do mito ou, ao menos, seu lugar com relao histria. O mito ento j no oferece solues diretas, pautadas pela autoridade da tradio. O heri j no sabe mais como agir. O tirano e o heri aparecem todo o tempo em cena, embora eles passem a ser questionados em sua potncia e em seus valores. De fato, pelo suporte da tradio que novas possibilida-des de respostas e de atitudes so forjadas, mas as tragdias no repetem a estampa do mito. O que as tragdias fazem, usando o seu suporte, fabricar verses ligeiramente alteradas, que, por serem alteradas em pontos essenciais, apresentam novas verses. E o que uma verso ligeiramente alterada, ou o que outra verso seno uma falsificao? O que a tragdia seno uma nova verso do mito que, por isso mesmo, sendo uma verso do mito est longe de recus-lo, de recusar seu material, mas que, sendo uma nova verso, ao mes-mo tempo imprime sobre ele, sobre o material j existente, uma efgie nova, uma nova imagem? Os quatorze mil cidados que vo ao teatro j conhecendo seus heris e veem em cena novos Odisseus, Agammnons, Menelaus, jaxes, Filoctetes, Helenas, Clitemnestras, veem-nos, por certo, ao mesmo tempo di-ferentes e verdadeiros. As personagens da tragdia, a despeito de modificadas, falsificadas, em cena tm voz, tm movimento, tm vida; elas, atravs desse novo pacto de ficcionalidade criado pelo teatro, passam a ser to verdadeiras que chegam a ser mais verdadeiras que as antecessoras.

    Fato sintomtico tanto da fragilidade prpria desse novo pacto quanto da fora de seu teor de verdade o episdio narrado por Herdoto sobre a apresentao em 494 a.C. da pea A tomada de Mileto. O poeta Frnico pe em cena o desastre que, dois anos antes, os persas haviam levado cidade jnica. O resultado da representao histrica descrito pelo histo-riador um pblico em lgrimas e uma multa para o poeta de mil dracmas.

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    J os Atenienses, ao terem conhecimento da tomada de Mileto, mostraram-se consternados, testemunhando sua dor de mil maneiras. No teatro, por ocasio da representao de uma tragdia de Frni-co, que tinha por tema a captura daquela cidade, os espectadores debulharam-se em lgrimas, sendo o poeta condenado a pagar uma multa de mil dracmas por haver relembrado aos povos aquela imensa desgraa que ele sentia como se sua prpria fora. Alm disso, a pea ficou proibida de ser representada em Atenas por quem quer fosse. (HERDOTO. VI, 21, traduo de Mrio da Gama Kury)

    O teatro clssico parece conseguir, portanto, tornar suas personagens (sejam elas mticas ou histricas) muito verdadeiras. A multa que recebe Frnico evidencia o quanto a emoo decorrente da fora desse pacto assus-ta por sua capacidade de afetar. a natureza mesma do teatro que institui esse novo e profundo pacto de ficcionalidade (ou de falsificao) com seu pblico: pois l, sua frente, o pblico v Odisseu, Agammnon, Menelau, jax, Filoctetes, Helena, Clitemnestra, em ao, em carne e osso.

    Documentao escrita

    Diogenis Laertii vitae philosophorum, 2 v. Ed. H. S. Long. Oxford: Claren-don Press, 1964, Repr. 1966.HERDOTO. Histria. Trad. Mrio da Gama Kury. Braslia: UnB, 1985. HRODOTE. Histire dHrodote. Trad. Larcher. Paris: Charpentier, 1850 (Pour le texte grec: ed. A. D. Godley. Cambridge 1920)._______. LEnqute. dition dAndre Barguet. Paris: Gallimard, 1990.HOMERO. Homeri Odyssea. Ed. P. Peter von der Mhll. Basel: Helbing & Lichtenhahn, 1962.PLUTARCH. On the fortune of Alexander.In: _______. Plutarchs Moralia: in fifteen volumes. Trad. Frank Cole Babbit. W. Heinemann: Harvard Univer-sity Press, 1961.PLUTARQUE. La fortune ou la vertu dAlexandre. In: PLUTARQUE. Oeu-vres morales. Tome V. 1re partie. [Traits 20-22], La fortune des Romains, La fortune ou la vertu dAlexandre, La gloire des Athniens. Trad. Franoise Frazier. Paris: Les Belles Lettres, 1990._______. Vies parallles. Trad.Anne-Marie Ozanam. ditions Gallimard, 2001.

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    Inscries

    Agora Object: I 7180 (Nomothetai Decree)IG XII, 2, 1. (The Monetary Pact between Mytilene and Phokaia)

    Referncias bibliogrficas

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    Notas

    1 O presente artigo constitui parte da discusso que realizo em minha tese de Dou-

    torado: COSTA, Lorena Lopes da. Heris antigos e modernos: a falsificao para se pensar a histria. 2016. 436 f. Orientador: Jos Antonio Dabdab Trabulsi. Tese (Doutorado em Histria) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2016. Para a realizao da pesquisa, foi fundamental contar com o financiamento da Capes. E para a discusso aqui apresentada, destaco a importncia da valiosa interlocuo com meu orientador, Prof. Dabdab Trabulsi (FAFICH - UFMG), bem como com o Prof. Olimar Flores (LETRAS - UFMG).2 certo que outros termos, como (habilidade que pode levar mentira);

    (artifcio, armadilha, plano, enfim, que pode lanar mo da mentira para realizar-se); e mesmo o verbo (estar escondido; permanecer velado), de certa forma, com-partilham o campo semntico do , embora eles no signifiquem mentira, falso, ardil, inveno, errneo, fictcio ou fico. Ver: LEVET, 1976; BRANDO, 2005.3 Ver: Suda (Acousilaos).

    4 Em pocas de efervescncia comercial, sabe-se que a fabricao de moedas por

    artesos que trabalhavam em seu prprio domiclio estimulada. Ver: CALLATA, 2009; BABELON,1979.5 Essa no a nica pena cabvel apontada pela tradio, ao menos levando em conta

    outras cidades, pois se sabe que tambm o exlio e as multas foram sentenas aplica-das em situaes afins, como indicar o caso de Digenes Cnico, abordado a seguir.6 A estela descoberta nos anos setenta pode ser visualizada em: http://agora.ascsa.

    net/id/agora/object/i%207180 . O texto, por sua vez, est transcrito no artigo de Ronald Stroud, intitulado Na Athenian Law on Silver Coinage(1974).7 A traduo aqui apresentada, por se tratar de uma inscrio com algumas lacunas

    e grandes dificuldades interpretativas, opta por reproduzir as escolhas feitas pelo tradutor para o ingls, autor do artigo que a apresenta, R. Stroud. Sua traduo para

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    ingls : Resolved by the Nomothetai, in the archonship of Hippodamas; Nikophon made the proposal: Attic silver currency is to be accepted when [it is shown to be] silver and bears the official die. Let the public Tester, who sits among [the] tables, test in accordance with these provisions every [day except] whenever there is a cash payment; at that time let him test in [the Bouleuterion.] If anyone brings forward [foreign silver currency] which has the same device as the Attic, [if it is good,] let the Tester give it back to the one who brought it forward; but if it is [bron-ze at the core,] or lead at the core, or counterfeit, let him cut it across [immediately] and let it be sacred to the Mother of the Gods and let him [deposit] it with the Boule (STROUD, 1974, p. 159-60).8 O documento, num trecho no citado aqui, chega a prescrever a punio ao comer-

    ciante que no aceitasse como pagamento a moeda falsa autorizada a circular. Ade-mais, a existncia dessa lei parece apontar para a frequncia das moedas falsas tidas como verdadeiras. Vrias delas, de provenincias distintas (Egito, Sria, Palestina, Imprio Persa, Arbia), foram descobertas no lugar de sua produo, sem que, no entanto, se pudesse observar por parte do Estado ateniense algum desencorajamen-to da falsificao de boa-f. 9 Nesse sentido, seria possvel argumentar que os cnicos no teriam sido naturalis-

    tas; ao contrrio, eles teriam simplificado os costumes, conforme o que prope O. Flores-Jnior em sua dissertao Canessinecoda: filsofos e falsrios: uma leitura do cinismo antigo a partir da literatura relativa a Digenes de Snope, 1999. 10

    Texto original: . . In: Plutarchi moralia, v. 2.2, Ed. Nachstdt, W. Leipzig: Teubner, 1935, Repr. 1971. 11

    A explicao no reproduz aquilo que Alexandre teria dito, tal como se eu no fosse Alexandre, Digenes seria(o que j um registro de Plutarco e, apenas indi-retamente, de Alexandre), mas aquilo que Plutarco teria imaginado como possvel explicao de Alexandre para tal afirmao.12

    O que defendido em dois manuscritos medievais, quais sejam: Barbrinianus 182 (fim do sculo X) e Ambrosianus 881 (sculo XIII).13

    Segundo Babelon (1979), nem sempre, nas reas conquistadas, a moeda de Ale-xandre substituiu por completo a local. 14

    Embora os episdios citados de falsificao de moedas, sobretudo os de Digenes Cnico e o de Alexandre (j que o decreto epigrfico pode ser datado do sculo V), sejam posteriores tragdia, o objetivo da presente reflexo no repertoriar a evoluo da falsificao na Grcia antiga, mas fazer uso de alguns casos da tradio em busca de apreender o pacto de ficcionalidade (ou de falsificao) que justamente o teatro leva ao extremo.