Εἶδος e ἰδέα: das origens da literatura grega...o mestrado. Ao professor Marcelo Perine...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP JULIO CESAR MOREIRA Εἶδος e ἰδέα: das origens da literatura grega aos primeiros diálogos de Platão São Paulo 2019

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    JULIO CESAR MOREIRA

    Εἶδος e ἰδέα: das origens da literatura grega

    aos primeiros diálogos de Platão

    São Paulo

    2019

  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    JULIO CESAR MOREIRA

    Εἶδος e ἰδέα: das origens da literatura grega

    aos primeiros diálogos de Platão

    Doutorado em Filosofia

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Perine.

    São Paulo

    2019

  • Banca examinadora

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  • À Y. M. In memoriam

  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

    de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

    Número do Processo: 88887.162861/2018-00.

  • AGRADECIMENTOS

    Fundamentalmente à minha família, em especial meus pais, por todo o suporte,

    compreensão e amor. À Nina, obrigado pela generosidade, atenção e carinho. Em especial à

    Beatriz Oliveira, cujas contribuições, apoio e revisões foram decisivos para a boa conclusão

    deste trabalho.

    À PUC-SP, instituição que possibilitou a concretização deste trabalho, e que me

    proporcionou inestimáveis encontros e elos de amizade. A todos os funcionários do

    departamento e do Programa de Pós-graduação, quem sempre me deram o suporte necessário,

    aliviando-me ao máximo dos fardos burocráticos. À professora Rachel Gazolla, que me acolheu

    sob sua orientação e acima de tudo depositou sua confiança e interesse nos meus esforços desde

    o mestrado. Ao professor Marcelo Perine por ter aceitado orientar esta pesquisa, pela confiança

    e diligente presteza.

    À agência de fomento CAPES, pelo financiamento parcial da pesquisa que contou com

    bolsa de doutorado-sanduíche no exterior pelo PDSE-Capes.

    À Universidade de Iowa e a todos os seus funcionários do departamento de Classics que

    amavelmente me recepcionaram para o desenvolvimento de nossas investigações, e à

    supervisão do professor John Finamore, a quem dedico um agradecimento especial.

    Não tenho como deixar de destacar o apoio de estimados amigos e familiares que atuam

    e/ou me acompanham nessa árdua e infindável busca por saber e que ao longo desses anos de

    doutorado contribuíram, nas mais variadas sinergias, de alguma forma especial. Meus

    agradecimentos a Rafael Moreira, Dom Anselmo (a.k.a. Rogério), Claudiano Avelino dos

    Santos, Bruno Conte, André Braga, Giovanni Vella, Luciene Felix, Carolina Paraíso, Daniela

    Nascimento, Leonardo Rapussi, José Maria Nieva, Ed Keogh, Jonathan Young.

    Tenho em meu coração tantas outras pessoas, eventos e fatores que gostaria de destacar,

    porém agradecer a tudo e a todos que foram imprescindíveis para a elaboração deste trabalho é

    uma tarefa impossível. Misteriosas são as Moiras para nós que em nossa parcialidade somos

    incapazes de apreender e pontuar tudo aquilo que determina nossas trajetórias. Sinto-me,

    portanto, apenas um instrumento entre tudo o que fez este trabalho possível. Reverencio, enfim,

    a toda a Tradição que desde os tempos antigos perpetua esta corrente de saber, e humildemente

    peço licença para oferecer minha mínima contribuição.

  • ...κάλλιστα γὰρ δὴ τοῦτο καὶ λέγεται καὶ

    λελέξεται, ὅτι τὸ μὲν ὠφέλιμον καλόν, τὸ

    δὲ βλαβερὸν αἰσχρόν.

    “...pois que o benéfico é belo, enquanto o

    prejudicial é feio, é e sempre será o mais

    nobre a se dizer.”

    Platão, República, 457b

  • RESUMO

    MOREIRA, Julio Cesar. Εἶδος e ἰδέα: das origens da literatura grega aos primeiros diálogos de

    Platão. 2019. 170p. Tese de Doutorado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São

    Paulo, 2019.

    Esta investigação tem como objetivo determinar qual o conteúdo semântico-histórico

    que Platão herda ao se apropriar dos vocábulos εἶδος e ἰδέα e como ele inicialmente utiliza essa

    herança na elaboração da sua filosofia. Estes termos continuam sendo objetos de estudo

    polêmicos entre os mais conceituados estudiosos do pensamento de Platão, em especial no que

    concerne à filosofia das Formas. Nesse sentido, em relação aos seus diálogos de juventude,

    destacam-se as disputas a respeito de um desenvolvimentismo ou unitarismo da filosofia das

    Formas e se o uso filosófico desses termos nesses diálogos foi ou não uma inovação

    propriamente platônica. Para além do uso filosófico, Platão não deixa de empregar as várias

    facetas semânticas já contidas em ambas as palavras, que tampouco estão livres de contestação.

    Em contribuição ao esclarecimento dessas e outras questões relacionadas, propomos um estudo

    dos termos εἶδος e ἰδέα desde suas origens na literatura grega aos primeiros diálogos platônicos,

    ditos de juventude. Desenvolvemos, num primeiro momento, um estudo crítico, de caráter geral

    filológico, em perspectiva diacrônica, da semântica de ambas as palavras desde as suas origens

    na literatura grega aos fragmentos dos filósofos pré-socráticos, traçando os desenvolvimentos

    semânticos que serão herdados por Platão. Chegando a Sócrates, deparamo-nos com a questão

    de como abordar sua filosofia e figura histórica. Por último, analisamos esse vocabulário das

    formas nos diálogos de juventude de Platão, onde a análise filosófica do conteúdo desfruta da

    prerrogativa metodológica, e a importância concedida à dimensão filológica está subordinada à

    filosófica. Argumentamos que Sócrates nunca usou εἶδος e ἰδέα em relação a sua pergunta “τί

    ἐστι X?”, e a inclusão deste vocabulário das formas a esta indagação seria, então, uma inovação

    própria de Platão. Distinguimos, ainda, todas as significações de uso corrente dos vocábulos,

    discernindo em que medida há nos primeiros escritos de Platão uma continuidade ou distinção

    em relação aos diversos âmbitos literários anteriores. No que tange à filosofia das Formas,

    nossos resultados vão ao encontro da interpretação unitarista.

    Palavras-chave: Eidos. Idea. Chorismos. Formas. Pré-socráticos. Sócrates. Platão. Metafísica.

  • ABSTRACT

    MOREIRA, Julio Cesar. Εἶδος and ἰδέα: from origins in Greek literature to the first dialogues

    of Plato. 2019. 170p. Ph.D. Thesis – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,

    2019.

    The aim of this investigation is to determine the historical semantic content that Plato

    inherits from the words εἶδος and ἰδέα and the ways he initially employs this heritage in the

    development of his philosophy. These terms are still a matter of dispute among the most

    reputable scholars on Plato’s thought, especially in respect to the philosophy of Forms. In this

    sense, regarding Plato’s early dialogues, currently the main debate among scholars is between

    a developmentalist or unitarian approach to the philosophy of Forms. Another debate, among

    many issues, is whether the philosophical use of these words in the early dialogues are indeed

    a Platonic novelty. In addition to the philosophical use, Plato does not cease to employ many

    of the semantic aspects already inherent in both words, which are also not free of disputes about

    them. Seeking to shed more light on the previously mentioned and other related issues, we

    propose a study of the words εἶδος and ἰδέα from their origins in Greek literature to the Plato’s

    so-called early dialogues. First, we develop a diachronic study of the general philological and

    semantic aspects of εἶδος and ἰδέα from their first appearances in Greek literature to the

    fragments of the Presocratic philosophers, outlining the semantic development of the words as

    Plato would later inherit them. Then, we address Socrates and the issue of how to properly

    approach his philosophy and historical figure. Finally, we analyze this vocabulary of forms in

    Plato's early dialogues, giving the philosophical analysis methodological priority over

    philological analysis. We argue that Socrates never used εἶδος and ἰδέα in relation to his

    question “τί ἐστι X?” and that the inclusion of this vocabulary in this Socratic inquiry would

    thus be an addition by Plato. Furthermore, we distinguish, in the early works of Plato, all the

    commonly used meanings of the words while verifying to what extent Plato is consistent or

    different in the way he employs them when compared to the usage of the words in previous

    literary fields. Regarding the philosophy of Forms, our results are in line with the unitarian

    theory.

    Keywords: Eidos. Idea. Chorismos. Forms. Presocratics. Socrates. Plato. Metaphysics.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Diels-Kranz DIELS, H.; KRANZ, W. (Eds.). Die Fragmente der Vorsokratiker. 6 aufl. Dublin, Zurich: Weidmannsche Buchhandlung, 1951-1952.

    LSJ LIDDELL, H. G. et al. A Greek-English lexicon. Rev. and augm. throughout ed. Oxford: New York: Clarendon Press; Oxford University Press, 1996.

    Vidas DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Cury. Brasília: Universidade de Brasília, 1988.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO 21

    1 DAS ORIGENS DE ΕΙΔΟΣ E ΙΔΕΑ 25

    1.1 A Dramaturgia Grega 32

    1.2 O Corpus Hippocraticum 36

    1.3 Os Filósofos Pré-socráticos 39

    2 SÓCRATES E A FILOSOFIA DAS FORMAS 55

    2.1 O Sócrates de Aristófanes 58

    2.2 O Sócrates de Xenofonte 60

    2.3 O Sócrates de Platão 62

    2.3.1 Vlastos e a questão das Formas nos diálogos de juventude e maturidade 66

    2.3.2 A ordenação cronológica e alguns impasses da abordagem desenvolvimentista 68

    2.3.2.1 A crítica de Charles H. Kahn 75

    2.4 O Relato de Aristóteles sobre Sócrates e a Filosofia das Formas 79

    2.5 A Controvérsia sobre o Relato de Aristóteles e a Separação das Formas Platônicas 83

    2.5.1 Gail Fine e o testemunho de Aristóteles 88

    2.5.2 Aitia como “explanatory fator” 94

    2.6 Aristóteles e a Anterioridade Ontológica das Formas Platônicas 97

    2.6.1 Que a anterioridade ontológica das Formas se dá pela causalidade 99

    3 ΕΙΔΟΣ E ΙΔΕΑ NOS DIÁLOGOS DE JUVENTUDE DE PLATÃO 101

    3.1 As Ocorrências e suas Classificações Semânticas 102

    3.2 Apontamentos Preliminares 107

    3.2.1 Houve uma busca de Sócrates pelas formas? 109

    3.2.2 A questão do estatuto das formas “paradigmáticas” nos diálogos de juventude 110

  • 4 A FILOSOFIA DAS FORMAS NOS PRIMEIROS DIÁLOGOS DE PLATÃO 113

    4.1 Hípias Maior 113

    4.1.1 O debate sobre a autenticidade do diálogo 113

    4.1.2 O εἶδος de 289d 116

    4.1.2.1 A primeira resposta de Hípias: uma bela donzela casta 116

    4.1.2.2 A segunda resposta de Hípias: o ouro 119

    4.1.2.2.1 Fédon, 100d 120

    4.1.2.3 O estatuto da causalidade do Belo em si 121

    4.1.2.4 A ontologia do Belo em si 122

    4.1.3 A explicação de Hípias da continuidade da οὐσία 125

    4.2 Mênon 131

    4.2.1 A definição de οὐσία 131

    4.2.2 O εἶδος da Virtude em si por si 133

    4.2.3 A anterioridade ontológica da οὐσία 136

    4.3 Eutífron 139

    4.3.1 O εἶδος e a ἰδέα da Piedade em si por si 140

    4.3.2 A οὐσία separada 143

    CONCLUSÃO 147

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 157

  • 21

    INTRODUÇÃO

    É nos escritos de Platão que se encontram os primeiros registros do uso filosófico dos

    termos εἶδος e ἰδέα, no que ficou conhecido como a sua teoria das Ideias/Formas. Desde essa

    primeira aplicação surgem, como bem se sabe, críticas e controvérsias como a de seu colega

    socrático Antístenes, ou de seus discípulos, sendo, sem dúvida, a crítica mais influente e seminal

    a esse respeito a de Aristóteles1. As Formas platônicas e as palavras associadas a elas nunca

    deixaram de ser um tema polêmico dentre os mais conceituados platonistas, platônicos e

    estudiosos afins. Do mesmo modo, há uma severa controvérsia a respeito desse momento em

    que os termos são introduzidos numa investigação filosófica. Entre os debates atuais, duvida-

    se, até mesmo, do uso filosófico desses termos enquanto uma inovação propriamente platônica2.

    Destaca-se, ainda, como uma das mais contundentes disputas atuais a questão entre a corrente

    interpretativa unitarista, sustentando, em linhas gerais, que todos os escritos de Platão contêm

    a mesma filosofia das Formas, e a desenvolvimentista, que enfatiza haver grandes diferenças

    entre os diálogos de juventude e as obras de maturidade. Para além desse uso, Platão não deixa,

    também, de utilizar várias facetas semânticas já contidas em ambas as palavras, que são também

    valiosas para a interpretação dos seus textos. Apesar da menor importância dada a essas outras

    significações, tampouco estão livres de contestação, como mostram estudos recentes e

    traduções imprecisas ou mal interpretadas dos usos correntes destas palavras, mesmo nas

    traduções mais consagradas, em toda a literatura anterior a Platão.

    Determinar qual o conteúdo semântico-histórico que Platão herda ao se apropriar dos

    vocábulos εἶδος e ἰδέα por meio de um estudo diacrônico destes termos desde suas origens na

    literatura grega aos primeiros diálogos platônicos, ditos de juventude, é a nossa proposta para

    melhor compreender como ele inicialmente utiliza essa herança na elaboração da sua filosofia

    e contribuir para o esclarecimento dessas e outras questões relacionadas.

    Desse modo, dedicamos o primeiro capítulo a um estudo crítico, em perspectiva

    diacrônica, da semântica dos termos εἶδος e ἰδέα desde as suas origens na literatura grega aos

    fragmentos dos filósofos pré-socráticos. Para isso, é feito o levantamento das ocorrências desses

    termos nos escritos dos diversos autores da Grécia antiga desse período, os quais são agrupados

    em seus devidos âmbitos literários. Partindo, primeiramente, de estudos bem estabelecidos na

    área, analisa-se mais cuidadosamente alguns pontos críticos que surgem ao longo dessa

    1 A respeito dessas críticas e controvérsias, vide cap. 2. 2 Como se vê no cap. 2, é por influência das teses de Gregory Vlastos que se tem como a maior disputa atual a hipótese de que essa inovação tenha sido de Sócrates.

  • 22 trajetória. A metodologia adotada confere a este estudo um caráter filológico que por sua vez

    serve como padrão para traçar os desenvolvimentos semânticos que serão herdados por Platão

    ao adotar esses vocábulos para a sua filosofia.

    Na sequência do traçado cronológico, no capítulo 2, chegamos a Sócrates, e com isso

    nos defrontamos imediatamente com a questão de como abordar sua filosofia e figura histórica.

    Nesse capítulo, juntar-nos-emos brevemente nessa empreitada, em que, entre a gama de tópicos

    nos estudos socráticos3, focamos naquele que é mais pertinente para esta pesquisa, a chamada

    “questão socrática”, a qual consiste no debate sobre a possibilidade de reconstruir o pensamento

    do Sócrates “histórico”.

    Sem dúvida, um dos trabalhos contemporâneos mais importantes no tema dos estudos

    socráticos é o de Gregory Vlastos, chamado Socrates: Ironist and Moral Philosopher (1991),

    que fez despontar um renascimento no interesse à filosofia socrática por conter teses

    provocativas e notáveis no sentido de desvendar o Sócrates “histórico”. Muitos outros

    acadêmicos se inspiraram em Vlastos e no começo da década de 1990 surgiu uma nova onda

    de estudos sobre a vida e pensamento do filósofo. Porém, essa busca se desvaneceu alguns anos

    depois num certo consenso de que não era possível avançar sem mais evidências, com alguns

    estudiosos opinando, inclusive, que a “questão socrática” era uma fantasia, pois suas principais

    fontes – Xenofonte e Platão – escreviam sobre Sócrates com bastante liberdade e criatividade.

    Os textos que tratam de Sócrates, os sokratikoi logoi – assunto em que nos deteremos com mais

    cuidado –, apesar de serem um testemunho valioso não podem ser considerados como um relato

    da voz genuína do Sócrates histórico. Frente a isso, sugere-se que a importância dos estudos

    socráticos não é tanto desvendar o Sócrates histórico, mas a reconstrução do legado que inspirou

    diversas tradições filosóficas posteriores. Sendo assim, nossa investigação se volta à questão

    do uso filosófico do vocabulário das formas, o qual é encontrado somente nos escritos de Platão,

    como já dito. Focamos, então, nossa análise, mais detalhadamente, nos relatos de Aristóteles,

    encontrados principalmente na sua obra Metafísica, uma vez que são um dos únicos

    testemunhos em que normalmente se deposita confiança para discernir, nos sokratikoi logoi, o

    conteúdo que é propriamente socrático. São, portanto, evidências determinantes utilizadas para

    se estabelecer em quais diálogos de Platão se encontram os mais significativos registros da

    filosofia socrática.

    3 Incluem, entre outros, o método socrático, a sinceridade (ou ironia) com que Sócrates professa sua ignorância, a (im)possibilidade de akrasia, a necessidade do conhecimento para a boa vida, e a importância da virtude para a felicidade.

  • 23

    O capítulo 3 inicia da delimitação resultante do estudo realizado no capítulo anterior,

    definindo os diálogos considerados da juventude de Platão, também chamados socráticos, nos

    quais ele ainda não teria desenvolvido sua filosofia das Formas e seu conteúdo estaria, ainda,

    muito próximo do pensamento de seu mestre. O passo seguinte de nossa pesquisa é a análise

    desse vocabulário das formas justamente nesses diálogos de juventude, sem contudo a pretensão

    de encontrar algo definitivo em relação ao uso desse vocabulário por parte de Sócrates,

    considerando que estamos lidando com obras escritas por Platão. Essa análise é feita com base

    no importante e exaustivo estudo de εἶδος e ἰδέα nos diálogos de Platão realizado pelo Centre

    d'études aristotéliciennes de l’Université de Liège (MOTTE et al., 2003), do qual debatemos

    todas as ocorrências desses termos nos diálogos em questão, organizando-as segundo os nossos

    resultados de classificação semântica. Destaca-se, a partir disso, uma novidade considerada

    distintamente platônica, nomeada preliminarmente como “forma paradigmática”, mas que,

    supostamente, ainda não se configura no uso dos termos em um sentido de Formas “separadas”

    das instâncias particulares. É aqui que concentramos nossos esforços, no total de 8 ocorrências

    encontradas nos diálogos Hípias Maior, Mênon e Eutífron, os quais são os objetos de estudo do

    capítulo 4.

    Nesse último capítulo, a análise filosófica do conteúdo desfruta da prerrogativa

    metodológica, e a importância concedida à dimensão filológica está subordinada à filosófica.

    No que tange à filosofia das Formas, nossos resultados contribuem com a corrente unitarista no

    sentido de que as Formas, já nos primeiros diálogos de Platão, enquanto uma inovação própria

    de Platão à questão socrática “τί ἐστι X?”, referem-se a uma essência ontologicamente outra,

    anterior e de existência independente das suas instâncias particulares, das quais é causa

    produtora. Desse modo, a prévia denominação “forma paradigmática” é descartada, afirmando-

    se que essas ocorrências devam ser denominadas, propriamente, de Formas com sentido

    “ontológico”.

    Note-se que todas as traduções de textos em outros idiomas são de nossa autoria, exceto

    quando afirmado contrário. Há indicação das nossas próprias traduções somente quando feitas

    diretamente dos textos de autores das fontes primárias de língua grega. Diferenciamos, ainda,

    “Formas”, com “F” maiúsculo, como sendo este último sentido “ontológico” dos vocábulos

    εἶδος e ἰδέα, em distinção às “formas”, com “f” minúsculo, que diz respeito a todos os outros

    sentidos.

  • 25

    1 DAS ORIGENS DE ΕΙΔΟΣ E ΙΔΕΑ

    Inicia-se esta pesquisa em busca das origens das primeiras ocorrências das palavras

    εἶδος e ἰδέα na literatura grega, na intenção de erguer, a partir deste alicerce propriamente

    fundacional, as estruturas de um cenário histórico-filosófico compreensivo dos usos e

    significações de ambas estas palavras até os primeiros filósofos, ditos pré-socráticos. No

    entanto, antes de iniciar de fato a análise das ocorrências destas palavras, um breve apontamento

    sobre o que as suas etimologias informam se faz necessário.

    Os estudos etimológicos e a gramática comparativa das palavras εἶδος e ἰδέα já

    prefiguram uma determinada epistemologia. Ensinam uma raiz comum indo-europeia, que faz

    com que estas palavras, na sua origem, evoquem conjuntamente as noções de ver e saber4. O

    vocábulo parte da raiz *wid- /*weid-, de onde se desdobra, ao mesmo tempo, o grego *Ϝἰδεῖν

    (ver), e o latim vidēre (ver); e, ainda, as palavras gregas *Ϝειδέναι (saber) e *Ϝοἶδα (eu sei). O

    sânscrito confirma e complementa esta cadeia: veda significa conhecimento; vidvam designa o

    vidente e/ou douto (“quem vê e quem sabe”).

    O primeiro registro que temos da palavra εἶδος está em Homero5, e sempre com o

    significado “aparência exterior”, em especial a “bela aparência exterior”6. E o mesmo ocorre

    em Hesíodo7, que emprega a palavra com esses mesmos significados8. Bernabé explica9, mais

    precisamente, que neste período o significado de “aparência exterior”, ou “aspecto exterior”,

    como ele nomeia, ocorre quando a palavra é aplicada a seres vivos, mais frequentemente à

    figura humana, e em muitos destes casos o termo é utilizado como acusativo de relação

    acompanhando adjetivos qualificativos. Já para significar a “bela aparência exterior” a palavra

    necessariamente acompanha um adjetivo qualificativo. Explica ainda que, nas palavras

    compostas por εἶδος, i.e., adjetivos formados pelo sufixo -ειδής, persiste o sentido de ser algo

    relacionado a “aparência exterior”.

    Ἰδέα, por sua vez, não é jamais empregada nem por Homero nem por Hesíodo. Os dois

    mais antigos usos conhecidos remontam aos meados do séc. VI a.C. O primeiro com o poeta

    4 Todos os mais conhecidos dicionários especializados corroboram com essa mesma hipótese. Vide: SIHLER, 1995, p. 178; MANN, 1984, fasc. 10, s.v. weid- (uid-); BOISACQ, 1916, s.v. εἶδος, p. 220; s.v. ἰδέα p. 365; CHANTRAINE, 2009, s.v. εἶδος, p. 316-317; s.v. ἰδέα, p. 455; ERNOUTT; MEILLET, 2001, s.v. uideō, p. 733. 5 São dezenove as ocorrências na Ilíada, sendo a primeira em II, 58 (cf. PRENDERGAST, 1875, p. 127.), e vinte e três ocorrências na Odisséia (cf. DUNBAR, 1883, p. 106). 6 Vide AUTENRIETH, 1958, p. 86; CUNLIFFE, 2012, p. 107. 7 Com vinte ocorrências da palavra em todo o seu corpus sobrevivente, sendo três ocorrências na “Teogonia”, duas em “As Obras e os Dias”, e quinze em fragmentos (cf. MINTON, 1976, p. 87). 8 Cf. HOFINGER, 1976, p. 179. 9 BERNABÉ, 2013, p. 92-93.

  • 26 lírico Teógnis de Megara (ca. séc. VI a.C.), em suas Elegias, 128: ao falar sobre a falsidade dos

    homens e mulheres explica que não se deve confiar em suas aparências, pois, segundo ele,

    “muitas vezes as aparências (ἰδέαι) enganam o julgamento (πολλάκι γὰρ γνώμην ἐξαπατῶσ᾿

    ἰδέαι)”10. Essa mesma máxima de cautela com as pessoas é comumente enfatizada ainda nos

    dias de hoje: “as aparências enganam”; e se entende, assim como quis Teógnis, que a aparência

    abrange diversas instâncias do que é perceptível da pessoa, tanto a sua forma física quanto seu

    comportamento. Na sua segunda ocorrência mais antiga a palavra se apresenta também no

    plural, e está no famoso fragmento de Xenófanes (ca. 570 a.C. – 475 a.C.), citado por Clemente

    de Alexandria, onde aplica a estratégia do reductio ad absurdum para falar do aspecto que

    teriam os deuses dos animais caso as vacas, cavalos e leões tivessem a possibilidades de os

    imaginar e os desenhar:

    ἀλλ’ εἰ χεῖρας ἔχον βόες ἠὲ λέοντες, ἢ γράψαι χείρεσσι καὶ ἔργα

    τελεῖν ἅπερ ἄνδρες, ἵπποι μέν θ’ ἵπποισι, βόες δέ τε βουσὶν ὁμοίας καί

    θεῶν ἰδέας ἔγραφον καὶ σώματ’ ἐποίουν τοιαῦθ’ οἷόν περ καὐτοὶ δέμας εἶχον

    ἕκαστοι.

    Mas se bois, ou leões tivessem mãos e pudessem desenhar com

    suas mãos e criar obras como os homens, então os cavalos desenhariam as

    formas (ἰδέας) dos deuses como cavalos, e os bois como bois, fariam os

    mesmos corpos tais quais eles próprios possuem.11 (fr. B1512)

    A interpretação mais aceita dessa passagem é a exposta por Werner Jaeger13, que afirma

    que Xenófanes, nessa passagem, teve o intuito de persuadir seus contemporâneos a renunciar

    ao velho mundo de deuses antropomórficos criados por Homero. Contudo, é importante notar

    o apontamento feito por Bernabé (2011), que essa aplicação da palavra ἰδέα, apesar de ter

    relação direta com a aparência que se percebe visualmente, refere-se a uma aparência

    impossível de se constatar pelos sentidos, porém imaginável, a do aspecto dos deuses.

    Em Píndaro (c. 522 – c. 443 a.C.), nas Olímpicas, X.103, é onde se tem o primeiro uso

    reconhecidamente datado da palavra ἰδέα, e que se encontra a palavra sendo usada no sentido

    de designar a bela aparência física, do mesmo modo que εἶδος. Píndaro diz de Hagesidamos,

    10 Da tradução para o inglês de GERBER, 1999, p. 190-191. 11 Da tradução para o inglês de LAKS et al., 2016, p. 30-31. 12 Em toda a pesquisa utilizamos as referências de Diels-Kranz para os fragmentos dos pré-socráticos. 13 Vide JAEGER, 1995, p. 213-214; Ibid., 1947, p. 47.

  • 27 em razão da sua vitória no campeonato de pugilismo em 476 a.C., que ele é “ἰδέᾳ τε καλὸν”, o

    que pode ser interpretado como: “belo pelo que se vê dele”.

    É pouco depois da metade do século V, com Heródoto (c. 484 – c. 425 a.C.), que a

    palavra ἰδέα faz a sua entrada na prosa grega, e aqui se faz necessária uma atenção mais

    minuciosa às ocorrências de ambas as palavras εἶδος e ἰδέα, dado que, segundo o estudo de

    Henry Dominique Saffrey (1990), é com aquele autor que um novo significado se estabelece

    para ἰδέα, sem a perda, no entanto, do seu sentido anterior. Há, porém, de se avaliar com mais

    detalhes se de fato esta mudança ocorre e como ela se dá, uma vez que o estudo de Saffrey

    aponta as passagens em que se encontra essa novidade, porém não demonstra a validade de sua

    afirmação.

    O uso de εἶδος em Heródoto é dominante, são 25 empregos de εἶδος e 8 de ἰδέα14, e

    εἶδος parece ainda manter seu sentido original de aspecto ou aparência, porém, nota-se que o

    seu uso não se restringe mais apenas aos seres vivos, mas agora já inclui os deuses15, e até

    mesmo seres inanimados. É desse modo, então, que Heródoto fala, em 2.53, das εἴδεα dos

    deuses, e de como Hesíodo e Homero “foram os que fizeram uma teogonia para os gregos,

    deram aos deuses seus epítetos, dotaram-lhe seus ímpetos e competências, e determinaram suas

    aparências (εἴδεα)”16. Ou, em 8.113, diz das εἴδεα humanas, relatando que Mardomio, ao chegar

    em Tessália, recrutou dentre alguns povos aliados aos persas somente aqueles guerreiros que

    ele via como melhor aparentados (ἐκ δὲ τῶν ἄλλων συμμάχων ἐξελέγετο κατ’ ὀλίγους, τοῖσι

    εἴδεά τε ὑπῆρχε διαλέγων). Diz também das εἴδεα dos animais: tanto em 2.69, ao escrever a

    respeito dos grandes lagartos do deserto egípcio, onde afirma que os Jônios os chamam de

    crocodilos devido à semelhança em aparência aos crocodilos que existem no seu próprio país

    (κροκόδειλους δὲ Ἴωνες ὠνόμασιν, εἰκάζοντες αὐτῶν τὰ εἴδεα τοῖσι παρὰ σφίσι γιγνομένοισι

    κροκοδείλοισι.); como em 3.107, descrevendo as serpentes aladas que habitam a Arábia como

    sendo pequenas em tamanho e de aparência multicolor (σμικροὶ τὰ μεγάθεα, ποικίλοι τὰ εἴδεα).

    E também em 3.102, comparando uma raça de formigas gigantes da Índia como sendo similar

    às formigas da Grécia no que diz respeito a aparência (εἰσὶ δὲ καὶ τὸ εἶδος ὁμοιότατοι). Usa

    ainda εἶδος para falar da aparência de uma coisa inanimada, como o sal. Em 4.185, discorrendo

    a respeito da produção de sal no oeste da Líbia, afirma que o sal extraído lá é tanto branco como

    também púrpura em aparência (ὁ δὲ ἃλς αὐτόθι καὶ λευκὸς καὶ πορφυρέος τὸ εἶδος ὀρύσσεται.).

    14 Cf. POWELL, 1938, s.v. εἶδος, p. 100; s.v. ἰδέα, p. 170. 15 Ao modo como Xenófanes utilizou ἰδέα (B15). 16 [Ἡσίοδος γὰρ καὶ Ὅμηρός] εἰσι οἱ ποιήσαντες θεογονίην Ἕλλησι καὶ τοῖσι θεοῖσι τὰς ἐπωνυμίας δόντες καὶ τιμάς τε καὶ τέχνας διέλοντες καὶ εἴδεα αὐτῶν σημήναντες. Tradução nossa.

  • 28 Vê-se que em todos esses casos εἶδος ainda se refere à aparência exterior de algo, mas ao falar

    do εἶδος de um ser inanimado, e das εἴδεα dos deuses, ao modo como Xenófanes se referiu às

    θεῶν ἰδέας, Heródoto apresenta um uso mais abrangente da palavra em relação aos seus

    antecessores.

    Ἰδέα, por sua vez, é também, primeiramente, utilizada no seu sentido concreto de

    aspecto/aparência de maneira um tanto indistinta de εἶδος. É desse modo, portanto, que

    Heródoto, em 1.80, afirma que o cavalo teme o camelo e não suporta nem seu

    aspecto/aparência, nem seu cheiro (κάμηλον ἵππος φοβέεται καὶ οὐκ ἀνέχεται οὔτε τὴν ἰδέην

    αὐτῆς ὁρέων οὔτε τὴν ὀδμὴν ὀσφραινόμενος.); ou então, em 2.71, propõe-se a descrever o

    aspecto/aparência natural dos hipopótamos17 (φύσιν δὲ παρέχονται ἰδέης); ou descreve, em

    2.92, o fruto de um tipo de lírio como tendo um aspecto que se aparenta ao de um vespeiro (ἔστι

    δὲ καὶ ἄλλα κρίνεα ῥόδοισι ἐμφερέα, ἐν τῷ ποταμῷ γινόμενα καὶ ταῦτα, ἐξ ὧν ὁ καρπὸς ἐν

    ἄλλῃ κάλυκι παραφυομένῃ ἐκ τῆς ῥίζης γίνεται, κηρίῳ σφηκῶν ἰδέην ὁμοιότατον·); ou afirma,

    em 4.109, que duas tribos, os Gélons e Boudins, são bastante diferentes tanto em aparência

    como na cor (οὐδὲν τὴν ἰδέην ὅμοιοι οὐδὲ τὸ χρῶμα).

    Parece ser, entretanto, nos escritos de Heródoto que se vê uma ampliação da carga

    semântica da palavra ἰδέα. Segundo Saffrey, essa nova carga semântica denota “um sentido

    abstrato” que deriva do primeiro, um “sentido classificatório” de “modo ou tipo”, “quando um

    mesmo aspecto é encontrado em muitos indivíduos, eles formam uma classe” (SAFFREY,

    1990, p. 3). É dessa maneira que, em 1.203, Heródoto fala que na floresta do Cáucaso há árvores

    que fornecem folhas de um “tipo” tal que, ao serem esmagadas e adicionadas à água, fabrica-

    se uma tinta: “ἐν τοῖσι καὶ δένδρεα φύλλα τοιῆσδε ἰδέης παρεχόμενα εἶναι λέγεται παρεχόμενα

    εἶναι λέγεται, τὰ τρίβοντάς τε καὶ παραμίσγοντας ὕδωρ ζῷα ἑωυτοῖσι ἐς τὴν ἐσθῆτα ἐγγράφειν”.

    Vejamos a seguir três traduções18 muito bem estabelecidas de coleções influentes para essa

    passagem, e como elas lidam com a palavra ἰδέα, começando pela tradução de A. D. Godley na

    Loeb Classical Library: “Here, it is said, are trees growing leaves that men crush and mix with

    water and use for the painting of figures on their clothing” (td. GODLEY, 1920, p. 257). Note

    como a palavra em questão simplesmente é ignorada. Já, na tradução espanhola de Carlos

    Schrader pela Gredos: “Tambien se dice que entre estos pueblos se dan unos arboles que

    producen hojas de la siguiente índole: al triturarlas y mezclarlas con agua, pueden pintar con

    17 Na primeira descrição deste animal registrada na história. 18 Nos exemplos apresentados, bem como nos próximos, ateremo-nos a uma variedade limitada de traduções de grande renome, influência e acessibilidade ao público acadêmico de vários continentes, e, portanto, suficientemente representativas do que mais comumente o leitor ou estudioso se deparará.

  • 29 ellas figuras en sus vestidos” (td. SCHRADER, 1977, p. 260). “Índole” é a escolha do tradutor,

    e certamente denota o sentido classificatório de “tipo” em espanhol. E por fim, a tradução de

    Philippe-Ernest Legrand, pela Belles Lettres, onde o sentido classificatório de “tipo” já está

    explicitamente assumido: “Il y a aussi chez eux, dit-on, des arbres fournissant des feuilles de

    telle sorte, qu’écrasées et additionnées d’eau elles leur permettent de peindre sur leurs

    vêtements des figures” (td. LEGRAND, 1946, p. 195).

    Numa análise mais minuciosa dessa questão, não há dúvidas que o significado de ἰδέα

    não é mais somente o de aparência, uma vez que τοιῆσδε (“tal” / “tal como”19), o pronome

    demonstrativo que indica (e denota identidade) a ἰδέα das folhas, faz referência não à aparência

    delas, e sim à propriedade e função que elas possuem em comum. Ἰδέα tem, portanto, nesse

    caso, uma função classificatória, pois não mais denota a aparência de algo, mas sim a

    característica/propriedade comum que permite agrupar vários particulares que possuem esse

    mesmo “tipo” de característica/propriedade20.

    A próxima passagem na qual Saffrey afirma encontrar ἰδέα denotando esse mesmo

    sentido classificatório é 6.119. Ali, Heródoto relata um certo poço que proporciona três ἰδέαι

    distintas: asfalto, sal e óleo (ἀπὸ τοῦ φρέατος τὸ παρέχεται τριφασίας ἰδέας· καὶ γὰρ ἄσφαλτον

    καὶ ἅλας καὶ ἔλαιον ἀρύσσονται ἐξ αὐτοῦ τρόπῳ τοιῷδε·). Essa ocorrência de ἰδέα é, todavia,

    um tanto complicada de se avaliar. Não há um genitivo qualificador que de fato indique a que

    as ἰδέαι se referem. Pelo contexto que segue, compreende-se que seriam as três substâncias

    citadas, mas não há apontamentos claros que permitam afirmar que ἰδέα esteja se referindo a

    um agrupamento dessas substâncias sob diferentes aspectos que as distinguem, ou seja, não há

    como afirmar com segurança uma orientação classificatória como quer Saffrey. No entanto,

    Heródoto prossegue descrevendo como de uma só substância que é retirada do poço são

    processadas essas três outras e, então, conclui descrevendo o aspecto do óleo como negro e

    malcheiroso (ἔστι δὲ μέλαν καὶ ὀδμὴν). Parece-nos, portanto, mais seguro afirmar que o poço

    forneça três substâncias de diferentes “aspectos”, mesmo que não soe muito adequado. É difícil,

    todavia, constatar qual a precisão semântica de ἰδέα nessa passagem.

    Por fim, Saffrey aponta um uso de ἰδέα com sentido classificatório de “modo” em 6.100,

    onde Heródoto discorre sobre como o conselho dos eretrianos estava divido entre dois “modos”

    de ação (τῶν δὲ Ἐρετριέων ἦν ἄρα οὐδὲν ὑγιὲς βούλευμα, οἳ μετεπέμποντο μὲν Ἀθηναίους,

    ἐφρόνεον δὲ διφασίας ἰδέας.). Em consideração às possíveis distinções entre os termos “tipo”

    19 Vide LSJ, s.v.: “such as this”. 20 Que essa passagem de Heródoto é a primeira vez na história que ἰδέα apresenta a noção classificatória não só foi apresentada por Saffrey (1990) como é ainda atualmente reatestado por Alberto Bernabé (2011, p. 22).

  • 30 e “modo”, entendemos que num contexto coloquial a palavra “modo”, enquanto “forma de se

    fazer algo”, adequa-se bem ao sentido da frase, e, provavelmente, tenha sido esse o motivo de

    Saffrey admitir o termo junto a “tipo” como traduções indistintamente adequadas a esse sentido

    classificatório de εἶδος. Contudo, a palavra “modo”, do latim mŏdus, e do grego μήδεα, denota,

    primariamente, “medida”. A palavra “tipo”, por sua vez, do grego τύπος, traz na sua etimologia

    o significado de “golpe”, denotando, primariamente, a “impressão” resultante de um golpe,

    sendo esse sentido que desenvolve a semântica da palavra grega21. Por esse motivo,

    consideramos a palavra “tipo” como a tradução mais adequada para expressar esse significado

    classificatório de εἶδος, que faz referência às características distintas comuns a uma

    multiplicidade de particulares, assim como se distingue diferentes golpes pelas suas diferentes

    impressões.

    Falta ainda ser analisada uma última ocorrência de ἰδέα que merece um pouco mais de

    atenção. Na passagem de 2.76, Heródoto parece, à primeira vista, intercambiar o uso e

    significação das palavras εἶδος e ἰδέα para se referir a aparência da íbis preta: “εἶδος δὲ τῆς

    ἴβιος τόδε· μέλαινα δεινῶς πᾶσα, σκέλεα δὲ φορέει γεράνου, πρόσωπον δὲ ἐς τὰ μάλιστα

    ἐπίγρυπον, μέγαθος ὅσον κρέξ. τῶν μὲν δὴ μελαινέων τῶν μαχομένων πρὸς τοὺς ὄφις ἥδε ἰδέη”.

    Novamente recorrendo às traduções da Loeb, Gredos, e Belles Lettres, é possível notar que é

    exatamente no sentido de intercambialidade de significações que comumente se interpretam as

    palavras εἶδος e ἰδέα nesta passagem. Primeiramente a tradução inglesa: “Now this is the

    appearance of the ibis. It is all deep black, with legs like a crane's, and a beak strongly hooked;

    its size is that of a landrail. Such is the outward form of the ibis which fights with the serpents”

    (td. GODLEY, 1920, p. 363). A tradução espanhola:

    He aqui, por cierto, el aspecto de la ibis: toda ella es intensamente negra,

    tiene patas de grulla, un pico sumamente curvo y, aproximadamente, el

    tamano de un rascon. Esta es, en suma, la fisonomia de las ibis negras, que

    son las que luchan contra las serpientes. (td. SCHRADER, 1977, p. 365)

    E a francesa: “Voici quel est l’aspect de l’ibis: il est tout entier d’un noir foncé; il a les pattes

    de la grue, le bec nettement recourbé; sa taille est celle du râle d’eau. Telle est l’apparence

    des ibis noirs, de ceux qui combattent les serpents” (td. LEGRAND, 1936, p. 116).

    21 Vide LSJ, s.v.

  • 31

    Há, de fato, uma relação semântica entre as palavras, que, ao serem lidas como idênticas,

    faz de Heródoto o primeiro autor a explicitar um uso intercambiável das duas palavras. No

    entanto, outra leitura parece possível, e até mesmo mais coerente ao atentar para o que se segue

    à passagem. Aplicando o sentido classificatório de ἰδέα, a sentença “τῶν μὲν δὴ μελαινέων τῶν

    μαχομένων πρὸς τοὺς ὄφις ἥδε ἰδέη” pode ser lida como: “tal é o tipo negro que luta contra as

    serpentes”. Essa leitura parece endossada pela sentença seguinte, onde Heródoto inclui a

    cláusula parentética: “διξαὶ γὰρ δή εἰσι ἴβιες (de fato, de dois tipos são as íbis)”. Em todas as

    traduções citadas, o adjetivo nominal διξαὶ é sempre interpretado como “dois tipos”. A tradução

    espanhola: “pues en realidad hay dos clases de íbis”; a inglesa: “for the ibis is of two kinds”; e

    a francesa: “car il y a des íbis de deux sortes”. É curioso notar que tanto a edição inglesa como

    a espanhola ressaltam, em nota in loco, que Heródoto se refere a duas espécies de íbis. A edição

    da Loeb cita, inclusive, quais são as duas espécies a que Heródoto se refere: “Geronticus Calvus

    and Ibis Aethiopica” (GODLEY, 1920, p. 363, n. 1). Já a edição da Gredos afirma que Heródoto

    “pone gran cuidado en su descripcion de los dos tipos de ibis” (SCHRADER, 1977, n. 296, p.

    365). Parece-nos válido, pois, apresentar uma sugestão interpretativa: no começo da sentença

    em questão, Heródoto utiliza o termo εἶδος, traduzido como “aparência” ou “aspecto”, o que é

    adequado uma vez que ele prossegue descrevendo as características físicas da íbis. O autor,

    então, encerra a sentença mencionando ἰδέα, que, na tradução espanhola, é considerada

    “fisionomia”; porém, se anteriormente, como já atestamos, Heródoto utiliza ἰδέα com sentido

    classificatório (“tipo”), não seria possível que esse também fosse o caso?

    Na sentença “τῶν μὲν δὴ μελαινέων τῶν μαχομένων πρὸς τοὺς ὄφις ἥδε ἰδέη”, não há

    nenhuma indicação de que ἰδέα se refira às informações anteriores sobre a aparência da íbis, o

    que definitivamente lhe conferiria o sentido de “fisionomia”. O que se descreve na sentença é

    uma característica particular da íbis negra – a que luta contra as serpentes. Caso tomemos essa

    última alternativa, ἰδέα adquire sentido classificatório. Essa é, no entanto, apenas uma sugestão

    interpretativa, não havendo evidências fortes que sustentem essa leitura como definitiva. O que

    se pode afirmar deste caso particular, todavia, é que apesar de ambas as palavras serem

    utilizadas historicamente para falar a respeito do aspecto ou aparência de algo, não se encontra

    nenhum autor até então explicitando a intercambialidade de seus significados. Há, ao que tudo

    indica, uma certa ressalva em se fazer tal coisa, e se há alguma nuance para o uso de uma ou de

    outra palavra no seu sentido de aspecto/aparência, isso não aparece em nossa análise.

    Independentemente de como seja interpretado o uso da palavra ἰδέα nesta passagem, a novidade

    introduzida por Heródoto ao usá-la com um sentido classificatório de “tipo”, não é afetada por

    essa questão.

  • 32

    Vale notar ainda que, de acordo com Saffrey (1990, p. 2-3), este novo sentido

    classificatório encontrado em Heródoto se relaciona igualmente à formação dos adjetivos

    constituídos pelo sufixo -ειδής, significando “o εἶδος ou a ἰδέα de...”, “com aparência de...”.

    Formação esta que ao longo da história da língua grega ampliou-se de modo que o próprio

    sufixo -ειδής acabou se fundindo com sufixo -ώδης e a formação de adjetivos com esses sufixos

    continuou constituindo muitas centenas de adjetivos empregados no grego clássico22. Ademais,

    como já visto, desde Homero esta formação retinha exclusivamente a noção de “aparência

    externa”, mas, a partir de Heródoto, estará imbuída também deste novo significado

    classificatório.

    1.1 A Dramaturgia Grega

    Neste momento, é importante focar em outro âmbito literário da época, a dramaturgia

    grega, pois aí se faz notar que, apesar de a palavra ἰδέα já estar sendo bem incorporada ao

    vocabulário da prosa grega do século V, isso não ocorre entre os poetas trágicos, onde a palavra

    εἶδος, homérica, continua a ser preferida. Assim, nem Ésquilo (c. 525/524 a.C. – 456/455 a.C.)

    nem Sófocles (496 a. C. – 406 a. C.) oferecem um só exemplo do uso da palavra ἰδέα. Encontra-

    se somente uma única ocorrência da palavra em Eurípides (c. 480 – c. 406 a.C.)23, na sua última

    peça, As Bacantes, composta em 405 a.C., no diálogo entre Penteu e Dionísio, que imita o estilo

    de linguagem falada. A palavra é utilizada para questionar a respeito dos “tipos” de ritos que

    praticam os seguidores de Dionísio: “τὰ ὄργι ἐστὶ τίν᾽ ἰδέαν ἔχοντά σοι; (de que tipo são seus

    ritos?)”24.

    Que ἰδέα era então parte integrante da linguagem comum da época se confirma ao

    verificar que, por um lado, se a tragédia praticamente excluiu do seu idioma a palavra, por

    outro, a comédia, que faz uso livre da língua falada, utiliza-a com naturalidade. Em Aristófanes

    (444 a.C. – 385 a.C.), encontra-se apenas 2 ocorrências da palavra εἶδος e 7 de ἰδέα25.

    Primeiramente, nas Nuvens, encenada em 423 a.C., o Coro das Nuvens fala, em 288, de

    suas formas imortais (ἀθανάτας ἰδέας). E em 547, o autor, na pessoa de Corifeu, gaba-se de sua

    habilidade de sempre apresentar novas formas de comédia (ἀλλ᾿ ἀεὶ καινὰς ἰδέας εἰσφέρων

    22 Cf. CHANTRAINE, 2009, p. 430-432; BUCK; PETERSEN, 1945, s.v. -ειδής, p. 703-707, s.v. -ώδης p. 708-715. Sobre a evolução do sentido dado ao sufixo -ώδης no século V ver O’BRIEN, 1985, p. 266-270. 23 Cf. ALLEN; ITALIE, 1954, p. 298. 24 Tomamos como decisiva a análise de E. R. Dodds (1986, p. 137) a respeito do significado de ἰδέα nessa passagem. 25 Cf. TODD, 1932, s.v. εἶδος, p. 68 e s.v. ἰδέα, p. 104.

  • 33 σοφίζομαι). Nas Rãs, apresentada ao público na Leneana, um dos festivais dedicados a Dionísio

    em Atenas, no ano de 405 a.C., o Coro, em 382, pede para que se mude a entoação para uma

    outra forma de hino (ἑτέραν ὕμνων ἰδέαν) em honra a Demeter. Nas Aves, atuada em 414 a.C.,

    quando Méton entra em cena (993), Pistêtairo lhe pergunta: “Qual o tipo da sua proposta? (τίς

    ἰδέα βουλεύματος;)”26. Em seguida (1000-1001), o mesmo Méton explicando o que são suas

    ferramentas, diz: “em forma, o ar é como a tampa de um forno (ἀήρ ἐστι τὴν ἰδέαν ὅλος κατὰ

    πνιγέα μάλιστα)”27. Finalmente, em Pluto, a última peça de Aristófanes, composta em 388 a.C.,

    a Pobreza reivindica ser a verdadeira benfeitora dos seres humanos, diz ela: “Mais do que Pluto

    (Riqueza), eu faço dos homens superiores em inteligência e forma (καὶ τὴν γνώμην καὶ τὴν

    ἰδέαν)”28; aqui ἰδέα toma o sentido de aparência visível de um homem que é a forma do seu

    corpo físico. Assim, em Aristófanes, a mesma palavra, ἰδέα, pode designar as formas das nuvens

    e o corpo físico de um homem, mas também formas outras as quais não se veem com os olhos,

    como as de hinos, de comédias e de propostas, que pode ser traduzida como “formas” ou “tipos

    de...”, e que se enquadra perfeitamente no sentido classificatório da palavra. Nenhuma

    novidade, portanto, quanto ao seu uso e significação.

    Εἶδος, por sua vez, na primeira de suas 2 únicas ocorrências, é apresentado, nas

    Tesmoforiantes, 267, com o sentido tradicional de aspecto exterior. Eurípides fala de seu

    parente, que está se travestindo, que ele de fato parece uma mulher, ao menos em εἶδος

    (aparência): “ἁνὴρ μὲν ἡμῖν οὑτοσὶ καὶ δὴ γυνὴ τό γ᾿ εἶδος”. E logo em seguida pede para que

    ele tente disfarçar também a sua voz.

    Já a segunda ocorrência apresenta uma significação outra, de difícil tradução. Em Pluto,

    317, a personagem Carião pede ao Coro para que se faça uma mudança de εἶδος. O contexto se

    desdobra numa série de troca de personificações (μιμέομαι) entre Carião e o Coro, sendo que

    Carião sempre acaba levando a pior, até que finalmente ele decide ir embora, onde surge a

    seguinte frase: “ὑμεῖς ἐπ᾽ ἄλλ᾽ εἶδος τρέπεσθ᾽”. Vemos as traduções existentes tentando se

    adaptar ao contexto, mas sempre incapazes de qualquer fidelidade à sentença original.

    Novamente recorrendo a renomadas coleções: Jeffrey Henderson (2002, p. 469) pela inglesa

    Loeb Classical Library traduz como “form up a different dance”; Luis M. Macía Aparicio

    (2007, p. 449) pela espanhola Gredos traduz como “disponeos a otra cosa”; e Pascal Thiercy

    pela Bibliothèque de la Pléiade das Éditions Gallimard (1997, p. 918) traduz como “et tournez-

    vous donc vers un autre genre”. Thiercy explica (1997, p. 1325, n. 5) que o que está sendo

    26 Tradução nossa. 27 Tr. idem. 28 Tr. idem.

  • 34 pedido por Corião é um novo canto ao coro, mas que isso não foi preservado nos manuscritos

    e, portanto, εἶδος, nessa passagem, estaria se referindo a uma mudança de “gênero musical”.

    Sua tradução é improvável, pois não só implicaria numa inovação de Aristófanes no uso de

    εἶδος, como a justificativa para sua interpretação e tradução se pauta numa suposta lacuna nos

    manuscritos de Pluto da qual não há referências. Não só em sua bibliografia não constam os

    manuscritos da obra, como nas edições críticas modernas, que ele referencia, essa lacuna não é

    indicada. Ademais, a tradição dos manuscritos de Pluto conta com aproximadamente duzentos

    testemunhos, do qual só um pequeno número tem sido considerado pelos editores29, e Thiercy

    não apresenta nenhum estudo, seu ou de outrem, que sustente esta sua afirmação.

    Nenhuma dessas traduções parece, portanto, satisfazer plenamente o significado de

    εἶδος nessa passagem. Todavia, ao investigar a literatura contemporânea a Aristófanes, surge

    uma nova pista quanto a essa aplicação específica da palavra que parece estar contida numa

    expressão idiomática. Encontra-se a mesma construção do substantivo εἶδος com o verbo

    τρέπεσθαι em Tucídides (460 - 395 a. C.). Vale, portanto, analisar o uso e significado que faz

    Tucídides nesse caso. São duas as ocorrências dessa expressão idiomática na sua História da

    Guerra do Peloponeso, em 6.77.2, e em 8.56.2. A primeira se apresenta num discurso de

    Hermócrates de Siracusa:

    ἢ μένομεν ἕως ἂν ἕκαστοι κατὰ πόλεις ληφθῶμεν, εἰδότες ὅτι ταύτῃ μόνον

    ἁλωτοί ἐσμεν καὶ ὁρῶντες αὐτοὺς ἐπὶ τοῦτο τὸ εἶδος τρεπομένους ὥστε...

    Ou devemos esperar até que sejamos derrotados, cidade após cidade, sabendo

    que essa é a única maneira de sermos conquistados, e vê-los se voltando

    justamente a esse εἶδος, a saber...30

    Hermócrates prossegue explicando, basicamente, a estratégia de dividir e conquistar que foi

    utilizada pelos Atenienses para derrotar e escravizar os povos vizinhos. E a segunda, em 8.56,

    2:

    Ἀλκιβιάδης δέ (...) τρέπεται ἐπὶ τοιόνδε εἶδος ὥστε τὸν Τισσαφέρνην ὡς

    μέγιστα αἰτοῦντα παρὰ τῶν Ἀθηναίων μὴ ξυμβῆναι.

    29 A respeito da história do texto e discussão sobre a edição crítica vide: D. M. Cisterna (2012); N. G. Wilson (2007, p. 1-14); G. Zanetto (2010, p. 203-225); M. R. Di Blasi (1997); K. J. Dover (1988, p. 223-265). 30 Tradução nossa.

  • 35

    Alcibíades voltou-se para este εἶδος, a saber, que Tissafernes deveria exigir

    demais dos Atenienses e assim não entraria em acordo com eles.31

    Dentre as traduções verificadas, na primeira passagem parece ser unânime a tradução

    de εἶδος como “política”. A tradução inglesa por Charles Smith, pela coleção da Loeb Classical

    Library (2006, p. 319) “resorting to this policy”; a brasileira de Mário da Gama Kury (2001, p.

    400) “recorrer a esta política”; a espanhola de Juan José Torres Esbarranch pela Gredos (1992,

    p. 273): “ponen en práctica contra nosotros esa política”; e a francesa de Louis Bodin pela

    Belles Lettres: “et quand nous les voyons adopter ce système avec nous” (1963, p. 57).

    Já na segunda passagem, alguns destes mesmos tradutores variam um pouco e tentam

    interpretar a expressão como um todo. Mário da Gama Kury (2001, p. 508) traduz como:

    “resolveu aconselhar”; e Charles Smith (2006, p. 289): “recourse to this device”. Apenas as

    traduções da Belles Lettres, dessa vez por Raymond Weil, “il recourut à un système” (1972, p.

    46), e a de Juan Torres Esbarranch, “recurrió a una política” (1992, p. 264), reiteram o sentido

    adotado na primeira passagem. Nesta ocasião, Esbarranch explica em nota (323) que o sentido

    de “política” que ele emprega é similar a “≪tendencia≫ o ≪regimen≫ (politeía)”, e até mesmo

    “kosmos, ≪orden≫”, além de afirmar que esta seria exatamente a mesma significação de εἶδος

    na passagem 6.77.2. Note-se que este sentido forte de “política” é bem diferente do sentido de

    “policy” adotado na tradução inglesa para a primeira passagem, a qual remete a um sentido mais

    próximo de “diretriz” ou “modo de ação”.

    Ainda assim, nenhuma dessas alternativas de tradução parecem se adequar ao uso da

    expressão em Aristófanes. Elas se tornam muito menos razoáveis ao se isolar as traduções

    atribuídas a εἶδος (política, device, sistema, conselho) da expressão como um todo. O sentido

    forte de política adotado pela tradução espanhola parece ser o mais distante e inadequado,

    dotando a palavra de noções de regime, ordem e administração da pólis, ainda mais

    considerando o apanhado histórico dos usos e significações de εἶδος realizados nesta pesquisa

    até então. A tradução inglesa como policy, no entanto, traz uma interessante intuição se a

    interpretarmos figurativamente como “modo de ação”. De maneira semelhante, propomos que

    εἶδος associado ao verbo τρέπεσθαι deva ser traduzido como “postura/conduta”, no sentido de

    “comportamento/atitude”. Atribuir essa significação a εἶδος apresenta-se aqui como uma

    novidade histórica32.

    31 Tr. idem. 32 Pode haver alguma semelhança, no entanto, com a primeira ocorrência da palavra ἰδέα em Teógnis, já imbuída com as mesmas significações de comportamento/atitude, e que ainda as contêm dentro de uma noção ampla de aparência. Vide também Heródoto, 6.100.

  • 36

    Ademais, nota-se que o historiador corrobora a inversão na proporção do uso das duas

    palavras como visto com seu contemporâneo Aristófanes. Em suas obras encontram-se 7

    empregos de εἶδος para 14 de ἰδέα33. Esta confirmação de uma inversão na proporção do uso

    das duas palavras é bem relevante, pois aqui já estamos lidando com um período contemporâneo

    a Sócrates (469-399 a.C.) e a Platão (428 a.C.-347 a.C.), sendo este último, como bem se sabe,

    e será analisado, o responsável por uma determinante inovação no uso e significação de ambas

    as palavras, culminando naquilo que ficou conhecido como a Teoria das Formas/Ideias.

    Deve-se, no entanto, observar que todo esse percurso traçado até agora margeou uma

    grande revolução científica que estava ocorrendo na Grécia antiga. Os assim chamados

    filósofos pré-socráticos e a ciência médica, ao longo de todo seu percurso histórico e do

    desenvolvimento do seu saber, depararam-se com a necessidade de expressar suas novas visões

    de mundo dentro de um vocabulário que os limitava e que, portanto, precisou ser inovado.

    Para se entender o uso e as significações das palavras εἶδος e ἰδέα nesse núcleo de saber

    da época já não é mais necessário prosseguir com o mesmo método de análise pelo qual a

    pesquisa se desenvolveu até agora, pois estudos exaustivos e consagrados já o fizeram, alguns,

    inclusive, muito recentes, e aqui serão criticamente apresentados seus resultados.

    1.2 O Corpus Hippocraticum

    A evolução do pensamento médico em prol de uma explicação natural das doenças levou

    a uma mudança na terapêutica na Grécia antiga. O Corpus Hippocraticum surge como a

    primeira coleção de livros de medicina dessa nova techné iatriké, que se pautava na íntima

    associação entre conhecimento e experiência, não mais aceitando curas por feitiços ou magias

    baseadas na crendice34.

    Há, contudo, um grande e inconclusivo debate na comunidade acadêmica a respeito da

    autoria e data de composição dos tratados que compõem o Corpus35. É sabido que,

    33 Cf. BÉTANT, 1961, vol. I, s.v. εἶδος, p. 294 e vol. II, s.v. ἰδέα, p. 5. À parte dessa novidade analisada no uso de εἶδος em conjunto ao verbo τρέπεσθαι, ambas continuarão com os mesmos significados encontrados até agora. 34 Falando a respeito do tratado Περὶ Ἀρχαίας Ἰατρικῆς, Schiefsky (2005, p. 65–66) afirma que o método lá proposto “could certainly be characterized as an empirical one", preferindo os efeitos da dieta como observados pelos sentidos às especulações cosmológicas. No entanto, “unlike the Empiricists, the author does not claim that the doctor's knowledge is limited to what can be observed by the senses. On the contrary, he requires the doctor to have quite extensive knowledge of aspects of the human constitution that cannot be observed directly, such as the state of the patient's humors and internal organs” (SCHIEFSKY, 2005, p. 350). 35 Isso implica, ainda, em sequer haver um acordo sobre quais os tratados que de fato compõem o Corpus. Dentre os grandes estudiosos tem-se C. G. Gual defendendo 53 tratados organizados em 72 livros; J. Jouanna, que segue a organização dos textos a partir da organização feita por Erotiano no séc. I a.C., admite 62 livros. Já, Émile Littré, organiza as obras da coleção em dez volumes, reunindo 60 livros. Para uma apresentação mais detalhada dessa

  • 37 fundamentalmente, os tratados que compõem o Corpus Hippocraticum são produto da

    investigação e do ensinamento, não só do próprio Hipócrates, mas dos seus discípulos e da

    geração subsequente, de médicos atuantes nos decênios finais do séc. V a.C. e nos primeiros do

    séc. IV a.C. A respeito desse impasse acadêmico nos estudos do Corpus Hippocraticum vale

    citar o comentário feito por G. E. R. Lloyd:

    A questão de determinar as obras genuínas de Hipócrates, um tópico já muito

    discutido pelos comentaristas da antiguidade, continua sendo ativamente

    debatida, ainda que as discordâncias entre os acadêmicos permaneçam,

    aparentemente, mais amplas do que nunca. (LLOYD, 1975, p. 171) 36

    Sabe-se, no entanto, com alguma segurança, que alguns dos tratados antecedem, se não

    Heródoto, ao menos Tucídides, e que outros são contemporâneos a Platão e até mesmo

    posteriores a ele, chegando até a época romana e cristã37.

    Isso tudo faz muito arbitrária qualquer seleção de tratados do Corpus Hippocraticum

    para serem analisados como sendo pré-socráticos. Ademais, a ampla abrangência histórica do

    Corpus faz com que a busca de desenvolvimentos semânticos e qualquer conclusão a seu

    respeito sejam prejudicados. No entanto, não se pode relevar o fato de que a influência do

    vocabulário médico na linguagem de um povo é altamente contagiante38, e a respeito dos usos

    e significações das palavras εἶδος e ἰδέα há alguns consagrados estudos que lidaram com essa

    questão dentro do Corpus, e mostram resultados bem coerentes com o que a presente pesquisa

    tem apresentado até aqui. Sendo assim, levando em conta todas essas ressalvas, apresentaremos

    resumidamente os resultados dos esforços já feitos nesse sentido.

    problemática vide ensaio introdutório de W. H. S. Jones (1923, p. xlviii et seq.) no vol. 148 da coleção Loeb Classical Library. 36 Em nota (1), aponta 86 trabalhos como “as mais importantes contribuições desde 1930” para este debate. Vê-se também, mais recentemente, P. Potter reafirmando esse impasse na sua introdução da edição da Loeb Classical Library (vols. 5 e 6 de Hippocrates): “These volumes contain the most important Hippocratic works on the pathology of internal diseases (…) About the Treatises’ interdependencies, authors, and relative dates of composition, nothing can be said with any degree of certainty. There is neither any evidence that would confirm, nor any evidence that would call into doubt, their traditional time of origin about 400 bc.” (POTTER, 1988, p. ix-xii). 37 Cf. JOUANNA, 1999, Appendix 3, p. 373-416. 38 Quanto ao uso de εἶδος e ἰδέα no período pré-platônico um caso já bem comentado é o de Tucídides que apresenta diversos paralelos a alguns usos hipocráticos dos termos. Isso é apontado no debate de Gillespie (1912, p. 179 et seq.) com A.E. Taylor (1911), o qual abordaremos adiante; também no estudo de K. Weidauer (1954, p. 26 et seq.). Vide como a formulação mais recorrente de Tucídides para a palavra ἰδέα, “ἰδέα πᾶσα”, é muito frequentemente seguida por palavras significando morte (θανάτου, ὀλέθρου): cf. II. 19. 1; III. 81. 5, 83. 1, 98. 3; VII. 29.5.

  • 38

    Em todo o Corpus o número das ocorrências da palavra ἰδέα é de 37, enquanto que de

    εἶδος chega a 9739. A. E. Taylor (1911, p. 178-267) foi o primeiro a estudar o uso de εἶδος e

    ἰδέα no Corpus Hippocraticum e concluiu que ali já se encontraria uma antecipação do uso

    socrático/platônico dessas palavras. Segundo sua interpretação, já haveria diversas passagens

    no Corpus onde essas palavras estariam sendo utilizadas com o significado de “substâncias

    elementares primárias” – à semelhança das ἀρχαί dos filósofos pré-socráticos –, a partir das

    quais todas as coisas são formadas. Porém, diferente da filosofia platônica, essas substâncias

    não seriam transcendentes à realidade sensível.

    Esta tese de Taylor foi refutada de imediato por Gillespie (1912), no que foi o primeiro

    e é até então o único artigo exclusivamente dedicado ao uso dessas duas palavras no Corpus

    Hippocraticum, que reexaminou detalhadamente εἶδος e ἰδέα nos tratados, complementando

    em alguns casos específicos o material selecionado por Taylor no Corpus Hippocraticum. Seus

    resultados provaram que, ao contrário de Taylor, εἶδος e ἰδέα não traziam nenhuma novidade

    em relação às significações em vigor na época. Segundo Gillespie, nos tratados do Corpus

    Hippocraticum até a época de Sócrates, estes vocábulos significam não só a forma visível de

    um objeto corpóreo, mas, sobretudo, uma “classe” de enfermidades ou um “tipo” de

    constituição física que a pessoa tem, reconfirmando, portanto, a significação classificatória. No

    que diz respeito à palavra ἰδέα, a presente pesquisa verificou, desde Homero até então, esses

    mesmos significados, porém agora, em relação à εἶδος, tem-se uma novidade semântica.

    Segundo Gillespie: “Que a palavra εἶδος, por diversas vezes, tem um sentido classificatório em

    Hipócrates, pode ser facilmente demonstrado” (GILLESPIE, 1912, p. 184)40; mas apresenta a

    seguinte ressalva:

    Eu concordo com o prof. Taylor que a palavra não significa uma classe lógica

    em Hipócrates: mas ela tem frequentemente um uso classificatório, assim

    como em inglês falamos ‘desses tipos de caráter’, ‘uma forma maligna da

    doença’ (...) e esse tanto pode ser concedido ao prof. Taylor, isto é, que a

    classificação é, mais apropriadamente, divisão; não é considerada como

    coletar e distribuir as coisas de acordo com suas qualidades em comum, mas,

    em vez disso, considerar uma unidade (não explicitamente pensada como uma

    unidade lógica, mas em última instância analisável dentro dela, como via

    39 Cf. MALONEY; FROHN, 1984. 40 Seus exemplos são: 3, II.30 K., 7, II.34 K., 8, II.34 K.

  • 39

    Platão) e dividi-la. Ainda assim, a ideia classificatória sempre está próxima, e

    às vezes predominante (GILLESPIE, 1912, p. 183)

    Εἶδος assume, portanto, a noção classificatória que até então só havia sido encontrada em ἰδέα.

    A interpretação de Gillespie se estabeleceu como consenso desde então, tendo estudos

    subsequentes apontado para a mesma direção de seus resultados41. Vale citar a sua própria

    síntese de conclusões:

    Meu exame parece indicar que, na época de Sócrates, as palavras εἶδος e ἰδέα

    demonstram duas tendências de significado no vocabulário geral da ciência.

    A primeira é principalmente física, mas sem associações matemáticas -

    incluindo muitas gradações de significado, do popular ao técnico – a forma de

    um objeto corpóreo – ocasionalmente usada para o objeto corpóreo em si,

    como as nossas palavras forma e formato, mas sempre distinta de σώμα: por

    vezes a forma ou o formato visível externo: frequentemente a forma interna,

    a estrutura, natureza, φύσις, uma concepção especialmente física:

    frequentemente estendida à natureza dos objetos em vez do corpo: passando,

    em um tratado de caráter retórico, quase, senão um pouco, para a noção

    metafísica de essência. A segunda é meio lógica, classificatória; usada

    especialmente em contextos tais como ‘existem quatro formas, tipos’ de

    alguma coisa, seja uma substância como o ‘úmido’, seja uma doença ou

    semelhantes. (GILLESPIE, 1912, p. 202)

    1.3 Os Filósofos Pré-socráticos

    Há de se supor que os filósofos pré-socráticos se apresentem como um núcleo de

    pensamento de maior importância para o desenvolvimento filosófico dos termos εἶδος e ἰδέα

    em direção ao uso platônico. Isso se deve em primeiro lugar às suas novas propostas de

    explicação da realidade que fundaram o próprio pensamento filosófico grego, em segundo

    lugar, à necessidade de configurar também um novo vocabulário para as expressar. Desse modo,

    não só esses pensadores criaram neologismos, como atribuíram novos sentidos a muitas

    palavras usuais. Todavia, devido ao caráter fragmentário dos textos pré-socráticos, e ao fato de

    que estes filósofos não praticavam a definição dos termos, uma interpretação conclusiva de

    41 Vide Else (1936) e Baldry (1937). Vê-se mais recentemente a interpretação de Gillespie sendo assumida como conclusiva por estudiosos como Saffrey (1990, p. 5-6) e Enrico Berti (MOTTE et al., 2003, p. 653-654).

  • 40 qualquer análise semântica num cenário desses requer não só uma minuciosa análise filológica,

    como também um conhecimento filosófico muito bem estruturado e de muita intimidade com

    os pensamentos desses sábios pré-socráticos. Muito recentemente dois estudos realizaram tal

    façanha, excedendo em completude qualquer trabalho previamente realizado sobre os termos

    em questão42, e para isso foram recrutados esforços coletivos de grandes acadêmicos na área,

    oriundos de diversos países.

    O primeiro é o trabalho realizado pelo Centre d'études aristotéliciennes de l’Université

    de Liège, publicado em 2003, sob a edição de A. Motte, C. Rutten, P. Somville, L. Bauloye, A.

    Lefka e A. Stevens. Nele, encontra-se uma análise e interpretação de todas as instâncias dos

    substantivos εἶδος, ἰδέα e μορφή nos escritos dos pré-socráticos, Platão e Aristóteles, sob o

    título “Philosophie de la Forme. Eidos, Idea, Morphe dans la philosophie grecque des origines

    à Aristote”. Dentre os 23 grandes nomes cujos esforços foram coordenados estão Richard

    Bodéüs, Enrico Berti, Carlos Steel, e Gerd Van Riel. Como resultado, além do levantamento e

    organização de todas as ocorrências das palavras, apresentam-se valiosos apontamentos

    gramaticais e estilísticos, e análises semânticas meticulosas. Por esses motivos, esse precioso

    trabalho será um companheiro próximo da presente pesquisa por todo o seu trajeto, não só como

    uma lista de referências, mas por suas ótimas conclusões e interpretações.

    No que tange os pré-socráticos, foram analisadas todas as ocorrências das palavras,

    encontradas nos escritos de Xenófanes (570 a.C. – 475 a.C.), Parmênides (530 a.C. – 460 a.C.),

    Anaxágoras (c. 500 a.C. – 428 a.C.), Diógenes de Apolônia (499 a.C. – 428 a.C.), Protágoras

    (490 a.C. – c. 420 a.C.), Empédocles (490 a.C. – 430 a.C.), Górgias (485 a.C. – c. 375 a.C.),

    Melisso (470 a.C – 430 a.C), Filolau (c. 470 a.C. – c. 385 a.C.), Crítias (460 a.C. – 403 a.C.),

    Demócrito (c. 460 a.C. – 370 a.C.), e Arquitas (428 a.C. – 347 a.C.)43. Para o levantamento das

    ocorrências, foram examinados os fragmentos reputados como autênticos e os testemunhos

    doxográficos44 recolhidos e organizados por H. Diels e W. Kranz. No total são 32 ocorrências

    de εἶδος45 e 10 de ἰδέα46. Destacam-se, dentre todos, Empédocles e Demócrito, o primeiro com

    um total de 8 ocorrências de εἶδος e o segundo com 9 de εἶδος e 5 de ἰδέα, pois em relação aos

    42 Como BROMMER, 1940; ELSE, 1938; SANDOZ, 1972. 43 É curioso notar a ausência de ocorrências de ambas as palavras em Heráclito, como ressalta André Motte (MOTTE et al., 2003, p. 60-63). 44 Os testemunhos doxográficos foram considerados suplementares, adotados “na medida em que possam fornecer explicações úteis junto aos índices de emprego de tal palavra com tal filósofo” (MOTTE et al., 2003, p. 19). 45 Das quais 16 ocorrem em fragmentos e 16 em doxografias adotadas como suplementares. 46 7 ocorrências e 3 suplementares doxográficas.

  • 41 demais, quando algum desses termos estão presentes, em sua grande maioria se limitam a 1 ou

    2 ocorrências47. A conclusão geral desse estudo é apresentada por E. Berti:

    Os filósofos que servem de objeto de pesquisa e de exposição de A. Motte,

    mostram como, ao lado da significação comum de εἶδος como forma corporal,

    ou seja, aspecto visível, já se tem com os primeiros filósofos duas

    significações mais técnicas do termo, tal como, por exemplo, as partículas ou

    os elementos primordiais de Empédocles, as formas dos números (par e ímpar)

    com Filolau e Arquitas, as formas do ser em Melisso. Todas estas

    significações são redutíveis à do instrumento de classificação, isto é,

    “espécie”. Neste caso, as palavras εἶδος e ἰδέα parecem intercambiáveis,

    enquanto μορφή parece indicar somente o aspecto concreto. Mais

    característico é o emprego de ἰδέα com Demócrito, onde significa a forma dos

    átomos, que Motte interpreta, no entanto, diferente de Alfieri e de Wisman,

    como forma no sentido físico. (MOTTE et al., 2003, p. 652)

    Conclui, portanto, que a respeito dos pré-socráticos é possível distinguir três significações para

    ambas as palavras, εἶδος e ἰδέα:

    1. a de figura ou de aspecto sensível, que é a significação mais comum e não tem nada de técnica, nem do ponto de vista filosófico nem do

    ponto de vista científico;

    2. a de um signo, ou de marca característica que, pertencendo à uma pluralidade de casos particulares ou de indivíduos, permite classifica-los sob

    um título comum; 3. a de uma espécie ou de grupo ou de classe, formada por todos os casos particulares que têm em comum a mesma marca característica. (MOTTE et

    al., 2003, p. 653-654)

    Ainda que a equipe coordenada por Motte et al. (2003) tenha realizado um trabalho

    notável para a questão, e, no geral, seus resultados sejam bem coerentes com as conotações já

    atestadas pela presente pesquisa em outros âmbitos literários da Grécia antiga, muito

    recentemente, Alberto Bernabé (2011; 2013), partindo dos resultados e levantamentos feitos

    por essa equipe, realizou avanços significativos sobre a questão, publicados praticamente uma

    47 Vide a tabela de ocorrências detalhadas em cada autor em MOTTE et al., 2003, p. 20-21.

  • 42 década após o trabalho de Motte et al. (2003). Seu trabalho apresenta resultados que

    acrescentam ricos detalhes ao estudo já realizado sobre o usos e significações de εἶδος e ἰδέα

    nos pré-socráticos. Vale, portanto, avaliar os pormenores de sua análise considerando as

    diferentes significações de εἶδος e ἰδέα apresentadas acima por Enrico Berti:

    (1) Reserva-se o uso exclusivo de εἶδος para significar formas visíveis que se apresentam

    no mundo sensível. Os exemplos são muitos e encontrados em diversos autores, como, por

    exemplo, Empédocles que fala das “formas semelhantes a todas as coisas (τῶν εἴδεα πᾶσιν

    ἀλίγκια πορσύνουσι)”48, como árvores, homens e mulheres etc., que os pintores representam

    pictoricamente (fr. B23.5); ou, em B71 e B73, falando a respeito de como as formas (εἴδη /

    εἴδεα) dos seres são moldados por Cípria-Afrodite a partir dos elementos49. Ainda Empédocles

    fala de como a forma em que alguns seres foram modelados (εἴδεσιν ἐκμακτοῖσι) faz com que

    sejam incompatíveis com outros50. Ou das diferentes “configurações de formas mortais,

    variadas no tempo (φυομένους παντοῖα διὰ χρόνου εἴδεα θνητῶν)” nas quais se introduzem os

    daímones (fr. B115.6-8). E, também, da transformação do aspecto (εἴδεα) do cadáver em

    relação aos vivos51. Melisso afirma que a forma (εἴδη) é algo que as coisas têm, uma

    propriedade das coisas, como a solidez, porém exterior52. Ademais dessas ocorrências, ainda

    no sentido de forma exterior visível, vê-se outras significando mais especificamente a beleza

    de uma forma, como em Górgias (fr. B22), que diz que “não a beleza, mas a boa reputação da

    mulher deve ser conhecida por muitos (κελεύων μὴ τὸ εἶδος ἀλλὰ τὴν δόξαν εἶναι πολλοῖς

    γνώριμον τῆς γυναικός.)”; ou Crítias (fr. B48) que diz que “a forma feminina é a mais bela nos

    varões, e nas mulheres, o contrário (ὅτι κάλλιστον ἔφη εἶδος ἐν τοῖς ἄρρεσι τὸ θῆλυ, ἐν δ᾿ αὖ

    ταῖς θηλείαις τοὐναντίον)”. Pitágoras (fr. C3) afirma que “a saúde é a conservação da forma e

    a doença a destruição desta (ὑγίειαν τὴν τοῦ εἴδους διαμονήν, νόσον τὴν τούτου φθοράν.)”. E,

    48 Todas as traduções dos fragmentos pré-socráticos nesta seção são propostas por Bernabé (2011; 2013) em espanhol. 49 Fr. B71: πῶς ὕδατος γαίης τε καὶ αἰθέρος ἠελίου τε κιρναμένων εἴδη τε γενοίατο χροῖά τε θνητῶν τοῖ’ ὅσα νῦν γεγάασι συναρμοσθέντ’ Ἀφροδίτῃ ... (No combinar-se água, terra, éter e sol, sugiram formas e cores dos mortais seres tantos como agora surgem, moldados por Afrodite...). Fr. B 73: ὡς δὲ τότε χθόνα Κύπρις, ἐπεί τ’ ἐδίηνεν ἐν ὄμβρῳ, εἴδεα ποιπνύουσα θοῷ πυρὶ δῶκε κρατῦναι (Cípria, então, uma vez que havia intumescido terra com chuva, entregou ao fogo ligeiro, para lhes fortalecer, as formas que ia modelando.). 50 Fr. B22.7 et seq: ἐχθρὰ πλεῖστον ἀπ’ ἀλλήλων διέχουσι μάλιστα γέννῃ τε κρήσει τε καὶ εἴδεσιν ἐκμακτοῖσι (Os mais hostis são os que mais diferem um do outro em raça, em mescla e na forma em que se estão modelados). 51 Fr. B125: ἐκ μὲν γὰρ ζωῶν ἐτίθει νεκρὰ εἴδε’ ἀμείβων (Aos vivos lhes tornavam em cadáveres, transformando seu aspecto). 52 Fr B8: φαμένοις γὰρ εἶναι πολλὰ καὶ ἀίδια καὶ εἴδη τε καὶ ἰσχὺν ἔχοντα πάντα ἑτεροιοῦσθαι ἡμῖν δοκεῖ καὶ μεταπίπτειν ἐκ τοῦ ἑκάστοτε ὁρωμένου· (A nós, que asseguramos que há muitas coisas eternas, dotadas de forma e solidez, parece-nos que todas elas se alteram e se transformam).

  • 43 novamente, Empédocles, que fala da “esplêndida forma/figura do sol (ὴελίοιο ὰγλαὸν εἶδος.)”

    (fr. B27).

    Como visto, são exatamente esses dois significados que se encontram nos primórdios

    da palavra εἶδος com Homero e Hesíodo. Os filósofos pré-socráticos, ao que tudo indica,

    tiveram o cuidado de não carregar nenhum desses sentidos à ἰδέα. Bernabé demonstrou,

    contrário à opinião estabelecida desde Wilamowitz (1962, p. 249-250)53, que ἰδέα não é

    empregada em nenhum caso dentre os pré-socráticos para designar o aspecto exterior visível

    das coisas. (2) Pelo contrário, quando é aplicada para se referir ao aspecto/aparência de algo, é

    sempre a um tipo de forma que não se pode constatar pela vista, mas que só se pode imaginar,

    ou ser concebida por meio da razão. Vê-se com isso Xenófanes, na passagem já citada nesta

    pesquisa (B15), falando a respeito das formas dos deuses imaginados pelos animais, bem como

    Protágoras também falando das formas dos deuses, afirmando sua incognoscibilidade:

    περὶ μὲν θεῶν οὐκ ἔχω εἰδέναι, οὔθ᾽ ὡς εἰσὶν οὔθ᾽ ὡς οὐκ εἰσὶν οὔθ᾽ ὁποῖοί

    τινες ἰδέαν.

    Acerca dos deuses não posso saber nem que são nem que não são nem quantos

    são naquilo que se refere a sua forma. (fr. B4)

    Anaxágoras é explícito ao dizer que é algo que “é preciso pensar” para se compreender:

    τούτων δὲ οὕτως ἐχόντων χρὴ δοκεῖν ἐνεῖναι πολλά τε καὶ παντοῖα ἐν πᾶσι

    τοῖς συγκρινομένοις καὶ σπέρματα πάντων χρημάτων καὶ ἰδέας παντοίας

    ἔχοντα καὶ χροιὰς καὶ ἡδονάς.

    Nessa situação, é preciso pensar que em todos os compostos que se estão

    formando há muitas e variadas coisas, assim como sementes de todas as

    coisas, possuidoras de variadas formas, cores e sabores. (fr. B4)

    E em Diógenes de Apolônia também é compreendido como um entendimento resultado

    de uma inferência:

    ἅτε οὖν πολυτρόπου ἐούσης τῆς ἑτεροιώσιος πολύτροπα καὶ τὰ ζῶια καὶ

    πολλὰ καὶ οὔτε ἰδέαν ἀλλήλοις ἐοικότα οὔτε δίαιταν οὔτε νόησιν ὑπὸ τοῦ

    πλήθεος τῶν ἑτεροιώσεων.

    53 E também defendida por André Motte no caso das formas dos átomos de Demócrito como formas no sentido físico, como já citado.

  • 44

    Dado que a diferenciação é multiforme, também são multiformes os animais

    e numerosos, e não se assemelham uns aos outros nem em aspecto nem em

    gênero de vida, nem em entendimento, por causa da multiplicidade das

    diferenciações. (fr. B5)

    Demócrito utiliza ἰδέα para denominar os átomos: “εἶναι δὲ πάντα τὰς ‘ἀτόμους ἰδέας’

    ὑπ᾽ αὐτοῦ καλουμένας (Que todas as coisas são o que é chamado de ‘formas indivisíveis’)” (fr.

    B167). Esta passagem, no entanto, apresenta-se bem controversa entre os estudiosos de

    Demócrito, no que tange à qualificação das ἄτομοι ἰδέαι enquanto formas materiais visíveis ou

    não. Bernabé se esquiva dessa questão, e assim comenta esse fragmento:

    O uso de ἰδέαι para se referir aos átomos se encontra no mesmo terreno que

    estamos pisando até agora. Não se trata de formas visíveis, como tampouco é

    evidente para o conhecimento sensível que existam formas indivisíveis. Trata-

    se de realidades que são alcançadas somente como resultado de uma operação

    mental, de um postulado derivado de premissas racionais. (BERNABÉ, 2011,

    p. 26)

    A. Motte as classifica como “formas materiais invisíveis a olho nu”54, e diz corroborar J. Salem

    ao sustentar que essas são formas no sentido “físico”55. Com essa afirmação, Salem está

    combatendo acima de tudo a posição assumida por Hegel, em suas Lições sobre a História da

    Filosofia, de que “o átomo pode ser concebido em um sentido material, mas é, apesar disso,

    algo não sensível, puramente intelectual”56, que sugere, como diz Salem, uma história das ἰδέαι

    “totalmente redigida em um futuro anterior”, fazendo de Demócrito um tipo de “profeta

    platônico”, assim como faz Carlos Diano, que considera as ἄτομοι ἰδέαι seres separados do

    devir e conclui que o que faz Platão é uma “duplicação” das ἄτομοι ἰδέαι democritianas, uma

    vez que “uma parte se despedaça com o ser do Meden [não-ser]57 para constituir a >, a outra passa a constituir o mundo inteligível da essência” (DIANO, 1970a, p. 27). Desse

    mesmo modo, Salem rejeita a interpretação de Alfieri, que afirma que as ἄτομοι ἰδέαι são

    54 MOTTE et al., 2003, p. 54 55 Vide MOTTE et al., 2003, p. 40; SALEM, 1996, p. 40. 56 Da tradução para o espanhol de Wenceslao Roces Suárez (2002, p. 280). 57 Diano (1970a, p. 22) relaciona meden com a chora do Timeu de Platão, e em outro lugar explica: “É poiché essere del non-essere non può esserlo se non in quanto, rispetto al non-essere essendo essere, rispetto all'essere sia a sua volta non-essere e cioè in quanto essa sia insieme essere del non-essere e non essere dell'essere, essa obbedisce in pieno alla logica dell'> e di quel

  • 45 “...visíveis, evidentemente, somente para a visão do intelecto”58, e critica também a posição de

    H. Wismann que afirma que “o átomo não é mais um corpo”, e que constitui s