ΓΑΜΟΣ-ΕΡΩΤΑΣ ΚΑΙ ΣΕΞ ΣΤΗ ΝΟΜΟΘΕΣΙΑ ΤΟΥ ΣΟΛΩΝΟΣ-...

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HVMANITAS - Vol. LIII (2001) MATRIMONIO, AMOR Ε SEXO NA LEGISLAÇÃO DE SÓLON DELFIM F. LEãO Universidade de Coimbra Abstract: "Marriage, love and sex in Solon's legislation". The author of this study reflects on a number of laws attributed to Sólon, concerning family and private interests: adultery, prostitution, rape, marriage, heritage, the status of an epikleros, adoption, funerais and testation. Os testemunhos antigos relativos a Sólon transmitem umas largas dezenas de leis, que atribuem, de forma directa ou implícita, ao estadista ateniense. Ora uma das maiores dificuldades sentidas pelo estudioso moderno reside em distinguir, de maneira correcta, entre as disposições que integrariam o código do legislador e aquelas que lhe eram falsamente atribuídas pela tradição. Não é este o momento para debater questão tão complexa, sobre a qual, de resto, já reflectimos noutra ocasião 1 . Iremos, por conseguinte, centrar-nos unicamente nas disposições de Sólon que podem ligar-se ao tema que elegemos para estudo. Deixaremos de lado, também, o debatido problema da cronologia do estadista, partindo do princípio básico de que a obra legislativa teria sido implementada por Sólon durante o seu mandato de arconte epónimo, a situar, com bastante 1 Na nossa dissertação de Doutoramento, Sólon. Ética e política (Coimbra, 2000), em especial nos capítulos: Π.5. "O acesso às leis: Axones e kyrbeis"; Π.6. "Código de leis". No presente estudo, recuperámos parte das ideias e da argumentação usadas naquela abordagem global da obra do reformador ateniense.

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  • HVMANITAS - Vol. LIII (2001)

    MATRIMONIO, AMOR SEXO NA LEGISLAO DE SLON

    DELFIM F. LEO Universidade de Coimbra

    Abstract: "Marriage, love and sex in Solon's legislation". The author of this study reflects on a number of laws attributed to Slon, concerning family and private interests: adultery, prostitution, rape, marriage, heritage, the status of an epikleros, adoption, funerais and testation.

    Os testemunhos antigos relativos a Slon transmitem umas largas dezenas de leis, que atribuem, de forma directa ou implcita, ao estadista ateniense. Ora uma das maiores dificuldades sentidas pelo estudioso moderno reside em distinguir, de maneira correcta, entre as disposies que integrariam o cdigo do legislador e aquelas que lhe eram falsamente atribudas pela tradio. No este o momento para debater questo to complexa, sobre a qual, de resto, j reflectimos noutra ocasio1. Iremos, por conseguinte, centrar-nos unicamente nas disposies de Slon que podem ligar-se ao tema que elegemos para estudo. Deixaremos de lado, tambm, o debatido problema da cronologia do estadista, partindo do princpio bsico de que a obra legislativa teria sido implementada por Slon durante o seu mandato de arconte epnimo, a situar, com bastante

    1 Na nossa dissertao de Doutoramento, Slon. tica e poltica (Coimbra, 2000), em

    especial nos captulos: .5. "O acesso s leis: Axones e kyrbeis"; .6. "Cdigo de leis". No presente estudo, recupermos parte das ideias e da argumentao usadas naquela abordagem global da obra do reformador ateniense.

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    probabilidade, em 594/32. A apresentao e anlise das normas atribudas ao antigo reformador

    seguiro a ordenao defendida por RUSCHENBUSCH (1966), que constitui, at data, a melhor edio do cdigo de Slon. Adoptaremos, tambm, a organizao dessas leis de acordo com determinadas reas do direito, proposta pelo mesmo estudioso. Tais divises podem, com legitimidade, ser consideradas arbitrrias e no correspondem, seguramente, vontade do legislador, at porque algumas das classificaes sustentadas por RUSCHENBUSCH pressupem conceitos jurdicos que s mais tarde sero desenvolvidos3. Tm, no entanto, a vantagem inegvel de tornar as leis de Slon mais claras a um leitor moderno, razo pela qual adoptaremos a mesma catalogao4.

    Algumas das leis pertinentes para o problema em anlise incidem na esfera dos delitos privados, mais concretamente na rea dos atentados contra a moralidade, englobando normas relativas ao matrimnio e prostituio (tanto forada como voluntria). Ora no que diz respeito ao casamento, convm salientar o facto de que se tratava de uma instituio protegida, no s por leis prprias como ainda por disposies que visavam dissuadir a ocorrncia de situaes que a pudessem pr em perigo, quer quando o casamento j fosse uma realidade consumada quer quando estava ainda em projecto. isso mesmo que nos mostram vrios testemunhos:

    F26 R (Plutarco, Sol. 23.1): ' , .

    Ora, para quem raptar uma mulher livre e a violentar, fixou a pena de cem dracmas.

    2 Discusso aprofundada da polmica que envolve este problema em LEO (2000) cap.

    II.2.5. "Datao do arcontado e da nomothesia". 3 Em boa verdade, os fragmentos das leis no permitem deduzir com segurana a ordem

    segundo a qual elas se encontrariam dispostas, mas no de todo improvvel que estivessem agrupadas de acordo com as competncias dos magistrados. esta a organizao adoptada por SONDHAUS (1909) 12-14; vide ainda HANSEN (1990) 191.

    4 Usaremos, no entanto, um sistema simplificado de citao. Assim, os fragmentos da obra

    legislativa so identificados de acordo com a numerao de RUSCHENBUSCH, mas precedidos da letra F (por fragmentum) e seguidos da inicial do nome do autor da edio; acrescentaremos, ainda, a identificao do testemunho, utilizando as abreviaturas de LIODELL-SCOTT: e.g. F 26 R = Plutarco, Sol. 31.1. A traduo dos testimonia ser sempre da nossa responsabilidade.

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    Esta primeira lei diz respeito a casos de estupro de que tenham sido vtimas mulheres de condio livre; o dado que permite definir a existncia da violao reside, tal como actualmente, no uso da fora, ou seja, na falta de consentimento por parte da mulher. A punio prevista consistia numa multa pecuniria (cem dracmas) a aplicar ao violentador5.

    F 28a R (Plutarco, Sol. 23.1): ... .

    Concedeu ... que matasse um adltero a quem o apanhasse [em fla-grante].

    F 20 R (Demstenes, 23.53): ' f) , fjv ' ', .

    Se algum comete um homicdio sem inteno durante os jogos ou abate [um atacante] na estrada ou na guerra, por engano, ou [ao apanhar um adltero em flagrante] com a esposa ou com a me ou com a irm ou com afilha ou com a concubina, que tomara para ter filhos livres, em casos destes o homicida no ser exilado.

    O passo de Plutarco diz respeito ao homem adltero (moichos), salientando que Slon estabeleceu que quem apanhasse o infractor em flagrante poderia mat-lo sem temer represlias. Se compararmos esta punio exemplar com a simples multa pecuniria prevista para casos de violao, ser de concluir que, para os Atenienses, o adultrio representava um delito bem maior6. Este facto j causava perplexidade nos antigos, como salienta o mesmo bigrafo, um pouco adiante (Sol. 23.2): ora punir o mesmo delito, umas vezes com dureza e inflexibilidade e, outras, com indulgncia e ligeireza, fixando como

    5 Vide FREEMAN (1926) 122; RUSCHENBUSCH (1968) 12 e n. 10; GAGARIN (1986) 65;

    MANFREDINI-PICCIRILLI (1995) 242-244. 6 esta a perspectiva tradicionalmente aceite pelos estudiosos do direito tico, e.g.

    MACDOWBLL (1978) 124-125.

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    pena um castigo ao acaso, ilgico; a menos que, rareando ento a moeda na cidade, a dificuldade em a conseguir tornasse pesadas as multas pecunirias7. De resto, a sensibilidade actual leva-nos a considerar a lei em questo de forma idntica. Ora, para melhor compreendermos esta caracterstica do direito tico h que atender, em primeiro lugar, prpria noo de moicheia, termo ao qual, falta de melhor, daremos o equivalente de 'adultrio', facto que nos faz pensar de imediato, para o caso da mulher, numa infidelidade em relao ao marido. No entanto, para os Atenienses, o conceito era mais amplo e poderia abranger a prtica sexual ilcita com grande parte das mulheres do oikoss. Portanto, no seria apenas a honra do marido que ficava em causa, mas a de toda a sua casa. Alis, esta parece ser uma das ilaes a retirar do passo de Demstenes acima transcrito (23.53 = F 20 R), ainda que o texto se no refira directamente ao adultrio, mas sim a exemplos de homicdio no sujeitos a aplicao da pena de exlio. Entre eles, alinha a morte justificada do moichos e refere o leque de mulheres que poderiam ser envolvidas na relao, ultrapassando a simples esposa do senhor da casa: com a esposa ou com a me ou com a irm ou com a filha ou com a concubina. O factor essencial para distinguir a moicheia da violao era o consentimento, j que, no segundo exemplo, se pressupunha o uso da fora9. Portanto, com a moicheia, alm da entrega do corpo, havia ainda a considerar a questo moral da corrupo do esprito seduzido. Na violao, pelo contrrio, existia a vergonha da ofensa, mas, no seu ntimo, a vtima continuaria a manter-se fiel s regras do decoro10. No entanto, F 20 R sugere outro motivo para a severidade da lei, fazendo uma importante ressalva para que fosse englobada tambm a concubina, que tomara para ter filhos livres.

    7 T ' , '

    , , . facto de Slon estabelecer multas pecunirias liga-se com a questo de saber se o legislador procedeu ou no a uma reforma da moeda e primeira cunhagem tica. Estas leis favorecem uma resposta afirmativa, embora os achados arqueolgicos apontem, at agora, na direco contrria. Sobre este problema, vide LEO (2000) cap. .3.2. "Reforma das medidas, pesos e moeda".

    8 Cf. Demstenes (59.67), que corresponde, em parte, a F 29a R. Vide argumentao de

    HARRISON (1968-1971) 1.32-36; CARBY (1995) 407-408 e 417. Perspectiva diferente em COHEN (1991) 98 sqq.; TODD (1993) 277.

    9 Cf. supra Plutarco, Sol. 23.1 (= F 26 R).

    10 Da que, curiosamente, Slon reservasse a pena maior para o sedutor, que poderia ser

    morto dentro da esfera legal.

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    Por outras palavras, Slon est a acentuar a importncia atribuda determinao exacta da paternidade: em caso de violao, a dvida seria relativamente fcil de desfazer; porm, se existisse uma relao clandestina, a operao saa bastante mais dificultada11.

    F 30a R (Plutarco, Sol. 23.1): , , , ' .

    se prostituir [ mulher livre, paga a multa de] vinte dracmas, com excepo daquelas que ostensivamente andam para cima epara baixo, referindo--se s rameiras: estas, na verdade, buscam s claras quem lhes oferea dinheiro.

    F 30b R(Lsias, 10.19): [...] , .

    Aquelas que ostensivamente andam para cima e para baixo [...] ostensivamente 's claras', andarpara cima epara baixo 'passear'.

    O passo de Plutarco menciona duas realidades diferentes, se bem que guardem certa afinidade entre si. Em primeiro lugar, informa que Slon proibia a prostituio forada de mulheres livres, prescrevendo, tal como sucedia com a violao, uma multa pecuniria, ainda que menos pesada (vinte dracmas). Revela, no entanto, a preocupao de distinguir entre casos destes e os de prostituio voluntria. Para os segundos, o legislador no parece ter previsto qualquer tipo de punio. Importa, ainda assim, no confundir uma hetaira com uma pallak, esta ltima mencionada nas disposies sobre homicdio justificado (supra F 20 R). As primeiras exerciam a actividade como forma de auferir rendimentos; as outras, pelo contrrio, faziam parte do oikos, a ponto de serem abrangidas pela lei que regulamentava a moicheia e de as crianas nascidas da sua relao com o senhor da casa serem consideradas livres12.

    11 Estas mesmas justificaes vm referidas em Lsias, 1.32-33. Vide argumentao de

    CAREY (1995) 414-415. 12

    Vide MACDOWELL (1978) 89-90.

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    F 3laR (Plutarco, Sol. 23.2): " ' ' , .

    Alm disso, no permite a ningum vender as filhas ou irms, a no ser que se descubra que estiveram com um homem e j no sejam virgens.

    F 31b R (Plutarco, Sol. 13.4-5): " , , , , ' . ( ) .

    verdade, todo povo estava endividado para com os ricos. que ou cultivavam a terra e entregavam a estes a sexta parte do produto obtido pelo que eram chamados hektemorioi e thetes ou ento contraam dvidas, sob garantia pessoal, e ficavam sujeitos escravido pelos credores; uns levavam ali mesmo existncia de servido, outros eram vendidos para o estrangeiro. Muitos chegavam mesmo a ser forados a traficar os prprios filhos (nenhuma lei o proibia) e a fugir da cidade, tal a dureza dos credores.

    As disposies agora referidas complementam as anteriores, dado que discutem mesma o problema da prostituio, mas so diferentes na medida em que o papel de proxeneta desempenhado no por um estranho, mas antes pelos prprios familiares das vtimas. Plutarco (F 31b R) liga este problema social situao econmica da tica antes do arcontado de Slon13. Aperspectiva do bigrafo deve estar correcta, mas parece menos defensvel a sua interpretao da forma como os pais se viam obrigados a tratar os filhos. Plutarco relaciona com a escravatura e da que use o termo na acepo corrente de 'vender'. No entanto, o verbo aparecia nas leis de Slon (supra F 30a e 30b R), aplicado s hetairai e, como explica Lsias, equivalia a no sentido de 'passear-

    13 Sobre a controvrsia gerada volta do significado dos hektemorioi e thetes referidos no

    texto, vide LEO (2000) II.1.3. "Hektemoroi, horoi".

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    -se em busca de cliente'14. como no havia regulamentao especfica para tais casos, Slon promulgou uma lei que proibia esta forma de explorao fa-miliar15.

    As disposies relativas esfera privada acabam por incidir tambm, como seria de esperar, em problemas de direito familiar. Esta constitui, de resto, uma das reas mais importantes dentro daquilo que nos chegou do cdigo de Slon. Uma dessas normas regulamentava a possibilidade de casamento entre irmos:

    F 47 R (Fflon, De spec. leg. 3.22): ' .

    verdade, ateniense Slon permitiu casamento com [meias-irms] filhas do mesmo pai, mas proibiu-o com as filhas da mesma me.

    O direito ateniense previa a ligao entre familiares prximos, dentro de certas condies16. Neste caso concreto, a lei de Slon define as circunstncias em que um homem poderia casar-se legalmente com a sua meia-irm. O matrimnio era possvel quando partilhavam o mesmo pai, mas proibido se tivessem nascido ambos da mesma me. O respeito por estas e outras normas era determinante para que os filhos nascidos de uma relao pudessem considerar-se "legtimos", facto que tinha consequncias legais dignas de nota. sobre essa realidade que incidem os testemunhos seguintes:

    F 48b R (Demstenes, 46.18): f\ f) , . ' , #, ', , , .

    14 Assim cr tambm RUSCHENBUSCH (1968) 42 e n. 127; 50 e n. 162. Interpretam o passo

    como venda para a escravatura BONNER-SMITH (1930-1938) 1.168; GAGARIN (1986) 68. certo que a possibilidade da escravatura tambm deve ser tida em conta, mas a ocorrncia de favorece, neste contexto, a acepo tcnica de 'prostituir-se'. Se dvidas houvesse, F 30b R deveria bastar para as desfazer.

    15 F 31a R; ficavam excludas as mulheres que no tivessem observado a castidade antes

    do casamento. 16

    Estudo aprofundado da questo em ERDMANN (1934). Sntese das vrias possibilidades em MACDOWELL (1978) 86-89; GAGARIN (1986) 67.

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    A [mulher] que o pai ou o irmo filho do mesmo pai ou o av paterno der em casamento ser esposa de acordo com a legalidade e os filhos que dela nascerem sero legtimos. Se nenhum destes existir e se ela for epikleros, que a tome por esposa o kyrios [de direito]; se este no existir, quem a sustentar tornar-se- seu kyrios.

    Este passo ajuda a definir vrios aspectos importantes do direito fami-liar e a esclarecer a preocupao de preservar a integridade do oikos, mas o seu correcto entendimento depende de certas caractersticas do direito tico. Antes de mais, h que ter em conta o estatuto das mulheres (e crianas), que, legalmente, no podiam agir de forma independente. Por este motivo, havia sempre a figura de referncia do kyrios ('senhor' ou 'responsvel'). At ao casamento, o kyrios era o pai da jovem; quando esta se casava, a funo passaria a caber ao marido. Ora o prprio contrato de casamento obedecia a regras bem definidas. Em primeiro lugar, o kyrios procedia entrega formal da pretendida ao futuro marido. A este acto chamava-se engyesis ou engye11. Conforme dissemos, esse papel cabia, em princpio, ao pai da noiva, mas, caso isso no fosse possvel, seria o irmo ou o av pelo lado do pai a desempenhar tal funo. S desta forma ela garantia que os seus filhos seriam considerados legtimos. Haveria, no entanto, que considerar a hiptese de estes familiares j no serem vivos, pelo que a mulher se tornava epikleros, isto , herdeira universal dos bens18. Neste caso, a soluo passava pelo casamento com o familiar mais prximo, usualmente o tio paterno. Quando esta sada no fosse vivel, ela ficaria sujeita vontade do kyrios que o pai lhe destinara para estas circunstncias, regra geral por testa-mento19. Este ltimo, que, na prtica, funcionava como um tutor, tinha as funes normais do kyrios: zelar pelo patrimnio, sustentar a mulher e, em chegando a altura, entreg-la em casamento segundo o procedimento normal da engyesis70.

    17 A designao deriva do verbo usado na frmula a aplicar para esse fim, e que, de resto,

    aparece no texto em anlise (), salientando a natureza oficial do gesto. Vide MACDOWELL (1978) 84 e 87.

    18 Para isso ocorrer, ela tambm ainda no poderia ter filhos nem sobrinhos pelo lado do

    pai. Falamos em filhos, na medida em que uma mulher poderia divorciar-se e voltar a casar ou ento ser viva. Vide BISCARDI (1982) 108-112; RUSCHENBUSCH (1988) 15.

    19 Voltaremos a este problema ao aprofundarmos o estatuto da mulher epikleros, infra F

    50b e 52a R. 20

    Vide LIPSIUS (1905-1915) 471-472 n. 9; SONDHAUS (1909) 16; FRBEMAN (1926) 120-121; GAGARIN (1986) 67.

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    Outra das reas importantes do direito familiar abrangidas pela legislao de Slon diz respeito a questes de herana:

    F 49b R (Plutarco, Sol. 21.3-4): , ' ' , , , . ' , ' .

    Contribuiu tambm para sua reputao a lei relativa aos testamentos; na verdade, anteriormente no havia a possibilidade de fazer testamento e os bens e a casa tinham de permanecer na famlia do falecido. [Slon], ao deixar transmitir a quem se desejasse os prprios bens, na condio de se no ter filhos, privilegiou a amizade sobre o parentesco e o afecto sobre a necessidade, fazendo com que os bens fossem verdadeiramente propriedade de quem os possui. Em todo o caso, no permitiu a prtica indiscriminada e aleatria de doaes, mas somente quando no fossem feitas sob o efeito da doena, de drogas, de priso ou por coaco ou ainda por instigao de uma mulher.

    Segundo Plutarco, antes da legislao de Slon no era permitido fazer testamentos21. Por este motivo, os bens do falecido passariam imediatamente para os seus familiares mais directos. Ao instituir a lei sobre o testamento, o reformador teria concedido ao proprietrio o direito de dispor dos seus bens. No entanto, nem todos os estudiosos modernos concordam com o bigrafo e defendem, pelo contrrio, que o estadista ateniense veio somente oficializar uma prtica j corrente. Desta forma, o objectivo da lei sobre o testamento seria antes ultrapassar controvrsias e problemas derivados da aplicao daquele mecanismo22. Ora convm salientar, antes de mais, que o testamento estava dependente da falta de filhos naturais, pois s poderia transmitir os seus bens

    21 Nos Moralia (265e = F 49c R), pronuncia-se no mesmo sentido.

    22 Assim cr RUSCHBNBUSCH (1962); sem aprofundar, RUBINSTEIN (1993), 10-11, pronuncia-se

    no mesmo sentido. Vide ainda MANFREDINI-PICCIRILLI (1995) 231-233.

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    quem se encontrasse nessa situao23. Para alm desta clusula, o testamento deveria ser feito de livre vontade e no pleno uso das faculdades, portanto sem a presso da doena, sob o efeito de drogas, por coaco ou por sugesto de uma mulher.

    Poderia, no entanto, acontecer que algum morresse sem ter feito testa-mento e sem possuir os herdeiros mais directos: um filho legtimo, um neto ou um bisneto. a este caso que se refere o fragmento seguinte24:

    F 50b R (Demstenes, 43.51): , , , , ,

    , ,

    . , . , .

    ' ' . ' .

    Quem falecer sem ter feito testamento, se deixar filhas [a herana ser] para elas; se as no tiver, herdaro os bens os seguintes [parentes]: se os houver, irmos do mesmo pai e, se existirem filhos legtimos dos irmos, herdaro eles aparte dopai; se no houver irmos nem filhos dos irmos, deles herdaro da mesma forma. Os [parentes] do sexo masculino e os seus [descendentes] tambm do sexo masculino tero precedncia, quer sejam familiares directos quer de parentesco mais recuado. Se no houver ningum do lado dopai at ao grau de filhos de primos, herdaro, da mesma forma, os [parentes] da me do falecido. se no houver ningum

    23 Plutarco omisso quanto ao pormenor fundamental de os filhos terem de ser legtimos,

    mas ele encontra-se bem expresso em Demstenes (46.14 = F 49a R). Este facto ajuda a esclarecer que um dos objectivos da adopo era o de evitar a extino do oikos do testador.

    24 A essncia desta lei continuaria a ser de Slon (cf. Aristfanes, Av. 1660 = F 50a R),

    embora constitua um exemplo das normas que foram sujeitas a reviso, como ilustra a informao de ter sido (re)publicada durante o arcontado de Euclides (403-402). Vide ARNAOUTOGLOU (1998) 3.

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    dos dois lados abrangido por estes [graus], ento herdar o [parente] mais prximo do lado do pai. Nem o filho nem a filha bastardos tero direito de parentesco, tanto em matria religiosa como profana. [Promulgado] durante o arcontado de Euclides.

    Por conseguinte, no caso de um homem morrer intestado, os seus bens seriam herdados pela filha ou filhas. A uma jovem ou mulher nestas condies chamava-se epikleros. A traduo mais prxima da palavra 'herdeira', embora seja de esclarecer que a epikleros no detinha a propriedade no sentido de poder dispor dela livremente; ficava com os bens apenas at que tivesse um filho, o qual se tornaria herdeiro do patrimnio do pai e, por conseguinte, continuador do seu oikos. Situao anloga vivia o marido da epikleros, na medida em que poderia administrar os bens da esposa (o que, por si s, j poderia constituir um forte aliciante, se os valores envolvidos fossem elevados), mas somente at que um filho do casal atingisse a maioridade25. Para alm do que diz respeito s epikleroi, a lei em anlise tem interesse sobretudo na medida em que define em que ordem outros familiares se poderiam candidatar herana, no caso de o falecido no ter nenhum dos descendentes directos acima referidos. A linha privilegiada era a do sexo masculino, a comear pelo irmo do morto, filho do mesmo pai, e estendia-se at aos filhos dos primos26. Quando, pela linha do morto, no houvesse descendentes, aplicar-se-ia a mesma ordem de candidatura herana a partir da me do falecido. Se, ainda assim, no houvesse nenhum herdeiro que preenchesse os requisitos, ento poderia reclamar os bens o mais prximo dos parentes recuados, de novo privilegiando o lado masculino. Arredados de todo o processo ficavam os filhos ilegtimos, a quem eram negados os direitos de parentesco, tanto no domnio religioso como no profano.

    Relativamente mulher com estatuto de epikleros, Slon previu determinadas obrigaes que ser pertinente recordar:

    F 52a R (Plutarco, Sol. 20.2-5): " ,

    , '

    2 5 Vide MACDOWELL (1978) 95-96; 98-99. Cf. infra F 52a e 53 R.

    26 De acordo com a reconstituio do passo aceite por RUSCHENBUSCH. Sobre os limites

    precisos implicados por esta expresso, vide MACDOWELL (1978) 106-107.

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    . ' , ' . , , ' , . '

    , , . [ F 1 2 7 a R ] , [ F 5 1 a R ] . , ,

    .

    Parece tambm estranha e ridcula a [lei] que permite epikleros, quando o homem de quem ela depende e seu kyrios por lei se revela impotente, unir-se aos [parentes] mais prximos do marido. Tambm esta lei est correcta, na opinio de alguns, para os que forem impotentes, pois casaram com as epikleroi somente por causa dos bens e, ao abrigo da lei, contrariaram a natureza. Na verdade, ao verem que a epikleros pode unir-se com quem lhe aprouver, ou renunciaro ao casamento ou com vergonha o mantero, sofrendo a pena por essa avidez e descaro. Alm disso, tem-se por bem que a epikleros se junte no a todos, mas quele que, entre os parentes do marido, ela prefira, deforma que a coisa se mantenha em famlia e a prole pertena mesma raa. Para o mesmo fim contribui tambm que a esposa se feche no quarto com o esposo, depois de ter comido um marmelo, e que o marido da epikleros se encontre com ela ao menos trs vezes por ms. Pois, mesmo que no nasam filhos, ainda assim este um gesto de respeito e de amizade do marido para com uma mulher honesta, que evita, de cada vez, a acumulao de contrariedades e no deixa que, por causa das discusses, se instale um total abandono.

    Esta lei deve ser articulada com F 50b R, que h pouco considermos e onde se definia a ordem de proximidade dos vrios parentes. Portanto, quando Slon determina que a epikleros se deve juntar ao familiar mais directo, isso corresponderia, em primeiro lugar, ao tio paterno e assim sucessivamente at

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    ao grau de filho de primo27. Porm, F 52a R, agora em anlise, constitui j um complemento quela disposio, na medida em que visa resolver o impasse criado no caso de o parente mais prximo ser impotente. Esta contingncia representaria um grave bice, na medida em que impedia a concretizao do principal objectivo do estatuto de epikleros: o nascimento de um herdeiro legtimo do sexo masculino, descendente em linha directa do pai da epikleros. A soluo passava, no entendimento de Plutarco, por manter relaes sexuais com outro membro da famlia, crendo mesmo que a mulher teria possibilidade de escolha. Porm, esta interpretao do sentido da lei no deve estar correcta; a leitura mais provvel que, em caso de incumprimento dos objectivos do casamento, o parente mais prximo seguinte pudesse reclamar, por sua vez, a mo da epikleros, de acordo com o esprito geral da precedncia28. A salientar a ideia de que o fim a atingir era obter um herdeiro legtimo est a disposio complementar relativa aos encontros obrigatrios mnimos entre a epikleros e o marido, a fim de assegurar a possibilidade de concepo (= F 51a R)29.

    A lei seguinte destina-se a ser aplicada no final de todo o processo, ou seja, depois de a epikleros haver tido um filho varo, o qual atingiu, entretanto, a maior idade:

    F 53 R (Demstenes, 46.20): , , .

    27 RUSCHENBUSCH (1988), 15-17, pondera um dos eventuais problemas resultantes desta

    obrigao, caso o primeiro candidato por direito j fosse casado e com filhos. Uma soluo passaria pela interpretao da lei no no sentido de o parente mais prximo ter de casar pessoalmente com a epikleros, mas sim no de lhe garantir um casamento, que poderia ser com outra pessoa. Parece ser esta a orientao de uma outra lei citada por Demstenes (43.54); no entanto, esta norma encontra--se coordenada com as classes censitrias e talvez implique uma certa desconsiderao pelo telos dos thetes. De resto, RUSCHENBUSCH coloca o passo de Demstenes entre as leis esprias (cf. F 126a-c) e, mesmo a ser essa a soluo, o parente que renunciasse ao direito de desposar a epikleros perderia tambm a possibilidade de controlar os seus bens. Vide MACDOWELL (1978) 95-96; ARNAOUTOGLOU (1998) 7-8.

    28 Vide ainda observaes de LIPSIUS (1905-1915) 349; SONDHAUS (1909) 26; RUSCHENBUSCH

    (1966) n. a F 52a R; MACDOWELL (1978) 96-97. 29

    Uma vez mais, Plutarco parece no ter entendido o pragmatismo da norma, privilegiando uma interpretao tica, eventualmente defensvel, mas que no corresponde essncia da lei. O bigrafo regista ainda uma nota prpria de ritos de fertilidade (= F 127a R), mas que no deve ser de Slon, embora se enquadre no contexto. Para o significado do uso de e indicao de paralelos noutros autores, vide MANFREDINI-PICCIEILLI (1995) 226-227.

  • 126 DELFIM F. LEO

    Se a epikleros gerar um filho, assim que ele ultrapassar em dois anos a puberdade, ficar senhor dos bens, [na condio de] garantir o sustento

    Conforme temos visto, o mecanismo da epikleros visava proteger, em termos imediatos, a mulher que detivesse esse estatuto, uma vez que consistia numa forma de lhe garantir dote, sustento e marido. Contudo, tanto ela como a pessoa que a tomasse em casamento acabavam por ser, no fim de contas, instrumentos de um objectivo ltimo mais importante: a manuteno do oikos. Por esse motivo, quando o filho varo nascido da relao atingisse a maioridade, passaria a ser o herdeiro e senhor do patrimnio paterno. No entanto, esta nova posio no o isentava de responsabilidades, nomeadamente em relao me, cujo sustento teria de assegurar. Por conseguinte, na prtica, o filho varo reassumia a funo do pai na qualidade de kyrios, posto a que, em circunstncias normais, acabaria tambm por aceder. Via-se, desta forma, reposta a ordem familiar.

    Fazia parte das obrigaes usuais de um filho tomar conta dos pais na velhice, incumbncia designada por gerotwphia. No iremos considerar em pormenor este dispositivo, que, entre outros aspectos, poderia ser relacionado com a reforma econmica encetada por Slon. Recordaremos apenas a ligao que estabelece com normas j analisadas, nomeadamente a lei relativa definio de "filhos legtimos". Evocaremos, uma vez mais, o testemunho do bigrafo de Queroneia:

    F 57 R (Plutarco, Sol. 22.4): ' , , .

    Ainda mais severa aquela [clusula] que dispe que os [filhos] nascidos de uma prostituta no tenham sequer a obrigao de manter os pais, tal como referiu Heraclides Pntico.

    Com esta disposio, Slon esclarecia que o vnculo de sustentar os pais na velhice abrangia somente os filhos legtimos. A medida no deixa de ser justa, uma vez que os filhos bastardos eram penalizados em termos de prerrogativas legais. De facto, em F 50b R, o legislador estabelecia que nem o

  • MATRIMNIO, AMOR SEXO NA LEGISLAO DE SLON 127

    filho nem a filha bastardos tero direito de parentesco, tanto em matria religiosa como profana30.

    Vamos, atrs, que a capacidade de fazer testamento abria caminho a que o proprietrio dispusesse com maior liberdade dos seus bens, permitindo--lhe tambm proceder a uma adopo, de que um dos objectivos ltimos era o de evitar a extino do oikos do testador. Em Atenas, a adopo poderia ser feita de trs formas: em vida do adoptante (geralmente conhecida por adopo inter vivos); por testamento, estipulando que o herdeiro passaria a filho adoptivo; por ltimo, se algum no deixasse qualquer filho (natural ou adoptado), poderia tornar-se adoptante a ttulo pstumo, mesmo sem ter parte activa no processo31. No entanto, esse dispositivo pressupunha o respeito de certas obrigaes mtuas:

    F58aR(Harpocrcion, 140.30): oi , , ' ' .

    Porque os filhos adoptados no eram senhores de regressar casa pa-terna, a no ser que deixassem filhos legtimos no oikos do adoptante, como afirma Antifonte no Contra Calstrato, num processo de tutela, e Slon na vigsima primeira lei.

    Conforme dizamos, um homem que no possusse filhos legtimos poderia adoptar algum para preencher esse lugar; contudo, o adoptado seria, em princpio, uma pessoa que tivesse pelo menos um irmo, de forma a que a sua sada da famlia natural no pusesse em perigo a sobrevivncia do oikos de origem32. Os filhos adoptivos passavam a usufruir dos mesmos direitos que um filho natural, mas perdiam, ao mesmo tempo, as prerrogativas legais que os ligavam famlia anterior. a este momento que se refere a lei de Slon: uma vez concludo, o processo de adopo j no poderia ser desfeito. Para o adoptado regressar legalmente casa paterna, teria de deixar no oikos do pai adoptivo um

    30 Vide ainda SONDHAUS (1909) 32-33; RUSCHENBUSCH (1968) 23 e n. 67; HARRISON (1968-

    -1971) 1.62. 31

    Vide HARRISON (1968-1971) 1.82-96; RUBINSTEIN (1993) 1-2. Cf. tambm F 50b R, sobre o caso especial das epikleroi.

    32 Vide MACDOWELL (1978) 100; RUBINSTEIN (1993) 57-58.

  • 128 DELFIM F. LEO

    filho natural que ocupasse o lugar que ele deixaria vago. Isto equivale a dizer que ao filho adoptivo no assistia a possibilidade de retomar a situao anterior fazendo-se substituir no novo oikos por um filho que ele prprio tivesse adoptado33.0 objectivo desta clusula era certamente o de proteger o patrimnio do adoptante e evitar a multiplicao de adopes.

    No seu cdigo, Slon inclua tambm algumas leis de natureza sumpturia, relacionveis com as restantes medidas de recuperao econmica, alm de poderem ser vistas como uma tentativa de moderar certas manifestaes de exuberncia aristocrtica. No poderamos discutir em pormenor essas normas sem nos desviarmos dos objectivos deste estudo. Em todo o caso, pelo menos duas dessas disposies esto directamente ligada temtica que temos vindo a estudar, pelo que ser pertinente reflectir sobre elas com maior profundidade.

    F 71a R (Plutarco, Sol. 20.6): Tv ' , , , .

    Dos restantes casamentos, suprimiu os enxovais, prescrevendo que a mulher casada levasse consigo trs vestes, utenslios de pouco valor e nada mais.

    Esta lei prende-se com a prtica geral a adoptar nos casamentos34 e a controvrsia gerada sua volta diz respeito maneira como interpretar a expresso . Se o termo pherne se referir ao 'dote' da noiva, ento a regulamentao implicaria que Slon tivesse proibido a atribuio de um dote tal que pudesse afectar a parte dos bens que seriam herdados pelo filho varo. No entanto, as limitaes impostas pelo legislador vo contra os numerosos exemplos de dotaes significativas, nos scs. V e IV35. Essa dificuldade no incontornvel, na medida em que se pode supor que a lei de Slon teria, entretanto, sido revogada. A outra hiptese consiste em interpretar a pherne como o enxoval da noiva ou, de maneira mais precisa, como os presentes de

    33 Proibio expressa de forma clara em Demstenes (44.64 = F 58b R).

    34 Portanto, para alm da especificidade das epikleroi, que j analismos; cf. supra F 50b

    e52aR. . 35

    Vide BEAUCHET (1897) 1.249-250; SONDHAUS (1909) 29; HARMSON (1968-1971) 1.45-47.

  • MATRIMNIO, AMOR SEXO NA LEGISLAO DE SLON 129

    casamento que ela poderia levar de casa. A aceitar-se esta possibilidade, que nos parece prefervel, as restries previstas pelo legislador assumem o cariz de lei sumpturia, que se quadraria bem com uma estratgia de conteno de despesas suprfluas, pela forma como poderiam afectar no s uma economia fragilizada (e em fase de renovao), como ainda provocar o agravamento das tenses internas36.

    Nesta mesma linha se situa tambm a ltima lei de Slon que nos propomos discutir, relativa agora pederastia:

    F 74e R (Esquines, 1.138-139): , , . [...] ' ' .

    Um escravo diz lei no pode treinar nem pr leo nas pales-tras. [...] Um escravo no pode ser amante de um rapaz livre nem andar a se-gui-lo, sob pena de ser punido, em pblico, com cinquenta vergastadas de chicote.

    A proibio de os servos frequentarem a palestra pode entender-se como norma de natureza social, uma vez que estes lugares eram usados, sobretudo, por quem dispunha de tempo e dinheiro suficientes para no se ver obrigado a trabalhar. Sendo uma ocupao ligada, em especial, ao estilo de vida dos aristocratas, no pareceria bem ao legislador que os escravos tambm dela pudessem usufruir37. No mesmo sentido se compreende a interdio de os servos privarem em demasia com jovens de situao livre, pois o contrrio seria desprestigiante para os segundos38. Por ltimo, no seria improvvel que, a permitir-se esta forma de amores desiguais, a criana pudesse estar a fugir ao controlo do kyrios.

    36 Para mais, Slon tem outros exemplos de leis sumpturias; cf. F 72c e 73a R. Vide

    resenha das principais teorias em MANFREDINI-PICCRILLI (1995), 229-230, que, ainda assim, preferem a interpretao de pherne como 'dote'.

    37 SONDHAUS (1909) 56-57.

    38 Interpretao sustentada por GAGARIN (1986), 67-68. Idntica motivao poder ter

    assistido proibio de as mulheres se afastarem de casa com roupas, comida e bebida superiores a certos valores (cf. Plutarco, Sol. 21.5-7 = F 72c R).

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    Estes exemplos permitem-nos ver que a obra legislativa de Slon contemplava normas que iam ao encontro das necessidades do seu tempo, tanto no que diz respeito a problemas sociais (como a violao e a prostituio forada), como no que se refere a questes relacionadas com a delicada gesto do oikos (casos de adultrio, de matrimnio, de heranas, entre outros). Se lhes juntarmos as restantes reas contempladas nos fragmentos das leis, no deixa de impressionar o alcance do cdigo do velho legislador ateniense;39 tal facto, alm de fornecer um quadro vivo e elucidativo da sociedade tica, ajuda ainda a justificar a fama que, desde a antiguidade, rodeava a figura deste reformador.

    39 Inclua, por exemplo, desde regras ligadas a delitos privados, ao procedimento judicial,

    ao direito de vizinhana, at questes constitucionais e religiosas. Para mais pormenores, vide LEO (2000) II.6.

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